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Teste de Limiar de Desfibrilação e Seguimento a Longo Prazo de Pacientes com Cardiopatia Crônica da Doença de Chagas

Resumo

Fundamento

A morte súbita cardíaca (MSC) é a causa mais comum de óbito na cardiomiopatia crônica da doença de Chagas (CCDC). Visto que muitos pacientes com CCDC que são candidatos a receber um cardioversor desfibrilador implantável (CDI) atendem a critérios que sugerem alto risco de apresentarem limiares de desfibrilação elevados, sugere-se realizar um teste de limite de desfibrilação (LDF).

Objetivos

Investigamos o uso do teste de LDF em pacientes com CCDC, com enfoque nos óbitos relacionados ao implante do CDI e na ocorrência de eventos arrítmicos e o tratamento oferecido durante o seguimento de longo prazo.

Métodos

Avaliações retrospectivas de 133 pacientes com CCDC que receberam CDI, principalmente para prevenção secundária. Foram coletados dados demográficos, clínicos e laboratoriais, escore de Rassi e dados do teste de LDF. Adotou-se p<0,05 como estatisticamente significativo.

Resultados

A média de idade foi 61±13 anos, e 72% da amostra era do sexo masculino. A fração de ejeção basal do ventrículo esquerdo foi 40±15%, e o escore de Rassi médio foi 10±4 pontos. Não ocorreram óbitos durante o teste de LDF, e não foram documentadas falhas do CDI. Foi identificada relação entre escore de Rassi basal mais elevado e LDFs mais elevados (ANOVA =0,007). O tempo médio até o primeiro choque foi de 474±628 dias, mas a aplicação de choque foi necessária em apenas 28 (35%) pacientes com TV, visto que a maioria dos casos se resolveu espontaneamente ou através da programação de ATP. Após seguimento clínico de 1728±1189 dias, em média, ocorreram 43 óbitos, relacionados principalmente a insuficiência cardíaca progressiva e sepse.

Conclusões

Um teste de LDF de rotina pode não ser necessário para pacientes com CCDCs que receberam CDI para prevenção secundária. LDFs elevados parecem ser incomuns e podem estar relacionados a escore de Rassi elevado.

Doença de Chagas; Cardiomiopatia Chagásica; Taquicardia Ventricular; Desfibriladores Implantáveis; Cardioversão Elétrica

Abstract

Background

Sudden cardiac death is the most common cause of death in chronic Chagas cardiomyopathy (CCC). Because most CCC patients who are candidates for implantable cardioverter-defibrillators (ICD) meet criteria for high defibrillation threshold values, a defibrillator threshold test (DTT) is suggested.

Objectives

We investigated the use of DTT in CCC patients, focusing on deaths related to ICD and arrhythmic events, as well as treatment during long-term follow-up.

Methods

We retrospectively evaluated 133 CCC patients who received an ICD mainly for secondary prevention. Demographic, clinical, laboratory data, Rassi score, and DTT data were collected, with p < 0.05 considered significant.

Results

The mean patient age was 61 (SD, 13) years and 72% were men. The baseline left ventricular ejection fraction was 40 (SD, 15%) and the mean Rassi score was 10 (SD, 4). No deaths occurred during DTT and no ICD failures were documented. There was a relationship between higher baseline Rassi scores and higher DTT scores (ANOVA = 0.007). The mean time to first shock was 474 (SD, 628) days, although shock was only necessary for 28 (35%) patients with ventricular tachycardia, since most cases resolved spontaneously or through antitachycardia pacing. After a mean clinical follow-up of 1728 (SD, 1189) days, 43 deaths occurred, mainly related to progressive heart failure and sepsis.

Conclusions

A routine DTT may not be necessary for CCC patients who receive an ICD for secondary prevention. High DTT values seem to be unusual and may be related to high Rassi scores.

Chagas Disease; Chagas Cardiomyopathy; Tachycardia, Ventricular; Defibrillators, Implantable; Electric Countershock

Introdução

A morte súbita cardíaca (MSC) por taquicardia ventricular (TV) ou fibrilação ventricular (FV) é a causa mais comum de óbito em pacientes com cardiomiopatia crônica da doença de Chagas (CCDC). 11. Nunes MCP, Beaton A, Acquatella H, Bern C, Bolger AF, Echeverria LE, et al. Chagas Cardiomyopathy: An Update of Current Clinical Knowledge and Management: A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2018;138(12):e169-e209. doi: 10.1161/CIR.0000000000000599. O cardioversor desfibrilador implantável (CDI) tem sido amplamente utilizado e validado em cardiomiopatias isquêmicas e dilatadas, tanto para prevenção primária quanto secundária. O uso empírico do CDI é preconizado para prevenção secundária na CCDC após a recuperação de um evento de MSC ou de TV instável. Uma diretriz definitiva ainda está em discussão. 22. Rassi FM, Minohara L, Rassi Jr A, Correia LCL, Marin-Neto JA, Rassi A, da Silva Menezes A, Jr. Systematic Review and Meta-Analysis of Clinical Outcome After Implantable Cardioverter-Defibrillator Therapy in Patients With Chagas Heart Disease. JACC Clin Electrophysiol. 2019;5(10):1213-23. doi: 10.1016/j.jacep.2019.07.003. , 33. Rassi A Jr, Rassi A. Another disappointing result with implantable cardioverter-defibrillator therapy in patients with Chagas disease. Europace : 2013;15(9):1383. doi: 10.1093/europace/eut092 Visto que não existem ensaios clínicos randomizados especificamente sobre o uso de CDI na CCDC, embora alguns estejam em andamento, 44. Martinelli M, Rassi A Jr Marin-Neto JA, de Paola AA, Berwanger O, Scanavacca MI, et al. CHronic use of Amiodarone aGAinSt Implantable cardioverter-defibrillator therapy for primary prevention of death in patients with Chagas cardiomyopathy Study: rationale and design of a randomized clinical trial. Am Heart J.2013;166(6):976-82.e.4 doi: 10.1016/j.ahj.2013.08.027 extrapolam-se as diretrizes clínicas para cardiopatia dilatada, apesar de os pacientes com CCDC geralmente apresentarem peculiaridades que levam a apresentações clínicas e patológicas mais graves. A ocorrência de MSC em pessoas jovens e assintomáticas 55. Rassi Jr A, Rassi SG, Rassi A. Sudden death in Chagas’ disease. Arq Bras Cardiol.2001;76(1):75-96. doi: 10.1590/s0066-782x2001000100008. é conhecida desde as observações originais de Carlos Chagas sobre a doença que leva seu nome. Além disso, choques inadequados, tempestades elétricas e outras complicações relacionadas ao dispositivo parecem ser mais prevalentes em pacientes com CCDC, pois eles costumam ser mais jovens, têm um estilo de vida mais ativo e são mais propensos a eventos arrítmicos. 22. Rassi FM, Minohara L, Rassi Jr A, Correia LCL, Marin-Neto JA, Rassi A, da Silva Menezes A, Jr. Systematic Review and Meta-Analysis of Clinical Outcome After Implantable Cardioverter-Defibrillator Therapy in Patients With Chagas Heart Disease. JACC Clin Electrophysiol. 2019;5(10):1213-23. doi: 10.1016/j.jacep.2019.07.003. Portanto, a CCDC representa um desafio único quanto à decisão de realizar ou não um teste de limiar de desfibrilação (LDF) antes de implantar o CDI. Nenhuma avaliação sistemática do LDF foi relatada para essa entidade, e a maioria dos estudos nem mesmo comenta se essa avaliação foi realizada ou não. 66. Gali WL, Sarabanda AV, Baggio JM, Ferreira LG, Gomes GG, Marin-Neto JÁ, Junqueira LF. Implantable cardioverter-defibrillators for treatment of sustained ventricular arrhythmias in patients with Chagas’ heart disease: comparison with a control group treated with amiodarone alone. Europace : 2014;16(5):674-80. doi: 10.1093/europace/euz012. , 77. Barbosa MP, da Costa Rocha MO, de Oliveira AB, Lombardi F, Ribeiro AL. Efficacy and safety of implantable cardioverter-defibrillators in patients with Chagas disease. Europace. 2013;15(7):957-62. doi: 10.1093/europace/eut011. Visto que a maioria dos pacientes com CCDC que são candidatos a receber um CDI apresentam manifestações arrítmicas graves, menor fração de ejeção do ventrículo esquerdo e/ou direito e extensa substituição fibrótica do miocárdio operante, de acordo com a maioria dos escores existentes, os pacientes com CCDC seriam considerados como de alto risco de apresentar LDFs elevados e portanto necessitariam de um teste de LDF. 88. Shih MJ, Kakodkar SA, Kaid Y, Hassel JL, Yarlagadda S, Fogg LF, et al. Reassessing Risk Factors for High Defibrillation Threshold: The EF-SAGA Risk Score and Implications for Device Testing. Pacing and clinical electrophysiology. Pacing Clin Electrophysiol.2016;39(5):483-9. doi: 10.1111/pace.12838. Entretanto, em países de baixa renda, onde a necessidade de anestesia geral acarretaria maiores custos e procedimentos mais longos, poderia ser vantajoso evitar a necessidade de avaliação do LDF.

Com os modelos de CDI mais antigos, devido à falta de dados sobre falhas de choque, o teste de LDF era considerado essencial. Esse procedimento não era totalmente previsível, devido às formas de onda monofásicas e ao design e ao posicionamento dos eletrodos, com alguns óbitos e falhas de choque diretamente relacionados ao teste de LDF. 99. Birnie D, Tung S, Simpson C, Crystal E, Exner D, Ayala Paredes FA, et al. Complications associated with defibrillation threshold testing: the Canadian experience. Heart Rhythm.2008;5(3):387-90. doi: 10.1016/j.hrthm.2007.11.018 Aprimoramentos no design dos eletrodos e nas formas de onda de choque levaram a testes de LDF mais seguros. Ao longo dos anos, também houve preocupações relacionadas ao impacto dos choques aplicados durante o teste de LDF na aceleração da disfunção ventricular e no aumento de hospitalizações, então, até recentemente, havia acalorados debates sobre a necessidade de realizar testes de LDF. 1010. Russo AM, Chung MK. Is defibrillation testing necessary for implantable transvenous defibrillators?: defibrillation testing is necessary at the time of implantable cardioverter defibrillator implantation. Circ Arrhythm Electrophysiol.. 2014;7(2):337-46. doi: 10.1161/CIRCEP.113.000371. , 1111. Healey JS, Brambatti M. Is defibrillation testing necessary for implantable transvenous defibrillators?: defibrillation testing should not be routinely performed at the time of implantable cardioverter defibrillator implantation. Circ Arrhythm Electrophysiol. 2014;7(2):347-51. doi: 10.1016/S0140-6736(14)61903-6.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(14)61...

Dois ensaios clínicos publicados recentemente prestaram esclarecimentos sobre o uso disseminado do teste de LDF em outras doenças que não a CCDC. O estudo SIMPLE ( Shockless IMPLant Evaluation ) foi um ensaio clínico randomizado multicêntrico que objetivou avaliar a eficácia e a segurança do teste de LDF no momento do implante do CDI. 1212. Healey JS, Hohnloser SH, Glikson M, Neuzner J, Mabo P, Vinolas X, et al.. Cardioverter defibrillator implantation without induction of ventricular fibrillation: a single-blind, non-inferiority, randomised controlled trial (SIMPLE). Lancet. 2015;385(9970):785-91. doi: 10.1016/S0140-6736(14)61903-6 Incluindo aproximadamente 2500 pacientes, o estudo concluiu que o teste não afeta a mortalidade nem prevê falhas de choque. O estudo NORDIC ICD ( NO Regular Defibrillation testing In Cardioverter defibrillator implantation ), com delineamento semelhante, avaliou 1077 pacientes e chegou às mesmas conclusões. 1313. Bansch D, Bonnemeier H, Brandt J, Bode F, Svendsen JH, Taborsky M, et al. Intra-operative defibrillation testing and clinical shock efficacy in patients with implantable cardioverter-defibrillators: the NORDIC ICD randomized clinical trial. Eur Heart J. 2015;36(37):2500-7. doi: 10.1093/eurheartj/ehv292.

Um estudo que avaliou o teste de LDF em CCDC demonstrou uma alta prevalência de limiares elevados. 1414. Lima CE, Martinelli Filho M, Silva RT, Tamaki WT, Oliveira JC, Martins DC, et al. ICD patients with elevated defibrillation threshold: clinical behavior and therapeutic alternatives. Arq Bras Cardiol. 2008;90(3):160-6. doi: 10.1590/s0066-782x2008000300004. Entretanto, na prática clínica, esses pacientes também responderão bem à terapia de estimulação antitaquicardia ( anti-tachycardia pacing , ATP), com redução da necessidade da aplicação de choques. 1515. Pavao M, Arfelli E, Scorzoni-Filho A, Rassi Jr A, Pazin-Filho A, Pavao RB, et al. Long-term follow-up of Chagas heart disease patients receiving an implantable cardioverter-defibrillator for secondary prevention. Pacing Clin Electrophysiol.. 2018;41(6):583-8. doi: 10.1111/pace.13333 Dessa forma, investigamos o uso do teste de LDF em pacientes com CCDC, com foco nos óbitos relacionados ao implante do CDI e na ocorrência de eventos arrítmicos e no tratamento oferecido durante o seguimento de longo prazo.

Métodos

Realizamos uma avaliação retrospectiva de pacientes com CCDC que receberam um CDI no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP, Brasil, entre 2001 e 2019. Todos os pacientes tiveram dois testes sorológicos positivos para doença de Chagas. Foram coletados dados demográficos (idade, gênero), clínicos (indicação de CDI, classe funcional da New York Heart Association , dados ecocardiográficos, características do ECG, medicamentos em uso no momento do implante do CDI) e escore de Rassi. 1616. Rassi Jr A, Rassi A, Little WC, Xavier SS, Rassi SG, Rassi AG, et al. Development and validation of a risk score for predicting death in Chagas’ heart disease. N Engl J Med. 2006;355(8):799-808. doi: 10.1056/NEJMoa053241. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da nossa instituição (CAAE:52530116.8.0000.5440).

Foi realizado um teste de LDF para todos os pacientes conforme o protocolo e os dados foram coletados. Durante os anos da coleta de dados, a rotina do teste de LDF foi alterada, devido ao aumento na experiência da equipe e a novas informações na literatura sobre as consequências do teste. Em geral, a provocação da arritmia ventricular era obtida com um choque cronometrado durante o registro da onda T. Em dispositivos da St. Jude Medical, a indução da arritmia foi obtida com estimulação por corrente contínua. Em caso de falha após duas tentativas de indução de arritmia, foi aplicada estimulação em rajada de 50 Hertz. Por fim, em caso de falha após mais duas tentativas, o teste de LDF foi finalizado e o dispositivo programado para fornecer a quantidade máxima de energia.

Nos primeiros anos do estudo, o primeiro choque de desfibrilação interna era programado para fornecer 15 Joules, seguido de uma tentativa com 20 Joules. Se a desfibrilação fosse malsucedida, era aplicada desfibrilação interna com energia máxima e, se a arritmia persistisse após duas tentativas, era aplicado choque externo e, depois disso, o eletrodo era reposicionado. Nesse protocolo inicial, se a primeira tentativa com 15 Joules fosse bem-sucedida, era testado um choque de 10 Joules.

Ao longo dos anos, a energia máxima fornecida pelos CDIs aumentou, e foi definida uma margem de segurança de 10 Joules para o primeiro choque bem-sucedido durante o teste de LDF. Além disso, estabeleceu-se que o primeiro choque do teste de LDF fosse programado para 20 Joules e, se bem-sucedido, o teste de LDF seria concluído. Se fosse malsucedido, tentava-se uma carga de 25 Joules, seguida do reposicionamento do eletrodo. Um LDF elevado foi definido como < 10J da margem de segurança.

Os parâmetros do CDI foram coletados no momento do implante, os pacientes foram acompanhados a cada três a seis meses, e foram registrados a duração e o tipo dos eventos arrítmicos, assim como a terapia oferecida e a sua eficácia.

Análise estatística

As variáveis contínuas foram expressas como média ± desvio padrão, caso apresentassem distribuição normal. A normalidade dos dados foi examinada por histogramas e pelo teste de Shapiro-Wilk. As variáveis qualitativas foram expressas como valores absolutos e percentuais e comparadas utilizando o teste qui-quadrado de tendência ou o teste exato de Fisher. Foi utilizada análise de variância de um fator ( one-way ANOVA), seguida pelo pós-teste de Bonferroni, para comparar a relação entre o escore de Rassi e os valores do teste de LDF. Utilizamos o pacote estatístico SPSS, versão 25 (IBM Corp., Armonk, EUA), e a significância estatística foi definida como p < 0,05.

Resultados

Foram incluídos 133 pacientes com CCDC que receberam um CDI. A média de idade foi 61±13 anos, e 72% da amostra era do sexo masculino. A média da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) foi 40±15%, e o diâmetro diastólico médio do ventrículo esquerdo foi de 61±10 mm antes do implante. A escore de Rassi médio foi de 10±4 pontos. A grande maioria (120 pacientes – 90,2%) recebeu o dispositivo para prevenção secundária. TV documentada foi o motivo para o implante do CDI em aproximadamente metade da amostra, seguida de MSC abortada. A Tabela 1 apresenta as principais indicações clínicas para CDI em nossa amostra e um resumo dos dados demográficos, clínicos e laboratoriais. A Tabela 2 resume os dados demográficos e laboratoriais distribuídos de acordo com os tercis do escore de Rassi, demonstrando tendência para choques mais precoces à medida que o tercil do escore de Rassi aumenta.

Tabela 1
Dados basais demográficos, clínicos e laboratoriais antes do implante do CDI nos 133 pacientes com cardiomiopatia crônica de doença de Chagas incluídos
Tabela 2
Distribuição dos parâmetros demográficos, laboratoriais e de seguimento de acordo com o tercil do escore de Rassi

Não ocorreram óbitos durante o procedimento de implante e o teste de LDF.

No seguimento, o tempo médio até o primeiro choque foi de 474±628 dias. Cem pacientes receberam algum tratamento com CDI, 79 para TV e 21 para FV. O primeiro choque, definido em 20J, foi eficaz em 88 pacientes. Um valor menor foi obtido em 25% dos casos, e um valor maior foi necessário em 12 (9%) pacientes. Foram identificados valores elevados no teste de LDF (≥30J) em 4 (3%) pacientes. Alguns pacientes foram programados para receber valores tão baixos como 10J (1 paciente) ou tão elevados quanto 35J (1 paciente). A Figura 1 apresenta a relação entre o escore de Rassi e os valores basais do teste de LDF, sugerindo que um escore mais elevado indicou LDFs mais elevados (ANOVA =0,007). Todos os pacientes classificados com LDF elevado apresentaram escore de Rassi ≥13 pontos ( Figura 2 ).

Figura 1
Valores do teste de limiar de desfibrilação expressos como média e desvio padrão de acordo com tercis do escore de Rassi, demonstrando um aumento progressivo nos valores conforme o escore de Rassi aumenta (one-way ANOVA= 0,007) e pós-testes de Bonferroni nos quais a principal diferença ocorre entre o terceiro tercil e os outros dois, que são estatisticamente semelhantes.

Figura 2
Distribuição dos valores do teste de limite de desfibrilação (LDF) de acordo com o escore de Rassi. É possível observar que os pacientes com LDF elevado apresentaram um escore de Rassi igual ou maior do que 13. Observação: Um ponto pode representar mais do que um paciente.

Foi necessária a aplicação de choque em apenas 2 (35%) pacientes com TV, pois a maioria dos casos se resolveu espontaneamente ou através de ATP programada para ser fornecida antes do choque, e em apenas 4 (14%) eventos de TV foram necessários múltiplos choques. Com relação aos pacientes com FV, apenas 4 (19%) receberam mais de uma descarga. Após um seguimento clínico de 1728±1189 dias, em média, ocorreram 43 óbitos, relacionados principalmente a insuficiência cardíaca progressiva e sepse. Nenhum óbito pôde ser atribuído a falhas do CDI.

Discussão

Nosso estudo apresenta dados sobre o uso sistemático do teste de LDF especificamente em pacientes com cardiomiopatia dilatada comumente associada a MSC, a qual ocorre principalmente, mas não exclusivamente, no contexto clínico de FEVE baixa devido ao comprometimento fibrótico generalizado do coração. Vários marcadores de LDF elevado estiveram presentes, mas cabe destacar que aproximadamente metade da população da amostra foi composta de pessoas abaixo dos 60 anos e que a maioria era do sexo masculino e apresentava FEVE baixa (<40%). Portanto, nossa amostra pode ser definida como propensa a complicações hospitalares e LDF elevadosao serem aplicados escores existentes. 88. Shih MJ, Kakodkar SA, Kaid Y, Hassel JL, Yarlagadda S, Fogg LF, et al. Reassessing Risk Factors for High Defibrillation Threshold: The EF-SAGA Risk Score and Implications for Device Testing. Pacing and clinical electrophysiology. Pacing Clin Electrophysiol.2016;39(5):483-9. doi: 10.1111/pace.12838. , 1717. Dodson JA, Reynolds MR, Bao H, Al-Khatib SM, Peterson ED, Kremers MS, et al. Developing a risk model for in-hospital adverse events following implantable cardioverter-defibrillator implantation: a report from the NCDR (National Cardiovascular Data Registry).J Am Coll Cardiol. 2014;63(8):788-96. doi: 10.1016/j.jacc.2013.09.079 Também é relevante apontar que prevenção secundária foi o principal motivo para implante do CDI, pois ainda não foram estabelecidas diretrizes para prevenção primária na CCDC, e são necessários estudos randomizados prospectivos em pacientes com escores de Rassi elevados.

Nosso protocolo para o teste de LDF evoluiu ao longo de duas décadas, refletindo os avanços na tecnologia dos CDIs, conforme relatado anteriormente. 1818. Hayase J, Do DH, Boyle NG. Defibrillation Threshold Testing: Current Status. Arrhythm Electrophysiol Rev . 2018;7(4):288-93. doi: 10.15420/aer.2018.54.2. Identificamos que apenas 3% da nossa amostra apresentava LDF elevado, resultado próximo ao dos valores mais baixos encontrados na literatura, entre 2,2 e 12%. 1010. Russo AM, Chung MK. Is defibrillation testing necessary for implantable transvenous defibrillators?: defibrillation testing is necessary at the time of implantable cardioverter defibrillator implantation. Circ Arrhythm Electrophysiol.. 2014;7(2):337-46. doi: 10.1161/CIRCEP.113.000371. Esse achado original indica que, embora apresentem miocárdio com fibrose extensa, os pacientes com CCDC podem não representar uma população que necessite de muitos ajustes durante um procedimento de implante de CDI.

Outra informação relevante obtida a partir da nossa amostra é que nenhum óbito foi relacionado ao procedimento em pacientes com CCDC, corroborando os resultados de registros prévios de outro países relatando baixa incidência de complicações relacionadas ao procedimento, 99. Birnie D, Tung S, Simpson C, Crystal E, Exner D, Ayala Paredes FA, et al. Complications associated with defibrillation threshold testing: the Canadian experience. Heart Rhythm.2008;5(3):387-90. doi: 10.1016/j.hrthm.2007.11.018 e de uma revisão sistemática recente, a qual declarou que “não há relatos consistentes de óbitos relacionados ao implante.” 1919. Ezzat VA, Lee V, Ahsan S, Chow AW, Segal O, Rowland E, et al. A systematic review of ICD complications in randomised controlled trials versus registries: is our ‘real-world’ data an underestimation? Open Heart. 2015;2(1):e000198. doi: 10.1136/openhrt-2014-000198.

Nossos resultados também demonstram que TV foi a arritmia potencialmente letal predominante em pacientes com CCDC e que a ATP foi capaz de restaurar o ritmo cardíaco na maioria dos casos, uma característica que está de acordo com relatos anteriores na população com CCDC. 66. Gali WL, Sarabanda AV, Baggio JM, Ferreira LG, Gomes GG, Marin-Neto JÁ, Junqueira LF. Implantable cardioverter-defibrillators for treatment of sustained ventricular arrhythmias in patients with Chagas’ heart disease: comparison with a control group treated with amiodarone alone. Europace : 2014;16(5):674-80. doi: 10.1093/europace/euz012. , 2020. Muratore CA, Batista Sa LA, Chiale PA, Eloy R, Tentori MC, Escudero J, et al. Implantable cardioverter defibrillators and Chagas’ disease: results of the ICD Registry Latin America. Europace. 2009;11(2):164-8. doi: 10.1093/europace/eun325. Isso reforça a ideia de que um protocolo de ATP bem estabelecido é essencial para possibilitar a restauração do ritmo cardíaco sem choques evitáveis, especialmente quando se considera que a maioria dos pacientes com CCDC apresentam alta prevalência de episódio de tempestade elétrica. 2121. Ribeiro Cury Pavao ML, Arfelli E, Scorzoni-Filho A, Pavao RB, Pazin-Filho A, et al. Electrical Storm in Chagas Cardiomyopathy: Clinical Predictors, Outcome, and Arrhythmic Characteristics in a Prospective Registry. JACC Clin Electrophysiol. 2020;6(10):1238-45. doi: 10.1016/j.jacep.2020.04.028

Nosso resultado original que identificou uma relação significativa entre o escore de Rassi para mortalidade global e LDF pode sugerir que os pacientes com escore de Rassi elevado são os que realmente precisam realizar o teste de LDF, mas uma definição clara desse ponto requer mais evidências provenientes de um ensaio clínico maior.

É tranquilizador relatar que o acompanhamento do nosso estudo demonstrou que não foram observadas falhas no dispositivo, em conformidade com relatos prévios independentes. Por fim, visto que os pacientes com CCDC que sobrevivem ao risco ameaçador da MSC frequentemente evoluem para insuficiência cardíaca progressiva ou óbito devido a outras complicações clínicas, parece razoável presumir que, mesmo com o aumento da fibrose e da disfunção do VE, os CDIs podem preservar a sua capacidade de prevenir MSC.

Nosso estudo apresenta algumas limitações. Em primeiro lugar, embora seja uma das maiores disponíveis, a nossa amostra é proveniente de um único centro. Além disso, as alterações no protocolo do teste de LDF de acordo com as inerentes melhorias técnicas e avanços no conhecimento certamente influenciaram nossos resultados, mas isso não pode ser controlado, devido a questões éticas. Por fim, não podemos traduzir nossos resultados para pacientes com CCDC que podem receber um CDI para prevenção primária.

Conclusões

Nossos dados indicam que o teste de LDF de rotina pode não ser necessário para pacientes com cardiomiopatia de doença de Chagas que receberam CDI para prevenção secundária. LDFs elevados parecem ser incomuns e podem estar relacionados a um escore de Rassi elevado. TV responsiva a ATP é a forma mais comum de AV, e a maioria dos eventos de FV são tratados adequadamente com um choque. Além disso, considerando as limitações de recursos em países onde a CCDC é endêmica, é provavelmente mais custo-efetivo não realizar o teste de LDF.

Referências

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  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
  • Fontes de financiamento: O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2021
  • Revisado
    16 Maio 2022
  • Aceito
    15 Jun 2022
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