RESUMO
Estudos com impacto de desastres naturais sobre a fauna são raros na literatura científica. Considerando Lontra longicaudis (Olfers, 1818), informações publicadas não foram encontradas. O presente estudo buscou determinar se os deslizamentos de terra ocorridos em março de 2011 em parte das montanhas da Serra da Prata (Paraná, Brasil) afetaram de alguma forma a ocorrência da Lontra Neotropical no local impactado. Com esse propósito, a área estudada compreendeu um rio afetado (Rio Santa Cruz - RSC) da face leste dessa serra que foi comparado com outro não afetado (Rio das Pombas - RP), localizado na mesma face da serra e com características semelhantes às originais do RSC. A área de estudo está situada no Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange (PNSHL). Foram realizadas sete campanhas a partir do limite altitudinal do PNSHL (60 m s.n.m) para montante entre agosto de 2012 e julho de 2013. As campanhas consistiram de busca ativa por vestígios (fezes, pegadas, arranhados) e tocas de lontras ao longo de 3 km de margens e leito. Registros de outros mamíferos também foram observados. Cada evidência foi anotada em caderneta de campo, fotografada e georreferenciada. As tocas foram monitoradas ao longo das campanhas. Considerando as lontras, foram registrados 102 vestígios (11 arranhados, 11 pegadas e 80 fezes) e 17 tocas no rio não afetado (RP); e o rio afetado (RSC) apresentou apenas quatro vestígios (três pegadas, uma amostra fecal) e uma toca. Registros de outros mamíferos denotaram a presença de oito táxons no RP e 14 táxons no RSC. As diferenças conspícuas entre a quantidade de vestígios da presença das lontras indicam que o desastre natural afetou a população de lontras do RSC e mesmo dois anos após o evento as lontras retornaram apenas discretamente ao rio afetado. Por outro lado, outras espécies de mamíferos como Cuniculus paca (Linnaeus, 1758), reocuparam as margens abundantemente.
PALAVRAS-CHAVE Deslizamento de terra; Lutrinae; mamífero; Mata Atlântica; Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange
ABSTRACT
Studies about natural disasters impact on fauna are rare in the scientific literature. Concerning Lontra longicaudis (Olfers, 1818), published data could not be found. This study aimed to determine whether the landslides occurred in March 2011 in part of the slopes of Serra da Prata (Paraná, Brazil) affected the occurrence of the Neotropical Otter in the impacted area. With this purpose, the study area comprehended an affected river (Rio Santa Cruz - RSC), on the east face of those mountains that was compared to another one, on the same face and with similar original features, but not affected by the natural disaster (Rio das Pombas - RP). The study area is located within the boundaries of a conservation unit (Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange, PNSHL). Seven field campaigns from the altitudinal limit of PNSHL (60 m a.s.l.) towards upstream, were conducted between August 2012 and July 2013. Campaigns consisted of an active search for evidence (scats, footprints, scratches) and otter dens along 3 km of river banks. Other mammal records were also registered. Each evidence was noted down on a field book, photographed and georeferenced. Dens were monitored along field campaigns. Concerning otters, 102 vestiges (11 scratches, 11 footprints and 80 scats) and 17 dens were recorded in the not affected river (RP); and the affected river (RSC) presented only four vestiges (three footprints, one scat) and one den. Other mammal records denoted the presence of eight taxa at RP and 14 at RSC. The conspicuous differences in the amount of evidences of otter presence indicate that the natural disaster affected the otter population in RSC river and that even more than two years later otters had only discreetly come back. On the other hand, other mammal species, such as Cuniculus paca (Linnaeus, 1758) reoccupied the river banks abundantly.
KEYWORDS Atlantic Forest; landslides; Lutrinae; mammals; Saint-Hilaire/Lange National Park
A Lontra Neotropical, Lontra longicaudis (Olfers, 1818), é um mamífero semiaquático, e, portanto, depende do ambiente ribeirinho para sua sobrevivência (Quadros, 2009; Rheingantz & Trinca, 2015). Para o seu refúgio e reprodução faz uso de tocas nas margens dos corpos d’água, as quais podem ser de origem natural, como cavidades em barrancos, sob raízes de árvores e rochas sobrepostas ou estruturas artificiais, como pontes e manilhas (Pardini & Trajano, 1999; Quadros, 2009). Sua dieta é composta principalmente por peixes e crustáceos cuja disponibilidade também está relacionada ao ambiente aquático (Colares & Waldemarin, 2000; Quadros & Monteiro-Filho, 2001; Sousa et al., 2013).
O rol de impactos sobre a Lontra Neotropical é amplo e quase sempre de origem antrópica (Larivière, 1999; Quadros, 2009), como a caça por pele e por conflito com pescadores e piscicultores, emalhe em redes de pesca, atropelamentos, zoonoses, redução do alimento disponível devido à pesca predatória, bioacúmulo de metais pesados, fragmentação do ambiente aquático pela construção de barragens e degradação da mata ciliar (Uchôa et al., 2004; Josef et al., 2007; Quadros, 2009; ICMBIO, 2010; Quadros, 2012; Quintela et al., 2012; Ramos-Rosas et al., 2013; Castro et al., 2014; Gómez et al., 2014; Rheingantz & Trinca, 2015).
Considerando o status de ameaça, L. longicaudis é classificada em escala global como Quase Ameaçada (NT) pela IUCN (Rheingantz & Trinca, 2015), não consta na Lista Brasileira de Espécies Ameaçadas de Extinção (Brasil, 2014), porém também é classificada como Quase Ameaçada (NT) na Lista Vermelha dos Mamíferos Ameaçados do Estado do Paraná (Paraná, 2010), podendo passar para uma categoria de ameaça, caso não sejam efetivados os planos de ação para a sua conservação (Quadros, 2009; ICMBIO, 2010).
Dentre os impactos ao meio ambiente de origem não antrópica, os desastres naturais são os mais estudados, entretanto, a maioria dos estudos é direcionada à flora, pois em geral o impacto positivo ou negativo sobre a vegetação é mais evidente (e.g. Mark et al., 1964; Beatty, 1988; Fetcher et al., 1996; Kessler, 1999). Diferente do observado para a fauna, onde os efeitos nem sempre são tão perceptíveis, tornando esses estudos escassos na literatura.
Há situações em que espécies de animais são beneficiadas, como em Schuster & Highland (2003) que relatam o surgimento de novos locais de refúgio e reprodução para peixes após deslizamentos de terra; ou prejudicadas, como mudanças físico-químicas nos corpos d’agua que interferem no desenvolvimento da microfauna (Schuster & Highland, 2003) e distúrbio no desenvolvimento da população de pequenos mamíferos após um tornado como identificado por Hopton et al. (2009).
Não foram encontrados na literatura estudos relacionados aos efeitos de desastres naturais sobre as lontras. Porém, levando em consideração as características biológicas da espécie e sua íntima relação com ambiente ribeirinho, a hipótese desse estudo é de que o impacto de deslizamentos de terra que afetam corpos d’água habitados pelas lontras é negativo para a espécie, posto que descaracterizam aspectos físico-químicos do ambiente afetando possivelmente a disponibilidade de alimento e de locais de refúgio e reprodução.
Nesse sentido, objetiva-se investigar se houve impacto sobre a ocorrência e o habitat de L. longicaudis em um rio afetado por deslizamentos de terra ocorridos no litoral do estado do Paraná.
MATERIAL E MÉTODOS
Área de estudo. O litoral do Paraná, originalmente, era coberto pela Floresta Ombrófila Densa em suas diferentes fitofisionomias. Atualmente, um dos poucos e maiores remanescentes da Floresta Atlântica stricto senso, está situado na Serra da Prata, dentro dos limites do Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange - PNSHL (25°33’S - 25°51’S e 48°32’W - 48°42’W). Em março de 2011 ocorreu nessa área uma sequência de deslizamentos de terra que se concentrou nos taludes superiores das vertentes norte e leste da Serra da Prata, em encostas acima dos 1000 m s.n.m. (Fig.1). O evento ocorreu devido à saturação pluviométrica acumulada de vários dias, cerca de 500 mm no mês (Geoplanejamento, 2011). Além do solo, os deslizamentos também carregaram expressiva quantidade de rochas, árvores e infraestrutura das propriedades rurais, principalmente nas Bacias do Rio Jacareí (vertente norte) e do Rio Santa Cruz (vertente leste) (Geoplanejamento, 2011). Para o presente estudo foram selecionados dois rios da vertente leste da Serra da Pasta: o Rio Santa Cruz, localizado no centro da área afetada pelos deslizamentos de terra e o Rio das Pombas, situado fora da região atingida pelo desastre natural e por isso utilizado como controle. A distância aproximada entre os leitos desses dois rios é de 7 km (Fig. 1).
A: localização geográfica do Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange (PNSHL). B: contorno branco, limites do PNSHL; retângulo pontilhado: área afetada pelos deslizamentos de terra em março de 2011 (projetada na imagem C); triângulos: localização das áreas de estudo (Rio Santa Cruz, área afetada e Rio das Pombas, área controle). C: imagem de satélite dos deslizamentos de terra no PNSHL (destaques em tonalidade clara); seta: leito do Rio Santa Cruz.
A área amostral em cada rio foi de 3.000 m percorridos sobre o leito e margens. O gradiente de altitude variou de ~ 60 m s.n.m. a ~ 400 m s.n.m. Com o intuito de facilitar a descrição e localização de aspectos relevantes nas áreas de estudo, as mesmas foram divididas em 30 trechos de 100 m.
O Rio Santa Cruz (afetado), segundo relatos dos analistas ambientais do PNSHL, possuía antes do evento, um ambiente bem preservado, mata ciliar com dossel denso que sombreava parte do leito, formações rochosas nas margens, barrancos elevados e intercalação entre fluxo lótico e semilótico (características presentes na área controle, Rio das Pombas) (Fig. 2). A visualização de indivíduos de lontra no Rio Santa Cruz antes de 2011 foi relatada pelos técnicos da CAB (empresa de saneamento básico do Município de Paranaguá) que operam a represa de captação de água existente nesse rio (trechos 14 e 15).
Rio Santa Cruz antes dos deslizamentos de terra. Ao fundo vê-se a represa de captação de água. Fotografia da vistoria realizada pelos analistas ambientais do Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange em abril de 2010, Serra da Prata, Paraná, Brasil.
Com os deslizamentos, o leito e as margens do Rio Santa Cruz foram abruptamente descaracterizados, houve aprofundamento, alargamento e bifurcação do leito em várias regiões. As margens se tornaram barrancos altos de sedimento inconsolidado e instável, com seixos, matacões, terra, areia e troncos de árvores, que estão, portanto, suscetíveis a novos desmoronamentos. Ocorreu também severa perda da mata ciliar que deixou o rio totalmente exposto (Fig. 3).
Rio Santa Cruz após os deslizamentos de terra, fotografia capturada pela equipe de campo em outubro de 2012, Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange, Serra da Prata, Paraná, Brasil. Círculo: localização de uma pessoa para noção de escala ~ 1,80 m.
O Rio das Pombas (controle), com bom estado de conservação, possui características típicas de um rio de cabeceira da Floresta Atlântica: leito e margens rochosas, encaixados no relevo acidentado, quase sempre totalmente cobertos pelo dossel da floresta, água cristalina com fluxo lótico e presença de quedas d’água e semilótico com poços e remansos. Características estas compatíveis com as dos habitats e microhabitats ocupados por mamíferos semiaquáticos como a lontra. Na porção estudada do Rio das Pombas, entre os trechos 13 e 14, há quedas d’água em sequência que somam ~ 65 m de altura.
Coleta de dados. Foram realizadas sete campanhas entre agosto de 2012 e julho de 2013, em cada campanha uma equipe de no mínimo quatro integrantes percorreu as margens e leito de cada rio no sentido jusante-montante realizando busca ativa por vestígios (pegadas, fezes e arranhados) e tocas, que confirmassem a presença da lontra ao longo da área de estudo. No Rio das Pombas os trechos 13 e 14 não puderam ser percorridos devido à presença das cachoeiras e acentuado declive. Igualmente, no Rio Santa Cruz dois trechos (14 e 15) também não foram amostrados por corresponderem à represa de captação d’água.
Cada campanha teve a duração de quatro dias, sendo dois dias em cada rio realizando um esforço de ~ 8 horas/dia. Os vestígios encontrados foram fotografados, georreferenciados e anotados em caderneta de campo. Foram consideradas tocas, as formações naturais em barrancos e rochas que tivessem vestígios associados à lontra, em conjunto com locais de terra batida que caracterizam a permanência do espécime no local. As tocas foram registradas e monitoradas em todas as campanhas.
Adicionalmente, para eliminar a possibilidade de um falso negativo da ocorrência das lontras no ambiente ribeirinho, vestígios, carcaças e visualizações de outras espécies de mamíferos, utilizando o mesmo método, também foram registrados. Dessa forma, esses registros aqui apresentados validam o método utilizado também para registro da lontra. O ordenamento taxonômico utilizado segue o proposto por Reis et al. (2011).
RESULTADOS
Vestígios de lontras. Na área controle (Rio das Pombas) foram registrados 102 vestígios, sendo 11 pegadas, 11 arranhados e 80 fezes. Com uma média de 15 vestígios por campanha, a 1ª e 6ª campanhas tiveram o maior número de registros, 35 e 34 respectivamente e na 4ª e 5ª campanhas foram registrados o menor número, três em cada (Tab. I). A quantidade de vestígios encontrados à montante das cachoeiras (trechos 15 a 30) foi menor (22.5% do total), 23 fezes e nenhum registro de pegada ou arranhado. Todos os outros 79 vestígios (77.5%) foram registrados à jusante das quedas d’água (trechos 1 a 12) (Fig. 4).
Na área afetada pelos deslizamentos (Rio Santa Cruz) foram registrados apenas quatro vestígios, sendo duas pegadas e uma amostra fecal na 5ª campanha e uma pegada na 6ª (Tab. I).
Relação entre o tipo de vestígio de lontra e as quantidades registradas em cada campanha realizada no Rio das Pombas (controle) e no Rio Santa Cruz (afetado), Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange, Serra da Prata, Paraná, Brasil.
Tocas de lontra. Na área controle (Rio das Pombas) foram registradas 17 tocas ao longo de toda a área de estudo, sendo 13 à jusante das cachoeiras (trechos 1 a 12) e apenas quatro à montante (trechos 15 a 30) (Fig. 4), a estrutura das tocas se mostrou bastante heterogênea com tamanhos e formações variadas, como em cavidades naturais nos barrancos ou formadas por cavidades entre rochas presentes nas margens do rio. A utilização das tocas foi bastante evidente: foram registradas nelas 34 fezes (correspondendo a 42,5%), nove arranhados (81,8%) e nove pegadas (81,8%). Das 26 fezes registradas na 1ª campanha (agosto de 2012), 12 (46%) estavam dentro de uma única toca (Toca 05) evidenciando a importância desta para as lontras no Rio das Pombas. Foi verificado também o compartilhamento de tocas com duas outras espécies de mamíferos, o morcego Carollia perspicillata (Linnaeus, 1758) por registro visual e a paca, Cuniculus paca (Linnaeus, 1758), por meio de pegadas e registro visual.
Na área afetada pelos deslizamentos (Rio Santa Cruz) foi registrada uma única toca presente na margem de um lajeado (Fig. 4). A mesma estava associada a pegadas, além do odor característico de lontra. Nessa toca foi verificado o compartilhamento com Chironectes minimus (Zimmermann, 1780) por meio de pegadas.
Imagem de satélite dos rios estudados entre agosto de 2012 e julho de 2013, Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange, Serra da Prata, Paraná, Brasil. A, Rio das Pombas (controle); B, Rio Santa Cruz (afetado). Pontos Pretos indicam o intervalo dos 30 trechos de 100 m ao longo dos rios estudados; Círculo Pontilhado, sequência de quedas d’água no Rio das Pombas e barragem de captação d’agua no Rio Santa Cruz; Triângulos, localização das tocas e Quadrados, localização dos vestígios (pegadas e fezes) das lontras no Rio Santa Cruz (para evitar a excessiva sobreposição de pontos na imagem do Rio das Pombas foram indicadas apenas as tocas das lontras).
Outros mamíferos. Considerando os dois rios estudados foram efetuados 109 registros distribuídos em 18 táxons distintos. Apenas quatro táxons se repetiram nas duas áreas (C. paca, Dasyprocta azarae Lichtenstein, 1823 e os gêneros Leopardus e Mazama). Os registros por pegadas foram os mais frequentes (85.3%). O táxon mais registrado foi C. paca (34.9%), sendo que do total de 38 registros dessa espécie apenas dois ocorreram no Rio das Pombas (controle) e todos os demais no Rio Santa Cruz (afetado). No Rio das Pombas foram registrados oito táxons (44.4%) e 13.8% dos registros, enquanto que para o Rio Santa Cruz foram 14 táxons (77.7%) e 86.2% dos registros (Tab. II).
Relação das outras espécies de mamíferos registrados a partir de pegadas (P), fezes (F), carcaças (C) e visualizações (V), entre agosto de 2012 e julho de 2013, na área controle, Rio das Pombas (RP) e na área afetada pelos deslizamentos, Rio Santa Cruz (RSC), Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange, Serra da Prata, Paraná, Brasil.
DISCUSSÃO
Vestígios e tocas. Em estudos com lontras a utilização de vestígios e tocas para confirmar a sua ocorrência em determinado local é o método mais comum (e.g. Colares & Waldemarin, 2000; Quadros & Monteiro-Filho, 2000, 2001, 2002; Kasper et al., 2004; Quintela et al., 2008; Sousa et al., 2013) pois são raramente observadas em campo. A presença de vestígios e tocas das lontras está usualmente distribuída ao longo das áreas de vida, que em ambientes ripários como o estudado aqui, apresentam certa linearidade, pois seguem os cursos dos rios encaixados nos vales (Larivière, 1999). Outra particularidade observada no ambiente do Rio das Pombas (controle) é o contraste entre a menor quantidade de vestígios e tocas à montante das cachoeiras e a maior à jusante, levando em consideração que as características do ambiente são semelhantes em toda a área amostral. Isso pode caracterizar as quedas d’água como uma barreira geográfica natural ao deslocamento das lontras para montante, tendo efeito semelhante ao de barragens de origem antrópica como observado por Quadros (2012) em uma barragem de uma usina hidrelétrica.
Como destacou Putman (1984), as fezes são um importante meio utilizado pelos mamíferos para a marcação de território. Apesar de não ser possível estimar a população da espécie no Rio das Pombas (controle) sem um método específico para este objetivo, como o uso do DNA presente nas fezes (Trinca et al., 2007, 2013), a ocorrência da lontra nesse rio foi confirmada por meio de expressiva quantidade de amostras fecais, evidenciando que este possui características ambientais favoráveis à ocupação pela espécie.
Por outro lado, o baixo registro de pegadas e arranhados de lontra no Rio das Pombas (10.8% cada em relação ao total de vestígios) deve estar mais relacionado à falta de locais propícios para impressão desse tipo de vestígio (argila e bancos de areia) do que com a baixa densidade da espécie. Ressalta-se que nesse rio as margens são rochosas, íngremes e os trechos de argila e areia encontram-se usualmente cobertos pela serapilheira da mata ciliar o que dificulta a impressão das patas no substrato (Becker & Dalponte, 2013).
No Rio Santa Cruz (afetado), a acentuada escassez de registros de lontra em comparação com a área controle (Rio das Pombas), evidencia que a área afetada pelos deslizamentos de terra abriga ou é frequentada por um número expressivamente menor de indivíduos. Ainda nesse sentido e considerando que (a) não houve registro de lontras no Rio Santa Cruz nas quatro primeiras campanhas, o que corresponde aos seis primeiros meses de levantamento de dados primários; (b) os apenas quatro vestígios de lontra encontrados no Rio Santa Cruz foram registrados em apenas duas das sete campanhas; e (c) essas duas campanhas positivas para lontras foram consecutivas, isso evidencia que os vestígios encontrados devem ser de indivíduos transeuntes, ou ainda, em dispersão buscando nichos vagos para estabelecer suas áreas de vida.
Outros mamíferos. O elevado número de registros de outras espécies de mamíferos (que não a lontra) no Rio Santa Cruz em comparação com a área controle evidencia a presença dessas espécies na área afetada 18 a 30 meses após os deslizamentos de terra (quando ocorreu o levantamento em campo). Ou seja, mesmo que tenham sido afugentadas de imediato, transcorrido esse tempo, mostram evidências de terem recolonizado a área afetada.
Espécies como Cerdocyon thous (Linnaeus, 1766) e os gêneros Mazama e Leopardus são menos afetados pela descaracterização do rio, pois suas áreas de vida são mais amplas do que o ambiente ribeirinho, e pode tê-los refugiado durante os deslizamentos de terra, possibilitando assim o retorno a esse local mais rapidamente. O registro de Sylvilagus brasiliensis (Linnaeus, 1758), apesar de único, e de Puma concolor (Linnaeus, 1771) mostra que espécies sensíveis à mudança do habitat e ameaçadas de extinção, também retornaram a área afetada (Reis et al., 2006).
Entretanto, para comparação com as lontras, destaca-se C. paca que, apesar de ser terrestre, possui íntima relação com corpos d’água (Oliveira & Bonvicino, 2011) e foi a espécie mais registrada no Rio Santa Cruz. Acredita-se que a profusão de registros de paca, entre outros mamíferos, na areia das margens do rio afetado ao longo de todo o trabalho de campo, valida e ratifica a escassez de registros da lontra no mesmo ambiente pelo período estudado. Neste sentido, depreende-se que o período necessário para a população de lontras se reestabelecer na área afetada pelos deslizamentos de terra seja maior do que o das outras espécies de mamíferos registradas, dada a sua dependência do ambiente aquático.
Conclusões. Apesar do presente estudo não ter usado como meio comparativo o mesmo rio, antes e depois do desastre natural, a relação feita a partir de um rio próximo e com características semelhantes às originais do impactado, mostrou que a população de lontras do Rio Santa Cruz foi severamente afetada pelos deslizamentos de terra. Mesmo decorridos dois anos e meio do desastre natural, as lontras ainda não se restabeleceram na área afetada, embora as primeiras evidências de um retorno tenham sido registradas.
As possíveis razões para o impacto negativo sobre as lontras são a provável escassez de alimento após o carreamento de grande quantidade de sedimento e vegetação rio abaixo com o aprofundamento do leito. Outro fator relevante é a destruição e recuo das margens que passaram a estar distantes da água e descaracterizadas em relação à fisionomia original, dificultando a ocupação de tocas em meio a rochas e raízes próximas ao leito.
Sendo assim, para compreensão do processo de recolonização das lontras na área afetada é fundamental estabelecer um protocolo de monitoramento a longo prazo que inclua também o levantamento de espécies-presa, especialemente peixes e crustáceos.
Agradecimentos
À equipe do Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange (PNSHL), pelo apoio logístico e pela parceria nas expedições a campo. A todos os voluntários deste projeto (PROLONTRA). Ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio - DIBIO) pelo financiamento do projeto. Ao Programa de Pós-Graduação em Zoologia e Setor litoral da UFPR pelo apoio e uso das instalações. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa concedida. Aos revisores pelas contribuições. Autorizações de coleta SISBIO n° 34107/1 e IAP n° 407.12
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2017
Histórico
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Recebido
03 Maio 2017 -
Aceito
06 Out 2017