PONTO DE VISTA
Profilaxia da endocardite infecciosa: uma realidade brasileira diferente?
João Ricardo Cordeiro Fernandes; Max Grinberg
InCor - Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP, São Paulo, SP - Brasil
Correspondência Correspondência: João Ricardo Cordeiro Fernandes Rua Alves Guimarães, 623,Apt.º 92, Jardim América CEP 05410-001, São Paulo, SP - Brasil E-mail: jrcfernandes@cardiol.br, jrcfernandes@hotmail.com
Palavras-chave: Endocardite / mortalidade, Profilaxia por Antibióticos, Febre Reumática.
A endocardite infecciosa (EI), doença rara e com alta morbimortalidade, não sofreu grande mudança na sua incidência nas últimas décadas, apesar dos progressos de diagnóstico e de tratamento. Por isso, todo esforço deve ser feito visando reduzir sua probabilidade. Antes doença predominantemente estreptocócica de pacientes com doença cardíaca há muito instalada, a EI vem se mostrando uma doença estafilocócica de pacientes idosos, com múltiplas comorbidades ou associada a dispositivos intracardíacos1.
Os princípios da profilaxia antibiótica para EI (PAEI) foram desenvolvidos com base em estudos observacionais no início do século XX2. Há pouco mais de meio século, o epônimo dos critérios para doença reumática Thomas Duckett Jones (1899−1954) liderou o comitê da primeira recomendação da American Heart Association (AHA) para prevenção de EI, publicada meses após a sua morte3.
Atualmente, vigora a recomendação da AHA, publicada em 2008, que substituiu a inclusa na diretriz geral de valvopatias4,5. Na mesma linha, a European Society of Cardiology, com sua diretriz publicada em 2012, endossa as novas tendências6.
Segundo os novos conceitos, o uso de antibiótico para profilaxia da EI, antes da realização de procedimentos dentários que envolvam manipulação do tecido gengival, da região periapical do dente ou perfuração da mucosa oral, deve ser indicado apenas para os pacientes que apresentam maior risco de desfecho adverso do episódio de EI; subentende-se, pois, a desnecessidade do uso para o paciente tão somente sob risco de EI.
Se, por um lado, houve radical mudança na proposição de PAEI - por exemplo, o Instituto Nacional para Saúde e Excelência Clínica (NICE) recomendou a cessação completa da PAEI na Grã-Bretanha7 - consequente a reinterpretações de dados conhecidos, por outro reduziu-se a ênfase na condição cardíaca de alto interesse brasileiro - a cardiopatia reumática crônica. Devemos, portanto, refletir sobre a aderência estrita a essa "renovação".
Os propositores da restrição significativa justificam suas posições pela carência de conclusões científicas sobre o benefício à evitação de desenvolvimento de EI, reservando a PAEI para uma minoria de casos entendidos como de preocupante evolução clínica.
Ressalte-se que as novas recomendações não aconteceram fundamentadas em novas pesquisas, ou seja, será bem-vinda uma avaliação prospectiva do real impacto da profilaxia - sabidamente complexa pela necessidade de inclusão de alto número de pacientes8. Fator primordial foi a supervalorização dada, especialmente pela AHA, ao risco de anafilaxia à amoxicilina, excedente ao possível efeito profilático.
O brasileiro não pode ignorar a conjunção da febre reumática - ainda a principal etiologia das valvopatias entre nós, com suas características estruturais e imunológicas peculiares - com o quadro de saúde bucal pouco animador da população em geral, que não apresentou melhoras importantes nas últimas décadas. Para se ter uma ideia, adultos brasileiros apresentavam, recentemente, CPO-D médio (índice de saúde bucal que traduz a experiência de cárie do indivíduo ao longo da vida) superior a 20 dentes, sendo o componente que representa os dentes perdidos (sem possibilidade de recuperação) superior a 60%9.
A prudência não permite, pois, desrespeitar a nossa peculiaridade epidemiológica das doenças valvares, tolerando interpretações de outras culturas a uma enfermidade cuja vivência à beira do leito provoca forte sintonia com o que aprendemos como zelo na prevenção de doenças graves.
Por tudo isso, houve motivos suficientes para a diretriz brasileira/interamericana de valvopatias, conforme publicado em 201110, recomendar antibioticoprofilaxia "clássica" e abrangente para EI. Ou seja, a Sociedade Brasileira de Cardiologia e a Sociedade Interamericana de Cardiologia aconselham a profilaxia antibiótica antes de procedimentos odontológicos com alta probabilidade de bacteriemia significativa aos pacientes com as conhecidas modalidades de valvopatia ou de cardiopatia congênita sob risco de EI, independentemente de pressuposições sobre diferenças evolutivas da doença. Ademais, reforçou a necessidade de estudos prospectivos e controlados para sustentar o grau de probabilidade da dimensão do efeito da PAEI.
Em conclusão, face às realidades brasileiras, por mais que possamos pretender ser médicos sem fronteiras culturais e globalizados, dificilmente ficaremos confortáveis em desprezar a antibioticoprofilaxia da EI para o indivíduo portador de lesão em valva nativa, um endosso da recomendação abrangente da diretriz brasileira, apesar do exaltado binômio da literatura: baixa incidência de EI e alta probabilidade de anafilaxia à amoxicilina (esta irrelevante na experiência brasileira, por isso nem mencionada em nossa diretriz). Aqueles que têm experiência de fato vivenciada à beira do leito com casos de EI hão de concordar.
Contribuição dos autores
Concepção e desenho da pesquisa e Redação do manuscrito: Fernandes JRC, Grinberg M; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Grinberg M.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.
Fontes de Financiamento
O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
Vinculação Acadêmica
Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
Artigo recebido em 31/01/13; revisado em 10/04/13, aceito em 15/04/13.
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Correspondência:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Set 2013 -
Data do Fascículo
Ago 2013