Palavras-chave
Síndrome Coronariana Aguda; Doenças da Valva Aorta/cirurgia; Endocardite; Antibioticoprofilaxia; Síndrome de Hipersensibilidade a Medicamento; Complicações Pós-Operatórias
Introdução
O procedimento de Bentall foi descrito pela primeira vez há 50 anos e passou por várias melhorias ao longo dos anos. Essa técnica é considerada um procedimento seguro e antigo. Porém, como qualquer cirurgia, pode apresentar várias complicações, como pseudoaneurismo anastomótico, infarto do miocárdio e endocardite.11. Sioris T, David TE, Ivanov J, Armstrong S, Feindel CM. Clinical outcomes after separate and composite replacement of the aortic valve and ascending aorta. J Thorac Cardiovasc Surg.2004;128(2):260-5.
Em países desenvolvidos, com acesso diferenciado a cuidados de saúde e profilaxia, a endocardite é uma patologia incomum, associada a complicações frequentes e altas taxas de mortalidade. A antibioticoterapia visa erradicar o microrganismo responsável.22. Habib G, Lancellotti P, Antunes MJ, Bongiorni MG, Casalta J-P, Del Zotti F, et al. 2015 ESC guidelines for the management of infective endocarditis: the task force for the management of infective endocarditis of the European Society of Cardiology (ESC) endorsed by: European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS), the European Association of Nuclear Medicine (EANM). Eur Heart J. 2015;36(44):3075-128. No entanto, alguns dos medicamentos utilizados causam diversos efeitos colaterais, como a síndrome DRESS (Reação a Medicamentos com Eosinofilia e Sintomas Sistêmicos).
A síndrome DRESS foi descrita pela primeira vez por Bocquet et. al. em 1996, em pacientes com sintomas constitucionais, linfadenopatia e eosinofilia periférica. É considerada uma reação idiossincrática importante e de hipersensibilidade a medicamentos, com extensas características clínicas. Sua incidência é desconhecida, mas ocorre com maior frequência em adultos.33. Cacoub P, Musette P, Descamps V, Meyer O, Speirs C, Finzi L, et al. The DRESS syndrome: a literature review. Am J Med. 2011;124(7):588-97.,44. Husain Z, Reddy BY, Schwartz RA. DRESS syndrome: Part I. Clinical perspectives. J Am Acad Dermatol. 2013;68(5):693.e1-e14. Vários medicamentos estiveram associados à DRESS, mas a vancomicina é um dos mais frequentes.33. Cacoub P, Musette P, Descamps V, Meyer O, Speirs C, Finzi L, et al. The DRESS syndrome: a literature review. Am J Med. 2011;124(7):588-97.,55. Kardaun S, Sekula P, Valeyrie-Allanore L, Liss Y, Chu C, Creamer D, et al. Drug reaction with eosinophilia and systemic symptoms (DRESS): an original multisystem adverse drug reaction. Results from the prospective RegiSCAR study. Br J Dermatol. 2013;169(5):1071-80. A DRESS tem um amplo espectro de condições clínicas, desde sintomas leves até falência de múltiplos órgãos. No entanto, o tempo de exposição ao medicamento, a suscetibilidade individual e o diagnóstico imediato podem influenciar a resposta do paciente. As taxas de mortalidade variam de 3 a 10% e o diagnóstico imediato e a retirada do medicamento são importantes para obter um resultado favorável.33. Cacoub P, Musette P, Descamps V, Meyer O, Speirs C, Finzi L, et al. The DRESS syndrome: a literature review. Am J Med. 2011;124(7):588-97.,44. Husain Z, Reddy BY, Schwartz RA. DRESS syndrome: Part I. Clinical perspectives. J Am Acad Dermatol. 2013;68(5):693.e1-e14.
Os autores apresentam um caso único que reflete um conjunto de eventos esporádicos que ocorreram em um paciente.
Relato de Caso
O paciente é um homem de 60 anos de idade, com histórico clínico de hipertensão arterial, dislipidemia e procedimento de Bentall 8 meses antes da internação, com implante de valva aórtica mecânica St. Jude e Uni-Graft aórtico de 28 mm devido a aneurisma de aorta ascendente (56 mm).
Na sala de emergência, o paciente apresentou dispneia, fadiga, cansaço e sudorese. O exame físico revelou frequência cardíaca de 120 bpm, pressão arterial de 170/94 mmHg, estertores pulmonares e edema periférico. Os exames de sangue revelaram anemia e elevação dos biomarcadores de necrose miocárdica. O eletrocardiograma (ECG) mostrou ritmo sinusal, bloqueio de ramo direito, inversão da onda T de 0,05 mV em DI e aVL e infradesnivelamento do segmento ST de 0,1 mV de V4 a V6. A ecocardiografia transtorácica revelou válvula mecânica aórtica normofuncionante com leve vazamento protésico e função ventricular esquerda preservada. O paciente apresentou episódios recorrentes de edema pulmonar agudo durante a internação. Em um desses episódios, foram identificadas alterações dinâmicas ao ECG e novo aumento de biomarcadores cardíacos. O paciente evoluiu com choque cardiogênico com nova disfunção sistólica ventricular esquerda e hipocinesia difusa. A angiocoronariografia descartou doença arterial coronariana e, no entanto, revelou compressão extrínseca da artéria coronária esquerda, sugerindo pseudoaneurisma entre o Uni-Graft e a valva aórtica mecânica que comprimia a artéria coronária esquerda. Esse achado foi confirmado em angiotomografia cardíaca (Figura 1).
A angiotomografia cardíaca SACAR revelou compressão extrínseca da artéria coronária esquerda secundária ao pseudoaneurisma entre o Uni-Graft e a valva aórtica mecânica.
O paciente foi submetido a ressecção de pseudoaneurisma e substituição da valva aórtica mecânica. Durante a cirurgia, foram identificadas imagens de vegetação sugestivas de endocardite infecciosa. Iniciou-se tratamento empírico com flucloxacilina, vancomicina, ceftriaxona e rifampicina, com hemocultura negativa e resposta inicial favorável.
No 24º dia de antibioticoterapia, o paciente apresentou febre súbita associada a exantema maculopapular não confluente e não pruriginoso no abdome, membros superiores e inferiores e tórax, além de linfadenopatias. Inicialmente, admitiu-se toxicidade por rifampicina, sendo o medicamento suspenso com recuperação clínica gradual.
No entanto, 12 dias depois, o paciente apresentou quadro clínico semelhante com erupção cutânea (Figuras 2 e 3), febre, linfocitose com dismorfia nuclear, eosinofilia, hepatite aguda, lesão renal aguda e estados alterados de consciência (oscilações entre confusão mental e obnubilação). A deterioração da evolução clínica ocorreu rapidamente, exigindo ventilação invasiva e suporte com vasopressor. A tomografia computadorizada de crânio, tórax e abdome não mostrou achados patológicos. Repetiu-se o ecocardiograma transtorácico e a função da válvula protética estava normal. A punção lombar exibiu resultados normais. As hemoculturas, cultura da valva mecânica, os testes sorológicos (exceto para herpes zoster) e os testes de autoimunidade foram negativos. A biópsia de pele revelou reação inflamatória. Após descartar outras patologias por meio de uma investigação exaustiva, supôs-se a hipótese de síndrome de DRESS secundária à vancomicina. A retirada da vancomicina juntamente com suporte de terapia intensiva e altas doses de corticoterapia levaram à melhora gradual da função dos órgãos do paciente. Em um ano de seguimento, não houve nenhuma complicação ou déficit.
Discussão
Problemas técnicos no procedimento de Bentall podem promover deiscências, que podem levar a pseudoaneurisma anastomótico. O local de deiscência e as estruturas circundantes podem levar a eventos cardiovasculares.11. Sioris T, David TE, Ivanov J, Armstrong S, Feindel CM. Clinical outcomes after separate and composite replacement of the aortic valve and ascending aorta. J Thorac Cardiovasc Surg.2004;128(2):260-5.,66. Haddy SM. Aortic pseudoaneurysm after Bentall procedure. JCardiothorac Vasc Anesth. 1999;13(2):203-6.
Países desenvolvidos apresentam incidência relevante de endocardite valvar protética e hemoculturas são o padrão-ouro para o diagnóstico.22. Habib G, Lancellotti P, Antunes MJ, Bongiorni MG, Casalta J-P, Del Zotti F, et al. 2015 ESC guidelines for the management of infective endocarditis: the task force for the management of infective endocarditis of the European Society of Cardiology (ESC) endorsed by: European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS), the European Association of Nuclear Medicine (EANM). Eur Heart J. 2015;36(44):3075-128. Os critérios de Duke modificados fornecem um diagnóstico padronizado e devem ser aplicados com cuidado na endocardite infecciosa. Quanto à endocardite de prótese valvar, os critérios de Duke modificados apresentam menor acurácia diagnóstica. O caso relatado apresentava dois critérios menores: febre e cirurgia cardíaca prévia. De acordo com os critérios de Duke, três critérios menores são necessários para uma possível endocardite.22. Habib G, Lancellotti P, Antunes MJ, Bongiorni MG, Casalta J-P, Del Zotti F, et al. 2015 ESC guidelines for the management of infective endocarditis: the task force for the management of infective endocarditis of the European Society of Cardiology (ESC) endorsed by: European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS), the European Association of Nuclear Medicine (EANM). Eur Heart J. 2015;36(44):3075-128. No entanto, optamos por supor que o diagnóstico e o tratamento empírico foram iniciados, mesmo na presença de culturas negativas do tecido valvar ressecado.
A patogenia da síndrome de DRESS é pouco conhecida. No entanto, é globalmente aceita a interação entre diferentes mecanismos, como predisposições genéticas do paciente, anormalidades metabólicas que levam ao acúmulo de metabólitos de medicamentos e interações medicamentos-vírus que levam à reativação dos herpes-vírus humano (HHV) 6 e 7. As manifestações clínicas aparecem após um longo período de exposição ao medicamento e consistem em erupções cutâneas, alterações hematológicas, linfadenopatias e disfunção multissistêmica.33. Cacoub P, Musette P, Descamps V, Meyer O, Speirs C, Finzi L, et al. The DRESS syndrome: a literature review. Am J Med. 2011;124(7):588-97. Se houver suspeita de DRESS, recomenda-se o teste para HHV, pois a infecção pelo HHV está relacionada a maiores complicações e maior tempo de internação.77. Tohyama M, Hashimoto K, Yasukawa M, Kimura H, Horikawa T, Nakajima K, et al. Association of human herpesvirus 6 reactivation with the flaring and severity of drug-induced hypersensitivity syndrome. Br J Dermatol. 2007;157(5):934-40.
O projeto RegiSCAR (Registro Europeu de Reações Cutâneas Adversas Graves a medicamentos e coleta de amostras biológicas) sugere que pelo menos três dos seguintes critérios são necessários para o diagnóstico: hospitalização, febre, suspeita de reação a medicamentos, erupção cutânea aguda, linfadenopatias em duas áreas diferentes, disfunção orgânica e anormalidades sanguíneas.88. Kardaun S, Sidoroff A, Valeyrie-Allanore L, Halevy S, Davidovici B, Mockenhaupt M, et al. Variability in the clinical pattern of cutaneous side-effects of drugs with systemic symptoms: does a DRESS syndrome really exist? BrJ Dermatol. 2007;156(3):609-11. De acordo com o SCAR-J (grupo japonês de reações adversas cutâneas graves a medicamentos),99. Shiohara T, Iijima M, Ikezawa Z, Hashimoto K. The diagnosis of a DRESS syndrome has been sufficiently established on the basis of typical clinical features and viral reactivations. Br J Dermatol. 2007;156(5):1083-4. o diagnóstico é estabelecido pela presença dos cinco critérios a seguir: erupção maculopapular após três semanas de tratamento, febre, linfadenopatias, leucocitose, hepatite e reativação do vírus HHV 6. Portanto, nosso paciente exibiu 6 critérios RegiSCAR para o diagnóstico de DRESS. Ainda assim, usando os critérios da SCAR-J, nosso paciente não atende a todos os requisitos para o diagnóstico de DRESS, uma vez que não foi detectada reativação do vírus HHV 6, sendo classificado como apresentação atípica de DRESS.
As recomendações atuais para orientar o tratamento da síndrome DRESS baseiam-se em relatos de casos e opinião de especialistas, e todas preconizam a suspensão imediata do medicamento responsável e, se possível, redução dos outros. Além disso, a corticoterapia geralmente é usada. No entanto, não existem estudos que revelem qualquer eficácia clara e alguns autores defendem que pode exacerbar a reativação viral. Pacientes com DRESS devem ter acompanhamento de longo prazo, pois apresentam maior risco de doenças autoimunes.1010. Chen Y-C, Chang C-Y, Cho Y-T, Chiu H-C, Chu C-Y. Long-term sequelae of drug reaction with eosinophilia and systemic symptoms: a retrospective cohort study from Taiwan. J Am Acad Dermatol. 2013;68(3):459-65.
A endocardite é uma complicação frequente em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca. O uso de vancomicina tem aumentado nos últimos anos e, portanto, está mais frequentemente associado à síndrome DRESS. Como as manifestações clínicas e as anormalidades laboratoriais são inespecíficas, o diagnóstico de DRESS depende da suspeita clínica precoce. O rápido reconhecimento e identificação da síndrome DRESS são essenciais para uma abordagem terapêutica eficaz e baixas taxas de mortalidade.
Agradecimentos
Os autores agradecem a todos os profissionais do Centro Hospitalar Barreiro-Montijo EPE pela ajuda na publicação deste caso clínico.
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Fontes de FinanciamentoO presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
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Vinculação AcadêmicaNão há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
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Aprovação Ética e Consentimento InformadoEste artigo não contém estudos com humanos ou animais realizados por nenhum dos autores.
Referências
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1Sioris T, David TE, Ivanov J, Armstrong S, Feindel CM. Clinical outcomes after separate and composite replacement of the aortic valve and ascending aorta. J Thorac Cardiovasc Surg.2004;128(2):260-5.
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2Habib G, Lancellotti P, Antunes MJ, Bongiorni MG, Casalta J-P, Del Zotti F, et al. 2015 ESC guidelines for the management of infective endocarditis: the task force for the management of infective endocarditis of the European Society of Cardiology (ESC) endorsed by: European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS), the European Association of Nuclear Medicine (EANM). Eur Heart J. 2015;36(44):3075-128.
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3Cacoub P, Musette P, Descamps V, Meyer O, Speirs C, Finzi L, et al. The DRESS syndrome: a literature review. Am J Med. 2011;124(7):588-97.
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4Husain Z, Reddy BY, Schwartz RA. DRESS syndrome: Part I. Clinical perspectives. J Am Acad Dermatol. 2013;68(5):693.e1-e14.
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5Kardaun S, Sekula P, Valeyrie-Allanore L, Liss Y, Chu C, Creamer D, et al. Drug reaction with eosinophilia and systemic symptoms (DRESS): an original multisystem adverse drug reaction. Results from the prospective RegiSCAR study. Br J Dermatol. 2013;169(5):1071-80.
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6Haddy SM. Aortic pseudoaneurysm after Bentall procedure. JCardiothorac Vasc Anesth. 1999;13(2):203-6.
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7Tohyama M, Hashimoto K, Yasukawa M, Kimura H, Horikawa T, Nakajima K, et al. Association of human herpesvirus 6 reactivation with the flaring and severity of drug-induced hypersensitivity syndrome. Br J Dermatol. 2007;157(5):934-40.
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8Kardaun S, Sidoroff A, Valeyrie-Allanore L, Halevy S, Davidovici B, Mockenhaupt M, et al. Variability in the clinical pattern of cutaneous side-effects of drugs with systemic symptoms: does a DRESS syndrome really exist? BrJ Dermatol. 2007;156(3):609-11.
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9Shiohara T, Iijima M, Ikezawa Z, Hashimoto K. The diagnosis of a DRESS syndrome has been sufficiently established on the basis of typical clinical features and viral reactivations. Br J Dermatol. 2007;156(5):1083-4.
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10Chen Y-C, Chang C-Y, Cho Y-T, Chiu H-C, Chu C-Y. Long-term sequelae of drug reaction with eosinophilia and systemic symptoms: a retrospective cohort study from Taiwan. J Am Acad Dermatol. 2013;68(3):459-65.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Fev 2021 -
Data do Fascículo
Fev 2021
Histórico
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Recebido
25 Dez 2019 -
Revisado
27 Abr 2020 -
Aceito
10 Jun 2020