Resumos
OBJETIVO: Avaliar o comportamento da função sistólica do ventrículo esquerdo (VE) pela ecocardiografia em pacientes com osteossarcoma tratados com doxorrubicina com e sem dexrazoxane. MÉTODOS: Foram estudados 55 pacientes com osteossarcoma com ou sem metástase submetidos à quimioterapia (QT) com seis ciclos de doxorrubicina, divididos em dois grupos, conforme o uso de dexrazoxane. Grupo I: 37 pacientes, os quais receberam dexrazoxane (28 do sexo masculino, com média de idade de 15,4 anos). Grupo II: 18 pacientes, que não receberam dexrazoxane (15 do sexo masculino, com média de idade de 15,1 anos). Foram realizadas quatro avaliações ecocardiográficas: 1) antes do início da QT (avaliação inicial); 2) até duas semanas após o terceiro ciclo; 3) até duas semanas após o quinto ciclo e 4) até quatro semanas após o sexto ciclo da QT (avaliação final). A função sistólica do VE foi avaliada pela porcentagem de encurtamento (PE) com o ecocardiograma. Alteração da função contrátil ou toxicidade miocárdica foi definida com valores de PE iguais ou inferiores a 29% e/ou diminuição da PE, em valor absoluto, igual ou superior a 10 unidades do valor inicial de cada paciente. RESULTADOS: Não houve diferença significativa entre os grupos quanto à idade, sexo e raça. A dose cumulativa de doxorrubicina foi significantemente maior no grupo II em todas as fases do tratamento: 174 x 203 mg/m²; 292 x 338 mg/m² e 345 x 405 mg/² (p < 0,0001). A ocorrência de disfunção sistólica do VE, de acordo com os critérios previamente definidos, foi de sete indivíduos no grupo I (18,92%) e de dois no grupo II (11,1%), diferença não significativa (p=0,248). A análise de variância com medidas repetidas não mostrou diferença significativa nas médias da PE ao longo do período de estudo (p=0,967). Entretanto foi encontrada diferença significativa (p=0,029) entre as médias da PE dos grupos I e II nas avaliações 2 (35,67 x 37,21%), 3 (34,95 x 38,47%) e 4 (35,26 x 38,22%). CONCLUSÃO: Os dados do presente estudo indicam que, nos pacientes com osteossarcoma ltratados com doxorrubicina com e sem dexrazoxane, a função sistólica do VE, avaliada pela média da porcentagem de encurtamento, apresentou melhor desempenho no grupo que recebeu a administração de dexrazoxane. A ocorrência de disfunção sistólica, porém, foi semelhante entre os dois grupos de pacientes.
Função ventricular esquerda; ecocardiografia; osteossarcoma; doxorrubicina; dexrazoxane
OBJECTIVE: To evaluate left ventricular (LV) systolic function by means of echocardiography in patients with osteosarcoma treated with doxorubicin alone or in combination with dexrazoxane. METHODS: The study analyzed 55 patients with osteosarcoma, with or without metastasis, undergoing a six-cycle chemotherapy regimen of doxorubicin, who were divided into two groups according to dexrazoxane use. Group I: Thirty-seven patients who did not receive dexrazoxane (28 males, average age 15.4 years). Group II: Eighteen patients who did receive dexrazoxane (15 males, average age 15.1 years). Four echocardiographic evaluations were performed: 1) before the beginning of the chemotherapy (initial evaluation); 2) up to two weeks after the third cycle; 3) up to two weeks after the fifth cycle; and 4) up to four weeks after the sixth cycle of chemotherapy (final evaluation). The left ventricular systolic function was assessed by the fractional percentage of systolic shortening (FS%) on echocardiography. Alterations in the contractile function or cardiac toxicity were defined as FS% values equal to or lower than 29%, and/or by a drop in FS% by an absolute value equal to or greater than 10 units of the baseline value of each patient. RESULTS: No significant difference as to age, gender, and race was observed between the groups. The cumulative dose of doxorubicin was significantly higher in group II throughout all phases of the treatment: 174 x 203 mg/m²; 292 x 338 mg/m² and 345 x 405 mg/² (p < 0.0001). According to previously established criteria, the incidence of LV systolic dysfunction was not significantly different (p=0.248) between patients in group I (18.92%) and patients in group II (11.1%). The variance analysis with repeated measurements did not show significant differences in the means of fractional percentage of systolic percentage (FS%) throughout the study (p=0.967). However, a significant difference (p=0.029) was observed between the FS% means in groups I and II at evaluations 2 (35.67 x 37.21%), 3 (34.95 x 38.47%) and 4 (35.26 x 38.22%). CONCLUSION: Data in this study show that in patients with osteosarcoma treated with doxorubicin alone or combined with dexrazoxane, the LV systolic function, as assessed by the fractional percentage of systolic shortening mean, showed a better performance in the group that received dexrazoxane. On the other hand, the occurrence of systolic dysfunction was similar in both groups.
Left ventricular function; echocardiography; osteosarcoma; doxorubicin; dexrazoxane
ARTIGO ORIGINAL
Função sistólica do ventrículo esquerdo pela ecocardiografia em crianças e adolescentes com osteossarcoma tratados com doxorrubicina com e sem dexrazoxane
Ranulfo Pinheiro de Matos Neto; Antônio Sérgio Petrilli; Célia Maria Campos Silva; Orlando Campos Filho; Victor Manuel Oporto; Lourdes de Fátima Gonçalves Gomes; Marcelo Goulart Paiva; Antônio Carlos Camargo Carvalho; Valdir Ambrósio Moisés
Universidade Federal de São Paulo e Instituto de Oncologia Pediátrica Escola Paulista de Medicina - São Paulo, SP
Correspondência Correspondência: Ranulfo Pinheiro de Matos Neto Rua Pedro de Toledo, 964 - casa 17 04039-002 São Paulo, SP E-mail: ranulfopmatos@hotmail.com
RESUMO
OBJETIVO: Avaliar o comportamento da função sistólica do ventrículo esquerdo (VE) pela ecocardiografia em pacientes com osteossarcoma tratados com doxorrubicina com e sem dexrazoxane.
MÉTODOS: Foram estudados 55 pacientes com osteossarcoma com ou sem metástase submetidos à quimioterapia (QT) com seis ciclos de doxorrubicina, divididos em dois grupos, conforme o uso de dexrazoxane. Grupo I: 37 pacientes, os quais receberam dexrazoxane (28 do sexo masculino, com média de idade de 15,4 anos). Grupo II: 18 pacientes, que não receberam dexrazoxane (15 do sexo masculino, com média de idade de 15,1 anos). Foram realizadas quatro avaliações ecocardiográficas: 1) antes do início da QT (avaliação inicial); 2) até duas semanas após o terceiro ciclo; 3) até duas semanas após o quinto ciclo e 4) até quatro semanas após o sexto ciclo da QT (avaliação final). A função sistólica do VE foi avaliada pela porcentagem de encurtamento (PE) com o ecocardiograma. Alteração da função contrátil ou toxicidade miocárdica foi definida com valores de PE iguais ou inferiores a 29% e/ou diminuição da PE, em valor absoluto, igual ou superior a 10 unidades do valor inicial de cada paciente.
RESULTADOS: Não houve diferença significativa entre os grupos quanto à idade, sexo e raça. A dose cumulativa de doxorrubicina foi significantemente maior no grupo II em todas as fases do tratamento: 174 x 203 mg/m2; 292 x 338 mg/m2 e 345 x 405 mg/2 (p < 0,0001). A ocorrência de disfunção sistólica do VE, de acordo com os critérios previamente definidos, foi de sete indivíduos no grupo I (18,92%) e de dois no grupo II (11,1%), diferença não significativa (p=0,248). A análise de variância com medidas repetidas não mostrou diferença significativa nas médias da PE ao longo do período de estudo (p=0,967). Entretanto foi encontrada diferença significativa (p=0,029) entre as médias da PE dos grupos I e II nas avaliações 2 (35,67 x 37,21%), 3 (34,95 x 38,47%) e 4 (35,26 x 38,22%).
CONCLUSÃO: Os dados do presente estudo indicam que, nos pacientes com osteossarcoma ltratados com doxorrubicina com e sem dexrazoxane, a função sistólica do VE, avaliada pela média da porcentagem de encurtamento, apresentou melhor desempenho no grupo que recebeu a administração de dexrazoxane. A ocorrência de disfunção sistólica, porém, foi semelhante entre os dois grupos de pacientes.
Palavras-chave: Função ventricular esquerda, ecocardiografia, osteossarcoma, doxorrubicina, dexrazoxane
Atualmente, as crianças com neoplasia apresentam probabilidades cada vez maiores de cura das suas enfermidades. A introdução de antraciclinas na quimioterapia (QT) de neoplasias malignas é um dos sucessos mais espetaculares da oncologia moderna. De acordo com dados provenientes de autores americanos, mais de 50% das crianças foram curadas entre 1974 e 1990 com o uso dessa classe de agente citostático1. O seu largo espectro de atividade antitumoral abrange, em especial, as neoplasias hematológicas, tais como os linfomas e as leucemias, e os tumores sólidos, entre os quais estão os tumores de mama, tireóide, ovário, o sarcoma de partes moles e o osteossarcoma2.
O emprego de agentes antieméticos modernos (inibidores dos receptores de serotonina) e de fatores estimuladores de colônias de granulócitos diminuíram a significância clínica de efeitos adversos, tais como náuseas, vômitos e neutropenia. Isso permitiu o aumento das doses de antraciclinas3. O problema da toxicidade cardíaca induzida por este medicamento, porém, ainda não foi superado por completo, atuando como um empecilho para o uso de doses maiores, com possibilidades de aumento do potencial terapêutico. Assim, essa questão ainda permanece em aberto, a despeito do fato de os primeiros relatos de toxicidade cardíaca terem sido publicados há quase três décadas4.
Billingham e cols.5 foram os primeiros a descrever, de forma sistemática, as alterações histológicas e ultra-estruturais nas lesões cardíacas induzidas por antraciclinas. Os autores descreveram dois tipos distintos de lesão no miócito: 1) perda miofibrilar e 2) degeneração vacuolar. Ambos os tipos de lesão, numa fase mais avançada, evoluíram com degeneração da mitocôndria, seguida pelo aparecimento de figuras de mielina e desintegração nuclear, culminando com a morte do miócito e conseqüente fibrose miocárdica. Comprovadamente, vários mecanismos estão envolvidos na patogênese do dano miocárdico induzido por antraciclinas, os quais são independentes de sua ação antitumoral. Entretanto, a maioria dos estudos associa os efeitos cardiotóxicos à formação de espécies reativas de oxigênio (radicais livres), tais como o ânion superóxido (O2-) e o radical hidroxila (OH-), responsáveis pela peroxidação lipídica de vários sítios celulares, entre eles a membrana celular, o envoltório nuclear e a membrana de diversas organelas citoplasmáticas, principalmente a mitocôndria e o retículo citoplasmático, resultando numa cadeia de reações autocatalíticas responsáveis pela destruição do miócito6-9.
O dano miocárdico causado pela antraciclina depende de uma ampla variabilidade individual e de um conjunto de fatores de risco que contribuem para aumentá-lo, tais como a dose cumulativa total de doxorrubicina, o esquema de administração (infusão rápida ou lenta), o uso associado de outros agentes citostáticos, o uso prévio ou concomitante de irradiação no mediastino e a idade inferior a 15 anos ou superior a 65 anos10-14. Desses, a dose cumulativa de antraciclina é considerada o principal fator de risco implicado no desenvolvimento de toxicidade miocárdica a ela relacionada10,12,15.
A toxicidade cardíaca induzida pela doxorrubicina ou análogos pode-se manifestar em qualquer fase da quimioterapia ou mesmo meses ou anos após o seu término. São descritas quatro formas de apresentação. A toxicidade aguda ocorre logo após ou poucos dias depois da infusão da doxorrubicina e caracteriza-se por manifestações eletrocardiográficas inespecíficas e usualmente transitórias, tipicamente alterações da onda T e do segmento ST, distúrbios de condução e taquicardia sinusal16. A toxicidade subaguda habitualmente aparece alguns dias ou semanas após a administração da última dose da droga e sua principal manifestação é a pericardite tóxica e/ou miocardite (síndrome de miopericardite), que usualmente é atenuada pela descontinuidade da antraciclina3,17. A toxicidade crônica pode ter um início precoce, quando ocorre durante o primeiro ano após o término da quimioterapia, ou tardio, quando ocorre após esse período. Ambas apresentam-se sob a forma de uma miocardiopatia difusa, com quadro clínico semelhante ao de outras miocardiopatias dilatadas3,13,17.
Diversas estratégias têm sido utilizadas para evitar ou minimizar o dano cardíaco causado pela doxorrubicina: utilização de doses cumulativas em níveis considerados mais seguros, administração da droga de forma lenta (6 a 72 horas), monitorização periódica da função cardíaca por meio de exames complementares (ecocardiograma, angiocardiografia com radionuclídeo, biópsia endomiocárdica etc.) e utilização de drogas que possam atuar como protetores miocárdicos (dexrazoxane, probucol etc)11,12,18,19.
O dexrazoxane é amplamente reconhecido como um agente protetor contra a toxicidade cardíaca induzida por antraciclinas. Atualmente é a única droga liberada para esse fim nos Estados Unidos. Por ser uma substância não-polar e hidrossolúvel, alcança facilmente o citoplasma da célula cardíaca, onde é hidrolisado na forma de anéis abertos, o que lhe confere uma forte capacidade de quelar o ferro, modo pelo qual previne a formação do composto ferro-doxorrubicina, envolvido na formação de radicais livres implicados na lesão cardíaca20. Vários estudos têm demonstrado a eficácia do dexrazoxane em proteger o miocárdio contra a toxicidade causada pela doxorrubicina em adultos e crianças18,21,22. Entretanto na literatura há poucos estudos a respeito do uso de dexrazoxane em crianças com osteossarcoma e nenhum em nosso meio. Assim, este estudo teve por objetivo analisar o comportamento da função sistólica do ventrículo esquerdo ao ecocardiograma em pacientes com osteossarcoma tratados com doxorrubicina associada ou não a dexrazoxane.
Métodos
Pacientes - foram avaliados 55 pacientes acompanhados no Instituto de Oncologia Pediátrica e no Setor de Cardiologia Pediátrica da Universidade Federal de São Paulo Escola Paulista de Medicina (UNIFESPEPM), de maio de 1996 a fevereiro de 2001. O presente estudo foi aprovado pela Comissão de Ética Médica em Pesquisa da UNIFESPEPM. Um termo de consentimento foi obtido dos familiares dos pacientes ou, quando possível, do próprio paciente, após as devidas explicações.
Os critérios de inclusão foram os mesmos indicados pelo Protocolo IV (1996) do Grupo Brasileiro de Tratamento de Osteossarcoma GBTO, descritos a seguir: 1) pacientes com osteossarcoma não induzidos por radiação, recentemente diagnosticados, de alto grau de malignidade, comprovado com biópsia e não tratados previamente; 2) pacientes com osteossarcoma de qualquer localização primária com ou sem metástase; 3) pacientes com idade até 21 anos; 4) pacientes sem evidências de doença cardiovascular atual ou pregressa, com base na história clínica, exame físico, eletrocardiograma, radiografia de tórax e ecocardiograma; 5) pacientes com funções renal e hepática normais.
Trata-se de um estudo prospectivo, não-randomizado, em que foram formados dois grupos de pacientes de forma seqüencial, conforme o uso de dexrazoxane. O grupo I foi formado pelos pacientes que não receberam o dexrazoxane, pois ainda não estava disponível em nosso meio e o grupo II foi formado, subseqüentemente, pelos pacientes que receberam dexrazoxane, a partir de quando este se tornou disponível em nosso serviço. O grupo I foi constituído de 37 pacientes, 28 do sexo masculino e nove do sexo feminino, com média de idade de 15,4 anos. O grupo II foi constituído de 18 pacientes, 15 do sexo masculino e 3 do sexo feminino, com média de idade de 15,1 anos.
Neste estudo, os pacientes foram tratados de acordo com o Protocolo IV (1996) do Grupo Brasileiro de Tratamento de Osteossarcoma GBTO. A quimioterapia consistiu da utilização das seguintes drogas: cisplatina, carboplatina, doxorrubicina e ifosfamida. Para diminuir a toxicidade renal induzida pela ifosfamida foi utilizado o Mesna (medicamento protetor renal). A doxorrubicina foi utilizada em seis ciclos, três na fase pré-operatória e três na fase pós-operatória, na dose de 60 mg/m2 para o grupo I e de 70 mg/m2 para o grupo II, e administrada por via endovenosa, em infusão rápida de 30 minutos. O dexrazoxane foi utilizado na proporção de 20:1 em relação à dose de doxorrubicina, miligrama a miligrama, e administrado por via endovenosa, em infusão rápida de 15 minutos, iniciada cerca de 30 minutos antes da infusão da doxorrubicina.
Ecocardiograma - Foi realizado por um único observador, o qual não tinha conhecimento da dose de antraciclina utilizada pelos pacientes, tampouco sabia qual deles estava recebendo o dexrazoxane. Os equipamentos utilizados foram o Ultramak 9 (ATL Advanced Technology Laboratories, Bothel, WA-USA) e o Philips SD 800 (Irvine, CA, USA), com transdutores de 2,5 e 5,0 MHz, capazes de obter imagens nos modos uni e bidimensionais, além da análise da velocidade de fluxo pelas técnicas de Doppler espectral e de mapeamento de fluxo em cores. Foram realizadas quatro avaliações ecocardiográficas: 1) realizada até duas semanas antes do início da quimioterapia (avaliação inicial); 2) realizada até duas semanas após o terceiro ciclo de doxorrubicina; 3) realizada até duas semanas após o quinto ciclo de doxorrubicina e 4) realizada até quatro semanas após a administração da última dose de doxorrubicina (avaliação final). Os pacientes eram posicionados em decúbito lateral esquerdo. As imagens foram obtidas nos planos clássicos e gravadas em videoteipe (VHS) para análise posterior. Foi realizado um exame ecocardiográfico completo. As medidas dos diâmetros diastólico (Dd) e sistólico (Ds) do ventrículo esquerdo (VE), pelo modo M ou bidimensional foram utilizadas para análise. O Dd foi obtido no ponto de máxima deflexão posterior diastólica da parede posterior do VE e o Ds no ponto de máxima deflexão anterior da mesma parede, de acordo com as recomendações da Sociedade Americana de Ecocardiografia15. O parâmetro usado para avaliar a função sistólica do VE foi o percentual de encurtamento (PE, em porcentagem), que corresponde ao percentual de redução do diâmetro diastólico ventricular esquerdo após sua contração e pode ser calculado como (DdVE-DsVE)/(DdVE) x 100 (%). Valores maiores ou iguais a 30% são considerados normais. Disfunção sistólica do ventrículo esquerdo foi definida de acordo com o relatório do Comitê de Cardiologia do Grupo de Estudo de Crianças com Câncer dos Estados Unidos como PE igual ou inferior a 29%, e/ou diminuição da porcentagem de encurtamento, em valor absoluto, igual ou superior a 10 unidades do valor do exame realizado antes do início da quimioterapia de cada paciente22,23.
Exames laboratoriais - No momento da realização do ecocardiograma foram anotadas a freqüência cardíaca e a pressão arterial sistólica e diastólica de cada paciente. Por ocasião do exame ecocardiográfico foram anotados os níveis sangüíneos de hemoglobina e creatinina mais recentes.
Análise estatística - A análise descritiva da idade foi expressa como média e desvio-padrão, enquanto a dose cumulativa e o percentual de encurtamento foram expressos como média e erro-padrão. Para avaliar a dose cumulativa, as características clínicas, os diâmetros da cavidade ventricular esquerda e a porcentagem de encurtamento, foi utilizada a análise de variância com medidas repetidas. O sexo, a raça e a incidência de disfunção ventricular foram avaliados com o teste exato de Fisher. A idade, o peso, a altura e a área de superfície corporal foram analisadas com o teste t de Student. Para todos os testes realizados, o nível descritivo p < 0,05 foi considerado significante.
Resultados
No grupo I, foram realizados 140 exames ecocardiográficos; oito exames não foram realizados, cinco por não comparecimento do paciente e três devido à ocorrência de óbito, não relacionado com a toxicidade cardíaca. No grupo II, foram realizados 59 exames ecocardiográficos; treze exames não foram realizados, dez por não comparecimento do paciente e três devido à ocorrência de óbito, não relacionado com a toxicidade cardíaca.
Não houve diferença estatisticamente significante entre os grupos quanto ao sexo (teste exato de Fisher: p = 0,731), raça (Teste exato de Fisher: p = 0,334), idade (teste t de Student: p = 0,86), peso (teste t de Student: p = 0,719), altura (teste t de Student: p = 0,563), ASC (teste t de Student: p = 0,563) e à presença de metástase no início do tratamento (teste exato de Fisher: p = 1,000), como mostram as tabelas 1, 2, 3 e 4. Do mesmo modo, não houve diferença estatisticamente significante entre os grupos I e II em todas as fases do estudo quanto à freqüência cardíaca (p=0,554), pressão arterial sistólica (p= 0,95) e diastólica (p=0,465), como mostra a tabela 5. Ambos os grupos apresentaram médias dos níveis de hemoglobina superiores a 8,0g/dl e de creatinina sérica inferior a 1,0µmol/l, na ocasião das avaliações ecocardiográficas, como mostra a tabela 6.
A média da dose cumulativa foi cerca de 15% maior no grupo II, em relação ao grupo I, nas avaliações dois, três e quatro. A análise estatística mostra que o grupo I apresentou valores significativamente maiores de dose cumulativa de doxorrubicina (análise de variância com medidas repetidas: p < 0,0001) nas avaliações 2, 3 e 4, como mostram a figura 1 e a tabela 7.
A análise descritiva das médias e desvios-padrão da PE do ventrículo esquerdo ao ecocardiograma, ao longo das quatro avaliações, encontra-se na tabela 8. O comportamento da PE do ventrículo esquerdo ao longo do seguimento foi avaliado pela análise de variância com medidas repetidas. Dessa análise estatística resultou que há interação entre grupo e avaliação (p = 0,356), o que indica que o comportamento de ambos os grupos foi igual ao longo do estudo. Além disso, não há diferença significativa (p = 0,967) das médias da porcentagem de encurtamento ao longo do tempo, em cada grupo. Há diferença, porém, significativa (p= 0,029) entre as médias da porcentagem de encurtamento dos dois grupos, nas avaliações 2, 3 e 4, como mostra a figura 2.
A ocorrência de disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, de acordo com os critérios previamente definidos, considerando todas as avaliações, foi de sete indivíduos (18,92%) no grupo I e de dois indivíduos (11,1%) no grupo II. A análise estatística mostrou que não há diferença significativa entre os dois grupos, como mostra a Tabela 9. No grupo I, dos sete pacientes que apresentaram disfunção sistólica, cinco evoluíram com normalização da mesma, antes do término da quimioterapia. No grupo II, os dois pacientes que apresentaram disfunção sistólica evoluíram com normalização desta antes do término da quimioterapia.
Discussão
Virtualmente, todos os pacientes em vigência de tratamento ou com tratamento prévio com base em doxorrubicina podem desenvolver toxicidade cardíaca induzida por esse agente quimioterápico. Por esse motivo, a cada novo protocolo de tratamento de neoplasias, algumas medidas são tomadas, a fim de se evitar ou pelo menos reduzir esse efeito.
Do ponto de vista da prevenção da toxicidade cardíaca induzida pela doxorrubicina, o presente estudo apresenta alguns aspectos importantes, tais como: 1) o uso da dose total de doxorrubicina dividida em seis ciclos, com intervalos, em média, de três semanas; 2) em cada ciclo, a dose da doxorrubicina foi fracionada ao meio e dada em dois dias consecutivos, o que reduz ainda mais o pico do nível sérico da droga, sem comprometer a área sob a curva de concentração plasmática; 3) o emprego da doxorrubicina numa dose-limite cumulativa de 360 a 420mg/m2; 4) o uso de dexrazoxane em um dos grupos de pacientes e 5) a avaliação ecocardigráfica seriada, com a finalidade de identificar alterações cardíacas precoces e individualizar a dose de doxorrubicina, caso necessário. A administração da doxorrubicina em infusão rápida de 30 minutos contrapõe-se, porém, à tendência de muitos centros oncológicos que preferem utilizar a doxorrubicina em infusão prolongada de 6 a 72 horas, sob a alegação de que, dessa forma, haveria menor risco de toxicidade cardíaca19,24-27. Porém, apesar deste argumento ser válido, existem alguns aspectos negativos relacionados ao uso da doxorrubicina em infusão prolongada, que não a tornam unanimemente aceita. Um deles é o aumento significativo da mucosite28,29. Outro aspecto negativo é a possibilidade de haver maior tendência de a célula tumoral se tornar resistente30. Além disso, aumenta o tempo de permanência hospitalar, requer bomba de infusão e cateter de acesso venoso central, o que a torna uma abordagem desconfortável para o paciente e aumenta o risco de bacteremia. No conjunto, esses fatores tornam o tratamento mais oneroso, aspecto importante em nosso meio.
Nos Estados Unidos, recomenda-se uma dosagem de dexrazoxane 10 vezes superior à da doxorrubicina (10:1), isto é, para cada 1mg/m2 de doxorrubicina, 10mg/m2 de dexrazoxane20. Além disso, o dexrazoxane é ministrado a partir do momento em que o paciente atinge uma dose cumulativa de doxorrubicina igual ou superior a 300mg/m2. No presente estudo, o dexrazoxane foi utilizado apenas nos pacientes do grupo II, numa quantidade 20 vezes superior à da doxorrubicina (20:1), a partir da primeira dose do quimioterápico, em conformidade com a recomendação feita na Europa31.
Não houve diferença significante entre os dois grupos quanto aos fatores predisponentes ou de risco para desenvolver toxicidade miocárdica por doxorrubicina, tais como idade, sexo e raça, o que indica que ambos são comparáveis nesses aspectos. Além disso, nenhum paciente recebeu radioterapia no mediastino; por isso essa forma de tratamento não foi considerada um fator de risco para a toxicidade cardíaca. A avaliação dos dados laboratoriais durante o período de quimioterapia mostrou que os níveis de hemoglobina e creatinina não constituíram um fator de interferência com relação aos parâmetros avaliados, pois se mantiveram dentro de níveis aceitáveis (acima de 7,0 g/dl) nos dois grupos estudados.
Entre as demais drogas utilizadas no tratamento dos pacientes deste estudo, além da doxorrubicina, apenas a ifosfamida pode causar toxicidade32,33. Embora a toxicidade cardíaca da ifosfamida possa ser potencializada pela associação com doxorrubicina13, ambos os grupos receberam doses semelhantes deste medicamento e, por isso, não se pode inferir que a associação desses medicamentos resultou em aumento da toxicidade miocárdica.
No presente estudo, a ocorrência de disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, de acordo com os critérios previamente definidos, nos grupos I (18,92%) e II (11,1%), não mostrou diferença estatisticamente significante (p= 0,248). Além disso, nenhum dos dois grupos apresentou alteração significativa da média dos valores da porcentagem de encurtamento do ventrículo esquerdo ao longo do tempo, em todas as avaliações. Com base nessas informações pode-se deduzir que o dexrazoxane não exerceu nítida influência quanto à proteção miocárdica. Entretanto, existe uma consideração importante a ser feita. A média da porcentagem de encurtamento foi maior no grupo II do que no grupo I, nas avaliações dois, três e quatro, o que sugere algum grau de proteção miocárdica exercida pelo dexrazoxane. Essa hipótese é reforçada pelo fato de que a toxicidade cardíaca induzida pela doxorrubicina é dependente da dose e em cada uma dessas avaliações, o grupo II recebeu uma média de dose cumulativa cerca de 15% maior do que o grupo I, diferença estatisticamente significante (p < 0,001)34,35.
Esses resultados diferem, em parte, daqueles encontrados na literatura, pois diversos estudos indicaram um grau de proteção miocárdica exercido pelo dexrazoxane mais evidente, motivo pelo qual muitos protocolos indicam uma dose maior de doxorrubicina, quando o dexrazoxane é empregado. Wexler e cols.36, num estudo controlado, avaliaram o efeito do dexrazoxane em crianças com sarcoma de partes moles durante o período de QT com doxorrubicina.
Os pacientes foram avaliados com angiografia por radionuclídeo e toxicidade cardíaca foi definida como uma fração de ejeção menor que 45% ou diminuição na fração de ejeção igual ou superior a 20% em relação ao valor pré-quimioterapia. De acordo com os autores, houve menor incidência de toxicidade miocárdica no grupo que recebeu o dexrazoxane (22% x 67%), ainda que este grupo tenha recebido uma dose cumulativa média de doxorrubicina maior (410mg/m2 x 310mg/m2). Além disso, o grupo que recebeu o protetor miocárdico apresentou maior sobrevida, em parte secundária à diminuição de eventos cardíacos. Rubio e cols.22, num estudo controlado feito com crianças com osteossarcoma durante o período de QT, consideraram como toxicidade cardíaca uma porcentagem de encurtamento do ventrículo esquerdo menor ou igual a 28% ou uma diminuição, em valor absoluto, igual ou superior a 10 unidades em relação ao valor pré-quimioterapia, e encontraram considerável diminuição da incidência de toxicidade cardíaca subclínica no grupo que recebeu dexrazoxane (14% x 27%).
Schiavetti e cols.37 estudaram dois grupos de pacientes com vários tipos de tumores sólidos, durante o período de quimioterapia com doxorrubicina ou análogo, com e sem dexrazoxane, e encontraram menor incidência de toxicidade miocárdica, definida como uma porcentagem de encurtamento do ventrículo esquerdo menor ou igual a 28%, no grupo que recebeu dexrazoxane (zero% x 13,3%).
A porcentagem de encurtamento sistólico do ventrículo esquerdo é recomendada como índice para monitorização da função sistólica de pacientes em tratamento ou tratados com antraciclinas pelo Comitê de Cardiologia do Grupo de Estudo de Crianças com Câncer dos Estados Unidos23. De fato, vários estudos tomaram como base a fração de encurtamento e/ou a fração de ejeção para avaliar a função sistólica do ventrículo esquerdo, demonstrando a sua aplicabilidade28,34,39. Entretanto sabe-se que este índice apresenta algumas limitações na avaliação da função sistólica do ventrículo esquerdo, principalmente no contexto do paciente em quimioterapia. De fato, ele é afetado por algumas variáveis que podem influenciar a pré e pós-carga do ventrículo esquerdo, particularmente durante a fase de quimioterapia, tais como anemia, febre, infusão de volume e falência renal40.
Mesmo com alterações histológicas do miocárdio, quando a pós-carga está reduzida (vasodilatação por febre), a fração de encurtamento do ventrículo esquerdo pode ser normal, e, quando está aumentada (por exemplo, sobrecarga hídrica), esses índices podem estar diminuídos41. Segundo McKillop e cols.42, a porcentagem de encurtamento apresentou uma sensibilidade de 37% e uma especificidade de 72% em predizer subseqüente desenvolvimento de ICC em pacientes tratados com antraciclinas. Todavia os autores consideraram como anormal uma porcentagem de encurtamento inferior a 25%, o que diminuiu a sensibilidade e especificidade do método.
Outros parâmetros ecocardiográficos de função sistólica do ventrículo esquerdo, tais como a porcentagem de espessamento da parede posterior e o estresse sistólico da parede posterior, talvez pudessem detectar, se usados no presente estudo, uma possível diferença do comprometimento do ventrículo esquerdo entre os grupos I e II, uma vez que não dependem da pré e pós-carga43. Outra limitação deste estudo é a de que não foi utilizado nenhum critério de avaliação da função diastólica. Desde o final da década de 1980 muitos estudos acrescentaram a informação de que a função diastólica do ventrículo esquerdo dos pacientes tratados com antraciclinas altera-se até mesmo antes da função sistólica, motivo pela qual ela passou a ser muito valorizada nesse contexto44-46. As novas técnicas com Doppler tecidual e o ecocardiograma por estresse farmacológico com dobutamina também poderiam contribuir para a avaliação cardíaca dos pacientes sob risco de toxicidade cardíaca por antraciclinas, por apresentarem maior sensibilidade quanto ao diagnóstico de toxicidade miocárdica47-50.
Existem outras limitações do presente estudo, que podem ter influenciado os resultados. Ele não foi randomizado e os grupos foram tratados e formados em épocas diferentes. As ocorrências clínicas com eventuais sinais de insuficiência cardíaca durante a quimioterapia ou após o período do estudo não foram consideradas na análise. Outra razão: um número relativamente pequeno de pacientes foi incluso em ambos os grupos. Embora a porcentagem de encurtamento seja um parâmetro muito utilizado e com alto grau de reprodutibilidade e baixa variabilidade interobservadores, é importante ressaltar o fato de que o ecocardiograma é um método dependente do operador, que, apesar de experiente, pode ter eventualmente influenciado os resultados obtidos. Entretanto os exames foram realizados por um único observador, sem o conhecimento de qual grupo ou em que fase do tratamento estava o paciente.
As alterações da porcentagem de encurtamento, por terem ocorrido durante o período de QT e, na sua grande maioria, transitórias, podem ser classificadas como manifestações de toxicidade aguda. Convém salientar que os dados obtidos neste estudo se referem ao período da quimioterapia com doxorrubicina e não devem ser extrapolados para fases posteriores, em médio e longo prazos, quando a gravidade da disfunção do ventrículo esquerdo é mais acentuada.
Conclusão
Os dados do presente estudo indicam que, nos pacientes com osteossarcoma tratados com doxorrubicina com e sem dexrazoxane, a função sistólica do ventrículo esquerdo, avaliada pela média da porcentagem de encurtamento sistólico, apresentou melhor desempenho no grupo que recebeu a administração do dexrazoxane. A ocorrência de disfunção sistólica, porém, foi semelhante entre os dois grupos de pacientes.
Financiamento: UNIFESP-EPM e CAPES.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.
Artigo recebido em 11/11/04; revisado recebido em 16/02/06; aceito em 07/03/06.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Jan 2007 -
Data do Fascículo
Dez 2006
Histórico
-
Revisado
16 Fev 2006 -
Recebido
11 Nov 2004 -
Aceito
07 Mar 2006