O registro e a documentação pedagógica surgem como desafio para a educação infantil após a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) n. 9.394 (BRASIL, 1996). Essa política nacional estabelece diretrizes que marcam a especificidade dessa etapa da educação básica, entre as quais está a avaliação. O texto da legislação define que o objetivo da avaliação na educação infantil não é a promoção para séries seguintes, ou mesmo a entrada para o ensino fundamental. Tal normativa convoca os profissionais da área a novas estratégias de acompanhamento e registro do desenvolvimento das crianças, em uma perspectiva de avaliação na qual a criança é o centro de sua aprendizagem. Se, por um lado, o registro e a documentação surgiram no contexto avaliativo, por outro, nos anos que seguiram a LDB, ganharam novos contornos. É sobre as muitas vertentes e possibilidades que o registro e a documentação apresentam para o cotidiano da educação infantil que versa o livro Registros na educação infantil - pesquisa e prática pedagógica, organizado por Luciana Ostetto. Trata-se de um convite aos que se interessam pela docência e pela formação, tanto inicial como em trabalho, assumindo o registro e a documentação como narrativa envolvente, a pesquisadora, os profissionais da rede municipal de Niterói e os alunos da Pedagogia da Universidade Federal Fluminense (UFF) revelam a história e os desafios que cercam o registro e a documentação da prática pedagógica da/na educação infantil.
Do projeto gráfico à escolha do material publicado, o livro é de grande qualidade. Sua leitura pode ser indicada tanto para os interessados pelo campo da educação infantil e formação de seus profissionais, como para os que desejam conhecer uma prática de pesquisa-formação que tem como horizonte o “respeito mútuo, a partilha e o cultivo da confiança” (OSTETTO, 2017, p. 11).
Composto por sete capítulos, o livro traz, nas páginas iniciais, a descrição do campo em que a pesquisa-formação foi realizada e os principais conceitos que cercam a documentação do trabalho cotidiano.
O primeiro capítulo, “No tecido da documentação, memória, identidade e beleza”, escrito pela organizadora da obra, apresenta grande densidade. Nele a autora situa o tema em sua trajetória profissional, apontando o ano de 1997 como o primeiro em que desenvolveu um projeto cujo tema tinha como objeto a interface entre a formação inicial de professores exercida nos estágios do curso de Pedagogia e instrumentos da prática pedagógica da educação infantil: planejamento, registro e avaliação. Esse projeto deu origem à primeira pesquisa-formação coordenada por Ostetto em instituições do Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Assim como resgata o tema em sua trajetória profissional, a autora também resgata o tema na produção acadêmica. De acordo com Ostetto, os primeiros trabalhos brasileiros do campo do registro do cotidiano foram realizados por Freire (1983, 1996)1, Warschauer (1993)2 e Magalhães e Marincek (1995)3, que “reconheciam a prática do registro do cotidiano como essencial, tanto para a qualificação do fazer educativo, como para a formação docente” (OSTETTO, 2017, p. 21). No cenário internacional, foi nas propostas educativas da cidade de Reggio Emilia (norte da Itália) que a autora encontrou interlocução para fundamentar sua proposta de pesquisa-formação. Sobre esses dois contextos, Ostetto avalia que, na produção brasileira, o registro da prática cotidiana apontava para a formação continuada dos profissionais e, na produção italiana, a documentação focalizava o protagonismo das crianças.
Para aprofundar seu conhecimento sobre o tema, a autora participou de grupos de estudo em Reggio Emilia em 2013, 2014 e 2017. Foi essa experiência que a levou ao projeto de pesquisa-formação “A dimensão estética da documentação pedagógica: poéticas do processo” (OSTETTO, 2017, p. 23), cujo resultado é a publicação que apresentamos. A pesquisa-formação ocorreu em uma unidade municipal de educação infantil (Umei) da rede de ensino de Niterói/RJ, município onde se situa a UFF, à qual Ostetto encontra-se vinculada no momento. No período da pesquisa-formação (2015 e 2016), a Umei atendia a 157 crianças, de 2 a 5 anos, em turno integral. Como estratégia metodológica, foram realizadas reuniões entre os membros da universidade e a equipe da Umei, além de observações das turmas por uma bolsista de iniciação científica. Ostetto termina o primeiro capítulo apresentando a documentação pedagógica que já era realizada na instituição e que serviu de referência para a pesquisa-formação: blocão, mapa conceitual, relatórios, fotografias e murais. A experiência relatada na obra destaca “o estreitamento de laços entre universidade e educação básica, rompendo fronteiras, encurtando distâncias” (OSTETTO, 2017, p. 27).
No segundo capítulo, “A criança como centro da ação gestora: desafios na Educação Infantil”, Leda Marina e Célia Cláudia Wolf, gestoras da Umei, campo da pesquisa-formação, narram a história da instituição e os desafios da gestão. A unidade faz parte de um plano de expansão da rede de escolas de educação infantil de Niterói: originalmente uma creche comunitária, em 2013, após uma grande reforma no espaço, foi reinaugurada, ampliando seu atendimento para a pré-escola. As autoras descrevem o espaço físico da instituição, que parece atender com conforto ao número de crianças matriculadas: “o ambiente é adequado à idade das crianças e favorece a autonomia e potencializa ‘modos de ser e estar no coletivo educativo’” (OSTETTO, 2017, p. 56). Também apresentam o quadro de profissionais: dois professores formados trabalham em cada turma; a coordenação pedagógica e a direção estão a cargo de profissionais concursados da rede; e há, ainda, equipe de apoio, acompanhamento e gestão administrativa. No artigo as autoras apontam a aproximação com as famílias, a construção da proposta pedagógica e as rotinas como desafios que a gestão enfrenta.
O terceiro capítulo, “Registro e documentação pedagógica como projeto de formação docente”, toma a perspectiva das pedagogas da Umei sobre o processo de pesquisa-formação, objeto do livro. As autoras Lilian Garcia e Krysthinna Abreu reconhecem que “a parceria com a UFF e a presença de uma professora pesquisadora em nossa unidade escolar foram e ainda têm sido fundamentais para investirmos de maneira contínua na formação docente” (OSTETTO, 2017, p. 75), pois, com a pesquisa-formação, foi possível compartilhar
[...] nossas certezas e incertezas, dúvidas, alegrias e angústias, conquistas e aprendizados, falando do lugar de articuladoras do trabalho pedagógico de uma instituição, que se propõe a traçar e concretizar um processo formativo com o grupo de professoras. O foco da formação são os debates que surgem a partir do registro que as professoras fazem de suas práticas. No papel de pedagogas, as autoras do capítulo também registram e documentam o processo, tendo os percursos dos professores como foco. Nesse sentido, se as professoras registram e documentam sua prática, as pedagogas também fazem o mesmo exercício, tornando o registro e a documentação instrumento de trabalho da instituição como um todo, que “qualifica a prática e permite redimensionar o planejamento. (OSTETTO, 2017, p. 88)
Os relatos das experiências vividas em 2016 por um grupo de crianças de 4 a 5 anos compõem o quarto capítulo, “Crianças, natureza e seres desimportantes”, de autoria das professoras Marina Coelho e Suiany Sousa. São apresentados os caminhos de construção de um conjunto de pesquisas e experiências que consistiram no “mergulho em um mundo pouco explorado e observado pelos adultos: os pequenos seres, as coisas ínfimas do chão, a natureza em sua amplitude” (OSTETTO, 2017, p. 91). O texto evidencia o olhar observador das professoras em direção ao que mobilizava o interesse das crianças e a percepção do movimento curioso e exploratório que caracterizavam o movimento do grupo. O potente e mobilizador contato com a natureza e a descoberta das miudezas que habitavam as áreas verdes da escola descortinaram indagações, convites à exploração, que foram fonte de pesquisa coletiva e geraram registros variados. Para desencadear o planejamento foram realizados mapas conceituais, uma das estratégias de registro da instituição. Segundo as autoras, o mapa, tal como é trabalhado na instituição, assemelha-se a uma teia com fios/listas de possibilidades que vão se articulando entre si e oferecem um caminho que pode ser modificado a partir das contribuições das crianças. O registro aparece aqui como força motriz para a construção desses mapas, pois é a partir da escrita do que falam as crianças, das curiosidades e interesses que surgem de seus movimentos, que se refinam olhares e escutas, num diálogo que alimenta a organização do trabalho pedagógico. O registro diário era feito no blocão, no qual textos coletivos eram produzidos e conhecimentos iam sendo sistematizados. As autoras terminam o relato afirmando a necessária mobilização da sensibilidade, de uma escuta e olhar atentos que respeitem a infância e considerem seus interesses e saberes.
No quinto capítulo, “Da escuta das crianças à intencionalidade do planejamento na Educação Infantil”, as professoras Alcione Umbuzeiro e Renata Malafaia relatam as experiências vividas com um grupo de crianças com idades entre 5 e 6 anos. O trabalho desenvolvido partiu da observação do que mobilizava a curiosidade das crianças e teve a escuta sensível como mote principal. A intencionalidade do trabalho, que se evidencia no planejamento, nasce do diálogo com as crianças e nos caminhos que se descortinam a partir daí.
As autoras destacam algumas experiências significativas, como uma situação de início de ano que desencadeou projetos de trabalho e as diversas experiências de encontro com as artes. O estranhamento de uma criança diante da expressão “mãe-coruja” gerou uma série de perguntas sobre seus sentidos. A partir desse assunto foi feito o desenho do mapa conceitual que organiza o projeto de trabalho. A literatura foi o carro-chefe do projeto. As professoras relatam que um livro em especial, A incrível sombra de Jack, de Percival (2013), foi responsável pelo incremento da comunicação entre professora e uma das crianças com síndrome de Down, que se valia das passagens do livro para expressar desejos, sentimentos e ideias. Meio de verbalização e de conhecimento, a literatura foi casa, abrigo e chave de comunicação para o menino. As artes plásticas foram exploradas a partir da aproximação da obra de Van Gogh. Além da literatura e das artes plásticas, a música também teve seu lugar. Foram percursos que se desdobraram em experiências que ligavam música, poesia, artes plásticas, evidenciando assim a presença das artes no cotidiano das crianças em consonância com o projeto político pedagógico da escola para o ano em pauta. O registro é apresentado pelas autoras como elemento necessário para o acompanhamento da prática, pois, ao narrar o vivido, é possível refletir e melhor compreender os caminhos trilhados. Nessa experiência, também foram produzidos áudio-registros, captando assim as falas em suas autenticidades e entonações, revelando sentidos e emoções.
A professora Angelica Costa da Silva Soares apresenta no sexto capítulo, “Ao infinito e além: desafios e experimentações de um grupo na Educação Infantil”, as experiências de um grupo de 15 crianças de cinco anos. A autora inicia destacando o trabalho de construção de laços de confiança com o grupo e a importância do diálogo como norteadores de seu trabalho. O grupo, que havia passado por sucessivas trocas de professoras, estava inseguro e fragilizado. Tensões se expressavam, por vezes, em agressões físicas. Foi preciso de início cuidar da construção do sentimento de pertencer a um grupo. A literatura entrou como provocadora de interlocução entre todos. Professora e crianças produziram uma lista de atividades que poderiam ser feitas sempre que estivessem sentindo raiva, tristeza, medo ou ciúme. Muitas das atividades preferidas situavam-se no campo das artes. Assim, os espaços da sala foram estruturados de modo a construir um “cantinho da arte” com diversos materiais plásticos, dentre outros espaços de convívio e trabalho. Foi criado um lema, “brincar e se divertir”, que regulava o grupo e, assim, construía-se um grupo. O espaço foi concebido como um outro educador, implicando um ambiente construído nas relações cotidianas, capaz de abrigar características de cada um, construindo identidades e desenvolvendo autonomia ao mesmo tempo que garante experiências, tanto das crianças quanto dos adultos que constituem um grupo.
O sétimo e último capítulo, “Marcas dos saberes e fazeres de crianças e professoras”, foi elaborado pela bolsista de iniciação científica do projeto que originou a publicação, a agora pedagoga Isabella Coelho Figueiredo. A autora integrou o projeto em 2015 e, por meio do registro em caderno de campo, acompanhou as reuniões de planejamento e de formação continuada da escola, sistematizado posteriormente em relatórios mensais de caráter descritivo analítico. Inicialmente é afirmada a relevância dos registros diários, que são fonte de memória do grupo e vão dando significado ao vivido, além de constituírem recursos que potencializam a investigação dos processos de conhecimento e aprendizagem de crianças e professores. Em seguida, a autora resgata elementos de seu itinerário formativo, relembrando experiências marcantes referentes à construção de trajetória. Após retomar o lugar do registro em seu percurso de formação, Isabella se debruça nos fundamentos teóricos que alicerçaram seu trabalho na iniciação científica, finalizando o artigo com a descrição do lócus da pesquisa e apresentação da metodologia.
A cada capítulo é possível conhecer a forma como os diferentes autores foram construindo um percurso de trabalho que tomou como desafio a garantia de produção dos registros enquanto forma de acompanhamento das práticas e aprofundamento das reflexões sobre o vivido. Revela-se e resgata-se o trabalho de parceria entre universidade e escola, num franco e horizontal diálogo em que as experiências singulares nos contam dos saberes e sabores construídos.
REFERÊNCIAS
- BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil: Brasília, DF, 1996.
- OSTETTO, Luciana Esmeraldo (Org.). Registros na educação infantil: pesquisa e prática pedagógica. Campinas: Papirus, 2017.
- PERCIVAL, Tom. A incrível sombra de Jack Tradução de Mila Dezan. São Paulo: Caramelo, 2013
Notas
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1
FREIRE, M. A paixão de conhecer o mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. FREIRE, M. (Org.). Observação, registro, reflexão: instrumentos metodológicos I. 2. ed. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1996.
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2
WARSCHAUER, C. A roda e registro: uma parceria entre professor, alunos e conhecimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
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3
MAGALHÃES, L.; MARINCEK, V. Instrumentos de registro da reflexão do professor. In: CAVALCANTI, Z. (Coord.). A história de uma classe. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2018
Histórico
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Recebido
05 Jul 2018 -
Aceito
19 Set 2018