Open-access Dispositivos Cardíacos Eletrônicos Implantáveis em Chagásicos e Não-Chagásicos: Um Olhar Crítico sobre o Prognóstico

Palavras-chave Doença de Chagas; Marca-Passo Artificial; Terapia de Ressincronização Cardíaca; Cardiomiopatia Dilatada

A doença de Chagas tem como uma de suas principais complicações o acometimento do sistema cardiovascular, causando lesão crônica ao miocárdio e ao sistema de condução intracardíaco, além de arritmias e morte súbita; ela foi descrita pela primeira vez em 1909 e continua sendo um desafio de saúde na América do Sul acometendo cerca de 8 milhões de pessoas, contudo não está mais confinada ao nosso território, com casos emergindo nos EUA, Europa, Canadá, Austrália e Japão.1,2 Quando se compara a cardiomiopatia chagásica (CCh) com outras etiologias de cardiomiopatia dilatada, os dados revelam um prognóstico mais reservado e maior morbidade e mortalidade dos pacientes afetados.2,3

No Brasil, onde a doença de Chagas ainda representa um problema de saúde pública relevante, muitos pacientes com CCh são submetidos ao implante de dispositivos eletrônicos cardíacos, como marca-passos (MP) e ressincronizadores cardíacos (TRC).4 A presença de cicatrizes miocárdicas e o envolvimento do sistema de condução são características bem descritas dessa cardiopatia, justificando o implante de dispositivos como o MP para controle de bradiarritmias ou o TRC para insuficiência cardíaca avançada. Apesar do avanço no tratamento dessas condições, existem lacunas sobre o impacto a longo prazo desses dispositivos em pacientes chagásicos versus não chagásicos.5,6

Historicamente, os pacientes com CCh apresentam pior prognóstico em comparação a outras cardiomiopatias dilatadas. Estudos anteriores associaram a CCh a uma maior mortalidade devido à progressão da insuficiência cardíaca, arritmias graves e morte súbita cardíaca (responsável por 55 a 65% das mortes nesses pacientes).5,79 No entanto, recentemente, um estudo de coorte1012 apresentou dados que desafiam o paradigma vigente, mostrando que a presença de doença de Chagas (23,4%) não foi um fator preditivo de maior mortalidade (HR: 1,14, IC: 95%, 0,86-1,51, p=0,365) ou hospitalizações (HR: 0,79, IC: 95%, 0,61-1,04, p=0,09).1

Fatores que podem explicar os resultados

Uma possível explicação para a ausência de diferença significativa no prognóstico entre pacientes chagásicos e não chagásicos pode estar relacionada à melhoria na gestão clínica e na estruturação dos cuidados de saúde para essa população ao longo dos últimos anos.6,11 O estudo foi conduzido em um centro terciário de referência, com provável acesso à tecnologia de ponta e acompanhamento especializado.1 Programas de seguimento ambulatorial especializado e adesão aos tratamentos recomendados podem ter reduzido as disparidades de desfechos entre os dois grupos.11

Além disso, o estudo analisou dados de pacientes ao longo de três eras diferentes, o que permitiu a avaliação de possíveis mudanças ao longo do tempo.1 O fato de não haver diferenças de mortalidade entre chagásicos e não chagásicos em cada uma dessas eras reforça a ideia de que o progresso no tratamento, tanto clínico quanto cirúrgico, pode ter diluído o impacto prognóstico adverso previamente atribuído à CCh.1,12

Outro ponto a ser considerado é o perfil dos pacientes incluídos, embora a idade média dos pacientes chagásicos tenha sido inferior à dos não chagásicos no momento do implante (65 vs. 69 anos, respectivamente), a mortalidade ajustada por idade não mostrou diferença significativa.1 Esse achado sugere que o manejo terapêutico adequado, independentemente da etiologia subjacente da cardiopatia, pode ser um fator de maior influência sobre os desfechos do que a própria etiologia em si.1

Limitações e perspectivas futuras

Esse contraste entre os trabalhos pode ser explicado por diferentes desenhos de estudo, populações investigadas e melhorias nos cuidados ao longo do tempo, principalmente com relação à terapia medicamentosa de insuficiência cardíaca.1,8 Estudos realizados em contextos de menor acesso a cuidados de saúde especializados ou em fases anteriores da evolução tecnológica dos dispositivos cardíacos podem ter mostrado desfechos mais adversos.7,9 No estudo de Vasconcelos et al.1 é notável que uma pequena proporção de pacientes chagásicos recebeu dispositivos de ressincronização (3,3%), enquanto essa proporção foi muito maior entre os não chagásicos (18,1%), o que pode refletir uma menor indicação de TRC para chagásicos devido a fatores como menor resposta à terapia de ressincronização.1,4

A alta incidência de arritmias ventriculares e morte súbita são características distintivas da CCh, como relatado por Vasconcelos et al., que observaram pior evolução clínica em pacientes chagásicos com MP.1 Da mesma forma, a insuficiência cardíaca avançada, que responde por uma grande parcela dos óbitos em pacientes com CCh, é outro fator que frequentemente piora o prognóstico em comparação a outras cardiomiopatias dilatadas.3,5 Além disso, Martinelli Filho et al. mostrou que pacientes com CCh submetidos a TRC têm pior prognóstico em comparação aos pacientes tratados com TRC com cardiomiopatia dilatada por outras causas; este é um estudo importante com a maior série publicada descrevendo pacientes com CCh tratados com TRC.12

A crítica deve existir a respeito da existência de limitações que podem influenciar nos resultados, como a qualidade dos dados registrados nos prontuários eletrônicos (o que pode não capturar completamente as nuances clínicas de cada caso), terapia medicamentosa utilizada, a quantidade de fibrose correlacionada à região onde o eletrodo do ventrículo esquerdo está posicionado, e adesão ao tratamento pelos pacientes.1,12 Outra limitação relevante foi a exclusão dos pacientes com cardiodesfibrilador implantável isolado, dispositivo frequentemente implantado em pacientes com maior risco de arritmias graves e morte súbita. Embora essa exclusão tenha sido feita para reduzir vieses, ela também limita a generalização dos resultados para a população total de pacientes com dispositivos eletrônicos cardíacos implantáveis.1,6,1012

De toda forma, esses achados são encorajadores e reforçam a importância de uma gestão clínica eficiente, que pode mitigar as diferenças prognósticas associadas à etiologia das cardiomiopatias.7,11 Contudo, é crucial continuar investigando essa população em diferentes contextos e com métodos prospectivos com maior detalhamento das características clínicas, laboratoriais e terapêuticas das populações estudadas para validar esses achados e, eventualmente, redefinir o manejo desses pacientes.13

  • Minieditorial referente ao artigo: Prognóstico de Pacientes Chagásicos e não Chagásicos Submetidos a Implante de Marca-passo e Ressincronizador Cardíaco em Centro Terciário

Referências

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    » https://doi.org/10.5603/CJ.a2020.0038

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2024
  • Revisado
    02 Out 2024
  • Aceito
    02 Out 2024
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