Open-access A DIPLOMACIA NORTE-AMERICANA E A DIREITA RADICAL NO BRASIL DO PÓS-GOLPE (1964-1968)1

US DIPLOMATS AND THE BRAZILIAN RADICAL RIGHT-WING IN THE POST-1964 COUP D’ÉTAT (1964-1968)

Resumo

O artigo é baseado em documentos diplomáticos norte-americanos coletados nos National Archives and Records Administration. A ideia é mostrar a visão dos diplomatas sobre grupos radicais de direita que pressionavam o governo Castelo Branco após a vitória de 1964, grupos que foram nomeados genericamente “linha-dura”. Os observadores norte-americanos monitoravam a ação desses grupos por temor que desestabilizassem o governo Castelo Branco, apoiado decididamente pelos EUA. Os documentos diplomáticos apontam a existência de diferenças na direita radical e, o que tem sido pouco notado pela literatura acadêmica, a presença de conexões entre miliares e civis, notadamente grandes proprietários rurais e setores da grande imprensa. A partir de fontes primárias inéditas, mas, também em diálogo com a historiografia, a proposta é avaliar os objetivos e ações da direita radical no pós-golpe, entre 1964 e 1968, com atenção igualmente para a estratégia dos EUA em relação à ditadura.

Palavras-chave ditadura brasileira; “linha-dura”; EUA; 1964; Castelo Branco

Abstract

The article is based on US diplomatic documents collected at the National Archives and Records Administration. The aim is to analyze the US diplomats view on the right-wing radical groups that put pressure on Castelo Branco’s government after the 1964 victory, which were generically named “hard line”. North-American observers monitored these groups for fear that they would destabilize Castelo Branco’s government, decidedly supported by the US. Diplomatic documents point to the differences inside the radical right-wing group and, what was little noticed by the bibliography, to the connections between military and civilian leaders. Based on primary sources but also in dialogue with historiography, the text aims at evaluating the objectives and the actions of the radical right-wing in the period 1964-68, with equal attention to the US strategy towards the Brazilian dictatorship.

Keywords Brazilian dictatorship; hard line; USA; 1964; Castelo Branco

Este texto está fundamentado, basicamente, em documentos diplomáticos norte-americanos guardados nos National Archives and Records Administration (unidade de College Park, MD), com destaque para relatos e análises sobre o Brasil enviados por diplomatas norte-americanos a seus superiores no Departamento de Estado. Pretendo explorar a visão dos diplomatas estadunidenses a respeito dos grupos radicais de direita que pressionavam o governo Castelo Branco após a vitória de 1964, grupos que foram nomeados genericamente de “linha-dura”. Os bem informados observadores norte-americanos estavam atentos por temerem o desdobramento da ação desses grupos, pois, além da possível desestabilização do governo Castelo Branco, devido a suas opiniões nacionalistas eles tinham potencial para entrar em choque com os interesses dos EUA.

Os documentos diplomáticos mostram que havia diferenças no campo da direita radical e, o que tem sido pouco notado pela literatura acadêmica, a presença de conexões entre miliares e civis, notadamente grandes proprietários rurais e setores da grande imprensa. Não há pretensão de chegar a conclusões definitivas, apenas oferecer mais dados sobre um objeto de pesquisa que merece maior atenção. Ressalte-se, também, que devido ao volume de registros diplomáticos sobre a “linha-dura” (aproximadamente 300 páginas, somando os diferentes registros) e o limite da forma artigo, apenas parte do material foi utilizado. De qualquer maneira, os documentos poderão ser acessados integralmente no site do LHTP (http://www.fafich.ufmg.br/lhtp/), junto a outras milhares de páginas coletadas durante a mesma pesquisa3. Esses registros trazem informações principalmente sobre São Paulo e Rio de Janeiro, no primeiro caso devido à importância do empresariado local e a participação de alguns de seus líderes em confabulações contra o governo Castelo Branco, e no segundo caso devido à densa presença da oficialidade militar. Porém, foram localizadas também análises dos diplomatas sobre as regiões Sul e Nordeste, que contavam com comandos militares importantes.

O interesse do governo norte-americano era monitorar a situação política brasileira para contar com informações úteis à tomada de decisões. Suas fontes de informação eram diversificadas, desde relatórios de inteligência, presumivelmente produzidos com dados obtidos de maneira sigilosa, até conversas com personagens bem situadas no cenário público brasileiro, como empresários, políticos, militares, jornalistas, religiosos, diálogos que foram resumidos em relatórios periódicos. O próprio presidente Castelo Branco era uma fonte de informação, principalmente por meio de conversas com o adido militar Vernon Walters.

O governo dos EUA tinha grande interesse em viabilizar o governo Castelo Branco e monitorar riscos da extrema direita a seu projeto, especialmente as reformas econômicas de perfil liberal, em parte criticadas pela “linha-dura”. Nos meses iniciais da ditadura, eles consideraram que a “linha-dura” era o principal grupo organizado a exercer pressão sobre o governo Castelo Branco, tendo em vista que as forças de oposição estavam acuadas devido à repressão. Por isso, a necessidade de monitorar com atenção grupos que eventualmente poderiam desestabilizar o novo governo, virtualmente ameaçado por golpistas à direita (ou mais à direita) influentes nos quartéis e com acesso a recursos militares. Além disso, no caso de alguns diplomatas ligados ao Partido Democrata nota-se a preocupação com o risco de 1964 encaminhar-se a rumos muito conservadores. Nessa fase, quando ainda estavam no poder os democratas ligados ao projeto de John Fitzgerald Kennedy para a América Latina que, ao menos retoricamente, defendia algumas reformas sociais - sobretudo a agrária - como forma de conter o perigo comunista, a expectativa era que o governo Castelo Branco realizasse algumas dessas reformas, evitando ser envolvido pelos interesses conservadores das elites tradicionais. Daí o desalento de alguns diplomatas ao perceber que fazendeiros tradicionalistas se aproximavam de lideranças militares radicais. No entanto, as mesmas figuras às vezes mostravam sentimentos ambíguos em relação à “linha-dura”, registrando que sua pressão poderia ser útil.4

A expressão “linha-dura” surgiu logo na sequência do golpe. Nos registros dos diplomatas, o termo (hard line) aparece cerca de uma semana após a derrubada de João Goulart, com a anotação de que o general Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército, declarou ser favorável a uma linha dura para total expurgo dos comunistas.5 A declaração se deu em meio aos debates sobre o alcance da “operação limpeza” realizada pelo governo egresso do golpe, com alguns líderes defendendo punições mais rigorosas em relação ao que vinha sendo feito. Portanto, o significado de “linha-dura”, às vezes vago, sempre esteve ligado à ideia de maior rigor repressivo, com o sentimento de que a “revolução” deveria aprofundar o expurgo dos inimigos. Em outros registros diplomáticos desse período inicial, os defensores de expurgo agudo seriam chamados por outros nomes, como “gorilas ou jovens turcos”, por exemplo.6 Porém, o termo “linha-dura” se consolidaria em maio-junho de 1964, tornando-se corriqueiro no debate público ao ponto de inspirar o trabalho dos caricaturistas, especialmente os que criticavam a ditadura.7 Para atestar o amplo uso da expressão, vale também notar que alguns atores se auto identificavam orgulhosamente como “linha-dura” em conversas com diplomatas norte-americanos, ou mesmo “linha-duríssima” ou “linha-diamante”, para sugerir que seriam mais duros que os outros.8

Não obstante a forte presença da “linha-dura” no cenário político, tratou-se de grupo de contornos mal definidos e flutuantes, o que torna difícil mensurar seu tamanho, embora algumas fontes contemporâneas tenham tentado faze-lo. Estudiosos da ditadura (MARTINS FILHO, 1995; CHIRIO, 2012) têm demonstrado que as divisões internas às corporações militares não foram tão rígidas como imaginaram pesquisadores dos anos 1970, como Alfred Stepan (STEPAN, 1975), que difundiram a visão dicotômica de dois grupos básicos compondo o cerne do Estado autoritário, moderados (“Sorbonne”) e “linha-dura”. As clivagens eram ao mesmo tempo mais complexas e mais fluidas, tendo ocorrido mudanças ao longo da ditadura no que toca à composição dos grupos militares radicais (CHIRIO, 2012). De qualquer modo, não há dúvida que existiu a “linha-dura”, inclusive porque o termo se tornou indispensável aos contemporâneos para designar grupos de pressão radicais de direita.

Algumas declarações, manifestos e cartas publicados por lideranças conectadas à “linha-dura” permitem esboçar as ideias que mobilizavam o grupo. O principal ponto, naturalmente, era a demanda por mais repressão e dureza contra os inimigos. Eles criticaram as propostas de anistia que começaram a circular ainda em 1964 e acusaram de traição os defensores dos direitos das pessoas atingidas. A propósito, as ações da justiça que favoreceram os alvos da ditadura (como aprovação de habeas corpus) provocaram ódio no grupo, que acusou o governo Castelo Branco de tibieza por não punir todas as pessoas listadas pelas agências de repressão.9 Após os primeiros dias de violência policial e militar contra os alvos “comunistas”, as forças de direita começaram a mirar também os “corruptos”, até porque iam escasseando os inimigos à esquerda. Alguns líderes divulgaram a visão de que o perigo comunista havia sido superestimado antes do golpe10, o que realçava a importância da corrupção como alvo da sanha purificadora. Nesse momento, se consolidou a ideia de que a “revolução” viera para exterminar esses dois “perigos” (MOTTA, 2016), e a “linha-dura” se queixava porque alguns corruptos estavam à salvo, aliados do novo governo. O grande símbolo dessa campanha foi o governador paulista Adhemar de Barros, constantemente alvejado pelos radicais da direita.

Além disso, na pauta da “linha-dura” entravam alguns temas referidos à economia. A política econômica do governo Castelo Branco era atacada, em termos vagos, mais especificamente alguns de seus traços liberais, como o favorecimento do capital estrangeiro e as medidas de arrocho para reduzir a inflação. Tais críticas dirigiram-se notadamente ao artífice da política econômica, Roberto Campos, alvejado também pela esquerda. Durante a maior parte de 1964, e especialmente em São Paulo, a “linha-dura” criticaria também o plano de reforma agrária do governo Castelo Branco, que buscava diminuir a tensão no campo como estratégia de esvaziamento do apelo esquerdista. Para tanto, ele fez aprovar medidas que o presidente João Goulart tentara sem sucesso, como a emenda constitucional permitindo desapropriação de terras sem pagamento em dinheiro, somente com títulos públicos. A direita radical reagiu com ira a tais iniciativas, acusando o primeiro governo da ditadura de traição e conluio com a esquerda derrotada. O ponto sensibilizava mais a ala civil da “linha-dura”, principalmente fazendeiros (NAPOLITANO, 2014, p.76), mas alguns militares fizeram declarações convergentes, talvez para agradar os aliados civis.11

No entanto, visões ideológicas e objetivos políticos não são suficientes para explicar a motivação do grupo. Havia também alguma dose de oportunismo, tanto de figuras que se aproximaram da direita radical para ganhar espaços de poder, como de atores motivados pela defesa de interesses econômicos próprios. No caso do oportunismo dirigido à conquista de poder, chamam a atenção casos de líderes que antes de 1964 não se mostravam afinados com pautas da direita radical, como o professor Gama e Silva, ou militares que não tiveram papel relevante nas articulações golpistas, como o general Costa e Silva, além de outros oficiais que se ligaram à “linha-dura” nos primeiros meses da ditadura, mas tiveram trajetória errática antes do golpe e depois dele, como o general Olympio Mourão Filho, que frequentou a “linha-dura” mas depois tornou-se crítico do estado autoritário.

Como mencionado, a aproximação entre militares e civis da direita radical preocupou os diplomatas estadunidenses, que trataram de acompanhar e analisar o fenômeno. Eles produziram muitos documentos, especialmente na área de São Paulo, em que foi mais forte a aproximação dos “ultra” civis e militares. O consulado dos EUA em São Paulo, chefiado na ocasião por Niles Bond, desde abril de 1964 estava interessado na “linha-dura”, porém, produziu a primeira análise sobre o tema em 6 de agosto de 1964. O relatório afirma que havia uma conspiração “linha-dura” em processo e descreve os integrantes do grupo (militares de média patente, fazendeiros e políticos) e seus objetivos, com destaque para as demandas pelo aprofundamento da repressão e críticas à política econômica de Castelo Branco. O relatório ressaltou as investigações do IPM dirigido pelo general Dalysio Mena Barreto, que vinha coletando informações sobre atos de corrupção do governador Adhemar de Barros. Com medo de ser preso e sabendo ser um alvo da “linha-dura”, Barros saiu de circulação por alguns dias.12

Vários relatórios semelhantes seriam feitos nos meses seguintes, como um documento de dezembro de 1964, assinado também por Niles Bond, que considerava “linha-dura” termo inadequado por confundir os civis, em geral conservadores, com os militares de média patente, mais abertos a reformas.13 O relatório trai a visão da diplomacia norte-americana na ocasião, que imaginava os militares como figuras talhadas para conduzir um processo de nation building modernizador, capaz ao mesmo tempo de minorar alguns problemas sociais do país e combater a ameaça revolucionária. De acordo com tal visão, a aproximação dos militares com fazendeiros e políticos reacionários era um problema, uma ameaça (ele usou a expressão ominous, que pode significar também deprimente, sinistro). Outros textos de análise mostraram igual interesse em monitorar as tentativas de aliança entre a extrema direita civil e militar.

No primeiro semestre de 1965, ocorreram algumas reuniões em São Paulo para aproximar diferentes grupos e lideranças próximas à direita radical, envolvendo militares destacados como Sílvio Heck, Olympio Mourão e Carlos Guedes. Uma dessas ocasiões foi um jantar em homenagem aos 60 anos do general Carlos Guedes, então comandante da II Região Militar, um golpista de primeira hora que almejava tornar-se governador de Minas Gerais. Realizado na residência do líder da Sociedade Rural Brasileira, Salvio de Almeida Prado, no final de junho de 1965, o evento contou com cerca de 150 convidados, entre eles diversa gama de figuras da direita, desde o Bispo Geraldo Sigaud, ligado à Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), a militares reformados de destaque na extrema direita (Lopes Bragança, Mena Barreto) e lideranças rurais de SP, PR e MG, notadamente ligados à produção de café.14 Oficiais da ativa não teriam ido por temor de punições, já que alguns dias antes um dos líderes da linha dura (Osneli Martinelli) havia sido preso. A essa altura, a preocupação maior dos fazendeiros já não era o risco de reforma agrária, mas a política de preços e de câmbio do governo, considerada por eles contrária aos interesses dos produtores de café. O autor do relatório ironizou a direita civil, dizendo que fazia discursos sobre interesse nacional e atacava a corrupção, porém, seu real interesse era o preço do café e favores do governo. A propósito, no relato a respeito de encontro semelhante ocorrido dias antes, em 31 de maio de 1965, dessa feita um jantar em homenagem ao próprio Sálvio Almeida Prado, o reporting officer (funcionário responsável pelo relatório) registrou, irônico, que três C foram muito enfatizados nos discursos proferidos para pressionar o governo a aprofundar a “revolução”: comunismo, corrupção e café. Para ele, o maior interesse dos fazendeiros, de longe, era o café.15

Os registros dos diplomatas enfatizavam a existência de uma “linha-dura” civil e outra militar, que se conectavam às vezes, mas mantinham diferenças essenciais. O ponto chave era que os primeiros tinham mais objetivos econômicos e posturas conservadoras, como barrar a reforma agrária, enquanto os militares seguiam mais objetivos ideológicos e eram mais idealistas (inclusive com visão crítica sobre política econômica liberal de Castelo Branco). Para além da aproximação entre fazendeiros, políticos e militares, ocorreram tentativas de articulação envolvendo também lideranças sindicais de direita, como o Movimento Sindical Democrático (MSD), que tivera algum papel nas mobilizações anticomunistas prévias ao golpe. Porém, a tentativa não rendeu bons resultados, quem sabe porque tais lideranças sindicais não eram entusiastas da luta contra a corrupção.

Outra presença importante nos círculos da extrema direita, de acordo com os diplomatas norte-americanos, eram proprietários e jornalistas de O Estado de São Paulo. Segundo tais fontes, o jornalista Oliveiros Ferreira atuou como assessor informal do almirante Heck, inclusive redigindo textos para o militar16, enquanto os irmãos Mesquita seriam interlocutores frequentes do grupo. Um indício nessa direção era a cobertura favorável a Heck nas páginas do Estadão, acompanhada de fotografias simpáticas do almirante reformado.17 Em outubro de 1965, ainda segundo os diplomatas, a “linha-dura” comemorou por acreditar que o grupo dirigente do diário paulista estava 100% ao seu lado após romper com o governo Castelo Branco.18 Em outras versões, os Mesquita são apresentados como parte da “linha-dura”, mas, ao mesmo tempo, atuavam para moderar seu radicalismo.19 Essas informações sobre os laços dos líderes do Estadão com a “linha-dura” são compatíveis com a visão de Júlio Mesquita Filho sobre 1964, que para ele deveria ser uma intervenção autoritária rápida, mas ao mesmo tempo dura e intensa, para corrigir o que considerava os males do país. Anos depois o jornal entraria em choque com a ditadura devido à censura e também por discordar do aumento da intervenção estatal na economia.

Em setembro de 1965, o consulado produziu outro relatório de análise sobre a “linha-dura”. A novidade do texto foi avaliar a capacidade do grupo de desestabilizar o governo Castelo Branco, o ponto mais preocupante aos olhos dos EUA. A conclusão do relatório apresentava a “linha-dura” como grupo de pressão relevante, porém, sem constituir ameaça séria à continuidade do governo, apesar da retórica às vezes radical (alguns exaltados chegavam a falar em planos para matar o presidente).20 Nos primeiros meses de 1964 houve maior temor de desestabilização ou derrubada do governo Castelo Branco, devido à boataria e a conspirações envolvendo figuras em posição de comando militar, como os generais Mourão e Guedes. Mas, com o tempo os temores amainaram e se solidificou a sensação de que se tratava antes de grupo de pressão do que força capaz de ganhar o poder. Ironicamente, essa avaliação se consolidou às vésperas do episódio de maior influência da “linha-dura”, pois em outubro de 1965 tiveram lugar as conspirações para levantar as tropas da Vila Militar no Rio de Janeiro, que criaram o ambiente para a decretação do AI-2.

Com o tempo, os fazendeiros e outras lideranças civis foram se afastando da “linha-dura”. No caso dos proprietários de terra, provavelmente porque o governo Castelo Branco adotou estratégia de aproximação com seus líderes e também porque a promessa de fazer reforma agrária ficou apenas no papel. Vale registrar, o SNI chegou a sugerir que o governo desse cargos a líderes da SRB na área do café, para que se acalmassem, de preferência o comando do Instituto Brasileiro do Café.21 No campo civil sobraram alguns aliados ocasionais da “linha-dura”, porém, ela se consolidou como grupo basicamente militar.

As lideranças mais ativas associadas à “linha-dura” eram tenentes-coronéis ou coronéis das Forças Armadas, alguns dos quais se tornariam generais nos anos seguintes e ocupariam comandos militares e cargos de governo importantes, a exemplo do general Albuquerque Lima. Porém, alguns oficiais mais antigos, inclusive da reserva, tentaram se colocar como líderes principais do grupo, ou organizá-lo em bases mais estáveis, sem grande sucesso. Uma das principais tentativas de organização foi a LÍDER (Liga Democrática Radical), ligada à liderança do almirante Heck. A entidade nunca agregou todos os segmentos da linha dura, no entanto, ocupou lugar de relevo no estreito espaço político tolerado pela ditadura. O grupo mobilizou principalmente militares, por exemplo, o futuramente célebre brigadeiro Burnier, então ainda coronel, mas tinha apoio de parlamentares da UDN baiana (deputados Honorato Viana e Wilson Lins).22 Embora não congregasse toda a direita radical, a LÍDER incomodou o governo ao ponto de ser fechada compulsoriamente em novembro de 1965, na esteira da crise provocada pelas eleições estaduais daquele ano, como se verá adiante.

A atuação da “linha-dura” e seus choques com o governo Castelo Branco

A “linha-dura” foi se constituindo nos primeiros dias da ditadura, ao passo em que medidas do novo governo causavam decepção à direita (como a escolha do político do PSD José Maria Alckmin para vice de Castelo Branco) e líderes militares agiam por conta própria contra seus alvos. Especialmente entre militares de média patente surgiu a visão de que eles eram a “revolução”, sendo os chefes de governo apenas seus delegados. De acordo com tal visão, cabia tomar iniciativas independentes para eliminar a esquerda e a corrupção do cenário público. Inúmeras ações desse tipo ocorreram pelo país, às vezes indo além do que esperavam as novas autoridades. Santos, por exemplo, cidade com tradição de movimentos sociais e presença de lideranças comunistas passou por forte intervenção militar, tanto em suas instituições políticas (a remoção do prefeito da cidade) como em entidades sociais, com a maioria dos sindicatos sob controle militar e seus líderes detidos em um navio prisão.23

Além do caso de Santos, oficiais próximos à “linha-dura” agiram de maneira semelhante em outras cidades e mesmo estados, como no Amazonas, cujo governador foi cassado em junho de 1964 após fortes pressões militares. Um dos oficiais interlocutores dos diplomatas estadunidenses se gabou dos acontecimentos no Amazonas, afirmando que o caso representava uma vitória das táticas da “linha-dura”.24 Um episódio parecido se deu na cidade de Niterói, então capital do Estado do Rio de Janeiro, cujo Prefeito foi forçado a renunciar, em outubro de 1964, após sofrer pressão dos militares radicais. Esses casos foram apresentados como vitórias da “linha-dura” sobre os setores do governo que preferiam expurgos mais moderados. A tática era pressionar o governo Castelo Branco por meio de notas na imprensa e publicação de “provas” incriminadoras contra os alvos, seja de vínculos com a esquerda ou suspeitas de corrupção. Nem sempre conseguiram sucesso, a exemplo da fracassada intervenção na Reitoria da UFMG em junho de 1964 que, por ordem de Castelo Branco (após sofrer pressão de setores da elite mineira) foi suspensa, para desagrado da “linha-dura”.25

Mais um revés importante para os radicais da ditadura envolveu o governador paulista Adhemar de Barros, célebre por práticas corruptas ao ponto de incorporar o tema a seu próprio anedotário. Desde o princípio, a “cabeça” de Adhemar foi demandada pela “linha-dura”, que considerava uma traição à “revolução” o desinteresse do novo governo em cassar seu mandato. Ressalte-se que a campanha contra Adhemar tinha o apoio entusiástico de parte da imprensa, especialmente de O Estado de São Paulo. O desconforto tornou-se maior quando Castelo Branco removeu o oficial (general Mena Barreto) que chefiava um IPM dedicado a encontrar provas de atos corruptos de Adhemar.26 Segundo um registro dos diplomatas, Barros usava seu dinheiro para conquistar amigos no governo federal, por exemplo, ele teria pago dívidas de jogo do general Costa e Silva para ganhar sua simpatia.27 O mais significativo, do ponto de vista do governo, era que o apoio de Barros tinha sido importante para o sucesso do golpe de 1964, sendo constrangedor expurga-lo; além disso, a situação se complicava devido à força da polícia militar paulista, que tinha 30 mil homens em armas. Adhemar de Barros acabaria finalmente cassado em junho de 1966, mas não pela corrupção, e sim por se aproximar da oposição e articular um candidato às eleições indiretas em São Paulo, contrariando a vontade de Brasília.

Os líderes da “linha-dura” faziam um jogo de pressão com objetivo de dobrar a vontade do governo Castelo Branco, no entanto, ele respondia de modo semelhante, com uma estratégia de “morde e assopra” para tentar controlar os radicais da direita, ou seja, fazendo às vezes concessões, mas, também, punindo o que considerava excessos. Nesse sentido, uma das concessões mais comemoradas à direita foi a deposição do governador de Goiás, Mauro Borges, que havia se tornado um dos alvos mais cobiçados pela “linha-dura”. Telegrama da Embaixada para Washington em 19 de maio de 1964 analisou a situação de Mauro Borges, cujo destino ainda não estava selado na ocasião. Ele tinha sido aliado de João Goulart e entregara alguns cargos no estado de Goiás a quadros de esquerda, o que o colocava no rol dos inimigos a purgar. No entanto, tinha origem militar e mantinha boas relações com o governo dos EUA, ao contrário do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, por exemplo. Após o golpe de 1964 ele aderiu e demitiu certo número de funcionários esquerdistas, porém, resistiu a demitir assessores mais graduados, como secretários de estado, o que vinha atiçando a “linha-dura”.28 Sua cassação foi afinal decretada em novembro de 1964, o que serviu para agradar e acalmar temporariamente os radicais da direita.

Outro campo de atuação privilegiado da “linha-dura” foram os IPM, vários deles foram comandados por oficiais conectados ao grupo, de que extraíram grande notoriedade. A importância política assumida pelos IPM gerou registros e análises dos diplomatas, notadamente um largo estudo produzido em maio de 1965, cujas informações foram usadas nas linhas que seguem.29 A fórmula dos IPM não foi invenção dos golpistas, tratava-se de procedimento investigativo integrante da Justiça Militar, previsto nos códigos normativos das instituições militares e também na Lei de Segurança Nacional de 1953. A novidade em 1964 foi usar de maneira generalizada um recurso previsto para investigar esporádicos crimes militares e políticos. Nos primeiros dias após o golpe, alguém no Comando Supremo da Revolução teve a ideia de estabelecer um IPM para investigar os crimes políticos dos derrotados, o que se concretizou em 14 de abril com a nomeação do general Estevão Taurino de Resende para conduzir o inquérito. Como era impossível conduzir trabalho investigativo de escopo nacional a partir de um só centro, Taurino de Resende nomeou responsáveis para novos IPMs em diferentes regiões, além do que chefes militares locais tomaram iniciativas próprias, dando origem, em poucos meses, a centenas de inquéritos. Segundo o registro diplomático, apenas em 1964 foram estabelecidos aproximadamente 760 IPMs espalhados pelo Brasil. Dada essa explosão investigativa, o governo entendeu ser necessário um órgão para tentar colocar ordem no caos, uma espécie de super IPM. Daí a criação da Comissão Geral de Investigações (CGI), em 27 de abril de 1964, sob o comando do mesmo Taurino de Resende. A CGI teria a duração de seis meses, mesmo período estabelecido pelo Ato Institucional para que o Estado procedesse ao expurgo do serviço público. Improvável que a CGI pudesse investigar todos os casos, ainda mais composta somente por três membros, como ficou inicialmente estabelecido, tanto mais porque seus líderes entenderam que era sua atribuição investigar também crimes de corrupção. Na prática, ela serviu para reunir os inquéritos provenientes de todas as regiões, tentando ordenar um processo que levou a centenas de demissões país afora, entre servidores civis e militares. Os desafios da CGI para realizar seu trabalho se consubstanciaram, também, nas dificuldades para controlar os diversos IPM, sobretudo porque se tornaram reduto da linha dura militar. Significativamente, um desses grupos prendeu o filho do general Taurino de Resende, que era professor universitário em Recife.

Os IPM tornaram-se palco de atuação para militares interessados em radicalizar as medidas repressivas. Seu poder legal era limitado, mas eles agiram arbitrariamente para criar fatos consumados, assim como aterrorizar os inimigos e obter publicidade para sua causa. Na verdade, os IPM deveriam se limitar a fazer investigações e remeter suas conclusões ao poder judiciário (militar ou civil, a depender do caso), a quem caberia julgar. Os oficiais na direção dos IPM não tinham poder de condenar, mas poderiam prender temporariamente para investigações, exceto nos casos envolvendo suspeita de corrupção. Dada a disposição de parcelas do governo e do Poder Judiciário, de modo geral as suas atividades não produziram consequências legais, ou seja, condenações. Muitos dos inquéritos enviados à Justiça foram considerados inconsistentes para fundamentar punições legais. Ainda assim, pelas características do contexto, o aborrecimento para os investigados era grande, pois, além de não terem certeza quanto ao futuro sofriam assédios constantes, pois eram chamados para longos e cansativos interrogatórios, ou presos para averiguações. A fim de fugir aos constrangimentos, alguns preferiram exilar-se espontaneamente, a exemplo de Juscelino Kubitschek.

A grande maioria dos IPM abertos em 1964 foi concluída antes do fim ano, mas um grupo entre 10 e 20 processos continuou em funcionamento durante o ano de 1965, quase sempre chefiados por oficiais ligados à “linha-dura”, interessados em usa-los em proveito da causa. Assim, alguns IPM tornaram-se claramente plataformas políticas, especialmente os chefiados pelos coronéis Joaquim Igrejas30, Osneli Martinelli, Julio Valverde, Gerson de Pina e Ferdinando de Carvalho, que, entre outros, dedicaram-se a “alvos” politicamente sensíveis como Grupo dos Onze, ISEB e PCB. Na conclusão do seu relatório sobre os IPM, o oficial diplomático afirmou que durante algum tempo foram úteis ao governo, pois, apesar de provocarem algumas crises, eles serviam para acomodar os militares radicais em alguma função pública, dando-lhes espaço para externar seu ódio e perseguir seus alvos, tirando pressão do governo.

No início de 1965, no entanto, segundo a opinião de um dos principais assessores de Castelo Branco, Golbery do Couto e Silva, os IPM restantes estavam se tornando um problema e a expectativa era que terminassem logo suas atividades. Eles começaram a abusar de seu poder, inclusive ameaçando desobedecer a ordens judiciais (habeas corpus em favor de presos) e orientações do próprio governo. Um dos episódios envolveu o governador deposto Miguel Arraes, que ficou preso desde o golpe até o fim de abril de 1965, quando foi libertado devido a habeas corpus aprovado pelo STF. A decisão irritou a “linha-dura”, por isso alguns coronéis de IPM começaram a convocá-lo para interrogatórios, no começo de maio, sendo que uma vez o levaram a ameaçador passeio de carro. Após um dos interrogatórios ele foi detido, tendo sido libertado, segundo diplomatas norte-americanos, após interferência pessoal de Castelo Branco.31 Em seguida Arraes se exilou na Argélia, para fugir ao risco de nova detenção. Episódios como esse criaram vários atritos, tendo o governo respondido com detenção temporária de alguns dos coronéis, a exemplo de Martinelli, preso por quinze dias em junho de 1965 sob acusação de divulgar documentos sigilosos do Exército e quebra de hierarquia. Como protesto ele renunciou à chefia do IPM do Grupo dos Onze, tendo atraído a solidariedade do coronel Pina, chefe do IPM do ISEB, que igualmente renunciou.32 Alguns dias depois, no início de julho de 1965, o tenente-coronel da FAB Julio Valverde, chefe de um IPM sobre corrupção na área de São Paulo, fez críticas públicas a Castelo Branco por não permitir punições ao governador paulista Adhemar de Barros, sendo punido com 30 dias em prisão militar.

O aumento das tensões com a “linha-dura” em meados de 1965 deveu-se às críticas cada vez mais agudas a Castelo Branco e ao poder judiciário, mas, também, pela vontade de interferir nas eleições estaduais de 1965, que o grupo tentou impedir e tumultuar. Eles começaram pela detenção de candidatos considerados inimigos da “revolução”, procurando amedronta-los e forçar sua desistência, e ameaçaram impedir certas candidaturas. Como se sabe, o resultado das eleições de outubro de 1965 desagradou à “linha-dura” e causou grave crise política, sendo seu episódio mais tenso a possibilidade de levante militar em certas tropas da Vila Militar, no Rio de Janeiro, debelada devido à intercessão do general Costa e Silva. Na ótica da direita radical, o problema estava na Guanabara e em Minas, que elegeram respectivamente Negrão de Lima e Israel Pinheiro, ambos do PSD e com apoio do PTB, e supostamente dos comunistas também. O entendimento corrente era que o resultado significava vitória do ex-presidente Juscelino Kubitschek, que a propósito voltou ao país depois de alguns meses de autoexílio, gerando na “linha-dura” a sensação de que os derrotados em 1964 estavam voltando ao cenário.

Para retomar o controle da situação, e aproveitando o quadro como justificativa para seus próprios planos de institucionalizar a ditadura, o governo respondeu com o AI-2, editado em 27 de outubro de 1965, cujas principais medidas foram a reforma partidária compulsória e o estabelecimento de eleições indiretas para presidente (o AI-3, na sequência, determinou o mesmo para as eleições de governadores). No entanto, a insatisfação na “linha-dura” persistiu, pois, o governo Castelo Branco se comprometeu a dar posse a todos os governadores eleitos. Para pressioná-lo, o chefe do IPM do Partido Comunista, coronel Ferdinando de Carvalho, convocou o governador eleito da Guanabara Negrão de Lima para 4 depoimentos sucessivos, nos primeiros dias de novembro de 1965, e solicitou a sua prisão preventiva à justiça militar. O argumento era que Negrão havia intermediado contatos entre Juscelino Kubitschek e o PCB em 1955, que resultaram no acordo de apoio comunista ao político mineiro nas eleições daquele ano. Em seguida, Carvalho solicitou ao governo que a posse de Negrão fosse cancelada, pois teria obtido provas de que ele tivera apoio comunista em sua própria eleição.

A decisão do governo Castelo Branco de resistir às pressões e dar posse a Negrão de Lima gerou protestos agressivos dos coronéis Boaventura Cavalcanti e Júlio Valverde, no último caso com uma declaração que virtualmente pedia a deposição do presidente. A resposta do governo foi mais uma rodada de prisões para punir alguns dos oficiais, assim como mudanças de comandos militares e transferências para postos remotos, a exemplo do general Afonso Albuquerque Lima, que perdeu uma posição de comando de tropas no Rio de Janeiro e foi transferido para posto administrativo. Decidiu-se também fechar a organização LÍDER, igualmente em fins de novembro de 1965, pois o governo passou a considera-la uma ameaça à “ordem revolucionária” pela agitação militar contra a posse dos governadores eleitos, que continuava mesmo depois da edição do AI-2. Segundo a opinião da Embaixada dos EUA, o governo tomou a medida por saber que a LÍDER não representava toda a “linha-dura” civil e militar, de maneira que o ato era também uma mensagem dirigida a toda a direita radical. Significativamente, nos mesmos dias Castelo Branco começou a falar grosso contra o grupo de insatisfeitos, dizendo que não toleraria insubordinação militar e desafiando os conspiradores a entrarem em ação.33

Nos meses seguintes, talvez devido às medidas tomadas pelo governo (inclusive as ameaças), a situação se acalmou. E também porque o sucessor seria Costa e Silva, com a promessa de atender melhor aos pontos de vista do grupo. Mesmo assim, a “linha-dura” continuou ativa no período final do governo Castelo Branco, de acordo com os registros norte-americanos. Um telegrama emitido pelo consultado de São Paulo em maio de 1966, por exemplo, afirmou que setores da “linha-dura” seguiam insatisfeitos e conspirando, devido à frustração com as medidas repressivas tomadas depois do AI-2 (eles esperavam mais). Alguns líderes defendiam um novo ato institucional, mais duro desta vez, com o fechamento das casas parlamentares e intervenção no poder judiciário. Um mês depois, junho de 1966, outro registro informava a continuidade da conspiração “linha-dura”, sendo que alguns “lunáticos” ainda falavam sobre assassinato do presidente. Mas, o relatório dizia que a boataria não causava preocupação séria, mesmo porque acreditava-se que a “linha-dura” representava apenas entre 1 e 5% dos militares.34

A escolha e a ascensão de Costa e Silva à presidência, cujo governo começou em 1967, foi considerada uma vitória da “linha-dura”, o que se evidenciou na mudança de rumos econômicos e no afastamento do grupo castelista do poder. Além disso, algumas figuras ligadas ao grupo ascenderam a postos públicos importantes, como os Ministérios do Interior (general Afonso Albuquerque Lima) e das Minas e Energia (José Costa Cavalcanti), além da Secretária de Segurança de São Paulo (general Sebastião Chaves). Não obstante, alguns conflitos continuaram ao longo do governo Costa e Silva, movidos por um grupo que o embaixador norte-americano John Tuthill chamou de cisma da “linha-dura”.35 Num desses episódios, um grupo de coronéis ocupando postos militares no Rio, confrontou o Ministro Delfim Netto, em reunião realizada em junho de 1967, atitude que foi considerada desrespeitosa e alcançou repercussão pública graças à imprensa. Os militares envolvidos alegaram que apenas pretendiam se informar sobre as políticas do governo, porém, três meses depois acabaram sendo transferidos de seus postos (coronéis Alencar Araripe, Amerino Raposo, Francisco Boaventura Cavalcanti, Hélio Lemos e Ruy de Castro), alguns enviados ao exterior e outros nomeados para cargos secundários, o que o embaixador John Tuthill considerou ter sido punição pela ousadia.36 Significativamente, no mesmo relatório o embaixador notou que O Estado de São Paulo lamentou as transferências, em nota publicada no dia 13 de setembro, com a afirmação de que os militares transferidos do Rio eram os mais firmes apoiadores do governo Costa e Silva.

Poucos meses depois, em fevereiro de 1968, a Embaixada dos EUA enviou a Washington um memorando descrevendo uma conversa com o coronel Francisco Boaventura Cavalcanti, “talvez o mais proeminente líder da “linha-dura””.37 Classificado como confidencial, o documento continha a prosaica informação que a conversa ocorrera no restaurante Camponesa, em Botafogo. Detalhe mais interessante é que o interlocutor foi Frank Charles Carlucci, então um jovem agente que posteriormente faria notável carreira no Departamento de Estado e na CIA, tendo sido Secretário de Defesa no governo de Ronald Reagan. O relato da conversa mostra que a antiga “linha-dura” passava por mudanças e fissuras, pois Boaventura afirmou que seu grupo estava agora menos preocupado em expurgar a esquerda e a corrupção, e mais interessado em cobrar do governo ações desenvolvimentistas, pensando no futuro. De acordo com o coronel, segundo o qual Delfim Netto havia mentido para seu grupo na reunião do ano anterior, a intenção era pressionar o governo Costa e Silva, mas não o derrubar. Talvez devido ao teor da conversa Carlucci registrou que o termo “linha-dura” estava perdendo acurácia e saindo de moda.

O memorando sobre as opiniões do coronel Francisco Boaventura Cavalcanti mostra o antigo líder da “linha-dura” em processo de mudança, o que talvez explique sua situação insólita no contexto do AI-5. Ele foi removido para a reserva do Exército após a promulgação do Ato, em episódio ainda controverso, pois teria articulado com alguns deputados, inclusive da oposição, a derrota do pedido do governo ao Congresso pela punição do deputado Moreira Alves. Ele foi acusado de quebra de hierarquia e deslealdade para com a “revolução”, segundo nota oficial publicada na imprensa.38

Deixando de lado as idiossincrasias de Boaventura Cavalcanti, não há dúvida que o novo Ato Institucional agradou às outras alas da “linha-dura”, representando nova vitória da extrema direita militar e civil. Com a inflexão autoritária da ditadura, antigas demandas do grupo foram atendidas, como o afastamento de juízes que não colaboravam com os expurgos e o próprio incremento da repressão, que passou a matar, a torturar e a censurar com mais intensidade. Além disso, o Congresso foi suspenso, sem prazo para reabertura, o que alimentava a expectativa de um expurgo final do sistema político.

Entretanto, nem tudo foram flores para os segmentos radicais, que logo encontraram motivos para insatisfação. Em telegrama confidencial para Washington, de 28 de dezembro de 1968, Tuthill afirmou que o AI-5 foi grande vitória da “linha-dura”, porém, os radicais logo se sentiram traídos quando a Presidência da República editou o Ato Complementar 39 (20-12-1968).39 Segundo o texto do AC-39, a suspensão de mandatos parlamentares, de direitos políticos de cidadãos, bem como a exoneração ou aposentadoria de servidores públicos seriam atos exclusivos do Poder Executivo, mais precisamente dos Ministros e do próprio Presidente. Tratava-se de medida para evitar que os expurgos saíssem do controle do governo. A repressão seria feita duramente, como foi, mas as lideranças radicais não teriam as mãos livres para fazer a “justiça revolucionária”, pelo menos não no caso da elite política e no serviço público. A violência nos aparatos repressivos das agências de segurança era de outra natureza e, de qualquer modo, não era pautada por normas legais.

* * * * * * * *

Os relatórios, informes, memorandos e telegramas produzidos pelos diplomatas norte-americanos revelam o interesse de conhecer os objetivos e avaliar a força da “linha-dura”. Tratava-se de monitorar risco potencial à estabilidade do governo Castelo Branco, em cujo sucesso as autoridades norte-americanas apostaram muito, já que se aproximava do modelo ideal para a América Latina na ótica dos líderes democratas então à frente dos EUA. Suas características mais positivas, desde essa visão, eram a combinação entre repressão à esquerda e a tentativa de mostrar/fingir respeito à institucionalidade liberal, o apoio total à política externa norte-americana e uma política econômica orientada para o liberalismo e o favorecimento do capital internacional. Em um dos relatórios citados, o diplomata Niles Bond apontou algo positivo na ação da «linha-dura» (a pressão para purgar a corrupção), entretanto, a tônica geral dos registros norte-americanos era de desconforto com a atuação dos radicais da direita, especialmente por sua propensão a opiniões nacionalistas que poderiam gerar medidas contrárias aos interesses da grande potência. Por isso a tentativa discreta de ajudar alguns alvos da “linha-dura”, como o governador eleito da Guanabara, Negrão de Lima, que recebeu uma mensagem no momento de auge da campanha para impedir a sua posse. Ele foi avisado que autoridades norte-americanos poderiam aparecer publicamente ao seu lado, apresentando os programas sociais da USAID, o que certamente serviria para indicar o apoio dos EUA. No entanto, significativamente, o político brasileiro preferiu evitar o gesto, o que na avaliação da Embaixada deveu-se ao medo de atrair ainda mais antipatia da direita radical, muito influenciada por visões nacionalistas.40

Por falar nas visões públicas sobre os EUA, a imagem daquele país foi se desgastando ao longo do tempo, aguçando-se sentimentos antiamericanos41 que impactaram inclusive os governos da ditadura. Os diplomatas estadunidenses foram perdendo a grande influência que desfrutaram no governo Castelo Branco, a começar pela eleição de Costa e Silva para sucessor, escolha que não agradou a Washington. O episódio do AI-5 foi outro revés na relação entre os dois países, pois a administração democrata achou a medida desnecessária e exagerada, com potencial para aumentar o ativismo da esquerda radical em resposta ao incremento do autoritarismo (MOTTA, 2010; LEACOCK, 1990).

Durante as gestões para a escolha do sucessor de Costa e Silva, os diplomatas monitoraram atentamente o general Albuquerque Lima, antigo aliado da “linha-dura” e preferido da média oficialidade para ocupar o cargo. Eles se mostraram alertas especialmente em relação aos pontos de vista nacionalistas do general.42 Não foram encontrados registros sobre intervenção direta de Washington para impedir a escolha de Albuquerque Lima. Mas, é factível supor que os EUA ficaram mais satisfeitos com a ascensão de Médici à presidência, aliás, ele foi convidado a visitar Washington e o fez em dezembro de 1971.43 Importante registrar, a propósito das relações entre os dois países, que a partir de 1969 o governo estadunidense passou às mãos do republicano Richard Nixon, que tinha menos pudor de apoiar ditaduras sanguinárias e menor cuidado de fingir consideração pelas instituições políticas liberais. Significativamente, o governo Médici esteve ao lado dos norte-americanos nas ações para desestabilizar o governo Allende no Chile e abrir caminho ao golpe militar de Pinochet (HARMER, 2011, p.98, 126, 264).

Mesmo que as relações entre os dois países tenham melhorado no período Médici, em comparação à fase de Costa e Silva, e o capital norte-americano estivesse feliz e satisfeito com os resultados do “milagre econômico”, a ingerência dos diplomatas dos EUA nos assuntos internos dos governos brasileiros diminuiu em comparação ao período Castelo Branco, assim como sua capacidade de obter informações privilegiadas de fontes oficiais. Isso fica claro em relatório de 9 de outubro de 1970, de que foi extraído o seguinte excerto, que nos serve à guisa de conclusão:

Ainda que nossos funcionários superiores continuem conseguindo audiências quando as solicitam, os assessores do Presidente (Médici) aparentemente sentem que devem evitar entregar ‘segredos da casa’ a forasteiros e nem de longe são tão receptivos como os seus antecessores de governos anteriores.44

  • Coordenação do Dossiê Direitas nos Estados Unidos e Brasil durante a Guerra Fria
    Mary Anne Junqueira e Marcos Napolitano
  • 1
    Artigo não publicado em plataforma de preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referidas no artigo.
  • 3
    O trabalho de coleta nos National Archives and Records Administration (unidade de College Park, MD) foi realizado pelo autor no período 2006-2007, graças a bolsa de pós-doutorado financiada pelo CNPq. Na ocasião da pesquisa, os arquivos davam acesso a documentos produzidos até o ano de 1973.
  • 4
    Um dos textos de análise registra satisfação pelo fato de Castelo Branco conseguir conter a “linha-dura”, mas, ao mesmo tempo diz que sua pressão não era inteiramente negativa, pois poderia impulsionar punições efetivas aos corruptos. RG 59, caixa 1933, pasta 2. National Archives and Records Administration (unidade de College Park, MD), a partir de agora apenas NARA II.
  • 5
    RG 59, caixa 1932 pasta 5. NARA II.
  • 6
    RG 59, caixa, 1933 pasta 4. NARA II.
  • 7
    Entre outros exemplos possíveis, ver charge de Jaguar em Última Hora edição de 21/08/1964 e charge no Correio da Manhã na edição de 2/06/1965.
  • 8
    O professor e político Luís Gama e Silva descreveu-se como linha diamante (RG 59, caixa, 1937, pasta 1), enquanto um certo Coutinho, provavelmente militar da Marinha apresentou-se como linha duríssima (ultra hardline na tradução do diplomata. RG 59, caixa, 1929, pasta 6).
  • 9
    Isso não significa reduzir o alcance das medidas autoritárias aplicadas pelo governo Castelo Branco, em grande medida responsável por institucionalizar a ditadura. Mas, segue verdade que na percepção da linha dura ele deveria ter aprofundado a repressão. Por exemplo, em Minas Gerais em junho de 1964, um certo Major Resende Costa reclamou que fizeram uma lista de 283 cassações de lideranças políticas no estado, e no final foram punidos apenas 10. Ele pensava em passar à reserva em protesto. RG 59, Caixa: 1930 pasta 3. NARA II.
  • 10
    Por exemplo, Ruy Mesquita, em carta de junho de 1964. RG 59, Caixa:1937, pasta 1. O consulado norte-americano em São Paulo o considerava um dos principais líderes civis da «linha-dura».
  • 11
    De acordo com relatório de janeiro de 1965 sobre a organização LÍDER, assinado pelo diplomata Lowell Kilday, segundo secretário da Embaixada, a entidade linha dura tinha entre seus pontos programáticos a crítica ao projeto de reforma agrária do governo Castelo Branco. RG 59, caixa 1935, pasta 2. NARA II.
  • 12
    RG 59, caixa 1929, pasta 6. NARA II.
  • 13
    RG 59, caixa, 1937, pasta 1. NARA II.
  • 14
    RG 59, caixa, 1935, pasta 2. NARA II.
  • 15
    RG 50, caixa, 1928, pasta 3. NARA II.
  • 16
    Em relatório de setembro de 1964, um diplomata afirmou que Oliveiros Ferreira achava compatível ter algumas ideias liberais e ao mesmo tempo apoiar a linha dura, imaginando que era uma força favorável à destruição das oligarquias e da corrupção da vida pública brasileira, pois os oficiais eram idealistas. Mas mostrou-se desanimado diante da dificuldade de unir os membros da linha dura, o que tornava impossível uma efetiva mudança de rumos do governo Castelo Branco que, na sua visão, falhara em fazer qualquer revolução. RG 59, caixa 1943, pasta 2. NARA II.
  • 17
    RG 59, Caixa: 1928 pasta 1. NARA II.
  • 18
    RG 59, caixa 1927, pasta 5. NARA II.
  • 19
    RG 59, caixa 1929, pasta 2. NARA II.
  • 20
    RG 59, caixa 1936, pasta 5. NARA II.
  • 21
    RG 59, caixa 1927, pasta 5. NARA II.
  • 22
    RG 59, caixa 1935, pasta 2. NARA II. O documento registrou apenas Penido Burnier, coronel da Força Aérea, mas, acreditamos tratar-se do futuro brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, cujo pai chamava-se Otávio Penido Burnier.
  • 23
    RG 59, caixa 1933, pasta 2. NARA II.
  • 24
    RG 59, caixa 1929, pasta 6. NARA II. O governador Plínio Ramos, do PTB, acabou cassado apesar de sua tentativa de aproximar-se de Castelo Branco e fazer juras de amor (tardias) à “revolução”. Cf. também QUEIRÓS, 2019.
  • 25
    RG 59, caixa 1931, pasta 5. NARA II.
  • 26
    RG 59, caixa 29, pasta 6. NARA II.
  • 27
    RG 59, caixa 1941, pasta 1. NARA II.
  • 28
    RG 59 caixa 1943, pasta 5. NARA II.
  • 29
    RG 59, caixa 1942, pasta 6. NARA II.
  • 30
    Embora apareça na documentação norte-americana como ‘Coronel Igrejas’, provavelmente se trata do Coronel Joaquim Igrejas Lopes
  • 31
    RG 59, caixa 1931 pasta 1. NARA II.
  • 32
    RG 59, Caixa, 1931, pasta 2. NARA II.
  • 33
    RG 59, caixa 1931, pasta 4. NARA II.
  • 34
    RG 59, caixa, 1926, pasta 1. NARA II.
  • 35
    RG 59, caixa 1942, pasta 6. NARA II.
  • 36
    RG 59, caixa 1900, pasta 2. NARA II.
  • 37
    RG 59, caixa 1901, pasta 5. NARA II.
  • 38
    O Globo, 20/05/1969, p.2. Cf. também GASPARI, 2002, p.70-71.
  • 39
    RG 59, caixa 1910, pasta 1. NARA II.
  • 40
    RG 59, caixa 1931, pasta 4. NARA II.
  • 41
    Há vários registros dos diplomatas sobre a circulação de críticas à influência norte-americana, inclusive na forma de piadas. Um documento de abril de 1966 registrou algumas piadas que circulavam então no Brasil: “Por que os Estados Unidos demoram a nomear novo Embaixador para o Brasil? Porque já tem dois aqui, Juracy Magalhães e Roberto Campos”; “Já ouviu a última do Roberto Campos? Ele ofereceu sua renúncia, mas o Presidente Johnson a recusou”. RG 59, caixa, 1931 pasta 1. NARA II.
  • 42
    Um dos relatórios refere-se à visita do general aos EUA, em junho de 1968, quando era ministro do Interior. Ele impressionou os norte-americanos por sua argumentação nacionalista e causou espécie por um detalhe: recusou-se a aceitar subvenção dos EUA para a viagem, embora eles tenham dito que era o costume. RG 59, caixa 1903 pasta 2. NARA II.
  • 43
    A documentação norte-americana mostra as negociações para os detalhes da visita de Médici, em especial a preocupação do governo brasileiro de que ele tivesse ao menos tratamento semelhante ao dispensado a João Goulart em 1962. RG 59, caixa 2130, pasta 5. NARA II.
  • 44
    Tradução feita pelo autor do artigo. Relatório assinado por Clarence Boonstra, que ocupou diferentes cargos na missão norte-americana no Brasil. RG 59, caixa 2131, pasta 5. NARA II.

Referências Bibliográficas

  • CHIRIO, Maud. A política nos quartéis. Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira Rio de Janeiro, Zahar, 2012.
  • GASPARI, Elio. A ditadura escancarada São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
  • HARMER, Tanya. Allende’s Chile and the Inter-American Cold War Chapell Hill: University of North Carolina Press, 2011.
  • LEACOCK, Ruth. Requiem for Revolution. The United States and Brazil (1961-69) Kent: The Kent State University Press, 1990.
  • MARTINS FILHO, João Roberto. O palácio e a caserna: a dinâmica militar das crises políticas na ditadura (1964-1969) São Carlos, Ed. UFSCar, 1995.
  • MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Modernizando a repressão: a Usaid e a polícia brasileira. Revista Brasileira de História São Paulo, v. 30, nº 59, p. 237-266. 2010.
  • MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Os expurgos de 1964 e o discurso anticorrupção na caricatura da grande imprensa. Revista Tempo e Argumento Florianópolis, v. 8, n. 18, p. 09-39. maio/ago. 2016.
  • NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do regime militar brasileiro São Paulo: Contexto, 2014.
  • QUEIRÓS, Cesar Bubolz. O golpe de 1964 no Amazonas e a deposição do governador Plínio Coelho. Antíteses, Londrina, v.11, n. 22, p. 542-562, jan-jul. 2019.
  • STEPAN, Alfred. Os militares na política Rio de Janeiro, Artenova, 1975.

Editado por

  • Editores Responsáveis
    Júlio Pimentel Pinto e Flávio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2020
  • Aceito
    31 Jul 2020
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