Open-access COVID-19: Um Novo Desafio para a Cardiopatia na Gravidez

Coronavírus; COVID-19; Pandemia; Gravidez; Gravidez de Alto Risco; Síndrome Respiratória Aguda Grave; Pneumonia; Hipertensão/prevenção e controle; Fatores de Risco; Morbidade; Mortalidade

O novo coronavírus (SARS-CoV-2, do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus -2) é o agente etiológico da COVID-19 (doença do novo coronavírus 2019), cujo surto foi declarado pandemia pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março de 2020.1 Apesar de terem sido obtidos o isolamento, o sequenciamento genético e a análise estrutural do SARS-CoV-2, ainda não existem terapias especificas para COVID-19.

Os primeiros dados epidemiológicos indicam pior evolução e maior mortalidade para os pacientes com COVID-19 portadores de doenças crônicas, como cardiopatia e hipertensão arterial. O Ministério da Saúde do Brasil expandiu esse grupo de alto risco para grávidas, puérperas e mulheres após aborto.2

Evidências epidemiológicas anteriores sugerem fortemente que as mulheres grávidas têm um risco aumentado de doenças graves e morte por infecções virais durante pandemias, como a gripe.3

Alterações fisiológicas no período gestacional não aumentam apenas suscetibilidade a infecção viral, mas também a gravidade dessa doença ( 1) .4 - 6 Durante a gravidez, a resposta imune predomina através das células T-helper 2 (Th2), que protegem o feto, mas tornam a mãe mais vulnerável a infecções virais, que são combatidas de forma mais eficaz pelas células Th1.7

Grávidas infectadas com o vírus influenza, subtipo H1N1, e com dois outros coronavírus patogênicos, SARS-CoV (do inglês, severe acute respiratory syndrome coronavirus ) e MERS-CoV (do inglês, Middle East respiratory syndrome coronavirus), apresentaram alta morbimortalidade durante a gravidez e após o parto. Estimou-se que 90% das grávidas com essas infecções virais evoluíram para insuficiência respiratória grave com complicações obstétricas, como aborto, parto prematuro e crescimento intrauterino restrito. Em grávidas infectadas com SARS-CoV ou MERS-CoV, foi relatada mortalidade materna de até 25%, mas não houve relato de transmissão vertical transplacentária.8

Não há dados de que a gravidez aumente a suscetibilidade à COVID-19. Apesar de escassa evidência, parece que a COVID-19 durante a gravidez é menos grave do que as infecções pelo vírus influenza subtipo H1N1, SARS-CoV e MERS-CoV.

Estudos em grávidas infectadas com o SARS-CoV-2 são limitados a pequenas séries . Uma revisão sistemática9 de 108 grávidas com COVID-19 identificou tosse e febre como as principais queixas, presentes em quase 80% das mulheres, enquanto dispneia foi informada por apenas 12%. Não há relato de morte materna. Das três pacientes graves que precisaram de ventilação mecânica, duas apresentavam obesidade (índice de massa corporal > 35) como fator de morbidade.

Outro estudo10 avaliando 116 grávidas com pneumonia por COVID-19 concluiu que as características clínicas da pneumonia das grávidas eram semelhantes àquelas da população geral. Atualmente não há evidência de que grávidas com COVID-19 estejam mais propensas a desenvolver pneumonia grave em comparação a não grávidas. Felizmente, não houve aumento de aborto espontâneo nem de parto prematuro natural, nem ainda evidência de transmissão vertical de SARS-CoV-2.

Transmissão perinatal de COVID-19: Devemos nos preocupar? Dos 75 recém-nascidos de mães com COVID-19, apenas um foi positivo para o vírus e apresentou evolução clínica satisfatória com leve alteração nas enzimas hepáticas.9 Entretanto, alguns bebês que testaram negativo para COVID-19 apresentaram linfocitopenia e achados radiológicos de pneumonia, e um apresentou coagulação intravascular disseminada. Todos os bebês se recuperaram totalmente.11 , 12 Em vista disso, não se pode excluir a possibilidade de uma resposta subclínica de fetos e recém-nascidos à infecção materna, nem transmissão vertical transplacentária. Portanto, recomenda-se o monitoramento cuidadoso de recém-nascidos de mães com COVID-19.

As grávidas com cardiopatia ou hipertensão arterial e infecção pelo SARS-CoV-2 devem ser consideradas de maior risco para mortalidade? O documento da Sociedade Brasileira de Cardiologia para conduta em doenças cardíacas na gravidez,13 que inclui protocolos de cuidados, estratégias de tratamento e prevenção de complicações cardíacas durante a gravidez, contribuiu para a redução da mortalidade materna no Brasil. No entanto, enfrentamos a emergência da COVID-19, uma doença que compromete essas conquistas. A continuidade das pesquisas clinicas e novas abordagens para integrada para o subgrupo de grávidas com cardiopatia ou hipertensão afetadas pelo SARS-CoV-2 são mandatórias.

Tabela 1
– Impacto das alteraçôes fisiológicas cardiovasculares e respiratórias em grávidas cardiopatas com SARS-CoV-2

A perspectiva de desfecho otimista para a combinação de gravidez e infecção pelo SARS-CoV-2 torna-se incerta em mulheres com cardiopatia ou distúrbios hipertensivos, pois essas duas condições cardíacas isoladamente representam as principais causas de mortalidade materna e fetal na gravidez.

É importante que a suspeita clínica de COVID-19 em mulheres grávidas com doença cardíaca seja descartada. Doenças cardíacas e COVID-19 têm sintomas em comum, o que pode levar a erro diagnóstico ( Tabela 2 ). Em vista disso e considerando a atual pandemia, testes para SARS-CoV-2 devem fazer parte das boas práticas de triagem para grávidas com doença cardíaca.

Tabela 2
– COVID-19 / Cardiopátia / Gravidez - Características e diagnóstico diferencial da triade

As Alterações fisiológicas no sistema cardiorrespiratório devidas à gravidez não aumentam a suscetibilidade à infecção pelo vírus, mas podem piorar o desfecho materno4 - 6 . As alterações respiratórias na gravidez levam a redução da capacidade pulmonar total e da complacência torácica no final da gestação. Além disso a hipóxia materna decorrente da hipoventilação e do comprometimento nas trocas gasosas reduz a oferta de oxigênio para o feto, e consequentemente, morte intra-uterina. Nesse contexto, a pneumonia da COVID-19 progride rapidamente de consolidação pulmonar focal para difusa bilateral, predispondo a grave insuficiência respiratória hipoxêmica.

COVID-19 pode levar a injúria cardíaca por múltiplos mecanismos, resultando em resposta inflamatória extrema com lesão endotelial e miocardite.14 Na gravidez e no período pós-parto, insuficiência cardíaca aguda deve ser considerada em algumas circunstâncias, como cardiomiopatia periparto, miocardite viral e edema pulmonar não cardiogênico. Edema pulmonar é também visto em grávidas saudáveis em decorrência de importantes alterações no volume intravascular durante o trabalho de parto e após o parto. Da mesma forma, alterações hemodinâmicas na gestação causam aumento no gradiente da válvula mitral estenótica e pode levar a congestão pulmonar. A cardiopatia congênita cianótica, as lesões obstrutivas do lado esquerdo do coração ou grave disfunção ventricular sistólica apresentam maior risco de complicações cardíacas em mulheres grávidas. A queda da resistência vascular sistêmica piora a hipoxemia em mulheres grávidas com hipertensão pulmonar e com tetralogia de Fallot não corrigida.

Coagulopatia sistêmica é um aspecto crítico de morbimortalidade na COVID-19.14 O estado de hipercoagulabilidade da gravidez eleva o risco de tromboembolismo em mulheres cardiopatas. Nesse cenário, a combinação de COVID-19 e prótese valvular mecânica ou fibrilação atrial na doença valvar reumática aumenta o risco de eventos tromboembólicos em mulheres grávidas. Vale ressaltar que, a cada trimestre da gestação, os níveis de dímero-D aumentam, fato que deve ser considerado na interpretação para diagnóstico de tromboembolismo pulmonar.

Inflamação sistêmica e coagulopatia na COVID-19 elevam o risco de ruptura da placa aterosclerótica e infarto agudo do miocárdio.14 A significativa implicação de infecção pelo SARS-CoV-2 para o sistema cardiovascular é evidenciada por injúria miocárdica aguda (altos níveis de troponina I ultrassensível e/ou novas anormalidades no ECG/ecocardiograma), arritmias cardíacas complexas e parada cardíaca. Durante a gravidez, síndrome coronariana aguda não é comum. Entretanto, infecções, em especial no pós-parto, são fatores de risco para infarto do miocárdio. As causas mais frequentes de infarto do miocárdio na gravidez são dissecção espontânea de artéria coronária, aterosclerose, trombose coronariana e artérias normais na angiografia com comprometimento da microcirculação coronariana.

Estudos recentes mostraram que a enzima de conversão da angiotensina 2 (ECA2) é um receptor funcional de SARS-CoV-2.15 O sistema renina-angiotensina é o principal responsável pela regulação da pressão arterial e a ECA2 tem papel crítico no controle da fisiologia cardiovascular em grávidas. Angiotensina-(1-7) é significativamente elevada em grávidas saudáveis quando comparadas a não grávidas. Na pré-eclâmpsia, os níveis plasmáticos de angiotensina (1-7) são reduzidos e a angiotensina II plasmática é consistentemente elevada, o que contribui para o desenvolvimento de hipertensão nessas gestantes. Além disso, grávidas com hipertensão crônica apresentam maior risco de pré-eclâmpsia ou síndrome HELLP. Contudo, a relação entre regulação positiva de ECA2 e SARS-CoV-2 na gravidez requer estudos adicionais.

Por fim, atualmente, não há dados sobre o desfecho da gravidez em pacientes com cardiopatia ou hipertensão arterial e COVID-19. Entretanto, essas pacientes têm que ser consideradas um grupo de alto risco.

Devido à falta de terapêutica específica e de vacina para COVID-19, precisamos estar preparados para prevenir e tratar complicações cardiovasculares na gestação.13 Cuidado integrado e multidisciplinar deve visar à otimização da terapia, à orientação das pacientes quanto aos riscos da COVID-19 e ao seu tratamento em uma eventual infecção por SARS-CoV-2.

As graves consequências da COVID-19 somadas às complicações de grávidas com cardiopatia ou hipertensão arterial podem determinar pior desfecho materno e prognóstico incerto.

Referências

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    » https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/14/Protocolo-de-Manejo-Cl--nico-para-o-Covid-19.pdf
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2020
  • Revisado
    27 Maio 2020
  • Aceito
    27 Maio 2020
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