Resumo
As políticas de investimento na Atenção Primária à Saúde (APS) possuem um papel fundamental na organização dos sistemas de saúde. No Sistema Único de Saúde (SUS), esse aspecto torna-se ainda mais relevante por ser o ente estruturante do sistema. Apesar de sua importância, os estudos das políticas de investimento na APS possuem um caráter mais descritivo que pouco colabora com o entendimento do processo histórico e político. Para suprir essa lacuna, este artigo tem como objetivo analisar as políticas de investimento para a APS no SUS, com base na perspectiva do neoinstitucionalismo histórico. Os dados primários e secundários foram coletados por meio de revisão bibliográfica, levantamento documental e entrevistas com atores-chave. Para a análise desses dados, buscou-se, de forma indutiva, associar características do sistema de saúde e do modelo de APS brasileiro à trajetória das políticas de financiamento federal destinadas a investimentos em infraestrutura, equipamentos e tecnologia na APS. Os resultados apresentados: i) identificam fortalezas e fragilidades nas políticas de investimento na APS, com uma lógica contextual e histórica dos fatores que contribuíram para esse processo e ii) recomendam ações, tomadas de decisão e políticas divididas em três categorias: histórico do investimento na APS, necessidades de financiamento na APS e impacto do financiamento nos resultados da APS. Portanto, este trabalho contribui com os estudos sobre a APS e o neoinstitucionalismo histórico e aponta aspectos práticos para os tomadores de decisão, com o objetivo de fortalecer as políticas de investimento na APS do SUS.
Palavras-chave: neoinstitucionalismo histórico; política de saúde; atenção primária à saúde; investimento em saúde; financiamento em saúde
Resumen
Las políticas de inversión en atención primaria de salud (APS) desempeñan un papel fundamental en la organización de los sistemas de salud. En el Sistema Único de Salud brasileño (SUS) ese aspecto se torna aún más relevante, por ser la entidad estructurante del sistema. A pesar de su importancia, los estudios sobre las políticas de inversión en la APS tienen un carácter más descriptivo que contribuye poco a la comprensión del proceso histórico y político. Para llenar esa laguna, este artículo tiene como objetivo analizar las políticas de inversión para la APS en el SUS desde la perspectiva del neoinstitucionalismo histórico. Los datos primarios y secundarios se recolectaron a través de revisión bibliográfica, relevamiento documental y entrevistas a actores clave. Para el análisis de estos datos, se buscó de forma inductiva asociar características del sistema de salud y del modelo de APS brasileño con la trayectoria de las políticas de financiación federal destinadas a inversiones en infraestructura, equipos y tecnología en la APS. Los resultados presentados i) identifican fortalezas y debilidades en las políticas de inversión en APS con una lógica contextual e histórica de los factores que contribuyeron a este proceso y ii) recomiendan acciones, tomas de decisiones y políticas divididas en 3 categorías - historial de la inversión en APS, necesidades de financiamiento de la APS e impacto del financiamiento en los resultados de la APS. Por lo tanto, este trabajo contribuye a los estudios sobre APS y neoinstitucionalismo histórico y señala aspectos prácticos para los tomadores de decisión con el objetivo de fortalecer las políticas de inversión en APS del SUS.
Palabras clave: neoinstitucionalismo histórico; políticas de salud; atención primaria de salud; inversión en salud; financiación de la salud
Abstract
The investment policies for Primary Health Care (PHC) are fundamental to the health system organization. In the Brazilian Unified Health System (Sistema Único de Saúde - SUS), this aspect is even more relevant due to its structural role in the system. Despite their importance, studies on investment policies in PHC tend to be more descriptive, contributing little to the understanding of the historical and political process. This paper aims to fill this gap by analyzing the investment policies for PHC in SUS based on the historical neoinstitutionalism perspective. The primary and secondary data were collected through bibliographic review, document collection, and interviews with key actors. The data were analyzed using an inductive approach to associate characteristics of the health system and the Brazilian PHC model with the trajectory of federal funding policies aimed at investments in infrastructure, equipment, and technology in PHC. The results i) identify the strengths and weaknesses in PHC investment policies with a contextual and historical perspective of the contributing factors in this process, and ii) recommend actions, decision-making, and policies divided into the 3 categories - PHC investment history, need to finance PHC, and financing impact of the PHC results. Therefore, this study contributes to PHC and historical neoinstitutionalism studies and points out practical aspects to decision-makers to strengthen the investment policies for PHC in SUS.
Keywords: historical neoinstitutionalism; health policy; primary health care; health investment; health financing
1. INTRODUÇÃO
A estruturação de sistemas de saúde com base na Atenção Primária à Saúde (APS) é uma das principais recomendações das Nações Unidas para o alcance da Cobertura Universal à Saúde, meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até o ano de 2030 (United Nations [UN], 2019). Além de benefícios para a saúde, o bom funcionamento de sistemas de saúde também gera resultados econômicos e sociais para as nações (World Health Organization [WHO], 2018). Reconhecer o valor econômico e social de sistemas de saúde é crucial para que governos aperfeiçoem mecanismos de financiamento dos sistemas de saúde, inclusive na APS.
Os sistemas de saúde são constituídos por organizações, pessoas e ações cuja principal finalidade é promover, restaurar ou manter a saúde (WHO, 2000). Para alcançar seus objetivos, os sistemas de saúde precisam executar algumas funções básicas, como prestar serviços individuais e coletivos; desenvolver profissionais de saúde; garantir acesso a produtos médicos essenciais, vacinas e tecnologia de qualidade; dispor de sistemas de informação em saúde; mobilizar e alocar recursos financeiros e garantir liderança e governança do sistema de saúde (WHO, 2007).
A APS, por sua vez, é reconhecida como a principal e mais adequada forma de prover o acesso das pessoas ao sistema de saúde, já que está diretamente associada a uma distribuição mais equitativa da saúde entre a população (Fernandez et al., 2024; Starfield et al., 2005). Responsável pela prestação de serviços essenciais de saúde, incluindo o manejo de doenças não transmissíveis e ações de saúde pública, o adequado financiamento da APS é decisivo para que sistemas de saúde tenham bom desempenho (Hanson et al., 2022).
A análise do financiamento dos sistemas de saúde é fundamental para compreender as interações entre prestadores de serviços de saúde e a população, incluindo quem paga pelos cuidados, quando paga, quanto paga, para quem, quais serviços obtêm e que tipos de serviço podem receber (Papanicolas et al., 2022). Investimentos, por sua vez, compõem uma parte estratégica do financiamento de sistemas de saúde (Jamison et al., 2013). Considera-se investimento a despesa em bens e serviços que serão utilizados na produção de outros bens e serviços.
Uma das funções mais importantes de um governo é o processo de decidir como investir e distribuir seus recursos (Atun & Moore, 2021). Essas funções influenciam o desenho e o desempenho do sistema de saúde. Nesse sentido, a análise do financiamento requer a interpretação dos sistemas de saúde como organizações complexas. Seu desempenho é influenciado por fatores contextuais e por componentes estruturais que estabelecem relações dinâmicas e interativas entre si.
No Brasil, a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) promoveu melhorias no acesso a serviços de saúde e nos resultados em saúde no país (Castro et al., 2019). Apesar de ser cronicamente subfinanciado, os incentivos financeiros federais no SUS induziram a ampliação da oferta assistencial. A criação do Piso da Atenção Básica (PAB) foi um exemplo de sucesso que permitiu expandir a APS (Massuda, 2022). No entanto, essa expansão não foi homogênea, em termos de infraestrutura, pessoal, insumos e tecnologia, ocasionando variações na qualidade assistencial.
Para melhor compreender a evolução das políticas de investimento na APS, foram desenvolvidos, nos últimos anos, diversos estudos descritivos e quantitativos, mas que pouco colaboraram para o aprofundamento histórico, político e organizacional dessa evolução. Com fins de preencher essa lacuna acadêmica e prática, o objetivo deste artigo é analisar as políticas de investimento em Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde à luz do neoinstitucionalismo histórico.
Para isso, foram utilizadas análise documental, entrevistas com atores-chave e revisão da literatura especializada. Como modelo de análise, buscou-se associar as características do sistema de saúde e do modelo de APS brasileiro à trajetória institucional histórica das políticas de financiamento federal destinadas a investimentos em infraestrutura, equipamentos e tecnologia na APS. Com a identificação de fortalezas e fragilidades nas políticas de investimento na APS, são apresentadas recomendações para o SUS. Assim, este trabalho colabora com: i) a academia, nas áreas de administração pública, ciência política e saúde pública, ao avançar nos debates teóricos sobre políticas de investimento na APS, por meio do neoinstitucionalismo histórico e ii) a prática, ao apontar recomendações para os tomadores de decisão municipais, estaduais, nacionais e internacionais sobre as políticas de investimento na APS do SUS.
2. NEOINSTITUCIONALISMO HISTÓRICO E AS POLÍTICAS DE SAÚDE
A(s) teoria(s) neoinstitucionalista(s) tem(têm) sido utilizada(s) nos últimos anos como um framework teórico para analisar a evolução, o comportamento e a relação de diversos fenômenos, incluindo as políticas públicas. De forma mais aprofundada, essa corrente teórica busca entender como as instituições - foco central de análise - interagem com a sociedade, produzem efeitos na sociedade e sofrem influência dela e, por conseguinte, se desenvolvem, moldam comportamentos individuais e coletivos (Vielba, 2005).
De acordo com as políticas públicas, o desenvolvimento do neoinstitucionalismo levou à concepção de quatro novas vertentes para ajudar a compreender os aspectos de redistribuição, regulação, modernização e liberalização, que são os aspectos histórico, neoeconômico, normativo e billard ball (Reich, 2000). Hall e Taylor (2003) acompanham o pensamento anterior de Reich (2000), mas as sintetizam em três sentidos: histórico, escolha racional e sociológico.
Enquanto o i) neoinstitucionalismo racional foca o interesse racional dos atores e como estes maximizam os seus resultados, com base no contexto normativo, e o ii) neoinstitucionalismo sociológico reflete que as instituições provêm do contexto cultural e social vivido e são moldadas por ele, o iii) neoinstitucionalismo histórico está centrado na evolução temporal das instituições políticas e como estas moldam, ou não, o comportamento dos atores (Hall & Taylor, 2003). Assim, para atender ao objetivo deste trabalho, de analisar as políticas de investimento em APS no SUS, o neoinstitucionalismo histórico é o que melhor se enquadra e, portanto, torna-se a sua base teórica.
Apesar de o neoinstitucionalismo histórico ter como foco as instituições políticas formais, essa abordagem não exclui a análise dos demais fatores que envolvem a explicação dos comportamentos coletivos ou individuais (Immergut, 1998; Radaelli et al., 2012). Com essa perspectiva, ao se utilizar o neoinstitucionalismo histórico para analisar uma política pública, dá-se ênfase à sequência histórica dos acontecimentos, ao padrão de dependência e relação entre eles e às junções críticas que afetam a mudança, ou não, institucional (Graf, 2023).
Existem momentos históricos que caracterizam transformações políticas e institucionais, formais ou informais, e que, muitas vezes, podem gerar mudanças nas políticas públicas adotadas (Barzelay & Galego, 2006). Recentemente, a pandemia da COVID-19 foi um desses momentos históricos que geraram alterações institucionais e políticas na administração pública, que refletiram também na implementação de novas políticas públicas para mitigar seus efeitos (Ongaro & Longo, 2021).
Em trabalhos anteriores, pode-se observar a utilização do neoinstitucionalismo histórico para estudar políticas de saúde em contextos de sistemas nacionais de saúde, como é o caso do SUS. Powell (2016) discute a importância do momento histórico das instituições para que políticas de saúde e, consequentemente, sistemas de saúde possam ser transformados e aprimorados, como é o caso do Serviço Nacional de Saúde britânico (NHS). No caso brasileiro, Cavalcanti et al. (2022) evidenciaram o quanto o contexto político-institucional e histórico de cooperação entre governo e academia foi importante para o desenvolvimento de uma política pública de saúde específica, o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB).
3. METODOLOGIA
3.1. Desenho da pesquisa
Este é um estudo exploratório, que tem como objetivo fazer um diagnóstico das políticas de investimento em APS no âmbito do SUS, descrevendo e analisando as fortalezas e fragilidades dessas políticas à luz de suas trajetórias históricas. Foi realizada uma análise articulada das características do sistema de saúde e do modelo de APS no Brasil com as políticas de investimento, que tiveram como foco a alocação de recursos em infraestrutura, equipamentos e tecnologia para a APS. Assim, o estudo se baseia em uma análise qualitativa, com base no neoinstitucionalismo histórico, em que as mudanças institucionais condicionadas pelo contexto histórico e pela passagem do tempo são importantes para entender os processos das políticas (Hall & Taylor, 2003).
Para caracterizar o SUS, utilizou-se o referencial teórico-metodológico proposto por Atun e Moore (2021) para análise de sistemas de saúde. Segundo os autores, tal análise requer compreendê-los como organizações complexas, cujo desempenho é influenciado por fatores contextuais (epidemiológico, demográfico, tecnológico, econômico, político, regulatório, cultural e ambiental) e por componentes estruturais que estabelecem relações dinâmicas e interativas entre si, conforme mostra a Figura 1.
3.2. Coleta de dados
Com base em uma lógica exploratória, qualitativa e histórico-institucional, este estudo utilizou fontes de dados primários e secundários. Os dados secundários foram obtidos por meio de pesquisa documental, com posterior análise dos documentos que apresentam e descrevem o sistema de saúde e as políticas de investimento. Os principais documentos técnicos que serviram para o levantamento documental deste estudo são:
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O Sistema Público de Saúde Brasileiro. Seminário Internacional Tendências e Desafios dos Sistemas de Saúde nas Américas (Ministério da Saúde, 2002).
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Documento orientador para investimentos na rede assistencial (Ministério da Saúde, 2022).
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Portal da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (Saps) (Ministério da Saúde, 2023a).
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Novo PAC: Saúde terá investimento de R$ 31 bilhões nos próximos anos (Ministério da Saúde, 2023b).
Os dados primários foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com atores-chave que participaram da execução e/ou da formulação de políticas de APS e de investimento em saúde no Ministério da Saúde (MS), em secretarias de saúde de estados ou municípios, além de membros dos conselhos nacionais de secretários estaduais de saúde (Conass) e de secretarias municipais de saúde (Conasems), conforme apresentado no Quadro 1. Ao todo, foram realizadas sete entrevistas semiestruturadas, com cerca de 250 minutos de gravações.
3.3. Análise de dados
A avaliação dos dados da pesquisa documental e das entrevistas foi realizada com base no modelo de análise do SUS e seu sistema de governança. Nesse sentido e com base na utilização da lógica indutiva, foi criada uma matriz analítica fundamentada nas pontuações apresentadas pelos entrevistados (Quadro 2).
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
4.1. Caracterização do sistema de saúde brasileiro
4.1.1. Organização e governança
O SUS foi estabelecido segundo princípios definidos pela Constituição Federal de 1988 - saúde como direito universal e uma responsabilidade do Estado - e regulamentado por leis federais, decretos e portarias ministeriais subsequentes. Descentralizado para o âmbito municipal, a responsabilidade governamental é compartilhada entre os três níveis de governo - federal, estadual e municipal -, que possuem autonomia política, financeira e administrativa. O SUS conta com mecanismos de participação social em todas as esferas de governo. Além disso, o sistema de saúde é aberto à participação do setor privado.
O MS tem a responsabilidade de formular a política nacional de saúde, financiar e oferecer cooperação técnica aos níveis subnacionais, incluindo a coordenação nacional dos sistemas de vigilância sanitária e epidemiológica, de informação, controle, auditoria e avaliação do sistema de saúde (Marques et al., 2016). Os municípios são os principais responsáveis pela provisão das ações e dos serviços de saúde, especialmente pela APS. Os estados têm a obrigação de organizar as redes regionais, além de estar encarregados de fornecer cooperação técnica e financeira aos municípios e atuar na provisão de serviços de média e alta complexidades.
As comissões interfederativas, os processos de planejamento integrados e os acordos de financiamento têm sido fundamentais para estabelecer responsabilidades compartilhadas e promover a colaboração entre os diferentes níveis de governo. A Comissão Intergestores Tripartite (CIT), composta por representantes do MS, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), é responsável por discutir e aprovar políticas nacionais de saúde. Similarmente, nas esferas estaduais e regionais, as Comissões Intergestores Bipartite (CIB) e as Comissões Intergestores Regionais (CIR) pactuam a implementação de políticas nacionais e a definição de políticas estaduais.
O planejamento de saúde é obrigatório em todos os níveis de governo, seguindo uma abordagem ascendente do nível municipal ao federal. Esse processo objetiva harmonizar as necessidades de saúde, considerando fatores epidemiológicos, demográficos e socioeconômicos, com os recursos disponíveis e as metas da política de saúde. Entretanto, apesar da previsão legal de um ciclo integrado de planejamento entre as esferas federativas, desafios como fragilidades na organização do sistema regional de saúde, desigualdades na alocação de recursos financeiros e rotatividade de gestores limitam a efetividade do processo de planejamento ascendente (Massuda et al., 2023).
4.1.2. Financiamento
O SUS é financiado por receitas fiscais gerais, oriundas de contribuições e de impostos, em que participam as três esferas de governo. Os percentuais de investimento financeiro dos municípios, dos estados e da União no SUS são definidos, atualmente, pela Lei Complementar nº 141/2012.
Em 2019, o gasto total com a saúde no país foi de 9,6% do PIB, sendo 59,1% de fonte privada e 41,9% de receitas públicas (WHO, 2023). Desde os anos 2000, os municípios tiveram o maior crescimento percentual de gastos no SUS, compensando a redução relativa da participação do Governo Federal (Funcia, 2019).
Apesar da redução da participação, os incentivos financeiros federais ainda mantêm grande capacidade de induzir a implementação de políticas nacionais de saúde em âmbito local. Além disso, a criação do sistema de transferência de recursos fundo a fundo possibilitou que ocorresse um rápido fluxo de recursos do Governo Federal para as esferas subnacionais, que foi uma facilitadora a transferência de recursos financeiros do Governo Federal para estados e municípios na resposta à pandemia da COVID-19 (Massuda et al., 2023)
A alocação de recursos financeiros no SUS é regulamentada por dispositivos normativos que definem as competências de cada esfera de governo e as condições necessárias para que estados e municípios assumam responsabilidades pela gestão do SUS. Apesar de a Norma Operacional Básica (NOB-96) ter estabelecido o cálculo do repasse de recursos federais com base populacional, a alocação permanece, em grande parte, vinculada à lógica da oferta, à capacidade instalada existente e às necessidades de receita dos prestadores de serviços de saúde, que se concentram nas áreas mais desenvolvidas e em ações nem sempre compatíveis com as necessidades da população. No âmbito dos estados, os critérios adotados para a distribuição de recursos entre os municípios eram, em geral, pouco explícitos (Ministério da Saúde, 2002).
Recursos do orçamento geral da União para estados e municípios também são alocados por meio de recursos de programa/ação e de emendas parlamentares. O recurso de programa/ação é a dotação orçamentária na qual as entidades públicas e privadas têm a iniciativa de cadastrar propostas de projetos mediante programas previamente elencados pelo órgão público concedente. Emenda Parlamentar (EP) é a dotação orçamentária na qual o Poder Legislativo pode influir no Orçamento Geral da União, com vistas a aperfeiçoar as propostas encaminhadas pelo Poder Executivo (Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde [Conass], 2003).
Ressalta-se a crescente importância dos recursos de EP no SUS, tendo em vista o aumento considerado no volume de verbas por essa via (Vieira & Lima, 2022). Nos anos anteriores a 2016, em 2014 e 2015, respectivamente, o percentual de EPs representava 3,2% e 1,7% do orçamento do Ministério da Saúde, enquanto em 2016, 2019 e 2022, respectivamente, os valores subiram para 7,1%, 10,1% e 9,9% (Piola & Vieira, 2024).
4.1.3. Geração e manejo de recursos
O manejo de recursos físicos, tecnológicos e da força de trabalho num sistema de saúde descentralizado, como o SUS, em um país continental e altamente desigual, como o Brasil, é um grande desafio. Em relação à infraestrutura assistencial, o SUS promoveu grande expansão de estabelecimentos extra-hospitalares, principalmente de Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Pronto Atendimento (UPA), induzidas por políticas e financiamento federal e implementadas por governos locais. O mesmo não se observou na distribuição de leitos hospitalares, que se mantêm concentrados nas regiões mais ricas do País e no setor privado, como ficou explicito na pandemia da COVID-19 (Rache et al., 2020).
Com relação à força de trabalho, um dos principais avanços ocorridos foi a ampliação de equipes multiprofissionais. Porém, persiste grande desigualdade na distribuição de profissionais, principalmente de médicos. O Programa Mais Médicos, implementado pelo MS em 2013, inovou ao prover médicos, pelo Governo Federal, para áreas remotas e carentes de assistência médica. Isso resultou na redução das lacunas assistenciais e contribuiu para melhor cobertura de cuidados de saúde em municípios menores e economicamente mais desfavorecidos (Özçelik et al., 2021).
Na área de medicamentos e tecnologia, o País destaca-se por dispor de rede de laboratórios públicos e privados com capacidade de produção de medicamentos e vacinas. Entretanto, a dependência tecnológica e produtiva externa do Brasil de produtos de saúde é crescente. Entre 2002 e 2017, a lista de medicamentos essenciais e produtos médicos cresceram de 327 para 869. Apesar dos avanços promovidos pelas políticas de assistência farmacêutica no SUS, que inclui o programa Farmácia Popular, o acesso a medicamentos ainda é bastante desigual entre os grupos populacionais, e o gasto direto com medicamentos permanecer alto (Boing et al., 2022).
Desafio semelhante verifica-se em relação à tecnologia da informação. Apesar da expansão dos sistemas de informação e do avanço de iniciativas, como o Telessaúde, especialmente em regiões remotas, que têm contribuído para a educação continuada da força de trabalho do SUS, persistem desafios, como a integração entre níveis de atenção e esferas de governo, bem como a promoção de ferramentas de suporte a tomada de decisões (Pinto et al., 2022).
4.1.4. Prestação de serviços
O sistema de saúde brasileiro é composto por um mix público-privado que garante cobertura a uma ampla gama de serviços de saúde. Governos estaduais e municipais, principalmente, executam ações de saúde coletiva, incluindo vacinação e vigilância, entre outras. A assistência no SUS é prestada por estabelecimentos estatais, principalmente na APS e na urgência, enquanto grande parte dos serviços hospitalares, ambulatoriais especializados e de apoio laboratorial é contratada por meio de estabelecimentos privados (Viacava et al., 2018). Embora os governos subnacionais tenham autonomia na prestação dos serviços, devem seguir as diretrizes nacionais ao receber o financiamento federal.
Além dos estabelecimentos privados prestadores de serviço, filantrópicos e com finalidade lucrativa, o setor privado do sistema de saúde também atua por meio da saúde suplementar. Esse segmento é composto por operadoras de planos e seguros privados de saúde, que cobrem pouco mais de 50 milhões de pessoas, cerca de 25% da população brasileira. Porém, mesmo se um cidadão não utiliza um serviço assistencial público, ele se beneficia das ações de vigilância e saúde pública, de caráter coletivo, prestadas pelo SUS.
4.1.5. APS no SUS
A APS no SUS é normatizada pela Política Nacional de Atenção Básica, que teve a sua primeira edição em 2006, sendo revista em 2012 e 2017. A PNAB regulamenta o escopo das ações a serem prestadas pela APS, os tipos de serviços subsidiados pelo Governo Federal com financiamento e as responsabilidades dos entes federados para esse nível de atenção. A APS é responsável pelos cuidados primários à população brasileira, por meio de ações de promoção e proteção da saúde, prevenção, diagnóstico e tratamento de agravos e doenças, reabilitação, redução de danos, cuidados paliativos e vigilância em saúde no SUS (Ministério da Saúde, 2023a). A estratégia prioritária para a operacionalização do modelo de atenção da APS no SUS é a Saúde da Família.
O financiamento federal da APS iniciou em 1991, com o programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS), seguido, em 1994, pelo Programa Saúde da Família (PSF), dirigidos às áreas mais pobres do país. Criado em 1996 pela NOB-96 e implementado em 1998, o Piso de Atenção Básica (PAB) era composto por um componente fixo, calculado pelo número de habitantes de um município, e outro variável, associado ao incentivo de políticas prioritárias. Dessa maneira, o PAB modificou a lógica de pagamento baseado no número de procedimentos realizados e universalizou o financiamento da APS no país. Com recursos transferidos de forma regular e automática pelo Fundo Nacional de Saúde para fundos municipais de saúde, foi possível financiar serviços de saúde em municípios mais carentes e desprovidos de infraestrutura básica, promovendo uma mudança gradual e contínua no modelo de atenção à saúde (Massuda et al., 2022). Depois de 20 anos, em 2019, o Governo Federal substituiu o PAB por regras estabelecidas no programa Previne Brasil, que passaram a seguir quatro critérios: captação ponderada, pagamento por desempenho, incentivo para ações estratégicas e incentivo financeiro com base em critério populacional (Massuda, 2020).
4.2. Caracterização das políticas de investimento no SUS
Desde a sua implantação, houve apenas três programas federais relevantes destinados a investimentos em infraestrutura no SUS: o Reforsus, o PAC-Saúde e o Requalifica UBS. Vigente entre 1996 e 2000, o ReforSUS foi pioneiro no SUS a dirigir recursos financeiros para investimento em infraestrutura e equipamentos. Com cerca de US$ 750 milhões de empréstimo de organismos internacionais (Banco Mundial e Bird), o programa concentrou a maior parte dos recursos em serviços de média e alta complexidades, mesmo tendo como um dos componentes a APS. Como fragilidades, verificou-se o excesso de burocracia para assinatura e execução de contratos de convênio, o que ocasionou a baixa execução financeira, apontado em relatório de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU, 1999).
Lançado em 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi uma iniciativa do Governo Federal que visou promover o desenvolvimento econômico e social do país, por meio de investimentos em diversas áreas, especialmente na infraestrutura. Apesar de não ter sido contemplada como área prioritária no programa, a saúde cresceu em importância na segunda edição do PAC, lançada em 2010, que contemplava investimentos em saneamento urbano, construção e reforma de estabelecimentos de saúde, entre os quais unidades básicas de saúde e unidades de pronto atendimento.
Implementado em 2011, o Requalifica UBS teve foco exclusivo na APS. Aportando um volume de mais de R$ 5 bilhões, contemplou mais de 25 mil UBS, quase 50% do total de UBS que havia à época. Utilizou recursos do Governo Federal, por meio do PAC. Inovou na forma de repasse, trazendo a modalidade fundo a fundo, e informatizou o processo, criando um sistema de informação para credenciamento e acompanhamento da execução do programa. Como limitações, foram apontadas falhas de controle interno, monitoramento e avaliação e a necessidade de adotar critérios para contemplar as desigualdades regionais para a alocação de recursos (Bicalho, 2012).
Relançado em agosto de 2023, o Novo PAC definiu a saúde pela primeira vez com uma das áreas prioritárias para investimentos do Governo Federal. O MS prevê investir R$ 31 bilhões em ações de atenção primária, atenção especializada, telessaúde, preparação para emergências sanitárias e no Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ministério da Saúde, 2023b). Os investimentos buscam contemplar a construção de novas unidades básicas, policlínicas e maternidades, compra de ambulâncias, ampliação da oferta de vacinas, hemoderivados e acesso à telessaúde.
No Quadro 3, apresentamos as fortalezas e debilidades dos dois principais programas, ReforSUS e Requalifica.
4.3. Análise das políticas de investimento para a APS no SUS
Com base na análise do material das entrevistas realizadas neste estudo, observou-se ampla convergência sobre a necessidade de estruturação de uma política de investimento para o SUS. A seguir, apresentam-se apontamentos identificados nas entrevistas e na literatura que podem subsidiar o desenho de políticas de investimento permanentes e sustentáveis para o SUS, especialmente para a APS.
4.3.1. Histórico do investimento na APS
4.3.1.1. Infraestrutura e equipamentos
A importância do investimento na APS tem sido destacada como uma questão crucial para o fortalecimento dos sistemas de saúde na literatura nacional e internacional. Em 2022, a comissão da revista Lancet Saúde Global sobre financiamento da APS enfatizou que todos os países precisam investir mais e melhor na APS (Hanson et al., 2022). A recomendação central da comissão é que os países aumentem o aporte de recursos públicos para a APS e modifiquem seus mecanismos de financiamento da saúde, de modo a colocar as pessoas no centro e abordar as desigualdades em primeiro lugar.
Existem robustas evidências de que o modelo de financiamento viabilizou a expansão da APS no Brasil, trazendo inúmeros benefícios para a melhoria da situação de saúde no país (Massuda et al., 2022). No entanto, a expansão da cobertura e do acesso aos serviços não foi acompanhada por investimentos regulares na APS, tanto em infraestrutura, como em equipamentos. Atualmente, os recursos destinados à APS são majoritariamente direcionados para despesas de custeio, principalmente com força de trabalho (Vieira et al., 2022). Observa-se, historicamente, uma disparidade na alocação de recursos entre média e alta complexidade e APS. Segundo Soares (2007), a concentração dos investimentos na média e alta complexidade é decorrente do entendimento de que a APS é responsabilidade dos municípios, assim, a exigência de recursos é relativamente menor.
Por outro lado, Soares (2007) chama a atenção que, entre 1995 e 2001, foram gastos R$ 5,3 bilhões em infraestrutura de saúde, e um dos efeitos desse investimento foi o aumento da capacidade produtiva da rede. Consequentemente, houve a necessidade de elevar os recursos de custeio para sustentar o aumento da produção. Essa afirmação revela a falta de previsibilidade econômico-financeira no momento de elaboração do planejamento, refletindo na desarticulação entre a realização de investimentos e a garantia de recursos para a manutenção da prestação de serviços continuados (Soares, 2007).
Daqui surge uma recomendação elementar: os projetos de investimento na APS em infraestrutura e equipamentos devem estimar recursos de custeio e estar alinhados a eles.
4.3.2. Necessidade para financiamento na APS
4.3.2.1. Diagnóstico territorial de necessidades como base para investimento na APS
O último censo que realizou um diagnóstico da infraestrutura da APS no Brasil foi em 2012, no primeiro ciclo do Programa de Melhoria da Qualidade (PMAQ). Com base nos dados do PMAQ, foram realizados diversos estudos, os quais concluíram que mais de 75% das UBS possuem deficiências (Bousquat et al., 2017), houve decréscimo das UBS classificadas nas tipologias restrita e regular, refletindo na maior disponibilização de equipamentos e de equipes de saúde (Kashiwakura & Gonçalves, 2019), e somente 4,8% das UBS contemplaram os critérios do padrão de referência elementar, sendo a infraestrutura a dimensão com a pior avaliação (Facchini et al., 2018). Apesar dos avanços observados na infraestrutura das UBS, os problemas de estrutura dos serviços ainda persistem.
Já está na hora de fazer outro levantamento de necessidades. O último censo foi em 2011, agora é o momento de alimentar um novo desenho do programa. É fundamental, rapidamente, ainda no primeiro semestre do ano que vem (2023), buscar fazer alguma pesquisa de grande volume, um censo, pode ser on-line ou até amostral também (E1).
Os entrevistados enfatizam a necessidade de que uma nova política de investimentos deve ter como base informações sobre a situação de infraestrutura das Unidades Básicas de Saúde (UBS). O levantamento de necessidades deve seguir uma abordagem ascendente, periódica, com um planejamento no território realizado pelos municípios, com o apoio dos estados e a coordenação do Governo Federal. A realização regular de diagnóstico sobre a necessidade de investimentos na APS, a cada cinco anos, é uma recomendação.
4.3.2.2. Alocação de recursos para investir na APS
A situação da alocação de recursos para a APS tem se agravado por causa da redução dos investimentos federais na área da saúde ao longo dos últimos dez anos. Nobre e Faria (2023) mostram que, entre 2013 e 2023, a proporção dos recursos destinados à saúde diminuiu em seis pontos percentuais. Em termos absolutos, a alocação de recursos atuais, de R$ 6 bilhões, representa uma redução de 64,2% em relação à década anterior, na qual o montante foi de R$ 16,8 bilhões. Além disso, observa-se que a distribuição desses recursos está cada vez mais influenciada por emendas parlamentares. É evidente que a alocação de recursos por meio dessas emendas não representa o melhor caminho para garantir uma política de investimentos sustentável na área da saúde. A irregularidade na liberação desses recursos dificulta a realização de investimentos de longo prazo com equidade e eficiência.
Diante desse cenário, recomenda-se expandir significativamente o aporte de recursos financeiros federais destinados a investimentos na APS em obras e equipamentos associados à formação de pessoal.
4.3.2.3. Marco legal para fomentar investimentos na APS
Os gestores reportam que, para ampliar investimentos na APS, é preciso maior segurança jurídica. Tanto o setor público quanto o privado dependem desse suporte para promover inovações e alocar recursos. Além disso, ressaltam que é responsabilidade do Governo Federal desenvolver políticas bem estruturadas e sustentáveis de investimento em saúde, ancoradas em fundamentos legais que se mantenham resilientes mesmo em períodos de transição política.
Se elabora um projeto de lei mais robusto, consegue fazer um modelo normativo que dê mais credibilidade, mais segurança técnica e jurídica, não só aos parceiros públicos, mas aos privados também (E4).
Assim sendo, a criação de um arcabouço jurídico que respalde e promova iniciativas de investimento na APS em nível estadual e municipal emerge como uma recomendação. Esse marco legal forneceria o alicerce necessário para impulsionar melhorias substanciais na infraestrutura dos serviços de saúde, garantindo a continuidade dos esforços de aprimoramento, independentemente das mudanças no cenário político.
4.3.2.4. Cofinanciamento e apoio estadual para investimento na APS
As secretarias estaduais de saúde devem desempenhar um papel importante no financiamento e apoio aos investimentos na APS. O cofinanciamento, tanto em nível estadual quanto federal, permite a combinação de recursos para maximizar o impacto dos investimentos.
Acho que tem um papel das secretarias estaduais tanto no financiamento complementar quanto no financiamento federal, mas também no aspecto do levantamento dessas informações, do direcionamento de recursos. O estado podia, também, ser chamado para o momento do desenho do programa, mas tem uma predefinição de recursos estaduais, uma faixa de recursos predefinidos, como, por exemplo, se o Ministério da Saúde arca com 80% ou 70% do valor da construção mais o percentual do município e o percentual das secretarias estaduais. Ou então na execução, ou talvez com insumos (E1).
Recomenda-se, portanto, que os governos estaduais devem contribuir na definição de políticas, no direcionamento de recursos e no suporte técnico aos municípios, articulado às iniciativas federais.
4.3.2.5. A região de saúde como unidade para ampliação em escala de investimentos na APS
A regionalização do SUS, que, atualmente, divide o país em 450 áreas de saúde, pode fornecer uma nova unidade para o Governo Federal e os estados planejarem a difusão de investimentos na APS dos municípios. O plano de investimentos regional em APS permite ganhos em escala e uma abordagem mais focada e adaptada às necessidades locais.
Eu acho que tinha que ter uma lógica que contemplasse as regiões de saúde, um equilíbrio de financiamento entre elas. Pensar que a gente tem em torno de 400 e tantas regiões, não faz sentido um conjunto de municípios de uma região possuir unidades básicas altamente qualificadas, com estrutura, equipamentos, internet, e parte das unidades sem. Acho que a evolução da infraestrutura deveria ser pautada e acontecer em paralelo com a evolução das regiões de saúde (E1).
Recomenda-se planejar investimentos nacionais em infraestrutura e equipamentos na APS por regiões de saúde, visando a ganhos de escala que priorizem regiões com vazios assistenciais.
4.3.2.6. Atualização tecnológica e transformação digital da APS
Além da modernização da infraestrutura assistencial e da tecnologia, a aceleração da transformação digital na APS no SUS exige investimentos estratégicos e abrangentes. É imperativo direcionar recursos para a implementação de tecnologias digitais, como prontuários eletrônicos, sistemas de regulação e plataformas de agendamento on-line, tornando o acesso aos serviços mais ágil e eficiente para os pacientes. Essas ferramentas de integração e coordenação entre os diversos níveis de atenção são fundamentais para otimizar a comunicação entre os profissionais de saúde, melhorar o acompanhamento dos pacientes e fortalecer a qualidade do cuidado oferecido pela APS.
A atualização tecnológica e a transformação digital não só contribuirão para uma gestão mais eficaz da saúde, mas também possibilitarão um atendimento mais abrangente e acessível, especialmente por meio de soluções de telessaúde e monitoramento remoto para pacientes crônicos, promovendo, assim, a evolução do sistema de saúde de forma inovadora e sustentável.
O que a gente tem que fazer, primeiro, é começar a investir em tecnologia digital na atenção primária, principalmente na organização do serviço. É um absurdo, hoje, com a tecnologia que tem disponível, você não conseguir agendar uma consulta de forma on-line, não conseguir remarcar uma consulta, não conseguir fazer uma série de coisas (E4).
Dessa maneira, recomenda-se direcionar investimentos para a modernização tecnológica, promover a integração do cuidado e facilitar a comunicação entre os diversos atores envolvidos.
4.3.3. Impacto do financiamento nos resultados da APS
4.3.3.1. Ampliar o acesso, redimensionar as equipes do Programa Saúde da Família
A Estratégia Saúde da Família (ESF) ainda não apresenta cobertura universal, conforme preconizado por mandatos e pactos internacionais apoiados pelo Brasil. Investir na expansão das equipes e na infraestrutura é uma necessidade para atingir esse objetivo. Junto a isso, é imperativo reavaliar a relação entre o tamanho das equipes e a população atendida. A reestruturação das equipes em relação à população atendida deve ser contemplada, visando à prestação integral de cuidados. Isso permitiria que as equipes não apenas cuidassem de programas voltados para condições crônicas, mas também atendessem às demandas agudas e emergenciais, ampliando o acesso para a população que, normalmente, busca as unidades de pronto atendimento.
Estudo recente estimou que seriam necessárias 25,6 mil novas equipes, ao custo de R$ 17,1 bilhões ao ano, para cobrir 100% da população pela Estratégia Saúde da Família (Faria et al., 2022). Ao mesmo tempo, seria essencial construir 16 mil novas unidades de saúde, ao custo de R$ 11,2 bilhões. Além das novas equipes e das UBS, é importante levar em consideração as mais de 40 mil UBS e as mais de 48 mil equipes existentes no país. A depreciação dos recursos e a necessidade de avançar na modernização e na tecnologia digital acentuam a importância de investimentos contínuos e sustentáveis.
É preciso redimensionar a população por equipe, de modo que a gente agregue mais competência àquelas equipes na demanda do cuidado, para garantir o acesso à demanda aguda, inclusive que essas infraestruturas sejam otimizadas para serviços 24 horas, que funcionem também nos finais de semana (E2).
Dessa maneira, recomenda-se contemplar a expansão do número de equipes de Saúde da Família nos investimentos em APS e redimensionar o tamanho das equipes para melhor atender às demandas da população.
4.3.3.2. Dispor de infraestrutura para alcançar a universalidade e integralidade na APS
Os investimentos em equipamentos e tecnologia têm como propósito principal criar um ambiente de saúde que ofereça qualidade no atendimento e segurança aos pacientes. Isso engloba a adesão a padrões sanitários fundamentais, que abrangem desde a dimensão das instalações até os fluxos de pacientes, salas de espera, áreas de gestão, acessibilidade, design apropriado e uso de materiais específicos para edificações de saúde, entre outros aspectos. A importância do design é particularmente evidente na APS, pois engloba espaços multifuncionais para reuniões, terapias ambulatoriais, diagnósticos, medicina integrativa e ações comunitárias.
Para efetivar a universalidade e a integralidade, é imperativo definir qual o modelo assistencial que se busca implementar, bem como que investimentos devem ser dirigidos para propiciar as condições materiais em termos de infraestrutura e equipamentos para alcançá-lo. O avanço da tecnologia e a modernização na área de construção civil emergem como facilitadores para novos projetos de reforma, construção, ampliação e aquisição de equipamentos para as Unidades Básicas de Saúde. É preciso considerar a adequação a fatores como sustentabilidade, meio ambiente e ambiência, proporcionando acolhimento e bem-estar aos pacientes, além de se estabelecer um bom ambiente de trabalho para os profissionais, visando ampliar a qualidade da atenção à saúde.
É preciso definir claramente o modelo de cuidado com integralidade. A gente pode, e deve, financiar unidades sustentáveis e unidades padronizadas. Tem que ter um conjunto de requisitos que garantam a universalidade e a integralidade do cuidado (E2).
Recomenda-se, portanto, alinhar investimentos em infraestrutura e tecnologia à definição clara do modelo assistencial, para atingir os objetivos de universalidade e integralidade na APS.
4.3.3.3. Tornar a APS mais resolutiva
É preciso dotar a atenção primária no SUS com equipamentos e tecnologias que permitam ampliar o diagnóstico e a resolução dos problemas de saúde, sem que o paciente necessite ser encaminhado a um nível de atenção mais especializado desnecessariamente. Caso contrário, a chance de um paciente encaminhado a um serviço de maior complexidade não retornar à APS é grande, tendo em vista a facilidade de realizar exames e procedimentos em um só local. Assim, perde-se a continuidade do cuidado na APS, já que não há a constituição de vínculo entre paciente e equipe de Saúde da Família.
É imperativo, portanto, associar investimentos na APS à capacitação profissional para oferecer diagnósticos e tratamentos eficazes no próprio local de atendimento. Isso não apenas evita a fragmentação do cuidado, mas também fortalece o relacionamento entre o paciente e sua equipe de saúde. Com o suporte de tecnologias apropriadas, os profissionais da APS podem desempenhar um papel fundamental na prevenção, no diagnóstico precoce e no tratamento de condições de saúde, contribuindo para uma abordagem centrada nas necessidades das pessoas.
Todas as informações de diagnóstico básico que você pode fazer com esse paciente agregam muito mais valor e resolubilidade ao relatório médico, que pode ser produzido in loco, naquele momento, em contato direto com o paciente. Isso é um programa de saúde digital bacana, você consegue expandir, organizar os serviços de forma muito mais efetiva, muito mais resolutiva (E4).
Recomenda-se, portanto, articular investimento em equipamentos e tecnologias à formação contínua dos profissionais de saúde, buscando ampliar a resolubilidade das equipes de APS.
4.4. Recomendações para as Políticas de Investimento na APS
O Quadro 4 apresenta uma síntese das recomendações para políticas de investimento em APS no SUS.
Ao analisar as recomendações propostas anteriormente, torna-se evidente a importância do debate do neoinstitucionalismo histórico para as políticas de investimento na APS no Brasil. Para que as recomendações vinculadas a um maior financiamento e investimento (1, 3, 6, 9 e 10) possam ser realizadas, é necessário um grande alinhamento entre as instituições políticas da área da saúde nas três esferas governamentais brasileiras (Cavalcanti et al., 2022) e os respectivos conselhos (Conass e Conasems) e um momento histórico favorável (Graf, 2023) no contexto socioeconômico vivido, como, por exemplo, a retomada econômica depois da pandemia da COVID-19 (Ongaro & Longo, 2021) e a saída de uma crise política vivida nos seis anos anteriores.
As demais recomendações (2, 4, 5, 7 e 8) também exigem um alinhamento estratégico e um momento histórico vivido como as anteriores, mas por estarem mais focalizadas na capacidade de gestão de entes governamentais específicos, miram na mudança dos comportamentos coletivos ou individuais da sociedade (Hall & Taylor, 2003), ou seja, na implementação e execução das políticas de investimento na APS.
5. CONCLUSÕES
Apesar dos poucos estudos sobre investimentos na APS na literatura, há evidências de que investir na APS traz benefícios econômicos, sociais e para a saúde da população. No Brasil, as políticas de investimento foram sazonais e vulneráveis às mudanças históricas, políticas e econômicas. Atualmente, é preocupante que recursos de investimento federal para a APS destinados a estados e municípios têm sido oriundos cada vez mais de emendas parlamentares, que apresentam inúmeros problemas quanto aos critérios de distribuição, pulverização de alocação e falta de controle e transparência na execução.
Nesse sentido, este estudo reforça a necessidade do estabelecimento de políticas de investimento no SUS, especialmente na APS, que permitam a alocação eficiente de recursos para enfrentar as desigualdades regionais, observando a compatibilização entre investimentos em obras, equipamentos, pessoal e garantia de custeio. O novo Programa de Aceleração do crescimento (PAC), lançado em agosto de 2023, pode ser uma oportunidade para o avanço nessa agenda pendente da saúde.
Este trabalho apresenta análises e recomendações para as políticas de investimento na APS do Brasil à luz do neoinstitucionalismo histórico. É fundamental entendê-las para apontar caminhos adequados para os tomadores de decisão. Portanto, os resultados aqui apresentados colaboraram com a literatura e o campo da prática da saúde nos âmbitos internacional, nacional, estadual e municipal.
As limitações deste estudo envolvem: i) o número de entrevistas realizadas por causa da falta de tempo e recurso da pesquisa; ii) a não utilização de dados e métodos quantitativos para descrever as mudanças históricas e iii) a não sistematização do processo de revisão da literatura e do levantamento documental.
Como perspectivas futuras de estudos, aponta-se para: i) a utilização de novas lentes teóricas para a análise desse fenômeno, como o neoinstitucionalismo sociológico e racional, com a inclusão de outros atores (locais, regionais ou estaduais) na coleta de dados primários; ii) o monitoramento e a avaliação de novas políticas de investimento na APS no Brasil; iii) a inclusão de dados e análises quantitativas, como a análise fatorial, para oferecer maior compreensão da evolução histórica dos investimentos na APS e iv) a utilização de revisões sistemáticas de literatura ou de escopo para fornecer uma visão científica replicável sobre o tema.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), pelo financiamento para a realização deste estudo.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
01 Dez 2023 -
Aceito
12 Ago 2024