Resumos
OBJETIVO: Realizou-se estudo com base populacional na cidade de Bambuí, MG, com cerca de 15.000 habitantes, para determinar a prevalência e os fatores associados ao uso de automedicação. MÉTODOS: Foi selecionada uma amostra aleatória simples de 1.221 moradores com idade >18 anos: 796 relataram uso de medicamentos nos últimos 90 dias e foram incluídos no estudo (775 participaram). A coleta de dados foi feita por entrevistas domiciliares. Foram considerados três grupos de variáveis exploratórias: sociodemográficas, indicadores de condição de saúde e indicadores de uso de serviços de saúde. Para análise estatística, foram utilizados: teste de qui-quadrado de Pearson e odds ratio ajustados pelo método de regressão logística multinomial. RESULTADOS: Do total de participantes, 419 (54,0%) relataram ter consumido exclusivamente medicamentos prescritos por médicos nos últimos 90 dias, 133 (17,2%) consumiram medicamentos prescritos e não prescritos, e 223 (28,8%) consumiram, exclusivamente medicamentos não prescritos. Após ajustamento por variáveis de confusão, as seguintes variáveis apresentaram associações com o uso exclusivo de automedicação: sexo feminino (OR=0,6; IC95%=0,4-0,9); idade (OR=0,4; IC95%=0,3-0,6 e OR=0,2; IC95%=0,1-0,5 para 40-59 e >60 anos, respectivamente); >5 residentes no domicílio (OR=2,1; 1,1-4,0); número de consultas médicas nos últimos 12 meses (OR=0,2; IC95%=0,1-0,4 e OR=0,1; IC95%=0,0-0,1 para 1 e >2, respectivamente); consulta a farmacêutico nos últimos 12 meses (OR=1,9; IC95%=1,1-3,3) e relato de gastos com medicamentos nesse período (OR=0,5; IC95%= 0,3-0,8). CONCLUSÃO: Os resultados mostraram prevalência da automedicação semelhante à observada em países desenvolvidos, sugerindo que essa prática poderia atuar como um substituto da atenção formal à saúde.
Automedicação; Prevalência; Hábitos de consumo de medicamentos; Medicamentos sem prescrição; Prescrição de medicamentos
OBJECTIVE: A population-based study was carried out in the municipality of Bambuí, Brazil (population: approx. 15,000 inhabitants), to determine the prevalence of self-medication and its associated factors. METHODS: A random sample of 1,221 residents aged >18 years was selected. Of these, 796 reported use of medications in the last 90 days and were selected for this study (775 participated). Data was collected through home interviews. Study variables were divided in 3 groups: social and economic, health status and health service use indicators. Statistical analysis was performed using Pearson's Qui-square test, and odds ratios adjusted by multinomial logistic regression. RESULTS: Of the total, 419 (54.0%) reported use of only prescribed medications, 133 (17.2%) took prescribed and over-the-counter medications, and 223 (28.8%) took only over-the-counter medications in the last 90 days. After adjusting for confounders, the following variables presented significant associations with exclusive use of self-medication: female sex (OR=0.6; IC95%=0.4--0.9); age (OR=0.4; IC95%=0.3--0.6 for 40-59 years old and OR=0.2; IC95%=0.1--0.5 for >60 years); >5 residents in the household (OR=2.1; 1.1--4.0); number of visits to a doctor in the previous 12 months (OR=0.2; IC95%=0.1--0.4 and OR=0.1; IC95%=0.0-0.1 for 1 visit and >2 visits, respectively); report of consulting a pharmacist in the previous 12 months (OR=1.9; IC95%=1.1--3.3); and reports of financial expenses with medications during this period (OR=0.5; IC95%=0.3--0.8). CONCLUSIONS: The study results show that the prevalence of self-medication in the studied community was similar to that observed in developed countries. These results also suggest that self-medication works in place of the formal health attention in this community.
Self-medication. Prevalence; Drug use habits; Drugs, non-prescription; Prescriptions, drug
Prevalência e fatores associados à automedicação: resultados do projeto Bambuí
Prevalence and factors associated with self-medication: the Bambuí health survey
Antônio Ignácio de Loyola Filho, Elizabeth Uchoa, Henrique L Guerra, Josélia O A Firmo e Maria Fernanda Lima-Costa
Núcleo de Estudos em Saúde Pública e Envelhecimento (Nespe). Centro de Pesquisas René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz. Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil
DESCRITORES
Automedicação.# Prevalência.# Hábitos de consumo de medicamentos.# Medicamentos sem prescrição. Prescrição de medicamentos.
OBJETIVO:
Realizou-se estudo com base populacional na cidade de Bambuí, MG, com cerca de 15.000 habitantes, para determinar a prevalência e os fatores associados ao uso de automedicação.
MÉTODOS:
Foi selecionada uma amostra aleatória simples de 1.221 moradores com idade >18 anos: 796 relataram uso de medicamentos nos últimos 90 dias e foram incluídos no estudo (775 participaram). A coleta de dados foi feita por entrevistas domiciliares. Foram considerados três grupos de variáveis exploratórias: sociodemográficas, indicadores de condição de saúde e indicadores de uso de serviços de saúde. Para análise estatística, foram utilizados: teste de qui-quadrado de Pearson e odds ratio ajustados pelo método de regressão logística multinomial.
RESULTADOS:
Do total de participantes, 419 (54,0%) relataram ter consumido exclusivamente medicamentos prescritos por médicos nos últimos 90 dias, 133 (17,2%) consumiram medicamentos prescritos e não prescritos, e 223 (28,8%) consumiram, exclusivamente medicamentos não prescritos. Após ajustamento por variáveis de confusão, as seguintes variáveis apresentaram associações com o uso exclusivo de automedicação: sexo feminino (OR=0,6; IC95%=0,4-0,9); idade (OR=0,4; IC95%=0,3-0,6 e OR=0,2; IC95%=0,1-0,5 para 40-59 e >60 anos, respectivamente); >5 residentes no domicílio (OR=2,1; 1,1-4,0); número de consultas médicas nos últimos 12 meses (OR=0,2; IC95%=0,1-0,4 e OR=0,1; IC95%=0,0-0,1 para 1 e >2, respectivamente); consulta a farmacêutico nos últimos 12 meses (OR=1,9; IC95%=1,1-3,3) e relato de gastos com medicamentos nesse período (OR=0,5; IC95%= 0,3-0,8).
CONCLUSÃO:
Os resultados mostraram prevalência da automedicação semelhante à observada em países desenvolvidos, sugerindo que essa prática poderia atuar como um substituto da atenção formal à saúde.
KEYWORDS
Self-medication. Prevalence.# Drug use habits.# Drugs, non-prescription. Prescriptions, drug.
OBJECTIVE:
A population-based study was carried out in the municipality of Bambuí, Brazil (population: approx. 15,000 inhabitants), to determine the prevalence of self-medication and its associated factors.
METHODS:
A random sample of 1,221 residents aged >18 years was selected. Of these, 796 reported use of medications in the last 90 days and were selected for this study (775 participated). Data was collected through home interviews. Study variables were divided in 3 groups: social and economic, health status and health service use indicators. Statistical analysis was performed using Pearson's Qui-square test, and odds ratios adjusted by multinomial logistic regression.
RESULTS:
Of the total, 419 (54.0%) reported use of only prescribed medications, 133 (17.2%) took prescribed and over-the-counter medications, and 223 (28.8%) took only over-the-counter medications in the last 90 days. After adjusting for confounders, the following variables presented significant associations with exclusive use of self-medication: female sex (OR=0.6; IC95%=0.4¾0.9); age (OR=0.4; IC95%=0.3¾0.6 for 40-59 years old and OR=0.2; IC95%=0.1¾0.5 for >60 years); >5 residents in the household (OR=2.1; 1.1¾4.0); number of visits to a doctor in the previous 12 months (OR=0.2; IC95%=0.1¾0.4 and OR=0.1; IC95%=0.0-0.1 for 1 visit and >2 visits, respectively); report of consulting a pharmacist in the previous 12 months (OR=1.9; IC95%=1.1¾3.3); and reports of financial expenses with medications during this period (OR=0.5; IC95%=0.3¾0.8).
CONCLUSIONS:
The study results show that the prevalence of self-medication in the studied community was similar to that observed in developed countries. These results also suggest that self-medication works in place of the formal health attention in this community.
INTRODUÇÃO
A automedicação é uma forma comum de auto-atenção à saúde, consistindo no consumo de um produto com o objetivo de tratar ou aliviar sintomas ou doenças percebidos,13 ou mesmo de promover a saúde,11 independentemente da prescrição profissional. Para tal, podem ser utilizados medicamentos industrializados ou remédios caseiros. Várias são as maneiras de a automedicação ser praticada: adquirir o medicamento sem receita,2,3 compartilhar remédios com outros membros da família ou do círculo social e utilizar sobras de prescrições,14 reutilizar antigas receitas15 e descumprir a prescrição profissional, prolongando ou interrompendo precocemente a dosagem e o período de tempo indicados na receita.14
Fatores econômicos, políticos e culturais têm contribuído para o crescimento e a difusão da automedicação no mundo, tornando-a um problema de saúde pública. Mais disponibilidade de produtos no mercado gera maior familiaridade do usuário leigo com os medicamentos.1 Além disso, o processo de globalização da economia desvincula o Estado da condição de força motriz do desenvolvimento socioeconômico, e o ajustamento das contas internas resulta numa redução dos investimentos sociais, entre eles, os gastos com saúde. Para os países pobres, o acesso da população aos serviços de atenção formal à saúde é dificultado, e os gastos com a produção e distribuição de medicamentos essenciais são contidos.7 Nos países desenvolvidos, cresce a pressão para a conversão de medicamentos POM (Prescribed Only Medicines), de venda condicionada à apresentação da receita, em medicamentos OTC (Over-the-Counter), vendidos livremente. Ao mesmo tempo, os planos de saúde restringem o reembolso dos gastos com medicamentos prescritos.4
Estudos epidemiológicos de base populacional permitem conhecer a prevalência da automedicação e os fatores a ela associados em populações não selecionadas. A prevalência e os fatores associados à automedicação têm sido amplamente estudados em países desenvolvidos. Nesses estudos, foram encontradas prevalências de automedicação variando entre 30% e 90%,5,6,10,11,14 e a automedicação apresentou associação positiva com: sexo feminino,5,10 estar casado,14 renda familiar,10 escolaridade,14 menor cobertura do plano de saúde para gastos com medicamentos6 e maior número de visitas a um médico no ano anterior.14 A percepção de melhor acesso a serviços de saúde (facilidade para conseguir um médico à noite e menor tempo de espera para obtenção de consulta médica, entre outros) esteve negativamente associada à automedicação.5
No Brasil, estudos de base populacional sobre a prevalência8 e os fatores associados15 à automedicação são raros. Em dois povoados do Sul da Bahia, verificou-se uma prevalência de automedicação igual a 74,0%, tendo sido os antibióticos, anti-helmínticos e antimicóticos os medicamentos não prescritos mais consumidos.8 Em um município de médio porte do Rio Grande do Sul (Santa Maria), encontrou-se uma prevalência de 53,3% de automedicação, tendo sido os analgésicos, antitérmicos e antiinflamatórios não esteróides os medicamentos mais consumidos (49,2%).15 Nesses estudos observou-se que havia uma associação positiva entre automedicação, idade e escolaridade, mas esses resultados não foram ajustados para variáveis de confusão.
O presente trabalho refere-se a um estudo epidemiológico de base populacional sobre a prevalência e os fatores associados ao uso de automedicação. O estudo foi desenvolvido com os seguintes objetivos: determinar a prevalência do uso de automedicação na população com 18 ou mais anos de idade; identificar os principais medicamentos não prescritos utilizados por essa população; e determinar os fatores sociodemográficos, indicadores da condição de saúde e indicadores da utilização de serviços de saúde independentemente associados à automedicação.
MÉTODOS
Área estudada
O presente trabalho é parte do Projeto Bambuí, estudo epidemiológico desenvolvido na cidade de mesmo nome (cerca de 15.000 habitantes), situada em Minas Gerais. O projeto tem dois componentes: inquérito de saúde da população geral e estudo prospectivo da saúde do idoso. O presente trabalho é parte do inquérito de saúde.
As principais atividades econômicas do município de Bambuí são a agropecuária e o comércio. Entre 1990 e 1991, o Índice de Desenvolvimento Humano desse município era igual a 0,70, a esperança de vida ao nascer era de 70,2 anos, e 75% das mortes ocorriam entre pessoas com 50 ou mais anos de idade. A cidade tinha um hospital geral com 62 leitos e um médico para 1.000 habitantes. As principais causas de morte entre os habitantes do município, em 1996, foram acidente vascular cerebral, doença de Chagas e doença isquêmica do coração (taxas de mortalidade = 118,0, 61,4 e 42,5 por 100.000 habitantes, respectivamente). Mais detalhes podem ser vistos em Lima-Costa et al12 (2000).
População estudada e coleta de dados
Os participantes do estudo foram identificados por meio de um censo completo da cidade, realizado pela equipe do projeto entre outubro e novembro de 1994. Uma amostra probabilística simples sem reposição de 1.664 moradores com 5 ou mais anos de idade foi selecionada para o inquérito de saúde. Destes, 1.221 tinham idade igual ou superior a 18 anos, e 1.086 (88,9%) participaram do inquérito de saúde. Entre estes, 796 relataram ter consumido pelo menos um medicamento nos últimos 90 dias. Destes, 775 participaram do presente trabalho (21 foram excluídos devido a informações incompletas). Esse número é suficiente para estimar uma prevalência de automedicação igual a 0,50, com precisão de 0,026 e nível de confiança de 0,95.12
As informações foram obtidas por entrevista realizada no domicílio dos participantes, entre outubro de 1996 e janeiro de 1997, utilizando-se o questionário BHAS (The Bambuí Health and Ageing Study).12 Quando o entrevistado estava impossibilitado de responder à entrevista devido a déficit cognitivo ou a algum problema de saúde, um respondente próximo foi utilizado; este, entretanto, não respondeu perguntas que requeriam julgamento do entrevistado ¾ por exemplo, questões sobre percepção da própria saúde.12
Variáveis do estudo
A variável-dependente foi o uso de medicamentos segundo a prescrição médica. As seguintes perguntas foram utilizadas para a obtenção de informações sobre uso de medicamentos: (1) nos últimos três meses, você tomou algum remédio? (tanto faz se receitado por médico ou não e tanto faz a razão pela qual está tomando o remédio); (2) qual o(s) nome(s) do(s) remédio(s) que está tomando ou tomou nos últimos três meses?; (3) este(s) remédio(s) foi(ram) prescrito(s) por: médico/outro. Considerando-se as respostas a essas perguntas, os participantes foram classificados em três grupos: o primeiro foi constituído por aqueles que relataram ter utilizado somente medicamentos prescritos por médicos; o segundo, por aqueles que consumiram simultaneamente medicamentos prescritos e não prescritos por médicos; o terceiro, pelos que relataram ter consumido exclusivamente medicamentos não prescritos por médicos.
Foram considerados três conjuntos de variáveis exploratórias: sociodemográficas, indicadores selecionados da condição de saúde e indicadores da utilização de serviços de saúde.
As variáveis sociodemográficas foram as seguintes: sexo, idade, estado civil, número de pessoas residentes no domicílio, anos completos de escolaridade, renda familiar mensal e renda pessoal mensal em salários-mínimos da época.
Os indicadores da condição de saúde foram: percepção da própria saúde (como tem sido a sua saúde nos últimos seis meses?); história de diagnóstico médico de doenças ou condições crônicas selecionadas (alguma vez algum médico já disse que você tinha: hipertensão, infarto do miocárdio, angina, diabetes, doença de Chagas ou artrite/reumatismo?); incapacidade para realizar atividades de rotina por problemas de saúde (nas duas últimas semanas, você faltou ao trabalho, escola ou deixou de realizar quaisquer de suas atividades habituais por problemas de saúde?); ter estado acamado (ficou acamado nas duas últimas semanas?).
Os indicadores de utilização de serviços de saúde foram os seguintes: procura por atenção à saúde (independentemente de ter estado acamado ou não, você procurou atendimento de saúde ¾ médico ou não, exclui dentista ¾ nas duas últimas semanas?); internação hospitalar (durante os últimos 12 meses, quantas vezes você esteve internado em um hospital por pelo menos uma noite?); consulta médica (durante os últimos 12 meses, quantas vezes você consultou um médico?); consulta a farmacêutico (durante os últimos 12 meses, quantas vezes você consultou um farmacêutico?); posse de plano privado de saúde (algum convênio paga suas despesas medicas ou hospitalares?); gastos monetários com medicamentos (nos últimos 12 meses, você gastou algum dinheiro com remédios?).
Análise dos dados
Na análise bivariada dos dados, utilizou-se o teste do qui-quadrado de Pearson. A regressão logística multinomial foi utilizada para obter estimativas de odds ratios e intervalos de confiança (método de Woolf) ajustados para variáveis de confusão.9 Esse método permite o cálculo de odds ratios considerando-se uma variável-dependente com mais de duas categorias. Nesse caso, cada categoria é comparada à categoria de referência num único processamento. No presente trabalho, a análise foi feita pela comparação daqueles que relataram consumo exclusivo de medicamentos prescritos com: os que relataram consumo simultâneo de medicamentos prescritos e não prescritos, e os que relataram exclusivamente consumo de medicamentos não prescritos. O critério para inclusão de variáveis no modelo logístico foi a associação com o consumo de medicamentos não prescritos em nível de p<0,20 na análise bivariada. O critério de permanência das variáveis no modelo foi associação com o consumo de medicamentos não prescritos em nível de <0,05. A análise dos dados foi feita utilizando-se o software Stata (Versão 6.0).
RESULTADOS
Os 775 participantes relataram ter consumido: exclusivamente medicamentos prescritos por médicos (54,0%); medicamentos prescritos e não prescritos (17,2%); e exclusivamente medicamentos não prescritos nos últimos 90 dias (28,8%).
Os medicamentos não-prescritos mais consumidos foram analgésicos/antipiréticos (47,6%), seguidos pelos que atuam sobre o aparelho digestivo ¾ antiespasmódicos, antiácidos e antidiarréicos ¾ (8,5%), antibióticos ou quimioterápicos (6,2%) e vitaminas, tônicos ou antianêmicos (4,7%); os casos restantes dividiram-se entre diversos tipos de medicamentos.
Na Tabela 1 está apresentada a distribuição do uso de medicamentos prescritos e não prescritos, segundo algumas características sociodemográficas. Sexo, idade, estado civil, número de pessoas no domicílio, escolaridade e renda pessoal apresentaram associações significantes (p<0,05) com consumo de medicamentos não prescritos.
Como mostrado na Tabela 2, os seguintes indicadores de condições de saúde apresentaram associações significantes com o consumo de medicamentos não prescritos: percepção da saúde, história de hipertensão arterial, história de doença coronariana, história de diabetes, história de doença de Chagas, história de artrite ou reumatismo, ter deixado de realizar atividades de rotina nas duas últimas semanas por problemas de saúde e ter estado acamado no período.
Na Tabela 3 está apresentada a distribuição do uso de medicamentos prescritos e não prescritos, segundo indicadores de uso de serviços de saúde. Procura por atenção à saúde nas duas últimas semanas, ocorrência de pelo menos uma internação hospitalar nos últimos 12 meses, número de consultas médicas nos últimos 12 meses, ter tido pelo menos uma consulta a farmacêutico nos últimos 12 meses e ter tido gastos monetários com medicamentos nos últimos 12 meses associaram-se significativamente ao uso de automedicação.
Na Tabela 4, estão apresentados os resultados finais da análise multivariada dos fatores associados ao uso de medicamentos não prescritos. As seguintes variáveis apresentaram associações independentes com o uso exclusivo de medicamentos não prescritos: sexo feminino (OR=0,6; IC95%=0,4-0,9); idade igual a 40-59 (OR=0,4; IC95%=0,3-0,6) e >60 anos (OR=0,2; IC95%=0,1-0,5); número de residentes no domicílio >5 (OR=2,1; IC95%= 1,1-4,0); ter tido uma (OR=0,2; IC95%=0,1-0,4) ou duas ou mais consultas médicas nos últimos 12 meses (OR=0,1; IC95%=0,0-0,1); ter consultado o farmacêutico nos últimos 12 meses (OR=1,9; IC95%=1,1-3,3) e ter tido gastos financeiros com medicamentos nos últimos 12 meses (OR=0,5; IC95%=0,3-0,8). Associações independentes com uso simultâneo de medicamentos prescritos e não prescritos foram encontradas para sexo feminino (OR=1,8; IC95%=1,1-2,9), idade >60 anos (OR=0,5; IC95%= 0,3-0,9) e ter consultado o farmacêutico nos últimos 12 meses (OR=2,5; IC95%=1,5-4,2).
DISCUSSÃO
A prevalência da automedicação no presente trabalho foi semelhante à observada em estudos desenvolvidos em Hong Kong11 e nos Estados Unidos6 e inferior à encontrada em estudos desenvolvidos no Brasil.8,15
Os analgésicos e antipiréticos foram os medicamentos não-prescritos mais consumidos na comunidade estudada. Esse resultado está de acordo com o observado em estudos conduzidos em países desenvolvidos6,14 e no Brasil.2,15
Diversos estudos têm descrito uso mais freqüente de automedicação entre mulheres do que entre homens.2,5,6,10 Bush & Osterweis5 (1978) atribuem esse achado, entre outras razões, a mais freqüente utilização de serviços de saúde pelas mulheres. No presente trabalho, o uso de automedicação exclusiva foi menos freqüente no sexo feminino. Esse resultado é coerente com a associação negativa encontrada no presente trabalho entre maior número de consultas a médicos e uso exclusivo de automedicação. Em Bambuí, as consultas aos médicos foram mais freqüentes entre as mulheres do que entre os homens.*
Com referência à influência da idade na automedicação, os trabalhos existentes não permitem estabelecer um padrão consistente de comportamento. Nenhuma associação entre idade e consumo de medicamentos não prescritos foi encontrada no estudo de Johnson & Pope.10 Em outros verificou-se que a automedicação era mais freqüente entre indivíduos mais velhos14 ou mais jovens.5 Em Bambuí, o uso de automedicação apresentou associação independente com a idade, tendo sido menos freqüente entre as pessoas mais velhas. Esse achado é coerente com o maior uso de serviços de saúde dessa população.*
Compartilhar medicamentos com outros membros da família ou outros moradores do domicílio2 e utilizar sobras de medicamentos (prescritos ou não) guardados no domicílio14 são duas modalidades de automedicação que podem ser favorecidas por um maior número de moradores do domicílio. O encontro de associação independente e positiva entre maior número de moradores no domicílio e uso exclusivo de automedicação no presente trabalho está de acordo com essas observações.
Estudos conduzidos em países desenvolvidos6 e em países em desenvolvimento3,15 têm mostrado que o hábito de automedicação está associado à presença de sinais e sintomas menores; doenças ou condições crônicas mais graves levam ao uso de medicamentos prescritos. Dessa forma, espera-se que o uso de automedicação esteja negativamente associado ao relato de doenças e condições crônicas. Neste trabalho, todos os indicadores de estado de saúde considerados (pior percepção da saúde, história de doenças ou condições crônicas selecionadas, incapacidade para realizar atividades de rotina por problemas de saúde havia duas semanas e ter estado acamado nesse período) apresentaram associações negativas com o uso de exclusivo automedicação no modelo não ajustado, mas essas associações desapareceram após ajustamento por variáveis de confusão.
A influência do padrão de uso de serviços de saúde na automedicação é controversa. Em um estudo realizado no Canadá, verificou-se que a automedicação era mais freqüente entre aqueles que usavam serviços de saúde com mais freqüência,14 ao passo que em outro trabalho o oposto foi observado.5 Alguns autores consideram que a existência de associação negativa entre a automedicação e o uso de serviços de saúde seria um indicador de que o consumo de medicamentos sem receita substitui a atenção formal à saúde.5 O uso exclusivo de automedicação no presente trabalho esteve independente e negativamente associado ao número de visitas ao médico nos últimos 12 meses e uma associação positiva foi encontrada para consulta a um farmacêutico no mesmo período. Esses resultados sugerem que a automedicação representava um substituto da atenção médica na comunidade estudada.
Os gastos com medicamentos foram menos freqüentes entre aqueles que relataram o consumo exclusivo de automedicação. Esse resultado está de acordo com o observado por Beckerleg et al3 (1999) em um estudo desenvolvido em Gaza. O menor gasto com medicamentos entre usuários da automedicação pode, entre outros motivos, ser um reflexo da utilização compartilhada de medicamentos e/ou da utilização de sobras de medicamentos guardados no domicílio e/ou da utilização de medicamentos obtidos junto a outras pessoas, sem ônus para o consumidor.
No que se refere a aspectos metodológicos, todos os esforços foram feitos no sentido de evitar vieses no presente estudo: identificação de participantes de base censitária, seleção aleatória de participantes, incentivo à participação para garantir a validade interna do trabalho, padronização de procedimentos e treinamento exaustivo das equipes de campo. A validade interna do estudo foi garantida devido à alta participação. Os participantes eram semelhantes à população amostrada em relação a todas as variáveis investigadas: idade, sexo, estado civil, renda familiar mensal e escolaridade.12 Entretanto, o período utilizado para a obtenção de informações sobre o uso de medicamentos foi de 90 dias, o que pode ter levado, em comparação a outros estudos que utilizaram períodos menos longos, a uma superestimativa do consumo de medicamentos (devido ao uso acumulado de medicamentos no período) ou a uma subestimativa desse consumo (devido a problemas de memória). Entretanto, não é razoável supor que essa lembrança tenha sido diferencial entre usuários e não-usuários de automedicação, gerando tendenciosidade nas estimativas das associações encontradas.
Em resumo, os resultados mostraram que os fatores associados ao uso de automedicação na cidade de Bambuí foram muito semelhantes ao observado em grandes cidades de países desenvolvidos. A associação entre automedicação e menor freqüência de visitas ao médico, assim como menores gastos financeiros com medicamentos, sugere que essa prática poderia atuar como um substituto da atenção formal à saúde na comunidade estudada. Novas investigações serão necessárias para verificar se esses resultados são generalizáveis para outras pequenas cidades brasileiras.
Correspondência para/Correspondence to:
Antônio Ignácio de Loyola Filho
Centro de Pesquisas René Rachou - Fiocruz
Av. Augusto de Lima, 1715
30.190-002 Belo Horizonte, MG, Brasil
E-mail: lima-costa@cpqrr.fiocruz.br
Baseado em dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Saúde Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, 2001.
Subvencionado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep ¾ processo nº 6694009-00) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq ¾ Processos nº 301056/94-3, 14974/97-8, 572208/97-9).
Recebido em 27/4/2001. Reformulado em 14/8/2001. Aprovado em 30/10/2001.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Mar 2002 -
Data do Fascículo
Fev 2002
Histórico
-
Aceito
30 Out 2001 -
Revisado
14 Ago 2001 -
Recebido
27 Abr 2001