Resumos
O estudo objetivou conhecer o contexto do homem resiliente ao adoecer por câncer de próstata. Trata-se de um estudo de caso etnográfico realizado com dois homens sobreviventes ao câncer de próstata, com alto grau de resiliência. Os dados foram coletados no domicílio, no período de abril e maio de 2012, por meio da entrevista semiestruturada em profundidade, de observação participante e do ecomapa. Pela análise dos dados construíram-se duas unidades de sentido: "Identidade do homem resiliente: contextualizando os informantes" e "O homem resiliente descobrindo-se doente". Apreende-se que a identidade de ser homem resiliente, para estes informantes, foi marcada pela diferença histórica e cultural que permeou as suas ações, no processo de adoecimento por câncer de próstata. Considera-se importante que os enfermeiros atentem para os aspectos culturais da saúde do homem, para que este possa sentir-se parte integrante do processo de cura, tornando-se sujeito ativo frente à própria saúde.
Saúde do Homem; Cultura; Neoplasias da Próstata; Enfermagem; Resiliência Psicológica
The study aimed to understand the context of resilient man when ill with prostate cancer. This is an ethnographic case study conducted with two prostate cancer survival men with a high degree of resilience. The data was collected on their places, in 2012 April and May, using semi-structured in-depth interviews, participant observation and ecomap. For the data analysis, it was built two units of meaning: "Identity of the resilient man: contextualizing the informants" and "The resilient man finding himself ill". It was noticed that the identity of being a resilient man, to these informants, was marked by historical and cultural difference which permeated their actions in the process of being ill with prostate cancer. It is important that nurses pay attention to the cultural aspects of human health, so that they can feel part of the healing process, becoming an active subject facing their own health.
Men's Health; Culture; Prostatic Neoplasms; Nursing; Psychological Resilience
El estudio enfocó conocer el contexto del hombre resiliente al enfermar por cáncer de próstata. Se trata de un estudio de caso etnográfico realizado con dos hombres sobrevivientes al cáncer de próstata con alto grado de resiliencia. Los datos fueron recogidos en el domicilio, en el período de abril y mayo de 2012, por medio de entrevista semiestructurada en profundidad, observación participante y ecomapa. Por el análisis de los datos, se construyeron dos unidades de sentido: "Identidad del hombre resiliente: contextualizando a los informantes" y "El hombre resiliente descubriéndose enfermo". Se comprende que la identidad de ser hombre resiliente, para estos informantes, fue marcada por la diferencia histórica y cultural que hicieron permeables sus acciones en el proceso de enfermar por cáncer de próstata. Se considera importante que los enfermeros estén atentos a los aspectos culturales de la salud del hombre, para que este se pueda sentir parte integrante del proceso de cura, tornándose sujeto activo frente a la propia salud.
Salud del Hombre; Cultura; Neoplasias de la Próstata; Enfermería; Resiliencia Psicológica
INTRODUÇÃO
A construção da identidade do homem adquire sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos. Essa construção que é tanto simbólica como social, é marcada pela diferença. O corpo é uma das partes que define quem somos, servindo de fundamento para a construção, por exemplo, da sexualidade e da identidade de gênero. Assim sendo, a presença do outro, ou seja, da diferença, é condição primordial para a formação da identidade(1).
Nessa perspectiva, entendemos que na construção da identidade de ser homem com enfoque nos cuidados à saúde, muitos reprimem suas necessidades e recusam-se a admitir a dor e o sofrimento, negando vulnerabilidades e fraquezas constituintes de todo ser humano.
No contexto do câncer, o de próstata é o segundo tipo mais comum na população masculina, sendo considerado o câncer da terceira idade. Aproximadamente 62% dos casos no mundo acometem homens com 65 anos ou mais. Devido ao seu bom prognóstico, a mortalidade por este tipo de câncer é relativamente baixa, sendo que as taxas de sobrevida são de cinco anos para os países em desenvolvimento, em média, de 41%(2).
Assim, ser sobrevivente ao câncer significa viver com e apesar dele, convivendo com os efeitos colaterais e sequelas decorrentes do tratamento realizado para o seu controle(3). Além disso, a sobrevivência é uma trajetória que começa quando a pessoa recebe o diagnóstico de câncer e que continua por toda a vida(4).
Existem pessoas que se deixam abater pelas dificuldades, enquanto outras, além de não sucumbirem a elas, mostram-se capazes de utilizar os momentos difíceis para seu crescimento. Ser resiliente é exatamente isso, trata-se da capacidade de lidar com as adversidades de forma positiva, não eliminando o problema, mas ressignificando-o(5).
Com a evolução dos diagnósticos e tratamentos, um número cada vez maior de indivíduos sobrevive à experiência do câncer, o que suscita o desenvolvimento de novas pesquisas sobre as formas encontradas por estas pessoas para serem resilientes aos impactos causados pela doença.
O presente artigo pretende discutir a construção de ser homem resiliente no adoecer por câncer de próstata na perspectiva cultural. Tendo em vista que cada indivíduo vivencia o processo de adoecimento de maneira distinta, dando sentido a cada acontecimento conforme suas experiências pregressas, esse estudo teve por questão norteadora: "Qual o contexto de adoecer por câncer de próstata para o homem resiliente?" e por objetivo conhecer o contexto do homem resiliente ao adoecer por câncer de próstata.
METODOLOGIA
Tratou-se de um estudo de caso etnográfico, de caráter qualitativo, apoiado em Geertz (1989)(6) a respeito de cultura, e Woodward (2012)(1) com relação à identidade. É um subprojeto de uma pesquisa que possui caráter quantitativo e qualitativo cujo título é A resiliência como estratégia de enfrentamento para o sobrevivente ao câncer.
A coleta dos dados quantitativos caracterizou a população e o grau de resiliência, por meio da Escala de Resiliência desenvolvida por Wagnild e Young(7) e adaptada ao português por Pesce et al.(8). Ocorreu no período de março a junho de 2010, na cidade de Pelotas (RS) e contou com a participação de 264 adultos sobreviventes ao câncer, atendidos na Unidade de Oncologia do Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Na referida escala, os escores têm uma amplitude que varia de 25 a 175 pontos, com escores de 25 a 120 indicando baixa resiliência, de 125 a 145 indicando moderadamente baixa a moderada resiliência e escores maiores que 145 indicando moderadamente alta a alta resiliência(9).
A escolha dos informantes ocorreu em duas etapas. Primeiramente foram selecionados, do banco de dados quantitativos, somente os homens sobreviventes ao câncer com alto grau de resiliência, o que resultou em 40 indivíduos. Posteriormente, foram selecionados somente os homens com histórico de câncer de próstata, o que resultou em 11 indivíduos. Destes, cinco eram moradores de municípios vizinhos - o que impossibilitou a participação em virtude dos critérios de inclusão - dois não foram encontrados - nem por meio telefônico nem pelo endereço informado - um estava muito debilitado devido à idade e de outras comorbidades e outro não se dispôs a participar. Desta forma, a pesquisa contou com a participação de dois homens resilientes e sobreviventes ao câncer de próstata.
A coleta dos dados ocorreu no período de abril e maio de 2012, no domicílio dos informantes. Foram realizados três encontros com cada um, totalizando 720 minutos. Os encontros foram previamente agendados e os dados foram coletados por meio do ecomapa, de entrevista semiestruturada em profundidade, gravada e transcrita na íntegra, e, de observação participante registrada em diário de campo, objetivando conhecer em profundidade o contexto destes homens.
O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas, sob parecer número 31/2009 e financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), processo número 0902702. Além disso, está em conformidade com a Resolução n°196/96 do Conselho Nacional de Saúde/MS(10), sobre Pesquisa com Seres Humanos. Foram garantidos aos informantes: o anonimato, mediante sua identificação por meio das iniciais do nome e a idade (ex: A.B.C., 69 anos), o direito de desistir a qualquer momento da pesquisa e o livre acesso às informações, quando de seu interesse. Os informantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em duas vias.
A análise dos dados foi desenvolvida em dois níveis de interpretação(11). O primeiro foi voltado para a compreensão do contexto dos sujeitos, sua história, sua inserção e participação nos diversos setores que compõe sua rede de relações. Nesse momento, também foi realizado um mapeamento do sistema de saúde local e dos perfis de morbimortalidade. O primeiro nível teve por objetivo compreender o sujeito em sua totalidade, tendo em vista que "todo ato humano que atravessa o meio social se realiza no sujeito que vive, pensa, sente e reflete o mundo".
O segundo nível compreendeu o encontro com os fatos empíricos, procurando, nos relatos dos informantes, o sentido, a lógica interna, as projeções e as interpretações. Esse nível foi operacionalizado em três fases: a primeira, ordenação dos dados, envolveu a transcrição das entrevistas, realizando uma leitura desses materiais juntamente com os diários de campo, de forma ordenada, permitindo o desenvolvimento de um mapa horizontal das descobertas. A seguir realizou-se a classificação dos dados, através da leitura integral dos textos, também chamada leitura flutuante, permitindo identificar as estruturas relevantes, anotando as primeiras impressões e buscando coerência entre as informações coletadas. Além disso, nesta etapa foi realizada uma leitura transversal identificando, em cada discurso, as categorias empíricas, ou seja, as unidades de sentido que foram agrupadas por semelhanças e diferenças. Posteriormente, a análise final, na qual, foi feita releitura das unidades de sentido, em paralelo com os objetivos da pesquisa, integrando os sentidos com os conceitos de cultura e identidade, as bibliografias sobre o tema e o contexto dos informantes.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise das entrevistas permitiu identificar de que forma os homens vivenciaram o diagnóstico e os tratamentos contra o câncer de próstata, e como sua identidade de ser homem influenciou esse processo e foi influenciada por ele.
Os resultados foram agrupados em duas unidades de sentido: "Identidade do homem resiliente: contextualizando os informantes" e "O homem resiliente se descobrindo doente".
Identidade do homem resiliente: contextualizando os informantes
A identidade é marcada por meio de símbolos, que a representam. Para os homens deste estudo, pode-se estabelecer como símbolos que representam sua identidade, ser pai, marido, avô e companheiro. A representação, entendida como um processo cultura estabelece identidades individuais, coletivas, e ocorre por meio das práticas e sistemas simbólicos, pelos quais os significados são produzidos e dão sentido à experiência(1).
A cultura é uma teia de significados que o homem teceu e na qual ele enxerga o mundo, sempre procurando seu significado(6). Assim apresentam-se os homens participantes deste estudo e busca-se apreender as teias construídas por eles, que os fazem ser resilientes e vivenciar a experiência do adoecer por câncer de próstata de formas diferentes.
E.S.M. tem 69 anos, é caucasiano, casado, tem uma filha e uma neta. É aposentado e semianalfabeto. Refere-se católico não praticante e tem fé em Deus. Mora com a esposa em bairro próximo do centro da cidade e possui moradia própria, de alvenaria. Recebeu o diagnóstico de câncer de próstata em estágio avançado no dia 04/10/2002. Realizou cirurgia para retirada total da próstata e radioterapia há 10 anos. Mantém a hormonioterapia mensalmente no Serviço de Oncologia da UFPel. Faz acompanhamento com oncologista do serviço, para exames periódicos como o Antígeno Prostático Específico (PSA) e Densitometria Óssea.
E.S.M. tem ligação muito forte com a família (esposa, filha e neta) e diz pedir a ajuda da filha para tomar atitudes em relação a sua vida (segundo ele "Agora, o chefe mesmo é a minha guria"). No contexto de adoecer por câncer, pode-se perceber uma inversão de papéis, em que se tornou dependente da filha em diversos sentidos, principalmente naqueles relacionados ao cuidado da saúde.
O homem que antes era forte e viril, devido à doença, precisa aprender a lidar com limitações e sentimentos não convencionados - pelo menos não tão claramente - necessita reconstruir a sua identidade numa nova perspectiva de ser homem. Entretanto, isso permanece no privado, porque no público, ainda figura como independente e dono de si, não dependendo de outras pessoas em diversos aspectos da sua vida, aqui exemplificados pela questão de ir a à Igreja: "Eu não preciso sair da minha casa, voltar para cá meia noite para ir pedir para os caras pedirem para Deus me ajudar".
C.B. tem 69 anos, é negro, casado, tem três filhos e três netos. É aposentado, estudou até a 5ª série do Ensino Fundamental. Refere-se católico não praticante e tem fé em Jesus. Mora com a esposa em um bairro próximo ao centro da cidade, em apartamento próprio, em um conjunto habitacional popular. Recebeu o diagnóstico de câncer de próstata em estádio inicial há aproximadamente três anos. Não realizou procedimentos cirúrgicos, nem hormonioterapia, somente sessões de radioterapia. Atualmente, realiza acompanhamento médico e exame de PSA semestralmente.
A característica principal de C.B. é a noção de que é o homem que deve tomar todas as decisões na família e perante a sociedade. Nesse sentido, apesar de serem divididos os problemas no ambiente familiar de C.B, quem dá a última e decisiva palavra é ele. "Podemos combinar, mas a palavra decisiva é minha. Sempre foi e sempre vai ser enquanto eu viver". Além disso, ao vivenciar o câncer, C.B. não considerou importante envolver a família nesse processo, entendendo como participantes somente ele e o profissional de saúde.
Apresenta também dificuldades em confiar nas pessoas "Assim ... eu não confio nas pessoas, sabe como é? Não acredito, sabe... é muito difícil!". Esta forma de pensar é reflexo da construção histórica, social e cultural de ser homem, uma vez que ele teve que aprender a ser independente desde a infância, lidando com as dificuldades sem pedir auxílio a ninguém. Assim, ele procura não aprofundar suas relações sociais, mantendo o mínimo contato com os vizinhos e com seus irmãos, pelo receio de que, em algum momento, possa vir a sofrer.
C.B. também revela sua aversão a vícios muito comuns em homens na atualidade, como o alcoolismo. Rejeita o convívio com seus irmãos, por conta de "São pessoas [os irmãos] que ... são bem humildes, com vício de bebida sabe? Se eles próprios não se ajudam, como vão ajudar?"
A caracterização dos homens do estudo possibilitou compreender que a identidade de cada indivíduo se constrói mediante os significados que atribui às suas experiências, imersas no seio familiar de origem que, por sua vez, insere-se em determinada classe social, no tempo e no espaço(12). Conforme o modelo culturalmente construído e ainda vigente na sociedade atual são enfatizadas noções de que o verdadeiro homem é reservado e solitário, não expondo suas experiências pessoais(13).
Diante disso, necessita-se compreender o homem como ser histórico e cultural, que constrói e significa sua identidade mediante as teias de relação por ele construídas e que dão sentido a como ele entende e vivencia as situações, inclusive de doença, neste caso, o câncer de próstata.
A resiliência presente nesses homens não surgiu com a doença, ela permeou as suas trajetórias de vida. Em E.S.M. ela foi construída por meio do trabalho e das relações familiares. Apesar da pouca escolaridade, ele buscou em diversas atividades profissionais (agricultor, marteleteiro, moldador, operador de máquinas e carpinteiro) a sua afirmação social, o que fundamentou a sua identidade de homem, pai, marido e provedor do lar.
Quando criança, C.B. vivenciou o abandono afetivo e, por vezes, físico, principalmente do pai. Este fato fez com que ele percebesse que a sua sobrevivência dependia única e exclusivamente de si mesmo. Desta forma, a resiliência pode ser percebida como algo intrínseco nesse homem, que tem o autocuidado como primordial em sua vida.
Apreende-se com o contexto dos homens, a necessidade da enfermagem atentar para as questões sociais e culturais nas quais eles se inserem, ao descobrirem-se com uma doença crônica como o câncer. Ainda, a compreensão de como constroem a resiliência possibilita que a enfermagem se aproxime dessa clientela e construa com ela as ações de cuidados voltadas para as suas reais necessidades.
O homem resiliente descobrindo-se doente
Sob esta temática, é relatado como foi para esses homens vivenciar os primeiros sintomas do câncer e receber a confirmação da doença após os exames. Além disso, será apresentado de que maneira a identidade de ser homem resiliente contribui para a construção do processo de adoecer por câncer de próstata.
O trabalho tem um importante papel na vida dos indivíduos. Para E.S.M., o trabalho representa uma forma de ser homem, condição primordial para sua autonomia enquanto ser humano. O trabalho é considerado determinante no tocante a garantir a autoridade masculina perante a família(14).
O ambiente de trabalho foi atribuído como possível desencadeador da doença, o câncer:
Olha, guria, eu trabalhei 22 anos, em Granja. Dentro da água, no barro. Então às vezes, por causa do frio, ainda no meio da geada, às vezes eu ia urinar e sentia uma ardenciazinha na uretra, para urinar. Então aquilo passou tantos anos que eu acostumei, para mim era normal. [...] Mas nunca dei bola. [...] Aí quando já fazia uns 20 anos, 30... [...] eu estava trabalhando e aí disse para os meus companheiros: "ó rapaz, eu estou assim, assim ..." e eles: "mas vai no doutor!" Eu: para que, para mim era normal! (E.S.M., 69 anos)
No depoimento deste homem, percebe-se que ele associa a ardência urinária ao fato de trabalhar em ambiente frio e úmido. Além disso, esse sintoma foi compreendido, por muitos anos, como parte constituinte da sua fisiologia. Ressalta-se o fato de ele ter postergado a busca por auxílio médico durante tanto tempo, fato que se acredita vir ao encontro da construção social relacionada à saúde do homem, que ainda o sugestiona como invulnerável.
A imagem do homem como ser forte pode implicar menores cuidados com o próprio corpo e com a saúde, tornando-o vulnerável a diversas situações(15). Além disso, considerando a necessidade de cuidados, a maioria dos homens tem dificuldade em buscar ajuda em virtude de sua auto percepção(16), uma vez que procurar um serviço de saúde implicaria admitir ser vulnerável(17).
Na fala de E.S.M., percebe-se que o primeiro sintoma de doença estava relacionado à dificuldade mictória. Este sintoma também foi percebido por C.B.:
O bagulho é o seguinte, no momento que eu senti que não estava bem eu procurei, [...] não tive dor, sabe o que que é dor? [...] no momento que eu senti que não estava urinando direito, eu procurei ele [o doutor].
No depoimento, além da dificuldade urinária, C.B. ainda estabelece a relação da doença com a dor que, no seu entendimento, seria um avanço do quadro da doença. Observa-se ainda a construção social do homem, com um ser forte, capaz de aguentar os reveses da vida sem queixas, e, junto com isso o alívio por não ter vivenciado o sofrimento, que é uma das crenças de que quem tem câncer deve sofrer.
Quando os sintomas levam o homem a perceber que o seu problema de saúde pode ser algo mais sério, é o momento em que ele busca ajuda do profissional de saúde:
Aí um dia marquei uma consulta aqui com a Dra. J., [...] e aí consultei e aí pedi, eu disse para ela: "ó Dra. eu estou assim, assim, assim" e eu nunca fiz exame de próstata e queria que a senhora me desse um papel para mim fazer um exame. Aí ela disse: "O senhor está com 13 pontos e meio, no sangue, no PSA." Acredito que ela tenha mandado fazer um PSA, naquele tempo eu não entendia ... Aí ela disse que eu ia ter que procurar um especialista com urgência. (E.S.M., 69 anos)
Observa-se nesse depoimento a preocupação com a doença, a ponto de pedir que fosse feito um exame específico que desse sentido aos seus sintomas. A constatação de que há um problema na próstata vem com o resultado de um exame que não era de seu conhecimento, o PSA, e com ele, a indicação da urgência na busca de um especialista. Neste momento, percebe-se o saber do profissional como parte do discurso do senso comum que busca traduzir para a linguagem do homem, a simbologia do exame que revela a sua condição de doente.
Outro estudo também relata o desconhecimento, por parte dos homens, quanto ao significado e a importância do PSA como exame de triagem para o câncer de próstata. Nesse contexto, ressalta-se a importância de que o médico explique quais exames ele está solicitando e as indicações dos mesmos. Desse modo, prestar os esclarecimentos necessários antecipadamente, pode evitar maiores surpresas e proporcionar tranquilidade aos homens, caso o resultado apresente alterações sugestivas de câncer(18).
Outro exame comumente solicitado pelos urologistas, para auxílio no diagnóstico de câncer de próstata, é o exame de toque retal, também chamado toque digital da próstata. Esse exame, considerado de baixo custo, é um procedimento que movimenta o imaginário masculino e provoca desconforto muito mais psicológico do que físico. Tocar em uma parte pouco usual, para a maioria dos homens provoca, geralmente, sentimentos negativos. Além disso, por ter um dedo introduzido no reto, muitos homens encaram o exame como perda de sua masculinidade. O toque retal pode ser compreendido ainda como uma ameaça à heterossexualidade e à virilidade do homem, sendo tabu nos cuidados a saúde(19).
Eu estou dizendo, no momento que eu senti que não estava urinando direito, eu procurei, falei pra ele e ele disse que eu ia fazer aquele toque, como é que é, uma vez por ano, a partir dos quarenta, entende. (C.B., 69 anos)
Consultei com o Dr. S. ele me fez o exame de toque, e disse que tava ruim mesmo. (E.S.M., 69 anos)
Ao contrário do que muitos homens referem sobre o exame de toque retal, os informantes desse estudo não relatam queixas ou constrangimentos. Inclusive eles demonstraram ter consciência da importância do exame na diagnose precoce "eu senti aquele problema, eu tomei a providência" (C.B., 69 anos). Tomar providência remete à questão do poder sobre o próprio corpo e optar por realizar os exames necessários para a descoberta de seu problema de saúde.
Apesar de não expressar receio em relação ao exame em si, o medo de estar com câncer foi maior e a crença de estar agindo de forma precoce "e o câncer, por mais cruel que fosse, não ia surgir hoje e já me matar amanhã!" (C.B., 69 anos) remete novamente para o temor da morte que culturalmente o câncer impõe às suas vítimas. O resultado do exame de toque retal causou temor a estes homens, uma vez que tiveram a confirmação de que algo "estava ruim mesmo" (E.S.M., 69 anos).
Ressalta-se ainda que, pelo fato desses homens serem gaúchos, acredita-se que a cultura do Rio Grande do Sul possa ter refletido em como eles significam suas experiências de doença, uma vez que, historicamente, os homens são entendidos como fortes, corajosos, viris, que lutam por seus ideais e que não se expõem como frágeis. Em C.B. isso se evidencia pelo fato dele entender o câncer como algo a ser enfrentado "sem alarde". Em E.S.M., encontra-se o típico gaúcho contador de histórias, que busca mostrar-se forte. Para ele, cada fato tem extrema relevância e em cada relato ampliam-se as percepções e significados.
As emoções oriundas do diagnóstico variam conforme cada pessoa percebe sua própria condição(20). A forma como a notícia é dada ao homem pode minimizar ou ampliar os sentimentos contraditórios que emergem diante de um diagnóstico de câncer(18). Cada pessoa entende as situações cotidianas conforme suas vivências e segundo as lições que a vida lhes proporcionou(6).
Eles [família] pensaram que eu não sabia, mas não tinha outra doença na próstata a não ser câncer e eu nunca falei nada. Graças a Deus esse meu não era muito bandido, não era muito comedor. A doença, o câncer, é um vírus infeccioso que vai infeccionando. (E.S.M., 69 anos)
Quando eu descobri esse [o câncer], não sei, não sei, as pessoas dizem que dá aquele "ai". A vida é aqui pô! Vai ter que te conhecer, te trata e vai vendo, é isso... Não entrei em pânico, não acreditei que a morte fosse capaz de... Porque tem gente que a primeira coisa, "pum", agora eu vou morrer! E isso aí nunca me passou na cabeça. Claro, é uma preocupação natural. O que é pra fazer eu vou fazer, e faço até hoje! (C.B., 69 anos)
E.S.M. afirma ter consciência do que acontecia com sua saúde, apesar de não receber uma explicação que entendesse com clareza. Agradece ainda, por "seu câncer não ser muito comedor", demonstrando que enfrentar uma enfermidade não inclui somente a experiência pessoal pregressa do indivíduo, mas também, o sentido que dá para os sintomas e a doença, tendo em vista o contexto cultural, social e econômico em que está inserido(19). Ao compreender e expressar o câncer como "comedor", E.S.M. refere por metáfora, o quão sofrida e penosa é a experiência de vivenciar essa doença, que ainda carrega o estigma de ser algo que corrói e consome o corpo vagarosamente(20).
Na fala de C.B. percebe-se autossuficiência e coragem para lidar com a doença que o acometeu. Acredita-se que esse modo de encarar a enfermidade possa ter origem na construção histórica, social e cultural permeada pelo abandono familiar. Desde muito jovem, C.B. teve que aprender a cuidar de si. Conforme seu relato, o pai "[...] não foi grande coisa. Pai, aquele pai mulherengo... uma mulher em cada bairro, um filho por ali ... um homem que nunca ... sabe ... pai qualquer um pode ser."
A terapia medicamentosa ocasionou desconforto ao homem, alterando inclusive a sua percepção das coisas. Isso, além de reações que comprometeram o seu dia a dia e causaram alterações anatômicas.
Não posso enxergar café preto, Coca-Cola [...] Mas que mistura que tem nesse remédio que é logo as coisas escuras que eu não posso enxergar? A televisão me "vira os miolos" tudo. (E.S.M., 69 anos)
Comentou ainda, mostrando o peito, que suas mamas haviam crescido e endurecido, complementando rindo que estavam melhores do que as de muitas mulheres que utilizam silicone. (Diário de Campo de E.S.M., número 02, 20/04/12)
Pelo relato de E.S.M., percebe-se que a medicação utilizada para controle do câncer vinha ocasionando significativo desconforto no desempenho de atividades cotidianas, por exemplo, comer e assistir televisão. Aliado a isso, a percepção de que seu corpo, antes viril e masculino, estava adquirindo características femininas como o crescimento das mamas, o que o levou a questionar se não haveria solução para o problema.
A médica reitera que, em casos extremos, para indivíduos que não se adaptam à medicação, pode ser feita a retirada dos testículos, o que cessaria a produção de hormônios. Neste momento, E.S.M. sério, corpo projetado para frente e tom de voz mais alto, diz que não precisa chegar a este extremo, que tentaria as outras opções. (Diário de Campo de E.S.M., número 02, 20/04/12)
Os tratamentos medicamentosos, em especial a hormonioterapia, provocam mudanças corporais que tendem a refletir negativamente na autoimagem de ser homem. Além de alterações na libido, o crescimento das mamas e as mudanças de peso ocasionam intenso sentimento de perda, pois, para o homem, o corpo já não é como era antes e as alterações permanentes são uma lembrança constante da experiência do câncer(21).
Para E.S.M, a retirada dos testículos acarretaria significativa alteração na sua visão de ser homem, uma vez que estes simbolizam, psicológica e fisicamente, a sua virilidade.
Ao analisar a experiência do câncer sob a ótica cultural pode-se perceber que toda a trajetória vivida pela pessoa tem características subjetivas, que são identificadas e simbolizadas segundo o seu conhecimento prévio sobre a enfermidade. Em uma situação-limite, cada indivíduo busca um sentido para a experiência baseado nos aspectos culturais e sociais do grupo a que pertence, que também o auxiliam a decidir sobre quais recursos dispor(22).
Independente do tipo de câncer e da duração dos tratamentos, vivenciar um processo de adoecimento nunca é uma experiência fácil. Para os homens, culturalmente distanciados por interfaces de sua identidade, a procura por auxílio do sistema de saúde precocemente, não costuma ser rotineira. Diante disso, destaca-se a importância da atuação da equipe de saúde nesse processo, em especial, da enfermagem, para auxiliá-los a atentar para o cuidado da própria saúde.
A enfermagem pode criar espaços de fomento à promoção da saúde masculina, por meio do aproveitamento das situações cotidianas dos serviços de saúde, orientando aqueles que procuram a unidade quanto aos fatores de risco e medidas de prevenção do câncer de próstata, buscando identificar também os indivíduos que apresentam algum sinal ou sintoma que possa indicar alterações associadas(23).
Ser homem resiliente manifesta-se em diversos momentos durante a trajetória da enfermidade: no momento que identifica os primeiros sinais da doença em seu corpo e que busca a assistência à saúde, e no enfrentamento de forma positiva do diagnóstico e tratamento para o câncer de próstata, principalmente ao considerar-se que essa é uma doença que afeta o imaginário masculino e que provoca alteração da autopercepção da sua identidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse estudo, pode-se perceber que a identidade de ser homem resiliente, culturalmente construída, permeou a maioria das ações, no tocante ao processo de adoecimento por câncer de próstata. Um dos homens, ao considerar os sintomas iniciais como decorrentes de sua atividade laboral, demorou a procurar auxílio médico. O outro, por ser mais atento aos cuidados com sua saúde, realizava os exames periodicamente, o que fez com que seu câncer fosse descoberto precocemente e por consequência, a terapêutica foi menos impactante.
Assim, apesar da experiência de ter o câncer de próstata, a despeito de assemelhá-los na perspectiva da identidade como homem resiliente, a representação desse processo marcou as diferenças entre eles, fruto, possivelmente, da construção histórica e social, cujas práticas de cuidados a à saúde são simbolizadas e dão sentidos à experiência daquilo que eles são e que podem vir a ser. Desse modo, a reconstrução da identidade de homem resiliente, passa pelo processo de ser, hoje, idoso. Acredita-se que os aspectos culturais que permeiam as formas de pensar, agir e lidar com a doença foram fundamentais para a construção de ser homem com alto grau de resiliência.
Desta forma, considera-se a importância de que, no tratar e cuidar da saúde dos homens, os (as) enfermeiros(as) atentem para os aspectos culturais que tornam esse ser humano único e especial. As chances de continuidade de qualquer terapêutica aumentam, pois o sujeito sente-se parte integrante do processo de cura e superação, tornando-se ativo frente à própria saúde.
Acredita-se que a limitação do presente estudo relaciona-se ao fato de ter um número de informantes restrito, e, portanto, não ser passível de generalizações. No entanto, como os estudos qualitativos buscam apreender o fenômeno em profundidade o estudo respondeu aos objetivos.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Nov-Dec 2014
Histórico
-
Recebido
23 Mar 2013 -
Aceito
12 Out 2014