Open-access NATURALISMO, VIRTUDE E SOCIABILIDADE NA FÁBULA DAS ABELHAS: MANDEVILLE E OS MORALISTAS DE SEU TEMPO

NATURALISM, VIRTUE AND SOCIABILITY IN THE FABLE OF THE BEES: MANDEVILLE AND THE MORALISTS OF HIS TIME

RESUMO

Ao defender a tese geral de que “vícios privados” eram indispensáveis à obtenção de “benefícios públicos”, a Fábula das abelhas, de Bernard Mandeville, suscitou reações indignadas e rendeu a seu autor a reputação de inimigo da virtude. Entre as críticas que lhe foram feitas, chama a atenção aquela segundo a qual ele teria se valido ardilosamente de uma concepção rigorista da virtude para demonstrar a impossibilidade de qualquer ação genuinamente virtuosa. Tomando essa crítica como mote e buscando ver em que medida ela pode, ou não, ser pertinente, o presente artigo pretende examinar a tese contida no subtítulo da Fábula a partir da consideração do projeto filosófico no qual ela se inscreve: o de uma “anatomia da parte invisível do homem”. A partir daí, esperamos ser possível indicar a quais questões A Fábula das abelhas pretende responder e como o faz, bem como qual lugar ela resguarda para a moralidade e quais as consequências da crítica mandevilliana da moral.

Palavras-chave Anatomia; Naturalismo; Natureza humana; Sociabilidade; Século XVIII, sociedade comercial

ABSTRACT

By defending the general thesis that “private vices” were indispensable to obtaining “public benefits,” Bernard Mandeville’s The Fable of the Bees provoked outraged reactions and earned its author the reputation of an enemy of virtue. Among the criticisms made against him, the one according to which he had cunningly used a rigorist conception of virtue to demonstrate the impossibility of any genuinely virtuous action stands out. Taking this criticism as a motto and trying to see to what extent it can be pertinent or not, this paper intends to examine the thesis contained in the subtitle of the Fable considering the philosophical project in which it is inserted: that of an “anatomy of the invisible part of man”. From there, we hope it will be possible to indicate what questions The Fable of the Bees aims to answer and how it does answer them, what place it holds for morality, as well as which are the consequences of the Mandevillian critique of morals.

Keywords Anatomy; Naturalism; Human nature; Sociability; Eighteenth Century; Commercial society

I

Não há exagero em afirmar que, em A Fábula das abelhas, Bernard Mandeville incendiou o debate do século XVIII ao propor explicitamente aquilo que, numa passagem conhecida das Confissões, Rousseau chamou de “paradoxos ingleses do luxo”.1 Mandeville, como se sabe, defendeu a sociedade comercial com as armas da sátira e da ironia, sustentando a tese segundo a q não só a opulência, a grandeza das nações e a felicidade dos povos dependeriam de condutas viciosas dos indivíduos, mas também que, considerando-se a natureza do homem com o devido rigor, as paixões egoístas, ao fim e ao cabo, seriam os motores de toda ação humana. Se Mandeville desencadeou uma “crise moral”2 foi porque, como resume Winch, ele tentou mostrar que

[...] a civilização e o luxo estavam indissoluvelmente conectados; que a virtude e a igualdade eram sinônimos de pobreza; que o autointeresse e a vaidade desempenhavam um papel indispensável nos assuntos humanos e que havia uma conexão irrevogável entre o vício privado e os benefícios públicos da vida em sociedades civilizadas ou comerciais. (Winch, 1996, p. 66)

Ora, o leitor de Mandeville não entra desavisado em seu “sistema licencioso” (expressão de Adam Smith), pois o paradoxo escandaloso que emerge da Fábula é enunciado, logo de início, no próprio subtítulo da obra: “Vícios privados, benefícios públicos”. E, para quem não entendeu o recado, o mote é explicitado com veemência pelo autor na moral do poema A colmeia ranzinza, germe a partir do qual a Fábula se constituiu:

Ora, quando um povo quer engrandecer, O vício é tão necessário ao Estado, Quanto a fome que nos faz comer.

A virtude sozinha não pode fazer as nações viverem em esplendor;

Os que querem reviver a Idade de Ouro devem se libertar das bolotas de carvalho, assim como da honestidade. (Mandeville, 2017a, p. 47)

Tal diagnóstico, como se sabe, fez barulho, suscitando a indignação dos devotos da época. Algum estardalhaço, aliás, talvez tenha sido mesmo visado pelo autor, como sugerem diversos comentadores. O que nos interessa aqui, porém, é indicar que, longe de ser apenas uma manobra retórica visando ao escândalo, a formulação paradoxal da Fábula é o resultado de um exame rigoroso da natureza humana que, por um lado, expõe a divergência entre o pensamento mandevilliano e o dos chamados “moralistas” (denominação propositalmente vaga do autor) e, por outro, indica a abertura de uma perspectiva de análise que terá ampla fortuna entre seus leitores. Isso, aliás, talvez dê pistas de por que Mandeville não pode ser reduzido a um “escrevinhador” dedicado apenas a “despedaçar as próprias fundações da virtude moral”3, mas foi um interlocutor indispensável e, por vezes, um adversário incontornável dos filósofos do Iluminismo.

II

Para isso, vale reconhecer, antes de mais nada, que há, de fato, certa astúcia no modo como Mandeville constrói o aparente paradoxo que atravessa a Fábula. Com efeito, nela se toma ao “pé da letra” a concepção tradicional de virtude, entendida como ação ou disposição altruísta e abnegada, para então confrontá-la com nossa experiência comum, demonstrando que nenhuma ação é inteiramente desinteressada (cf. Mandeville, 2017a, pp. 46-47). Como notou F.B. Kaye, Mandeville não negou que uma sociedade baseada no egoísmo e no interesse é, segundo a moral tradicional, uma sociedade corrupta, nem que o luxo que move o comércio e enriquece as nações é contrário aos dogmas da religião cristã ou ao ideário republicano; mas tentou mostrar que, em alguma medida, toda sociedade se funda no egoísmo e que sem a ambição e outras paixões operando como molas propulsoras do comércio nenhuma nação se tornaria florescente, grande e opulenta (cf. Kaye, 1922). Mais que isso, Mandeville concluiu que, caso esses elementos fossem extirpados, as sociedades humanas tenderiam ao declínio, como mostra a “moral” do poema:

Deixem então de se lamentar:

apenas os tolos se esforçam para tornar honesta uma grande colmeia.

Gozar das comodidades do mundo, afamar-se na guerra e viver no conforto, sem grandes vícios, é uma vã utopia inculcada no cérebro.

A fraude, o luxo e o orgulho devem viver enquanto usufruímos dos benefícios. (Mandeville, 2017a, p. 47)

Ora, se há um “ardil” em formulações como essa, ele consiste justamente em tomar no sentido mais rigoroso possível os valores tradicionais para então afirmar sua incompatibilidade com nossa experiência social, isto é, para mostrar que considerados dessa maneira eles são inaplicáveis à vida e aos homens “deste mundo”. Em sua crítica ao pensamento mandevilliano, Adam Smith não se cansa de ressaltar que a Fábula teria astuciosamente tirado proveito de certas “doutrinas ascéticas”, cuja rigidez poderia facilmente ser levada ao absurdo.

Algumas doutrinas ascéticas populares, correntes antes de sua época, que situavam a virtude na completa eliminação e aniquilação de todas as nossas paixões foram o fundamento real desse sistema licencioso. Era fácil ao Dr. Mandeville provar, primeiro, que essa conquista completa nunca ocorreu entre os homens e, em segundo lugar, que, se tivesse ocorrido universalmente, ela teria sido perniciosa para a sociedade pondo fim à industriosidade, ao comércio e, em certo sentido, a toda ocupação da vida humana. (Smith, 1982, p. 313)

É de se convir que Smith não deixa de ter alguma razão. A Fábula tira proveito dessas doutrinas não apenas para denunciar que elas nos exigem o impossível (suprimir a influência das paixões), mas, também, para mostrar que fazê-lo seria pernicioso, uma vez que é devido às próprias paixões e aos interesses, por elas produzidos, que somos postos em movimento e tirados de nossa indolência natural (tese com a qual Smith concorda, ainda que de forma mais matizada). Como afirma Mandeville, valendo-se de uma analogia bastante clara: “A fome é um flagelo terrível, não resta dúvida. Mas quem sem ela se alimenta e cresce?” (Mandeville, 2017a, p. 47). Decerto há alguma astúcia nesse emprego rigoroso das categorias morais da tradição que caracteriza o argumento de Mandeville. Afinal, é seu manejo que permite apresentar a tese central da Fábula sob a forma contundente de um paradoxo, tornando flagrante ao leitor o descompasso entre as exigências da moral tradicional e as necessidades materiais da vida em sociedade.

Smith, vale notar, não está sozinho ao caracterizar o suposto “rigorismo” de Mandeville como truque retórico. Antes dele, Francis Hutcheson e Archibald Campbell, por exemplo, denunciaram o uso dessa mesma manobra. Nessas passagens, portanto, Smith está recorrendo a uma tópica constantemente mobilizada contra a Fábula (cf. Douglass, 2019, p. 12). Mesmo assim, é de se perguntar se, colocando tanta ênfase nesse aspecto da obra, seus detratores não obscurecem o que ela tem de filosófico, terminando por neutralizar seus aspectos mais interessantes. Noutros termos, antes de reduzi-la a mero exercício de eloquência, vale perguntar acerca do projeto que a coloca em movimento, de seu método e dos fundamentos de suas teses e ver se realmente a Fábula tem como objetivo apenas envenenar o leitor contra a moral.4

III

Parece, de fato, precipitado desqualificar a obra reduzindo-a à sátira e à retórica vazia. Com efeito, a filosofia de Mandeville decorre de um projeto e de um método singulares dos quais deriva a pertinência do exame dos valores morais tradicionais que ele empreenderá. A Fábula teve seu germe, como se sabe, num pequeno poema satírico, mas as reações desencadeadas por sua mensagem parecem ter levado o autor a perseguir um programa de investigação bem delineado e claramente marcado por sua formação científica. Médico, Mandeville aspirou a colocar a questão da sociabilidade humana sobre bases científicas, examinando a vida social e a natureza do homem de modo análogo ao que faz o naturalista quando observa um animal ou o anatomista quando disseca um corpo.5 Na formulação sucinta de Goldsmith:

Anatomizar a sociedade, revelando seus ‘principais órgãos e molas mais sutis’, e descobrir os aspectos da natureza humana que tornam os homens capazes de formar sociedades são as tarefas que Mandeville fixou para si mesmo. (Goldsmith, 2001, p. 52)

A transposição de um método (a anatomia) e de um modelo de conhecimento (o do naturalista) diretamente extraídos da medicina para o campo da investigação moral pode causar estranheza. Mas é bom lembrar que, no século XVIII, frequentemente o procedimento metódico e os critérios de evidência das ciências naturais foram objeto de apropriações e adaptações por parte dos filósofos. A filosofia da Ilustração não raro lançou mão da analogia entre diferentes domínios da experiência para realizar transposições de modelos e métodos de um domínio para o outro, alargando assim seu horizonte de investigação. A ideia de uma anatomia da sociedade humana não é, portanto, apenas uma figura de linguagem. Ela implica a suposição de uma relação de semelhança - no caso entre o corpo humano e a sociedade civil ou o corpo político - que autorizaria a aplicação, mais ou menos problemática, dos métodos, regras e práticas das ciências médicas ao exame da vida em sociedade. Torna-se lícito, assim, “anatomizar o invisível”, decompondo o corpo social e as faculdades do homem, na tentativa de compreender suas operações e funções na composição do todo. É essa concepção da investigação moral que distancia Mandeville dos “moralistas”, embora ele e seus adversários estejam voltados para o mesmo objeto:

Os moralistas se esforçam por extirpar o vício e limpar o coração de todos os apetites e inclinações danosos. Estamos em dívida com eles por isso, assim como com aqueles que destroem os vermes e purificam os campos de todas as criaturas nocivas. Mas, sem ofensa ao catador de toupeiras, cujo ofício é apenas exterminá-las tão rápido quanto puder, não deve um naturalista dissecá-las, fazer com elas experimentos e investigar a natureza de suas produções (handicrafts)? (Mandeville, 2021, p. 13)

Proceder como anatomista/naturalista significa, antes de mais, dissecar o objeto, seja ele o homem tomado isoladamente, seja como membro de um corpo social, visando sempre compreender as funções de cada um de seus “órgãos” no interior da estrutura toda, de maneira a explicar seu funcionamento. Para tanto, como deixará claro Mandeville em outros textos, o anatomista deve tanto deixar de lado noções preconcebidas quanto se abster de juízos de valor acerca daquilo que porventura encontrar. Não por acaso, já nas primeiras linhas da Investigação sobre a origem da moral, Mandeville retoma sua oposição aos sistemas precedentes ressaltando sua pretensão de fornecer uma descrição do homem tal como ele de fato é, ou seja, tal como aparece ao exame do naturalista do espírito, em vez de retratá-lo como deveria ser:

Uma das maiores razões pelas quais tão pouca gente compreende a si mesma é que a maioria dos autores ensina o que os homens deveriam ser e dificilmente se dão ao trabalho de dizer como eles realmente são. (Mandeville, 2017a, p. 49)

Trata-se, antes de mais, de uma postura profilática que visa garantir-nos contra o dogmatismo. Mas ela tem, além disso, outros ganhos. Ao adotá-la, o filósofo se torna apto a compreender a função desempenhada até mesmo pelos traços mais desagradáveis do homem e pode incluí-los em sua teorização da sociabilidade. Essas “qualidades vis” são, na verdade, as mais importantes, como se pode ver já na Introdução da primeira edição da Fábula:

[...] os que examinam a natureza do homem, dispensando a arte e a educação, podem observar que aquilo que o torna um animal sociável consiste não no seu desejo de companhia, bondade, sua piedade, afabilidade e outros encantos de bela aparência, mas sim no fato de que as suas qualidades mais vis e odiosas são as aptidões mais necessárias para ajustá-lo nas maiores e, conforme anda o mundo, mais felizes e prósperas sociedades. (Mandeville, 2017a, p. 7)

Se trechos como esse marcam de forma clara a diferença entre a investigação mandevilliana e os fins perseguidos pelos “moralistas”, eles não deixam de levantar a suspeita de que a empreitada mandevilliana resulte num realismo ingênuo ou num empirismo grosseiro. De fato, nos textos que compõem a Fábula, Mandeville pouco se detém sobre o estatuto e os métodos do conhecimento que emerge da anatomia da “parte invisível do homem” ou do estudo do homem à maneira do “naturalista”. Para afastar essa suspeita, é útil recorrer a um texto aparentemente distante do tema da Fábula: o Tratado das paixões hipocondríacas e histéricas.6

Antes de mais vale notar que, vindo a lume pela primeira vez em 1711, sob o título de Tratado das paixões hipocondríacas e histéricas, esse diálogo acerca do tratamento da hipocondria e da histeria seria reeditado com modificações em 1715 e, por fim, publicado em sua versão definitiva em 1730, recebendo o novo título, alguns acréscimos e algumas “correções”. Essa cronologia importa, pois situa a primeira versão do Tratado entre a publicação do poema As abelhas ranzinzas (1705), a primeira edição da Fábula das abelhas (1714) e a publicação dos seis Diálogos (1729) que viriam a completá-la. Sem fazer desse texto algo como um “Discurso do método” mandevilliano, é ao menos plausível supor que as observações de Mandeville a respeito do método e do estatuto epistemológico da medicina sejam de modo geral aplicáveis à sua tentativa de realizar uma ciência da natureza humana ou, ao menos, uma investigação científica da vida social e da gênese dos valores morais.

IV

No Tratado, as discussões acerca do estatuto das teorias e das práticas médicas mostram Filopirio, porta voz de Mandeville, tomando partido de uma vertente da medicina por ele mesmo caracterizada como “medicina empírica”.7 Não por acaso, boa parte da obra é dedicada ao exame crítico do abuso das hipóteses, tanto na prática médica quanto nas teorias. O problema é que, ao invés de construírem suas suposições a partir da observação dos fenômenos relativos ao corpo e aos sintomas da doença, os médicos de índole especulativa concedem primazia ao hipotético, praticando uma medicina que encontra seu fundamento apenas na presunção da razão e cujo apelo pode ser curiosamente remetido à avidez pelo lucro. Em medicina, como de resto nas outras partes da filosofia da natureza, a observação detida é a única fonte segura de inferências, mas ela envolve um exercício laborioso, frequentemente desagradável e, talvez, menos rentável. A sedução da medicina especulativa deve muito a esses inconvenientes, bem como ao autointeresse dos médicos, mas o mais importante é que seu resultado é a redução do discurso médico a uma retórica vazia de significação.

Mas isso não seria apenas mais trabalhoso, como também uma forma tediosa de ganhar dinheiro. O autointeresse dá, assim, lições melhores aos jovens médicos. Se você não é extraordinário em nenhum dos ramos que mencionei acima, mostrar-se como um especialista (scholar), escrever um poema, seja ele bom ou longo, compor uma oração em latim, ou apenas traduzir algo naquela língua, e colocar seu próprio nome, é melhor que do que gastar seu tempo diante de camas esquálidas de pobres pacientes e aguentar os odores desagradáveis (unsavoury) de um hospital lotado. (Mandeville, 2017b, p. 54)

A recusa dessa medicina degradada em discurso persuasivo não deve ser confundida com uma condenação absoluta da teoria. Não se trata de um ataque à razão em geral, mas apenas de rejeitar uma concepção de razão caracterizada como “presunçosa (lofty)” e que “confia ousadamente apenas em suas asas” para erguer “nos céus” suas conclusões (cf. Mandeville, 2017b, p. 91). As “artes médicas” sem dúvida recorrem a regras gerais e implicam, portanto, alguma teorização, mas importa a Mandeville sustentar o modo correto de obtê-las. Daí certa primazia da prática clínica, pois é ela que fornece os elementos para a interpretação dos “sinais diagnósticos” e para realização de “prognósticos”, mediante a generalização daquilo que se encontra como elemento recorrente na experiência da doença. Na contramão da pura especulação, o trabalho teórico do médico empírico consistiria em realizar uma “observação diligente” da experiência e determinar suas constantes, visando tanto à compreensão da saúde e da doença quanto à aplicação das regras, obtidas por essa via, no tratamento de novos casos. Como se pode ler no Tratado: “Pela garra se conhece o leão! Pela verdade duradoura descobrimos todas aquelas regras que, embora há eras, foram certa vez estabelecidas pela experiência repetida e judiciosa” (Mandeville, 2017b, p. 55).

A imagem da anatomia, não por acaso recorrente na Fábula, talvez seja o exemplo mais acabado desse modo judicioso de coletar experiências. Se a anatomia serve de modelo à investigação em filosofia moral, é porque ela envolve ao mesmo tempo precisão, observação e consciência dos limites e peculiaridades implicados por sua base empírica. Com efeito, não se trata apenas de situar o fenômeno no ponto de partida da investigação, mas de analisá-lo, de separar suas partes e examinar as relações entre cada uma delas, sempre mantendo em linha de consideração a ressalva de que a essência do objeto dissecado permanece inacessível ao anatomista. Como nota Pedro Pimenta:

O anatomista é um homem cauteloso, que generaliza, por certo, que propõe critérios de classificação dos seres vivos e de sua organização num sistema, mas está ciente ou deveria estar ciente de que essas generalizações, embora muito úteis são provisórias e apenas imperfeitamente se referem a percepções particulares. (Pimenta, 2018, p. 15)

Essa “provisoriedade” é o preço a pagar pelo antidogmatismo que caracteriza tal posição. Não por acaso, ao tomar partido dos “empíricos”, Mandeville admite que o aparato teórico extraído da experiência e da “observação diligente” valerá apenas “enquanto os corpos humanos e a natureza permanecerem eles mesmos” (Mandeville, 2017b, p. 55) - fato do qual não se tem qualquer garantia. A comparação entre medicina e matemática é instrutiva a esse respeito. Conforme explica Filopirio, as matemáticas devem sua perfeita evidência ao fato de se basearem em fundamentos sólidos e, mediante a dedução, “progredirem de certeza em certeza”. A medicina, por sua vez, estando restrita ao domínio do que é meramente observável, não conhece os elementos últimos da constituição de seus objetos.8 Por isso, enquanto as matemáticas se caracterizam pela certeza indubitável de seus raciocínios, o saber do médico é sempre conjectural e provisório, pois falta-lhe o conhecimento da “verdadeira causa, ou causas, de toda doença”, assim como das “virtudes reais de todo remédio na materia medica” (Mandeville, 2017b, p. 111).

Não obstante tais imperfeições, os métodos do naturalista possuem vantagens que justificam sua transposição para o campo dos assuntos morais. Divergindo tanto do olhar superficial do vulgo quanto das idealizações do “moralista”, eles não só nos previnem contra hipóteses arbitrárias, como fornecem condições para um “alargamento de visão”, conforme os termos do autor. Com efeito, em primeiro lugar, sua prática nos torna capazes de concatenar eventos distantes, reconstituir encadeamentos complexos de fenômenos e rastrear causas que, na ausência de uma análise rigorosa, permaneceriam ocultas. E, em segundo, o anatomista evita julgar o valor moral do objeto que aparece em seu exame, pois sua ciência se restringe à análise das partes que o compõem, visando somente compreender a função de cada uma delas numa economia cujo fim suposto é o desenvolvimento do corpo e a manutenção da vida. Por isso, se o naturalista não introduz elementos estranhos ao corpo que analisa, ele tampouco se escandaliza ao “ver em cem lugares o bem brotar e pulular do mal” (Mandeville, 2017a, p. 100, itálicos do autor). Não por acaso, uma das personagens dos diálogos que compõem o segundo volume da Fábula fará notar que a tarefa que Mandeville se propõe a realizar é “uma estranha dissecção da natureza humana” (Mandeville, 1988, p. 93).

V

O projeto de realização da “anatomia da parte invisível do homem” fornece boas pistas para entender por que os paradoxos de Mandeville não podem ser reduzidos à mera “sofistaria”.9 Tomando esse projeto como ponto de partida, o programa filosófico mandevilliano é levado a se apoiar num deslocamento de ponto de vista que concede primazia à antropologia em relação à moral, e coloca a questão da sociabilidade como anterior à da distinção entre vício e virtude. Mais especificamente, a perspectiva de naturalista adotada pelo autor da Fábula encara sociabilidade simultaneamente como um fato e um problema teórico a ser explicado e faz da moralidade uma peça fundamental de sua elucidação. Isso talvez explique por que os textos mandevillianos se assemelham mais a uma história natural da distinção entre vício e virtude que a tratados de moral propriamente ditos, pois é a partir das dificuldades decorrentes da natureza passional dos homens que o processo de gênese das distinções morais precisará ser reconstituído. Examinar a moral e compreender seu estatuto é uma empreitada que demanda, antes de tudo, entender as circunstâncias empíricas e as características da natureza humana que condicionaram a sua invenção.

Quando tenho em mente mergulhar na origem de qualquer máxima ou invenção política feita para o uso da sociedade em geral, não perturbo minha cabeça me perguntando acerca da época ou da nação em que primeiro se ouviu falar dela, nem sobre o que outros escreveram ou disseram a seu respeito, mas vou direto à fonte, à própria natureza humana, e busco no homem pela fragilidade ou defeito remediados por essa invenção [...]. (Mandeville, 1988, p. 128)

Assim, já na introdução de Uma investigação sobre a origem da virtude moral10 é traçado um esboço sumário da natureza humana, ressaltando que o homem “é um composto de várias paixões; e que todas elas, conforme são excitadas e se tornam predominantes, governam-no alternadamente, queira ele ou não” (Mandeville, 2017a, p. 49). Desde o início, o domínio das paixões sobre os homens é considerado por Mandeville como um dado incontestável e uma marca comum a todos os indivíduos da espécie humana. Devido à força e ao movimento tumultuoso das paixões, o ser humano será representado na Investigação como um animal “egoísta”, repleto de necessidades e apetites. Tais características, é importante ressaltar, justificam que a sociabilidade seja exposta como um problema e, em certo sentido, mais um paradoxo: aparentemente nenhum animal seria mais avesso à associação duradoura e, no entanto, “nenhuma criatura, além do homem, pode se tornar sociável” (Mandeville, 2017a, p. 51). A Investigação pode ser lida como uma tentativa de elucidar essa questão aparentemente paradoxal.

O problema é tanto mais difícil de se deslindar à medida que se leva em consideração que Mandeville recusa duas conhecidas soluções. De saída, dada a primazia do aspecto passional da natureza humana, está fora de questão a possibilidade de que o movimento das paixões seja refreado pela ação da razão. Mas tampouco a sujeição pela violência ou pela ameaça seria capaz de conter por muito tempo este movimento nos limites que permitissem tornar os homens sociáveis, pois o homem é “um extraordinário animal obstinado e egoísta, bem como astuto” que pode ser subjugado, mas jamais será tornado “tratável” apenas pela força. Excluídas essas duas alternativas, Mandeville buscará mostrar que a solução da questão está na reorientação do impulso passional, empregando agora sua força na constituição da sociedade.11 Para resolver o paradoxo é preciso, portanto, mostrar como foi que a vida em sociedade se tornou possível por meio de uma modificação na dinâmica das paixões, e não através de sua supressão.

É nesse ponto do argumento que se inscreve o tema da gênese da moral. Com efeito, essa reorientação de forças demanda a correção artificial de seu curso natural, correção esta que é preciso explicar. Efetuar essa reorientação é justamente a finalidade que Mandeville atribuirá à invenção da moralidade. Por isso, a moral será por ele entendida como artifício que não visa neutralizar as paixões, mas usar seu impulso e direcioná-lo de modo a tornar compatíveis o interesse individual e a vida social. O que a moral faz, nos termos do autor, é tão somente “jogar as paixões umas contra as outras”12 e o caráter peculiar, bem como a função das distinções morais, explicam-se pelas exigências próprias a esse jogo.

Mas, para que ele ocorra, é necessário, antes de mais nada, convencer os homens a abrir mão da satisfação imediata e integral de seus interesses particulares, tornando-se sociáveis e governáveis.13 Ora, as distinções morais, juntamente com as valorações que as acompanham, são precisamente os meios dessa conversão: elas são instrumentos cuja operação consiste em persuadir o indivíduo a preferir o interesse público em detrimento de seus interesses particulares. Mais precisamente, as noções de virtude e vício são concebidas por Mandeville como instrumentos forjados por “legisladores e outros homens sábios” para tornar possível a associação duradoura entre os homens, convencendo-os de que a abnegação seria digna de louvor e o egoísmo de censura.

A moral é descrita, portanto, como uma espécie de dispositivo retórico que estabelece um léxico, categorias e valorações capazes de mobilizar as paixões umas contra as outras, inclinando os homens à constituição da sociedade. Trata-se de um discurso eloquente empregado habilmente pela política, cuja eficácia depende do manejo de uma tendência da natureza humana que nos torna desejosos de elogios e sensíveis à censura. Daí a sagacidade atribuída por Mandeville aos moralistas, políticos, legisladores e “outros homens sábios”:

[...] observando que ninguém é tão selvagem a ponto de não se encantar com um elogio, nem tão baixo a ponto de suportar o desprezo, [legisladores e outros homens sábios] concluíram acertadamente que a lisonja deve ser o mais poderoso argumento a ser usado com criaturas humanas. (Mandeville, 2017a, p. 52)

É nesse sentido que Mandeville vai afirmar que “as virtudes morais são a “prole política que a bajulação engendra no orgulho” (Mandeville, 2017a, p. 59). As distinções morais favorecem a sociabilidade porque manipulam a tendência que todo homem tem a formar uma opinião elevada sobre si mesmo e, em contrapartida, a conceder extrema importância ao olhar do outro, tornandose suscetível à bajulação e ao desprezo. Essa inclinação natural à autoestima exagerada e a necessidade de obter confirmação por meio da opinião alheia fornece o primeiro suporte para a adesão à moralidade. Numa palavra, se a moral engaja os homens é por uma necessidade decorrente de seu amor próprio ou do desejo de gratificá-lo.

O desgraçado mais desprezível atribui à sua pessoa um valor inestimável, e o mais soberbo desejo do homem ambicioso é que o mundo inteiro pense como ele em relação a essa particularidade. (Mandeville, 2017a, p. 61)

Se esse traço é uma característica compartilhada por todo o gênero humano, é porque ele se enraíza numa paixão “inseparável da existência” dos homens. Trata-se do orgulho, paixão primária, incontornavelmente presente em todos os indivíduos da espécie, cujo objeto é a boa opinião dos outros (cf. Mandeville, 1988, p. 64). Desse ponto em diante, o sistema se sofistica e desse “desejo superlativo” são derivados artifícios secundários que reforçam o esquema inicial. Noções como a honra, a dignidade e a vergonha, por exemplo, engendram sentimentos que irão potencializar a força persuasiva daquela tendência original. Paralelamente, a partir da distinção entre vício e virtude, poder-se-á dividir os homens em duas categorias, uma delas digna de elogios e admiração e outra merecedora de desprezo e censura:

Depois de terem penetrado, por meio dessa forma astuta de bajulação, começaram a instruí-los nas noções de honra e vergonha; representando esta como o pior de todos os males e aquela como o bem mais elevado a que os mortais poderiam aspirar; feito isso mostraram-lhe quão impróprio seria à dignidade de criaturas tão sublimes atender à solicitação daqueles apetites que têm em comum com os animais e ao mesmo tempo negligenciar aquelas qualidades superiores que lhes deram proeminência entre todas as criaturas visíveis. (Mandeville, 2017a, p. 53)

Em conformidade ao padrão estabelecido pela virtude haveria, assim, uma classe de pessoas “abjetas e execráveis” comparáveis aos animais em sua submissão às paixões e apetites; e uma outra composta por “criaturas imponentes e altivas” capazes de dominar até mesmo suas “inclinações mais violentas” (cf. Mandeville, 2017a, pp. 53-54). Como ressalta o texto, o discurso moral torna-se, dessa forma, capaz de prover aos homens, além de recompensas sensíveis (a sensação agradável que vem com o elogio dos outros), recompensas imaginárias (a pertença a uma classe superior de homens) que gratificam o orgulho e o amor próprio, na mesma proporção que nos afastam da satisfação imediata das paixões mais primárias. Constantemente reiterado pela educação, esse jogo produzirá efeitos tão poderosos que frequentemente os motivos egoístas de nossa adesão à moral permanecerão, no mais das vezes, ocultos de nós mesmos.14

É importante notar que as teses da Fábula acerca da gênese da moralidade e da vida social irão se sofisticar nas edições subsequentes da Fábula e nas obras posteriores. Se, na Investigação sobre a origem da virtude, as distinções morais e suas consequências civilizatórias são apresentadas como invenção calculada por “homens sábios”; no segundo volume da obra, a tese se complexifica e a sociabilidade vai sendo explicada à medida que se desenrola um processo até certo ponto espontâneo, derivado de nossos carecimentos e paixões. Embora o manejo político das paixões humanas nunca saia propriamente de cena, a moralidade será parcialmente posta ali como o resultado não intencional de diversas adaptações realizadas em função das necessidades que os levam à associação e da busca pela satisfação dos impulsos passionais (cf. Mandeville, 1988, pp. 139, 142-144). Noutras palavras, na obra madura, o acento da análise vai reforçando o caráter processual da gênese da moral e da vida social, enquanto o ardil daqueles “homens sábios” parece gradualmente perder primazia embora não desapareça do horizonte de explicação.15 Entretanto, a despeito dessas modificações, ao longo de toda obra do filósofo o caráter artificial da moralidade permanece invariável, e sua função civilizatória continua a ser o traço que lhe confere seu maior valor.

VI

Esses traços gerais já são suficientes para mostrar o estatuto peculiar que a moralidade vai adquirindo conforme avança a história natural das distinções morais. Sendo tão somente meio para jogar com as paixões, a moral torna o homem sociável, mas não o faz “essencialmente” melhor (cf. Gautier, 2020, p. 87), pois a natureza do homem permanece inalterada em seus traços mais característicos (cf. Mandeville, 1988, p. 214). Isso não significa, no entanto, que a espécie humana seja incapaz de aprimoramentos (como o cultivo das artes e das ciências, os progressos da técnica, a opulência etc.); todos eles, entretanto, são introduzidos justamente pela sociabilidade.16 Pode-se compreender, então, por que Mandeville não via a si mesmo como um inimigo dessa “feliz ideia” que foi a invenção da moral.17

Evidentemente o elogio mandevilliano à moralidade tem um sentido bastante bem delimitado. Se a invenção das distinções morais suscita admiração, é apenas na medida em que elas constituem um instrumento civilizatório. Aquela “estranha dissecção da natureza humana” retira, portanto, os valores morais da posição que lhes é comumente atribuída: se, por um lado, ela nos mostra que os homens são governados por suas paixões, por outro, ela extrai a consequência de que o valor da distinção entre vício e virtude deve-se à função por ela desempenhada. Essas noções não possuem, assim, valor normativo intrínseco; nem são, conforme a expressão do autor, “eternas” (cf. Mandeville, 2021, pp. 3-4). A moralidade é digna de louvor apenas em razão de seus efeitos e não se perde jamais de vista que ela é o resultado de uma longa experiência social e extrai sua eficácia do manejo destro das qualidades “mais vis e odiosas” dos indivíduos (cf. Limongi, 2022, p. 222).

Fica mais claro, assim, o sentido do paradoxo contido no mote da Fábula (“vícios privados, benefícios públicos”), pois, desde que habilmente manejadas, são as qualidades tidas pela tradição como viciosas que tornam possível a sociabilidade e, com ela, os diversos aperfeiçoamentos aos quais a espécie humana é suscetível. O emprego no subtítulo da Fábula da expressão “benefícios públicos” é um signo eloquente do estatuto que a moralidade adquire no pensamento mandevilliano. Ele indica que, em se tratando da vida em sociedade, importa pesar até que ponto invenções como a da moralidade convêm aos fins que visam realizar. E, para Mandeville, o que se busca obter na formação das grandes sociedades é a “felicidade nacional”, isto é, “riqueza”, “poder”, “gloria” e “grandeza mundana”.18 O corolário disso, talvez seja um dos resultados mais interessantes da Fábula: se os valores morais são apenas meios, é legítimo avaliá-los tendo como parâmetro sua eficácia para realizar os fins em vista dos quais eles foram criados. Pode-se, noutras palavras, colocar a questão do valor desses valores.

E não faltam passagens indicando o quanto Mandeville estava concernido sobretudo com aquilo que lhe aparece como sendo uma incompatibilidade entre a noção tradicional de virtude - seja ela cristã, estoica ou republicana - e os elementos que levam ao desenvolvimento da sociedade moderna. Assim é que na Observação X, por exemplo, o filósofo se empenha em demonstrar que Esparta e seus cidadãos não serviriam de modelo para pensar nem o Estado, nem o cidadão modernos. Eles podem ser adequados, como sublinha o texto, a nações “onde as pessoas estão contentes em ser pobres”, mas nunca a uma nação comercial que almeja a prosperidade; razão pela qual “dificilmente [...] os ingleses invejariam sua grandeza [dos espartanos]”.19 Como se quer mostrar já em A Colmeia Ranzinza, retomar os modelos de ação virtuosa do republicanismo e do humanismo cívico, fazer da Grã-Bretanha moderna uma nova Esparta, ou ainda aplicar-lhe os valores cristãos em toda sua extensão e rigor, seria desastroso, pois implicaria a supressão de paixões que lhe fornecem impulso. A análise mandevilliana aponta, portanto, para o fato de que, ao menos em se tratando da sociedade comercial, haveria um descompasso entre os valores da tradição e o que é requerido para o florescimento desse novo arranjo social.20

O que confere potência a esse diagnóstico é que, em vez de astúcia retórica, sua crítica à tradição é o resultado de uma investigação metódica e rigorosa da natureza do homem e da sociedade. Investigação que, é importante notar, Mandeville conduziu fazendo a mesma aposta que muitos de seus contemporâneos, isto é, transpondo métodos e modelos das ciências naturais para forjar ferramentas adequadas à análise rigorosa da vida em sociedade.21 Ora, se essa interpretação estiver correta, a tópica do “rigorismo” é insuficiente seja para desqualificar, seja para caracterizar a crítica da Fábula à moral tradicional. Afinal, embora tal chave de leitura se apoie em um elemento realmente presente em sua filosofia, ela deixa de lado tanto o método quanto a antropologia que sustentam suas teses, perdendo de vista a conclusão perturbadora de que a moralidade tradicional é um artifício que se tornou insuficiente e até pernicioso ante as transformações que caracterizam a sociedade moderna.22

Talvez isso possa explicar, aliás, por que a repercussão do “sistema licencioso” da Fábula das abelhas não se limitou ao simples escândalo moral. Afinal, a análise que ali se desenrola limpa o terreno e abre espaço, no âmbito da teoria social, para outros discursos que não o do moralista. Realizando sua “dissecção da natureza humana”, a filosofia mandevilliana termina por fornecer ensejo ao recorte de diferentes domínios da vida em sociedade que a partir de agora poderão ser considerados como campos de fenômenos ordenados por regras e princípios próprios. O primeiro deles, aquele que viria a constituir o campo da economia política, decerto já se anunciava nas passagens dispersas, mas numerosas e importantes, em que Mandeville tematizava o comércio, o luxo, o consumo, o trabalho e a divisão do trabalho, a opulência e a pobreza. Todavia, curiosamente, a crer nos manuais, tal disciplina só viria a se consolidar 62 anos após o lançamento da primeira edição da Fábula com a publicação de A riqueza das nações (1776), obra deste grande crítico, mas, também, grande herdeiro de Mandeville, que foi Adam Smith.

  • 1
    A expressão ocorre nas Confissões em uma passagem onde Rousseau se refere a Hume ressaltando o que seria uma flagrante contradição: “[...] o sr. Hume associava uma alma muito republicana aos paradoxos ingleses em favor do luxo” (cf. Rousseau, 2007, p. 630).
  • 2
    A expressão é de David Fate Norton, que atribui essa “crise moral” não apenas à repercussão de Mandeville, mas antes a Hobbes. Embora empreguemos a expressão desse célebre comentador de Hume, divergimos num ponto específico: Norton reduz Mandeville a mero epígono de Hobbes. Como se indicará aqui, não apenas as influências de Mandeville vão muito além da filosofia hobbesiana, como parece haver algo de original no que o autor da Fábula faz a partir das múltiplas heranças que recebe. Vale acrescentar ainda que as temáticas de ambos os autores nos parecem significativamente diversas. Enquanto Hobbes escreve sua política sob a sombra da Guerra Civil Inglesa e, consequentemente, preocupado com a dissolução do Estado, Mandeville está preocupado sobretudo em teorizar a sociedade comercial moderna que se consolida no século XVIII (cf. Norton, 1982, cap. 2).
  • 3
    A expressão é usada na carta contra a Fábula transcrita e contestada por Mandeville na edição de 1714 (cf. Mandeville, 2017a, p. 397). Vale observar que citamos os textos constantes do volume I da Fábula sempre a partir da criteriosa tradução de Bruno da Costa Simões, publicada pela Editora da UNESP. Embora por vezes façamos algumas alterações na tradução, a paginação segue a da UNESP. Os outros textos de Mandeville são citados nas edições indicadas nas Referências e sua tradução é de nossa autoria.
  • 4
    O próprio Smith, aliás, acaba por matizar em alguma medida essa tópica ao reconhecer que a Fábula teria, em muitos aspectos, “se aproximado da verdade”; indicando, assim, que talvez haja algo mais do que retórica naquela obra (cf. Smith, 1982, p. 313).
  • 5
    Esse traço, convém notar, é uma das originalidades da filosofia exposta na Fábula. Com efeito, a empreitada de Mandeville resulta numa concepção naturalista do homem, cuja aspiração à cientificidade serve para marcar a distância que separa o autor dos agostianianos franceses aos quais, como se sabe, sua filosofia tanto deve. Afinal, se, por um lado, a tese mandevilliana de que as virtudes são disfarces do egoísmo denuncia a influência de autores como Pierre Nicole e La Rochefoucault, por outro, a concepção mandevilliana da moral repousará numa antropologia inteiramente laica e naturalista. Ou seja, diferentemente desses autores, cuja concepção do homem e da moral depende de pressupostos cristãos, sobretudo da marca deixada nos homens pelo pecado original, Mandeville pretende chegar a esse resultado por uma via que se pode chamar propriamente de científica (cf. Force, 2003, cap. II; Hundert, 1994, pp. 35-37).
  • 6
    Sobre a história da publicação do texto, ver Kleiman-Lafon, S., “Introduction”, in: Mandeville, 2017b, pp. 1-13.
  • 7
    É interessante notar que essa tomada de partido de Mandeville em favor dos “empíricos” é tributária de sua formação na faculdade de medicina de Leiden, cujo ensino era marcado por um intenso confronto com a medicina de matriz cartesiana. Esse ambiente teria tido influência tanto na visão mandevilliana do método a ser empregado pelo naturalista quanto em sua censura ao uso indiscriminado de hipóteses. Quanto à formação de Mandeville em Leiden, cf. Hundert, 2005, pp. 39-41. Sobre a controvérsia entre médicos cartesianos e anticartesianos em Leiden, ver Ragland, 2016, pp. 173-206.
  • 8
    Vale observar que Mandeville retoma brevemente esses aspectos de método no volume II da Fábula, reiterando o caráter conjectural e provisório das conclusões do anatomista e do naturalista, bem como indicando que, em se tratando de assuntos como a moral e a vida em sociedade, copiar seu modo de proceder é o único caminho razoável (cf., Mandeville, 1988, pp. 161-165).
  • 9
    A expressão é, mais uma vez, de Adam Smith (cf. Smith, 1982, p. 308).
  • 10
    Convém lembrar que a Investigação passou a integrar a Fábula na edição de 1714, sendo-lhe acrescida para esclarecer “passagens aparentemente paradoxais” de A colmeia ranzinza (cf. Mandeville, 2017a, p. 49).
  • 11
    As paixões são, como afirma Paulette Carrive, “as fontes da energia social, assim como das ações pessoais” (Carrive, 1993, p. 602).
  • 12
    É importante lembrar que a posição de Mandeville acerca do estatuto (natural ou artificial) da sociabilidade é singular: se, por um lado, as paixões nos indispõem à associação duradoura, por outro, nossa natureza é a mais apta a tornar-se sociável. Esse ponto não se esclarece na investigação sobre a virtude, mas em textos posteriores, como os seis diálogos que compõem o segundo volume da Fábula e antes deles em Uma investigação sobre a natureza da sociedade, texto que em 1723 passa a integrar o primeiro volume da obra. Os diálogos nos fornecem uma importante pista para pensar a questão ao comparar a sociabilidade à fabricação de vinhos. De acordo com o texto: “[...] a natureza designou (designed) os homens para a sociedade, assim como fez as uvas para o vinho” (Mandeville, 1988, p. 185). Ou seja, a natureza humana é apta a tornar-se sociável, mas a realização dessa potencialidade está condicionada à intervenção de alguma arte: o jogo das paixões, realizado através das noções de vício e virtude, é essa arte.
  • 13
    Para Mandeville, a virtude em sentido próprio é sempre abnegação (self denial), uma vez que ela implica, em algum grau, uma restrição à satisfação imediata ou total das paixões (cf. Mandeville, 1988, pp. 108-109). Daí que a conduta verdadeiramente virtuosa seja considerada impossível pelo filósofo, pois sempre se pode encontrar nas paixões o motivo último das ações. Com efeito, como se tentará mostrar, a própria adesão dos homens à virtude termina por se dar por motivos que a moral consideraria egoístas e, portanto, viciosos.
  • 14
    Veja-se, por exemplo, o que diz a Observação N, ao comentar como o impulso sexual é transmudado no sentimento socialmente aceitável do amor: “Lisonjeando nosso orgulho e, por um lado, aumentando ainda mais a boa opinião que temos a nosso respeito e, por outro, inspirando-nos um pavor superlativo e uma aversão mortal à vergonha, os moralistas astuciosos fizeram com que aprendêssemos de bom grado a duelar com nós mesmos e, se não conseguimos subjugar, devemos ao menos esconder ou disfarçar nossa paixão predileta, a luxúria, que nós mal reconhecemos quando a encontramos em nosso íntimo” (cf. Mandeville, 2017a, pp. 151-152).
  • 15
    Nos seis diálogos que compõem o segundo volume da Fábula, Mandeville deixa claro que o artifício do legislador depende da experiência acumulada e que seu acúmulo é, em grande medida, contingente e depende de um acúmulo de experiências (Mandeville, 1988, pp. 319ss). Na Investigação sobre a origem da honra, já em 1732, a tópica das unnintended consequences será retomada sob outra perspectiva. Nessa última obra, Mandeville recorre à etimologia para mostrar que os termos da linguagem que significam a moralidade em geral e as virtudes particulares eram, inicialmente, apenas designações de qualidades pessoais que, com o tempo, se mostraram socialmente úteis e passaram a constituir valores (Mandeville, 2021, pp. 1-5).
  • 16
    Nenhum desses progressos, vale reforçar, ocorreria se não fosse pelo acicate das paixões. Na ausência do impulso que provém daí, a excelência e as habilidades do homem restariam “encobertas, e essa máquina - inerte sem a influência das paixões - poderá ser comparada a um grande moinho de vento sem um sopro de ar” (Mandeville, 2017a, p. 190).
  • 17
    O encômio à moralidade é reforçado ao longo de toda a obra mandevilliana. Numa das últimas obras do filósofo, pode-se ler o seguinte: “Já admiti que ela [a virtude] sempre foi e sempre será, na opinião de todo homem sábio, preferível ao vício” (Mandeville, 2021, p. 3).
  • 18
    Como assinalou Norbert Waszek, é preciso estar atento ao fato de que Mandeville não se tenha interessado “[...] tanto pelas virtudes morais, privadas ou públicas, quanto pelas vantagens, ou ‘benefícios públicos’, que a sociedade pode extrair do comportamento, moral, ou não, dos indivíduos” (Waszek, 2003, p. 42).
  • 19
    O problema é que, se num corpo social simples e pouco numeroso o altruísmo e a abnegação podem resultar numa ordem beneficente, em uma sociedade comercial complexa, a situação é diferente. Com efeito, a “estranha dissecção” realizada por Mandeville termina por mostrar que a atividade comercial e a industriosidade dos homens extraem seu impulso de paixões egoístas e, assim sendo, suprimi-las seria o mesmo que eliminar a força motriz de tais sociedades. Daí que, para o autor da Fábula, uma estreita dependência ligue o autointeresse e as necessidades do homem ao florescimento de uma nação comercial e, em contrapartida, que as virtudes tradicionais e “as qualidades amigáveis do homem” possam levá-la à ruína (cf., por exemplo, Mandeville, 2017a, p. 379).
  • 20
    Como notou Luiz Roberto Monzani: “Conferindo um sentido rigoroso aos termos [virtude/vício], ele [Mandeville] consegue colocar em evidência que estamos, de fato, frente a uma dupla escala de valores que são incompatíveis. [...] Aponta-se, então, para uma irredutível separação entre os preceitos da pureza moral individual e os imperativos exigidos pelo desenvolvimento material da sociedade. Separação que supõe, vimos, o caráter inconciliável de ambas as posturas, se se quiser mantê-las simultaneamente”. (Monzani, 1995, p. 33).
  • 21
    Esse é, como se sabe, um traço característico da Filosofia das Luzes. O que Peter Gay, por exemplo, afirma acerca da filosofia francesa do século XVIII pode ser estendido aos outros ramos do Iluminismo: “A imbricação do Iluminismo com a ciência é pervadida por ironias. Os philosophes celebraram a revolução científica, aceitaram suas descobertas e imitaram seus métodos. Eles levaram suas implicações filosóficas muito além do que os próprios cientistas teriam pensado ser justificável” (Gay, 1977, p. 126). Sobre isto cf., também, Cassirer, 1951, caps. 1-2.
  • 22
    “Ele [Mandeville] introduziu no coração da compreensão social europeia uma série de argumentos concebidos para sustentar a conclusão radicalmente perturbadora de que as identidades morais de seus contemporâneos tinham sido permanentemente alteradas por uma transformação histórica antes desconhecida” (Hundert, 2005, pp. 14-15).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2023
  • Aceito
    13 Maio 2023
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