Resumos
Ensaio em que se defende a necessidade de o pesquisador estar atento para as diferenças entre a indagação e a convicção. Ciência e ideologia situam-se em domínios distintos - o da indagação e o da convicção - o da produção do conhecimento e o da ação política. No âmbito das Ciências Sociais e Humanas, as fronteiras entre esses dois planos são frequentemente problematizadas, seja para negar, seja para afirmar a sua pertinência. Admitindo as dificuldades de traçar essas fronteiras, o ensaio defende a procedência de se procurar preservar o distanciamento entre os dois âmbitos. No campo científico, a curiosidade e a indagação, o escrutínio racional da realidade são os móveis legítimos do ofício. Após indicar algumas questões derivadas do trânsito entre ideologia e ciência na pesquisa em educação, finaliza indicando problemas que decorrem das políticas acadêmicas
ciência; pesquisa educacional; ideologia
This essay defends the researcher's need to be attentive to the differences between inquiry and conviction. Science and ideology are situated in different domains - those of inquiry (production of knowledge) and those of conviction (political action). In the Social and Human Sciences the frontiers between these two planes are frequently questioned, either by denying them or by affirming them. Assuming the difficulty in drawing these frontiers, this essay defends the need to preserve the distance between the two domains. In the scientific field, curiosity and inquiry - the rational scrutiny of reality - are the researcher's legitimate motive. After indicating some questions that result from the transit between ideology and science in educational research, the essay ends by indicating problems that derive from present academic policies
science; educational research; ideology
OUTROS TEMAS
Indagação e convicção: fronteiras entre a ciência e a ideologia
Inquiry and conviction: frontiers between science and ideology
Zaia Brandão
Professora do Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro zaiapucrio@gmail.com
RESUMO
Ensaio em que se defende a necessidade de o pesquisador estar atento para as diferenças entre a indagação e a convicção. Ciência e ideologia situam-se em domínios distintos - o da indagação e o da convicção - o da produção do conhecimento e o da ação política. No âmbito das Ciências Sociais e Humanas, as fronteiras entre esses dois planos são frequentemente problematizadas, seja para negar, seja para afirmar a sua pertinência. Admitindo as dificuldades de traçar essas fronteiras, o ensaio defende a procedência de se procurar preservar o distanciamento entre os dois âmbitos. No campo científico, a curiosidade e a indagação, o escrutínio racional da realidade são os móveis legítimos do ofício. Após indicar algumas questões derivadas do trânsito entre ideologia e ciência na pesquisa em educação, finaliza indicando problemas que decorrem das políticas acadêmicas.
Palvras-chave: ciência - pesquisa educacional - ideologia
ABSTRACT
This essay defends the researcher's need to be attentive to the differences between inquiry and conviction. Science and ideology are situated in different domains - those of inquiry (production of knowledge) and those of conviction (political action). In the Social and Human Sciences the frontiers between these two planes are frequently questioned, either by denying them or by affirming them. Assuming the difficulty in drawing these frontiers, this essay defends the need to preserve the distance between the two domains. In the scientific field, curiosity and inquiry - the rational scrutiny of reality - are the researcher's legitimate motive. After indicating some questions that result from the transit between ideology and science in educational research, the essay ends by indicating problems that derive from present academic policies.
Keywords: science - educational research - ideology
Ciência e ideologia situam-se em dois domínios diferentes - o da indagação e o da convicção - com desdobramentos igualmente distintos no plano social: o da produção do conhecimento e o da ação política. No âmbito das Ciências Sociais e Humanas, as fronteiras entre esses dois planos são tênues e frequentemente problematizadas, seja para negar ou para afirmar a sua pertinência. Admitindo as dificuldades de traçar claramente essas fronteiras, defendo, neste ensaio, a procedência de se procurar preservar o distanciamento entre os dois âmbitos.
A ciência situa-se no campo dos ofícios; os agentes responsáveis pela produção de conhecimento passaram por processos institucionalizados de formação, foram submetidos a ritos de passagem - por exemplo, a submissão das pesquisas em nível de pós-graduação a bancas examinadoras compostas por pesquisadores mais experientes, credenciamentos para a progressão na carreira - e sua prática é regulada por uma ética de trabalho.
A ideologia situa-se no campo da ação social, é marcada por experiências, pela condição social e trajetória dos agentes em diferentes campos no espaço social; orienta-se pela ética da convicção e se caracteriza pela não formalidade e pelo seu papel na definição da ação social e política.
Neste texto, focalizarei especificamente a ciência, supondo que, ao definir alguns dos seus parâmetros, delineio os limites dentro dos quais não me parece haver legitimidade para a ingerência ideológica no âmbito da produção do conhecimento acadêmico. Defendo que, no campo científico, a curiosidade e a indagação, e o escrutínio racional da realidade são os móveis legítimos do ofício do pesquisador.
Sem nenhuma pretensão de defender um suposto universo puro por onde circulariam os "cientistas" movidos exclusivamente pelos interesses do conhecimento, assumo, ao contrário, a perspectiva de Pierre Bourdieu (1989), para quem o campo científico é um campo como "outro qualquer". Ou seja, constitui um sistema de relações objetivas entre posições adquiridas, em que se desenvolvem lutas concorrenciais pelo monopólio da "autoridade científica". Reconhecer os interesses por posições, subjacentes ao trabalho de produção do conhecimento, não significa supor que as ações que aí se desenvolvem não estejam submetidas a regras, que essas regras não suponham negociações, e que as negociações se façam sem juízes, com autoridade para avaliar as disputas em campo. O que vale ou não como conhecimento é objeto de avaliação permanente sobre as condições de sua produção. Pressupõe a obediência às normas em vigor acordadas pelos pares, ou seja, às regras do jogo científico. Os resultados do trabalho dos pesquisadores devem ser divulgados periodicamente, em padrões normatizados da linguagem acadêmica, para serem submetidos ao crivo e ao debate entre pares. Estes avaliam a procedência dos princípios e processos que guiaram as investigações, entre os quais:
a definição dos fatos tomados como objeto do conhecimento;
a pertinência da construção de hipóteses de trabalho (teóricas e empíricas);
a justificativa da escolha dos procedimentos e as condições de desenvolvimento da investigação;
a validade e a consistência teórico-empírica das análises e interpretações do pesquisador no contexto da produção da área;
a exposição rigorosa e pública de todo o processo de investigação, e dos seus resultados.
As regras que demarcam o funcionamento do jogo científico fazem, no entanto, parte do fluxo histórico e, consequentemente, sofrem transformações. O campo científico submete à indagação histórica os processos e resultados do trabalho coletivo, em uma clara percepção dos reflexos, sobre o patrimônio científico, da "verdade científica" vista como um processo incessante de avanços e revisões. A ciência gradativamente foi deixando de ser vista como o lugar de produção de um saber definitivo e, diferentemente da perspectiva dominante no início do século passado, ela não se desenvolve em uma perspectiva cumulativa. O próprio "progresso científico" provoca, continuamente, rupturas e redefinições de parâmetros, desestabilizando paradigmas, linguagens e métodos, num fluxo permanente dos resultados de lutas concorrenciais, por posições de autoridade, na definição do modus operandi da "boa ciência".
É no desenrolar do jogo concorrencial no campo das ciências que se definem os limites - sempre precários, porque provisórios - nos quais jogam os habilitados (cientistas) que, por ofício, se dedicam à compreensão e interpretação dos fenômenos que impactam a vida dos homens e a natureza, fundamentados na produção de material de pesquisa pertinente, e em argumentação teórico-empírica consistente para ser submetido ao debate interpares.
Em que pese a instabilidade provocada pelas transformações - do "que" (objeto), do "como" (parâmetros da investigação) e do "por quem" (posição no campo) é produzido o conhecimento validado pelo campo científico -, em todos os tempos vigoram regras pelas quais o jogo se desenvolve, com a participação de jogadores mais ou menos habilitados a propor transgressões ou impor ortodoxias em relação às regras do campo.
A PRECARIEDADE DAS FRONTEIRAS
A consciência da precariedade das fronteiras entre a ciência e a ideologia tem como principal implicação, para o ofício do pesquisador, o exercício da auto-objetivação (Bourdieu, 1989), que possibilita um controle permanente sobre a pertinência das motivações, das escolhas teórico-metodológicas, do problema e objeto sob investigação. Implica assumir que as teorias são sempre hipóteses de trabalho a serem testadas em sua capacidade de angular adequadamente o objeto sobre o qual se formulou uma indagação, cujas respostas não se conhecem, ou cujas interpretações vigentes são postas em questão, e submetidas a novos escrutínios no campo científico.
Nesse sentido, a ordenação do processo obedece a uma sequência, a meu ver, necessária: a definição do problema a investigar e a construção dos aportes teórico metodológicos adequados, ampliados, e/ou revistos em razão das exigências do próprio processo de investigação. Os aportes teórico-metodológicos devem assim se ajustar às condições e aos problemas sob investigação, e não às preferências ou limitações dos pesquisadores. Estão assim descartados os "monismos metodológicos", denunciados por Bourdieu (1989) como frutos da "arrogância da ignorância", e/ou as imposições ideológicas decorrentes dos engajamentos sociopolíticos dos investigadores no espaço social mais amplo.
O problema é sempre uma questão pois, se corresponde a uma real indagação, remete a perguntas para as quais não estão formuladas respostas satisfatórias. Quando o pesquisador sabe de antemão aonde vai ou quer chegar, é provável que não esteja diante de um problema a investigar, e sim de uma resposta a confirmar. Isso se situaria, assim, no âmbito da convicção, da ideologia, e não da indagação e da produção de conhecimento.
Tem sido frequente no campo da educação - dado o volume, complexidade dos problemas a enfrentar - que o desejo de intervenção sobreponha-se ao objetivo da investigação. A recorrência de velhos problemas, muitas vezes sob novas roupagens, fomenta o sentimento de impaciência e urgência, que armadilham as investigações para obter resultados que justifiquem orientações às políticas educacionais, ou que sirvam para amparar profilaxias pedagógicas. Entre os principais problemas e desafios à pesquisa em educação, do meu ponto de vista estão:
a frequente ambiguidade entre ciência e política, pela falta de clareza a respeito das fronteiras entre o conhecimento (indagação) e o desejo (convicção);
a condição de ser um campo multidisciplinar no qual muitos dos seus pesquisadores carecem de formação adequada para articular os conhecimentos derivados dos debates e embates procedentes das áreas afins;
a fragilidade teórico-metodológica, derivada do pouco conhecimento das lógicas específicas ancoradas nas diferentes tradições disciplinares, dificultando o trânsito pelos campos vizinhos para acompanhar os desdobramentos, sobre a pesquisa em educação, dos avanços e revisões dos padrões de trabalho nesses campos;
a valorização do discurso teórico sobrepondo-se ao trabalho de pesquisa como um dos problemas mais frequentes da área, que tem favorecido a entrada dos modismos discursivos e teórico-metodológicos, como por exemplo:
dar a voz aos atores; histórias de vida;
o trabalho com representações sociais, como meras transcrições literais de depoimentos de entrevistados;
a denominação crítica, como suposição ética e garantia de cientificidade;
a "escolha" teórico-instrumental pela arrogância da ignorância.
ALGUNS AGRAVANTES DERIVADOS DAS POLÍTICAS ACADÊMICAS
O princípio da indissociabilidade ensino/pesquisa
A meu ver, nesta premissa está a origem de muitos problemas para ambos os polos: o do ensino e o da pesquisa. É óbvio que o bom professor não pode parar de pesquisar para exercer o seu ofício. Pesquisa, no entanto, no caso dos professores, tem o sentido de permanente investimento no estudo para o aprofundamento e a atualização dos seus conhecimentos para preparar e adequar as estratégias didático-pedagógicas que utilizam às condições de exercício do seu ofício. Pesquisa, no sentido de investigação científica, é tarefa própria de acadêmicos que dispõem de uma inserção peculiar no sistema universitário e nos centros de pesquisas, e dos quais se espera, pelo aporte de recursos públicos investidos em apoio à pesquisa, uma contribuição específica à produção de conhecimentos. Supor o exercício pelos quadros docentes do binômio ensino/pesquisa, imposto pela legislação, tem resultado, com bastante frequência, em arremedos, quer do ensino, quer da pesquisa no mundo universitário.
Proliferação dos cursos de pós-graduação para responder à demanda
O efeito perverso dessa legislação expressa-se na proliferação dos cursos de pós-graduação para responder à demanda de titulação de docentes. O crescimento vertiginoso desses "programas" tem hoje, como contrapartida, o Sistema de Avaliação, da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior - Capes. Na tentativa de normatizar as condições mínimas de reconhecimento científico a um universo de programas, fortemente diferenciados em termos de qualidade, o Sistema Capes vai transformando os pesquisadores de ofício em máquinas de produção - de relatórios, projetos, pareceres, orientações, cursos e pesquisas - que, muitas vezes, sem o gosto nem a capacidade para ensinar, transmutam-se em maus professores.
O mito da originalidade na tese de doutorado
Cabe perguntar qual o significado da procura por originalidade, a qualquer custo, no campo da pesquisa. Fazer ciência seriamente, já há algum tempo, com as honrosas exceções, é tarefa de equipe. O debate e o trabalho com os pares é absolutamente vital para conviver com a avassaladora produção acadêmica (de boa, mediana e má qualidade) presente on-line, interligada mundialmente e adensada pelo cruzamento multidisciplinar a que está sujeita a maioria dos problemas sob investigação, em todos os campos do conhecimento. A aceleração das transformações, em todas as áreas, e as facilidades de trânsito espacial redefiniram drasticamente as relações espaço-tempo, e nos tornaram, a todos, muito mais vulneráveis ao desconhecimento (injustificável) daquilo que os pares têm produzido. Uma revisão bibliográfica, densa e pertinente para a pesquisa, só se produz na continuidade do debate e do estudo coletivo. Contudo, o que lemos, estudamos e debatemos constantemente se torna parte de um habitus profissional, sobre o qual tem sido cada vez mais problemático perscrutar originalidade, mesmo no caso de pesquisadores experientes. Muitos seriam os problemas que se desdobram desse quadro sintético das características e do significado da prática científica. Entre eles, assinalo:
A fragmentação do campo científico como estratégia nas lutas concorrenciais, com a proliferação de subespecialidades, nas quais grupos emergentes ou dissidentes, de áreas mais consolidadas, criam e encontram espaços para ganhar visibilidade.
As revisões bibliográficas individuais orientadas por temáticas amplas, e não com base no problema a investigar, consubstanciando-se em repetições empobrecidas de autores consagrados ou "da moda", e frequentemente eivadas de chavões do senso comum douto.
O uso ideológico de autores e teorias que servem para definir e justificar, a priori, o que se pretende afirmar. Cabe lembrar que as teorias não são verdades, e que as hipóteses de trabalho não podem ser tratadas como convicções a serem reafirmadas ao final da investigação, como ainda ocorre entre nós, com indesejada frequência.
Esses são alguns dos equívocos com os quais a pesquisa da educação tem transgredido as fronteiras que deveriam distanciar a ciência da ideologia.
Recebido em: novembro 2009
Aprovado para publicação em: junho 2010
Este texto, desenvolvido com base na participação da mesa-redonda "Ciência e ideologia", do 14º Congresso brasileiro de sociologia, no Rio de Janeiro, em 2009, obteve apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq - e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro - Faperj.
Referências bibliográficas
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Abr 2011 -
Data do Fascículo
Dez 2010
Histórico
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Recebido
Dez 2009 -
Aceito
Jun 2010