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Concepções sobre assédio moral: bullying e trote em uma escola médica

An analysis of bullying and hazing in a medical school

Resumos

O termo bullying vem sendo utilizado para descrever um tipo de violência insidiosa e devastadora, que compromete negativamente a saúde e o ambiente. Pesquisas conduzidas sobre o tema em estudantes de Medicina revelam que ela ocorre especialmente sob a forma de abusos repetidos, mas permanece pouco explorada durante a formação médica. O objetivo deste trabalho é analisar o tema do trote como aparece nas falas de docentes e estudantes quando são estimulados a relatar situações de violência entre alunos durante a graduação em Medicina. Foi feita pesquisa de caráter exploratório, qualitativa, de corte transversal, sob a forma de estudo de caso. Foram entrevistados alunos em cargo de representação e professores em cargo de chefia. Os resultados evidenciaram a ocorrência de diversas situações de abuso, especificamente durante o trote universitário. É necessário um amplo debate sobre a violência na universidade. Para que se construa um ambiente de respeito e cooperação, adequado ao desenvolvimento de pessoas, a violência precisa ser banida das universidades

Educação Médica; Ética institucional; Violência


The term "bullying" is used to characterize a kind of insidious and devastating violence that negatively affects health and the school setting. Research on the issue in medical students suggests that it occurs in the form of repeated abuse, but the issue is still insufficiently explored during medical training. The current study aims to analyze the issue of hazing as it appears in the discourse of faculty and students when they are encouraged to report on situations of violence between undergraduate medical students. An exploratory, qualitative, cross-sectional case study was performed. Student representatives and faculty department heads were interviewed. The findings included various situations of abuse, specifically hazing. A wide debate on violence in the university is needed. In order to establish a school environment of respect and cooperation, adequate for personal development, violence must be banned from the universities

Medical Education; Institutional Ethics; Violence


RESEARCH

Concepções sobre assédio moral: bullying e trote em uma escola médica

An analysis of bullying and hazing in a medical school

Fabiana de Mello Villaça; Marisa Palácios

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Fabiana de Mello Villaça Rua Bolívar, 162 - apt. 704 Copacabana Rio de Janeiro CEP 22.061-020 RJ E mail: melvillaca@oi.com.br.

RESUMO

O termo bullying vem sendo utilizado para descrever um tipo de violência insidiosa e devastadora, que compromete negativamente a saúde e o ambiente. Pesquisas conduzidas sobre o tema em estudantes de Medicina revelam que ela ocorre especialmente sob a forma de abusos repetidos, mas permanece pouco explorada durante a formação médica. O objetivo deste trabalho é analisar o tema do trote como aparece nas falas de docentes e estudantes quando são estimulados a relatar situações de violência entre alunos durante a graduação em Medicina. Foi feita pesquisa de caráter exploratório, qualitativa, de corte transversal, sob a forma de estudo de caso. Foram entrevistados alunos em cargo de representação e professores em cargo de chefia. Os resultados evidenciaram a ocorrência de diversas situações de abuso, especificamente durante o trote universitário. É necessário um amplo debate sobre a violência na universidade. Para que se construa um ambiente de respeito e cooperação, adequado ao desenvolvimento de pessoas, a violência precisa ser banida das universidades.

Palavras-chave: - Educação Médica. - Ética institucional. - Violência.

ABSTRACT

The term "bullying" is used to characterize a kind of insidious and devastating violence that negatively affects health and the school setting. Research on the issue in medical students suggests that it occurs in the form of repeated abuse, but the issue is still insufficiently explored during medical training. The current study aims to analyze the issue of hazing as it appears in the discourse of faculty and students when they are encouraged to report on situations of violence between undergraduate medical students. An exploratory, qualitative, cross-sectional case study was performed. Student representatives and faculty department heads were interviewed. The findings included various situations of abuse, specifically hazing. A wide debate on violence in the university is needed. In order to establish a school environment of respect and cooperation, adequate for personal development, violence must be banned from the universities.

Keywords: - Medical Education. - Institutional Ethics. - Violence.

INTRODUÇÃO

Assédio moral: uma breve história

A descrição de comportamentos hostis e agressivos entre escolares na década de 1970 por Dan Olweus1 na Noruega descortinou situações corriqueiras, isoladas. O termo bullying, do inglês bully, valentão, brigão, foi utilizado para caracterizar tais comportamentos como humilhações, ameaças, exclusão social que determinadas crianças ou grupo de crianças infligem a outras, comprometendo negativamente o ambiente escolar. A introdução desta discussão no meio científico, nas décadas subsequentes de 1980 e 1990, ampliou-se em diversos países, como Alemanha, França, Austrália e Estados Unidos, entre outros.

Esse autor afirma que "um estudante está sendo vítima de bullying ou vitimizado quando ele ou ela é exposto, repetidamente e ao longo do tempo, a atos negativos da parte de um ou mais estudantes"1. Atos negativos dizem respeito a ações com a intenção de causar lesão ou desconforto, podendo ser por contato físico, palavras, fazer caras ou gestos obscenos, espalhar rumores e exclusão intencional de um grupo social2,1. Assim, o bullying caracteriza-se como um comportamento agressivo ou com a intenção de "fazer-doer", que ocorre repetidamente ao longo do tempo e presente numa relação interpessoal de desequilíbrio de poder. É feita uma diferenciação entre bullying direto/vitimização, evidenciado por ataques relativamente abertos à vítima, e o bullying indireto/vitimização, demonstrado por isolamento social, exclusão intencional de um grupo, difusão de rumores maliciosos e intrigas.

O médico sueco Peter-Paul Heinemann, em 1972, utilizou o termo mobbing, do inglês mob, multidão, retirado da etologia, para descrever comportamentos agressivos entre grupos de escolares. Heinz Leymann, terapeuta familiar, aplicou este padrão conceitual ao identificar comportamentos predatórios semelhantes na dinâmica das relações de trabalho, desenvolvendo vasta teoria a respeito3. Pesquisadores da Escandinávia, França, Inglaterra, Austrália, Espanha, Estados Unidos e África do Sul, dentre outros, desenvolveram pesquisas sobre violência no ambiente de trabalho, algumas conduzidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trouxeram importantes contribuições para a sua elucidação e a criação de políticas de combate2-10.

No Brasil, o termo usado na área acadêmica e entre os atores sociais, difundido por Barreto11 e utilizado neste artigo é assédio moral, definido como:

A exposição de trabalhadores e trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais subordinado(s), desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização, forçando-a a desistir do emprego. (p. 80)

O Trote como Violência

Pesquisas conduzidas sobre o trote pelo mundo, especialmente o violento, assinalam tanto repercussões sobre o aparelho psíquico quanto transtornos depressivos e ansiedade secundários a humilhações verbais, execução de atos deméritos, privação de sono e comida, como repercussões físicas graves exemplificadas por traumatismos cranioencefálicos, hemorragias abdominais, afogamentos, desidratação e morte12. Então, muitas vezes, longe de ser uma "brincadeira" que visa à integração, o trote traz riscos potenciais às vítimas de suas práticas, alguns ameaçadores à vida. Outro aspecto frequentemente raro é a denúncia de violência, uma vez que esta ameaçaria a lealdade e a coesão do grupo, com ameaças potenciais de ostracismo social e de outras ações reativas de retaliação pelos pares13. A seguir, trazemos a definição para trote de Campo et al.14:

Qualquer atividade requerida implícita ou explicitamente como condição de iniciação ou de contínua participação de uma dada organização, que talvez traga impactos negativos sobre o bem-estar físico e psíquico de um indivíduo ou talvez cause danos a outros ou a propriedade pública ou privada. (p. 140)

Esta definição apresenta limitações, aliás encontradas na definição de assédio moral, como a falta de maior precisão, isto é, quais práticas podem ser arroladas ou não como trote ou assédio moral, porque sua interpretação é muitas vezes atravessada tanto pela subjetividade intrínseca, quanto pelo contexto cultural considerado.

Violência Contra o Estudante de Medicina

Profissionais de saúde apresentam maior risco de sofrer violência, física ou psíquica, por trabalharem nesse setor. Inclusive, grupos específicos, como o das mulheres, apresentam riscos acrescidos, como a discriminação e assédio sexual4,5,15-18. A violência afeta particularmente as camadas mais jovens de mulheres e médicos. Mas e o estudante de Medicina?

No início da década de 1980, foi difundido o termo "abuso" para descrever situações de violência vivenciadas por estudantes de Medicina na escola médica, à semelhança de violência de familiares contra crianças, tanto pela identificação de apatia e depressão entre as vítimas, como pela incredulidade e negação de tais situações. Os agressores mais frequentemente identificados nessas situações foram docentes da escola médica e colegas10-13. As formas mais comuns de violência encontradas foram o abuso verbal, como humilhações, xingamentos e intimidação, incluindo ameaças de violência física, perpetradas por superiores hierárquicos como docentes, preceptores, residentes e também pelos pares. Foram assinalados como elementos facilitadores hierarquização, competição e fragilidade das relações interpessoais19-29.

Entre as repercussões adversas sobre a saúde do estudante, os estudos citam depressão e alcoolismo, e sobre a relação do estudante com a própria profissão algumas consequências assinaladas foram maior cinismo, perda da capacidade de percepção do que é correto e desejo de abandonar a carreira médica19, 22,24, 27-29.

OBJETIVO

O objetivo deste trabalho é analisar o tema do trote como aparece nas falas de docentes e estudantes quando são estimulados a relatar situações de violência entre alunos durante a graduação em Medicina.

MÉTODO

Este artigo derivou da pesquisa sobre concepções de alunos e professores acerca do assédio moral/bullying em estudantes durante a graduação em Medicina em uma universidade do Rio de Janeiro. Nesse contexto, como assunto pouco estudado, de abordagem complexa, optamos por utilizar a abordagem qualitativa, por sua capacidade de obter detalhes intrincados sobre determinados fenômenos, como sentimentos, processos de pensamento e emoções difíceis de extrair ou de descobrir por meio de outros métodos de pesquisa30. Esta pesquisa apresentou caráter exploratório, de corte transversal, sob a forma de estudo de caso. Foram feitas entrevistas seguindo um roteiro com perguntas abertas. As respostas foram gravadas, transcritas e analisadas pela técnica de análise temática31. Os critérios de representatividade, homogeneidade e pertinência foram plenamente atingidos.

Os sujeitos da pesquisa foram alunos eleitos pelo corpo discente para o centro acadêmico de medicina (CA) e docentes em cargos de chefia na faculdade de Medicina escolhidos por ocuparem posições de representação formal junto à faculdade. Os chefes de departamento e o coordenador do curso formam o grupo que tem mais contato e responsabilidade direta com os alunos. Assim, qualquer problema maior que envolva alunos tem como caminho natural a chefia do departamento ou é levado diretamente ao coordenador do curso. Paralelamente, a escolha pelos alunos do CA baseou-se em sua posição de interlocução entre o alunado e a administração da faculdade. Abarcaríamos, portanto, as pessoas que concentram as informações acerca das denúncias e ações relacionadas à violência contra estudantes e, nesta medida, desejávamos saber qual era a familiaridade com o tema e, se possível, posicionamentos a respeito.

Os estudantes, na época cerca de 20, foram procurados pessoalmente em quatro ocasiões para receberem explicações sobre os objetivos da pesquisa e serem convidados a participar dela. Os contatos prosseguiram por meio telefônico com todos os que se dispuseram a dar entrevista voluntariamente. O contato pessoal com os docentes foi um pouco mais difícil pela posição de chefia ocupada, o que implicava diversas reuniões e viagens de última hora, dificultando a marcação de entrevistas. Algumas, mesmo marcadas, não foram realizadas. Ao final foram entrevistados seis alunos e cinco dos 11 professores em cargo de chefia de departamento e de curso. Todos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, conforme determina a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

Neste artigo selecionamos o trote como objeto de nossa reflexão, uma vez que foi um tema recorrente das falas de alunos e professores. Trabalharemos as respostas a duas perguntas do roteiro: O que você pensa sobre assédio moral? e Você já teve a experiência, presenciou ou ouviu falar que algum aluno tenha sofrido durante a graduação humilhação, discriminação, desqualificação, ameaças, agressões físicas feitas por estudantes? Você pode descrever como foi? Como você se sentiu?

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Concepções sobre Assédio Moral: Sobre a Diferença de Poder

Antes de entrar na discussão do trote, objeto de nossas reflexões neste artigo, apresentamos sumariamente o que respondem alunos e professores à pergunta "O que você pensa sobre assédio moral?" Os respondentes trouxeram como núcleo de suas respostas a questão da humilhação, na acepção de rebaixamento moral, dentre outros termos correlatos, como desqualificação e submissão. Os conceitos utilizados remetem a um desnível de poder entre os envolvidos. Mas a identificação do fenômeno na escola médica é menos clara. Essa dificuldade é exemplificada a seguir, quando o aluno, instado a pensar sobre o tema, se refere a situações de desnível de poder, como, por exemplo, relações de professor e aluno, mas ainda assim não é algo em que alguma vez tenha pensado. Já o professor também consegue associar a situações da relação professor-aluno, mas tende a minimizar, referindo-se a um tratamento menos "delicado".

"Eu não sei propriamente como é que eu classificaria isso, mas seria uma forma de você dominar ou subjugar alguma outra pessoa, fazendo uso de algum poder, de alguma posição que você tem dentro dessa instituição, no caso entre professor e aluno... nunca pensei nisso." (A5)

"Seria uma maneira de humilhar de alguma forma ao se referir ao funcionário, a uma pessoa de nível hierarquicamente [inferior]... fazer exigências, mas de maneira indelicada, de maneira a humilhá-lo, chamá-lo de "burro", "incompetente" [...] uma coisa é o aluno estar fazendo uma coisa errada e chamar a atenção... acho que o assédio moral está aí, se você buscar conter o problema, mas de uma maneira não delicada..." (D3)

Assim, espontaneamente, à simples menção de situações de humilhação, os entrevistados não fazem qualquer associação com outras possíveis humilhações correlatas, como no trote.

Outro aspecto surgido foi a não familiaridade com o tema dentro da escola médica, denotando que o assédio moral e a violência em geral estão ausentes da pauta de discussões/preocupações. O entrevistado a seguir, refletindo sobre o que lhe é solicitado, tenta aplicar a definição de assédio moral à sua realidade vivenciada, e sua primeira percepção é a de que não existem as condições objetivas para a ocorrência do assédio moral. A impressão é a de que não há assédio:

"

Eu não vejo assédio moral, na medida das suas definições, pela questão da temporalidade... a única coisa que a gente tem de referencial aqui é a turma... Uma coisa seriada... minha turma está junta desde o primeiro período, sempre a mesma turma, ninguém repetiu; então, o único assédio moral que pode ser instaurado é naquela turma porque o cara fica seis meses, um ano estudando junto."

(A6)

Em outro trecho selecionado, é interessante notar que o docente compreende o assédio moral, identificando-o no contexto de uma hierarquia, por meio de práticas que fortalecem as diferenças de poder, o que favorece a exclusão, aproximando-se do que Salin32 apresenta como as condições que favorecem a ocorrência do assédio moral. Entretanto, ele não o associa à possibilidade de ocorrência na escola médica.

"Assédio moral eu acho que é qualquer atitude, de qualquer pessoa, em relação à outra e que causa humilhação a essa pessoa, violência, essa violência moral, não precisa ser violência física, acho que para mim isso é assédio moral. A pessoa usar de subterfúgios, também, para humilhar a pessoa ou para obter o que deseja, pela submissão [...] você tem assédio moral hoje, acho, em todas as categorias. [...] categorias de comando [...], dentro do próprio Exército, na Marinha, essa questão da homossexualidade a gente vê muito, e também dessas questões nestes grupos que estão surgindo, os cabeças raspadas. Também tem a relação da mulher casada, agora tem a delegacia de mulheres, tem a Lei Maria da Penha, tem outras, a mulher sofreu muito, sofre muito hoje também com esta questão, também existe esta questão do machismo, que o homem acha que a mulher é propriedade dele..."

(D4)

Caracterizamos aqui o quanto alunos e professores não associam as situações de assédio moral/bullying àquelas vividas de forma semelhante no cotidiano acadêmico, conforme veremos adiante.

Situações de Abuso Aluno ? Aluno: o Trote

Diante da pergunta "Você já teve a experiência, presenciou ou ouviu falar que algum aluno tenha sofrido durante a graduação humilhação, discriminação, desqualificação, ameaças, agressões físicas feitas por estudantes? Você pode descrever como foi? Como você se sentiu?", tanto alunos quanto professores assinalaram o trote universitário.

Aqui a violência, sob a forma de excessos cometidos durante o trote universitário, é percebida como corriqueira: é normal haver brigas abusivas entre calouros e veteranos. Os alunos atribuem às situações de trote valor circunstancial e individual, isto é, dificuldades, conflitos, desacertos, agressões são individuais, e as respostas a essas agressões são, também, individuais, por se tratar de uma violência consentida, naturalizada, esperada.

Não vejo a questão do trote como assédio moral do calouro... É uma violência... Ok... só que é uma violência que determinadas pessoas aceitam e outras não; aquela pessoa que não aceita não sofre nada, não tem aqui na faculdade, e o tempo que eu estou aqui, eu nunca vi, ouvi nenhuma história, de ninguém que tenha sido violentada... esse tipo de coisa. Agora, história de calouro que caiu na p. com veterano, já, porque é uma briga geral, pessoa a pessoa, aquele cara que não gosta disso, aquele cara que não gosta daquilo outro, aquele que bateu de frente com o outro [...] como tem aqui, tem até no jogo de futebol, entendeu? [...] é claro que a pessoa usou seu poder de veterano num cara que é calouro... (A6)

Dentro da própria medicina, entre alunos e alunos, os alunos que são de períodos acima, mas que acham que têm uma hierarquia dentro da faculdade, que a gente tem que respeitar esta hierarquia, são diversos momentos sociais do calouro, e o cara acha que tem um poder sobre o outro só porque está num período acima... (A5)

O aluno a seguir também reproduz um discurso de violência consentida, mas, quando se lembra de sua própria situação de calouro, vêm à tona rapidamente o desconforto, a sensação de raiva e a impotência, sentidos por ter sido abusado pelos veteranos. Essa dissociação entre o que acontece comigo e com o outro reflete bem a clivagem entre o que Dejours33 coloca como o mundo proximal e o distal. O mundo proximal diz respeito a tudo o que se relaciona diretamente ao indivíduo, e o distal, àquele que ultrapassa essas relações. Na verdade, essa clivagem entre esses dois mundos passa por uma alienação, uma negação e um relativo alheamento ao sofrimento do outro, o que favorece relações eminentemente egocêntricas. De fato, esse autor ressalta tal clivagem como um aspecto importante no processo de banalização do mal ou, em outros termos, de naturalização da violência.

"

Eu não sei se as pessoas ficam mesmo ofendidas, exceto aqueles casos em que todo mundo pega no pé... aquele negócio quando no final do ano todo mundo percebe que vai passar, aí todo mundo relaxa e fica bem, como se aquilo nunca tivesse acontecido... No meu, eu ficava irritado, mas era porque eu tinha que fazer as coisas, eu era do primeiro período, ficava cansado, e as pessoas já estão habituadas àquele ambiente e aí as pessoas se sentem obrigadas a fazer tudo, por puro desconhecimento... E todos os calouros sofreram, rolava até violência, tinha até aquele teatrinho de ficar tacando ovo, mas esse do ovo já acabou porque alguns alunos se machucaram..."

(A1)

Os professores, por sua vez, têm percepções diferentes entre si acerca do tema: alguns admitem a violência do trote, outros não. Chama-nos atenção o reconhecimento do papel do professor como inibidor de tais práticas, o que o reforça como modelo e agente potencial de transformação20,24,34. Entretanto, muitas vezes, os docentes simpáticos aos ritos de passagem do trote agem como se fosse natural viver ou testemunhar a violência. Argumenta-se certa aceitação por parte do corpo docente e da própria universidade quanto à manutenção de um trote que, se por um lado, espalhafatosamente, não resulta em danos graves a algum calouro, por outro, não deixa de se fundamentar em abusos psicológicos, que, banalizados, fogem à atenção35.

"Eu tenho conhecimento de situações atuais em que o calouro é obrigado a se expor pessoalmente, por intermédio de perguntas que os veteranos fazem e em que pedem depoimentos sobre questões particulares, pessoais; então, isso continua acontecendo e a sugestão que foi dada é que os professores estivessem mais envolvidos neste primeiro momento de acolhimento, porque o professor, aí, inibiria os alunos dos períodos, avançados, para que eles não colocassem o poder deles em cima daqueles que estão entrando, para quem tudo é desconhecido..." (D5)

"O trote dentro da universidade está proibido e nós vivenciamos situações em que, realmente, houve um grande assédio, até estelionato, [...] houve uma época, não na nossa, em que nós tivemos algumas situações que são vexatórias." (D1)

"Não, não chega [a seu conhecimento] que eu me lembre assim, não." (D3)

"A maioria dos docentes não faz uma censura direta ao trote, mas sim às maneiras do trote. Realmente, deve-se coibir os excessos. Essa é uma visão de boa parte dos docentes, às vezes [dizem]: 'Ah, isso é só brincadeira, na minha época...', [...] existe uma certa tolerância." (D1)

Um dos descritores utilizados para o trote foi o de "brincadeira". Este termo soa eufêmico para certas situações relatadas durante o trote, pois o que ocorria era a ameaça de retaliação pelos pares, que estavam no comando do trote, de isolamento social, como a não participação na "chopada" e, mais uma vez, a anuência da violência.

"

Eu acho que pelo menos o que eu vejo e de conhecidos meus de outras faculdades é que no trote as pessoas se intimidam, querem

brincar

com calouro... e aí debatem um pouco, as pessoas acabam se divertindo,

até

os próprios calouros começam a levar na brincadeira, é aquilo, algumas pessoas se sentem mal, eu pessoalmente não fiquei nervoso, não tive problema, as pessoas tendem a ser mais enfáticas contra os calouros que ficam mais irritados, que tendem a não entrar na

brincadeira."

(A2)

Associada ao eufemismo "brincadeira" para caracterizar o trote, percebe-se uma contradição no discurso do alunado: o termo "brincadeira" implica divertimento, leveza e entrosamento, mas há uma ameaça de retaliação, pelos pares que comandam o trote, de isolamento social, de constrangimento físico demonstrado pela assunção de que ocorrem embates vigorosos entre calouros e veteranos, da perda de "privilégios", como a "madrinha" ou o "padrinho" no início da faculdade, e da não participação na "chopada", vivenciada como o maior momento de integração entre os alunos. Então a "brincadeira" ocorre à custa dos calouros, para a diversão dos veteranos, coercitivamente, com base no medo, no sentimento, isto é, de ordem psíquica, de não integração e de não pertencimento àquele grupo que será a sua "família". As atividades realizadas no trote, como ritos de iniciação, apresentam três características importantes de suporte e manutenção de um grupo social: promover habilidades e atividades relevantes a esse grupo, reforçar a hierarquia social e estimular formas cognitivas, comportamentais e afetivas de dependência social entre os integrantes36-38.

"O calouro iria sofrer as consequências por querer sair do trote... todo mundo diz pro calouro que ele vai ser isolado na faculdade... Eu, particularmente, nunca vi isso acontecendo... tem uns que participavam mais, outros que participavam menos, mas nunca vi ninguém que ficou isolado por causa do trote... Você teria na faculdade o padrinho ou madrinha, aquele que te passa o material de toda a faculdade, quer dizer, a pessoa que não participa do trote deixa de ter isso [...]. Você não quer participar do trote, você não precisa participar do trote, mas perde isso." (A5)

"O trotão, que na verdade é o trote do segundo período, 'se vocês não pegarem pesado com os calouros, a gente vai pegar pesado com vocês'... [...] e depende muito da 'habilidade política' da pessoa que está lidando com um período acima porque você não pode chegar e bater de frente, porque, quando bate de frente, novamente todo mundo começa a ficar irritado... Acho que existe tradição da faculdade, entendeu? Para entrar na faculdade, uma delas é passar pelo trote, você pode até tentar mudar [...], a maioria das pessoas fala que é brincadeira: 'Ah, eu não quero participar por isso'..., acaba sofrendo retaliação por causa disso e acaba que se sente injustiçado, por exemplo, mas a pessoa poderia ter prevenido isso, entende?" (A5)

"Na minha época, tinha o 'teatrinho', os calouros chegavam e faziam alguma coisa que os veteranos inventavam na hora e, se fosse ruim, jogavam ovo na hora; ovo é uma coisa que machuca, eram de dois a três ovos, e chegou um momento em que a gente já fazia o teatro desviando dos ovos... Eram sempre os mesmos que costumavam exagerar, aí realmente umas pessoas saíram machucadas. Era uma brincadeira e virou um abuso [grifo nosso] e, quando foi a nossa vez de dar

o trote, por mais que houvesse pressões dos outros períodos superiores, acabou aí, foi mais um jogo político, não podia bater de frente, mas aí já tinha chegado a um abuso, algumas pessoas se machucaram. Acabou o teatrinho com a nossa turma e não teve mais..." (A1)

"No Orem [Olimpíada Regional dos Estudantes de Medicina] tinha uma galera aqui da faculdade que intimidava os outros colegas calouros durante o trote... e teve um Orem, o único Orem em que eu fui, tinha um grupo que queria entrar para essa galera... para essa 'patotinha'... Eles fizeram um rito de passagem e fizeram os caras se jogar no rio São Francisco... os caras poderiam ter morrido afogados só pra entrar nessa patotinha... aquele rio imundo para eles nadarem... se isso é assédio moral eu não sei... mas é minimamente ridículo..." (A4) [grifo nosso]

Outro aspecto é o abuso de álcool, que tem sido relatado na maioria dos incidentes relacionados ao trote. Pode ser indireto, com acesso fácil ao álcool e reforçando o comportamento de beber observando outros fazerem o mesmo, ou direto, significando beber rapidamente se não quiser sofrer punição social12,36.

Com relação a este último ponto, o trote remonta à ideia de rito de passagem, que, segundo Markstrom39, pressupõe três estágios enfrentados durante o processo: separação, transição e integração. A separação diz respeito à separação do indivíduo, ou de grupos de indivíduos, da sociedade como um todo, isto é, a transição ritualizada implica um rompimento simbólico com os padrões de vivência anteriores daqueles indivíduos. A ele se segue o estado de transição, que indica o início da assimilação de novos valores, mitos, crenças e condutas de determinada fase, ou seja, de uma enculturação, que é muito favorecida pelo afastamento proporcionado pela fase anterior. Assim, uma nova identidade vai sendo construída na direção de um novo papel. Cabe aqui questionar: se esse é o papel do trote, o de ser um rito de passagem, que valores os alunos estão assimilando como pertinentes a essa nova fase de seu desenvolvimento?

CONSIDERAÇÕES FINAIS - COMBATE AO ASSÉDIO MORAL/BULLYING: BANALIZAÇÃO DO ABUSO E PAPEL DA UNIVERSIDADE

Nas entrevistas, alunos e docentes relataram, de acordo com pesquisas conduzidas anteriormente, situações comuns de abusos, de caráter tanto verbal, como físico, no trote. Entretanto, estes relatos não foram acompanhados de um reconhecimento do abuso, tampouco do sofrimento imbuído, mas antes trouxeram um tom de legitimidade, de justificativa e entendimento dessas situações. Esse fenômeno ficou demonstrado tanto na dificuldade de estabelecer uma ponte entre o que é percebido como assédio moral/bullying e o que no cotidiano acadêmico acontece, assim como nas situações de abusos físico, psíquico e até estelionato durante o trote.

Mas por que alunos e docentes tendem a aceitar o trote, mesmo que admitam, quando questionados, que há certa violência? A violência não é considerada como tal, é trivial, banal? Uma possível explicação é a ausência de reflexão sobre o tema, um certo sentimento de impotência, por um lado, e a negação, por outro. Esta é subliminarmente estimulada quando a competição é a tônica das relações entre alunos e entre docentes. Ela está na base das políticas de gestão de recursos humanos nas instituições de saúde em geral e também nas universidades. É exatamente o ponto da negação do outro para o qual Dejours e Arendt chamam a atenção quando tratam da violência33,40. Dejours ainda afirma que o sofrimento daquele que é alvo de abusos não traz repercussões porque não se percebe nessas situações por eles vividas a injustiça. Mas de que maneira isso pode ocorrer?

O sofrimento somente suscita um movimento de solidariedade e de protesto quando se estabelece uma associação entre a percepção do sofrimento alheio e a convicção de que esse sofrimento resulta de uma injustiça. Evidentemente, quando não se percebe o sofrimento alheio, não se levanta a questão da mobilização numa ação política, tampouco a questão de justiça e injustiça

33

.

Mas qual o papel da universidade? Nas respostas, dois aspectos foram acentuados: a abertura ao diálogo e a elaboração de estratégias de enfrentamento pela universidade. Um dos pontos centrais nessa discussão vai além da apropriação e familiarização com o tema do assédio moral/bullying. Na verdade, a universidade deve deixar claro que não tolerará qualquer tipo de violência. Quando chamamos a atenção para a questão do papel do trote como rito de passagem, cabe questionar que valores devem caracterizar a nova fase do desenvolvimento do aluno, se ela tem a ver com o trote da maneira como é concebido. O que se espera dos estudantes de Medicina é se importar com o outro ou agredir o outro sem que isso tenha qualquer problema, sendo a violência encarada como natural? Ou, o que é ainda pior, isto significa que estamos todos nas mãos de poderosos e nessas condições só nos resta submeter-nos? A convivência democrática pressupõe a existência de regras que devem ser pactuadas e seguidas por todos, construídas com diálogo, com negociação. Sejam seus agentes alunos, professores, outros profissionais de saúde, funcionários, pacientes... violência é sempre violência e como tal se constrói como a antítese do diálogo, como bem o afirma Noberto Bobbio a respeito de relações internacionais, afirmação esta que começa a fazer sentido precisamente no cotidiano de nossas vidas nas instituições onde estamos inseridos:

O diálogo é sempre um discurso de paz e não de guerra [...]. Nenhuma prova é melhor sobre o fato de que diálogo e confronto são termos antitéticos: o diálogo somente pode iniciar quando o confronto termina, o confronto começa quando o diálogo não é mais possível 41. (p. 189)

O diálogo mostra-se hoje, mais do que nunca, necessário. Aos homens, na impossibilidade de se ignorarem em um planeta que se tornou pequeno na medida dos seus conhecimentos e das suas técnicas, não é possível outra escolha que não seja entre o diálogo e a violência. O dilema é claro: a conversa ou o combate41. (p. 191)

Dessa maneira, onde há confronto e violência é onde o diálogo fracassou. Se na universidade estamos comprometidos com a ideia de formar pessoas preparadas para o diálogo, comprometidas com um mundo de paz, não podemos ser coniventes ou tolerantes com qualquer tipo de violência. Este artigo, longe de querer responsabilizar pessoas individualmente pela violência, chama a atenção para a necessidade de iniciarmos, nas escolas médicas, com máxima urgência, uma profunda reflexão sobre todas as formas de violência com vistas à elaboração de uma política de combate a todas as formas de violência que seja fruto de uma ampla reflexão entre todos os envolvidos, alunos, professores e técnicos, para que ela possa ser eficaz.

Recebido em: 16/11/2009

Reencaminhado em: 02/03/2010

Aprovado em: 02/03/2010

CONFLITO DE INTERESSES

Declarou não haver.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Fabiana de Mello Villaça realizou a pesquisa e elaborou a primeira versão do manuscrito. Marisa Palacios orientou o trabalho de pesquisa e reviu o manuscrito, contribuindo também para sua redação final. O texto final foi aprovado por ambos os autores.

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  • Endereço para correspondência:

    Fabiana de Mello Villaça
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      16 Nov 2009
    • Revisado
      02 Mar 2010
    • Aceito
      02 Mar 2010
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