RESUMO
Objetivos
Avaliar a saúde mental dos estudantes, estratégias defensivas, fontes de estresse e alívio associadas a diferentes processos educacionais.
Método
Estudo qualitativo e transversal realizado em fevereiro de 2014 por meio de grupos focais e questionário semiestruturado com 78 estudantes do terceiro semestre de duas escolas médicas numa mesma universidade pública: uma com 53 anos, na capital, com modelo de ensino tradicional, e a outra com três anos, no interior,com modelo de Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP). Foi realizada análise descritiva dos dados sociodemográficos, psicoemocionais e processo educacional do questionário e análise de conteúdo temática, além de interpretação psicodinâmica dos dados dos grupos focais.
Resultados
Responderam ao questionário 38 alunos da escola tradicionale 40 daABP, sendo a maioria do sexo masculino (52,6%), com idade 22+2 anos e solteiros (85%). Dois grupos focais com oito alunos de cada escola revelaram motivações, fontes de estresse e de alívio semelhantes entre os alunos, porém sofrimento psíquico menor nos alunos da ABP, que também referiram maior aproximação de seus professores e pactuação das tarefas.
Conclusão
O processo educacional foi associado a sofrimento psíquico por alunos de ambos os grupos.
Estudantes de Medicina; Saúde Mental; Transtorno Mental; Educação Médica
ABSTRACT
Objectives
To evaluate student mental health, defensive strategies, sources of stress, and relief associated with different educational processes.
Methods
A qualitative and cross-sectional study was carried out in February 2014 through focus groups and semi-structured questionnaireson 78 students in the 3rd semester at two medical schools in the same public university: one with a 53-year history based in the state capital and that uses traditional teaching models, and the other founded only 3 years ago, located in the interior of the state and using Problem Based Learning (PBL). We carried out a descriptive analysis of the dataemergent from the questionnaire andperformed thematic content analysis, along with a psychodynamicinterpretationof data fromfocus groups.
Results
38 students from the traditional school and 40 students from the PBL school answered the questionnaire. Most were men(52.6%) aged 22+2years and single(85%). Twofocus groups with8students fromeach schoolrevealedsimilar motivations, sources of stress andreliefamong students, but less psychological distresswas registered inPBLstudents,who reported greatercloseness with teachersand agreementon tasks.
Conclusion
Educationalprocesseswere associated withpsychological distress amongstudentsin both groups.
Medical Students; Mental Health; Mental Disorders; Medical Education
INTRODUÇÃO
A saúde mental dos profissionais de saúde constitui motivo de preocupação desde o início do século, tendo em vista o caráter estressante do trabalho em saúde. A natureza do exercício profissional e da organização desse trabalho pode concorrer para o desenvolvimento de distúrbios emocionais11. Aguiar SM, Vieira A, Vieira KMF, Aguiar SM, Nóbrega JO. Prevalência de sintomas de estresse nos estudantes de medicina. J Bras Psiquiatr. 2009;58(1):34–8..
O médico tem sido objeto de estudos devido à singularidade de sua atividade e ao comprometimento mais evidente de sua saúde mental. Desde o início da vida acadêmica, o vestibular extremamente competitivo, a metodologia de ensino, que é diferente da usada no ensino médio, o curso básico longo e que,nos modelos tradicionais flexnerianos, adia o contato com o paciente e pode ocasionar frustração ao aluno, o ritmo de plantões e a escolha da especialidade se destacam como fatores de estresse.
Segundo Ennset al.22. Enns MW, Cox BJ, Sareen J, Freeman P. Adaptive and maladaptive perfectionism in medical students: a longitudinal investigation. Med Educ. novembro de 2001;35(11):1034–42., a pressão para aprenderuma grande quantidade de informações, falta de tempo para lazer e atividades sociais, o contato quase diário com o sofrimento e com a morte no cuidado de pacientes graves são fatores que, além de prejudicarem a qualidade de vida do estudante de Medicina, podem precipitar o desenvolvimento de alguns transtornos mentais, comodepressão, transtornos de ansiedade, dependência de substâncias psicoativas e suicídio, já demonstrado como tendo maior prevalência nesse grupo do que na população em geral.
Estudos observaram diminuição na qualidade de vida e no sono, além de aumento da depressão em estudantes de Medicina durante o internato. Também detectaram uma significativa deterioração nos domínios da vitalidade e saúde física e psíquica ao estudarem prospectivamente a qualidade de vida relacionada à saúde num grupo de estudantes do último ano do curso médico durante dez meses33. Goldin SB, Wahi MM, Farooq OS, Borgman HA, Carpenter HL, Wiegand LR, et al. Student quality-of-life declines during third year surgical clerkship. J Surg Res. novembro de 2007;143(1):151–7..
O diferencial deste nosso estudo está no fato de que pudemos pesquisar estudantes de uma mesma universidade, mas queestão submetidos a diferentes processos educacionais, pois esta instituição pública oferece dois cursos de Medicina com características diversas. Um dos cursos está localizado na capital do Estado, foicriado em 1961 e tem ensino de modelo tradicional, com currículo flexneriano, dividido em ciclo básico, pré-clínico e internato e que, apesar de ter sofrido algumas alterações ao longo do tempo, não mudou significativamente, preservando suas características e mantendo a falta de integração entre os ciclos. O outro curso, localizado no interior do Estado, também desenvolvido em período integral, foi inaugurado em 2012, mastem o modelo Aprendizado Baseado em Problemas (ABP). Ambos os cursos ofereciam 50 vagas em 2012.
Em 1910, acompanhando o paradigma médico e científico hegemônico da época, foi publicado o famoso Relatório Flexner, que fixou as diretrizes da educação médica nos Estados Unidos. Esse modelo, ainda hoje também adotado no Brasil por várias escolas médicas, se caracteriza por:
Uma nítida separação entre o ensino básico, oferecido nos primeiros anos, e o ensino clínico,ministrado nos últimos anos de graduação; Uso intensivo de aula expositiva para grandesgrupos de alunos; A ênfase no papel do professor como fonte principal de conhecimento, valorizando a informação e não a formação do aluno; Cursos independentes e pouco coordenados. Cada departamento coordena isoladamente seu curso; Especialização precoce do aluno44. Millan L, De Marco O, Rossi E, De Arruda P. O Universo Psicológico do Futuro Médico: Vocação, Vicissitudes e Pespectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999.(p.33).
Ainda segundo o Relatório Flexner, a escola médica deveria ter o corpo docente dedicado permanentemente ao ensino e à pesquisa. A ênfase da formação recai no estudo das doenças e na assistência aos enfermos, além de ressaltar a importância do hospital-escola, relegando a um segundo plano a assistência médico-ambulatorial, oferecida nos postos e centros de saúde. Nesse modelo, os estudantes de Medicina passam a ter uma visão distorcida das enfermidades, uma vez que dois terços das queixas registradas na prática médica cotidiana envolvem enfermidades pouco graves e de duração curta55. Boulos. A relação médico-paciente do ponto de vista do clínico. In: Marcondes E, Gonçalves E, eds. Educação Médica. São Paulo, Servier; 1998..Mesmo após vários estudos terem demonstrado a inadequação do modelo, ele ainda predomina na maioria das escolas médicas brasileiras66. O Relatório Flexner: Para o Bem e Para o Mal. Available at: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v32n4/v32n4a12.pdf. Acesso em:16 jan 2010.
http://www.scielo.br/pdf/rbem/v32n4/v32n...
,77. Abordagens Pedagógicas e Tendências de Mudanças nas Escolas Médicas. Available at: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v33s1/a06v33s1.pdf. Acesso em:16 jan 2010.
http://www.scielo.br/pdf/rbem/v33s1/a06v...
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Marcondes e Gonçalves44. Millan L, De Marco O, Rossi E, De Arruda P. O Universo Psicológico do Futuro Médico: Vocação, Vicissitudes e Pespectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999. ressaltam que o currículo das escolas (que não forma o médico generalista) está ajustado ao mercado de trabalho e não às necessidades da população88. Marcondes E, Gonçalves E. Educação Médica. São Paulo: Servier; 1998..Com isto, a assistência médica no Brasil ficou prejudicada devido à escassez de clínicos gerais com uma visão integrada do ser humano. A peregrinação por diferentes especialistas tornou-se, cada vez mais, uma incômoda rotina para os pacientes.
Diante disso, o Ministério da Educação (MEC), em 2001, na divulgação das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (DCN), ressaltou a importância de adotar metodologias ativas de ensino, centradas no estudante como construtor do seu conhecimento99. Brasil. Resolução CNE/CES - Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em medicina. 4 ed. 2001; 1, p 38..As DCN de 2014 acrescentaram pouco em relação às DCN de 2001. Aquelas eram mais concisas e claras, especialmente para servir como um documento norteador das ações de gestão do currículo.
As metodologias ativas se caracterizam por colocar o discente no centro do processo ensino-aprendizagem, facilitando o desenvolvimento de um olhar ampliadoacerca do ser humano e das suas relações sociais e com o ambiente. Elas favorecem a formação de uma postura humanística e ética, voltada para a atenção ao enfermo1010. Siqueira-Batista R, Rôças G, Gomes AP, et al. Ecologia na formação do profissional de saúde: promoção do exercicio da cidadania e reflexão crítica comprometida com a existência. 2009;33(2):271-275..Problematização e Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) são exemplos de metodologias ativas de ensino. Ambas se apoiam na pedagogia crítica e têm em comum o fato de trabalhar com situações-problema para o desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem1111. Berbel N. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos? 1998;2(2):139-154.,1212. Marin M, Lma E, Paviotti AEA. Aspectos das fortalezas e fragilidades no uso das Metodologias Ativas de Aprendizagem. 2010;34(1):13-20.
A formação humanística e ética do futuro profissional tem sido objeto de preocupação e reflexão de vários docentes brasileiros há vários anos, entre eles Arruda1313. Arruda P. Arelação médico-paciente do ponto de vista do psiquiatra.In: Marcondes E, Gonçalves EL. Educação Médica. São Paulo: Casa do Psicólogo,1998.,que acredita que, com a ênfase no ensino da Psicologia Médica, “os alunos têm a chance de estudar e praticar a relação médico-paciente e com isso tornar cada vez menor a problemática da contratransferência, assim evitando a formação de quadros iatrogênicos”(p.65).
A vertiginosa, profunda e poderosa evolução que se processa no campo médico e que imprime marcas tão sensíveis na sociedade, nos doentes e nos próprios médicos, exige uma serena e vigorosa reflexão sobre as questões da Escola Médica, incluindo uma análise crítica da própria grade curricular da formação médica, com vistas a flexibilizá-la e adequá-la às necessidades e exigências dos novos tempos. [...] Se a medicina se quer uma profissão dedicada ao homem não pode deixar de assumir a responsabilidade pela formação humanística do médico, que não pode ingenuamente ser confundida com cultura geral e boas maneiras1414. Sampaio AP. O médico e o desafio dos novos tempos. In: Meleiro A, ed. O Médico como paciente. 2 ed. São Paulo: Segmentofarma; 2005..(p.19).
A ABP é também uma proposta de reestruturação curricular que objetiva a integração de disciplinas tendo em vista a prática. Para isso, organiza-se um elenco de situações que o aluno deverá saber/dominar, considerando o tipo de organização curricular1515. Cyrino EG, Toralles-Pereira ML. Trabalhando com estratégias de ensino-aprendizado por descoberta na área da saúde: a problematização ea aprendizagem baseada em problemas. Cad Saúde Pública. 2004;20(3):780–8..
Estudos realizados no curso de modelo tradicional da universidade pesquisada demonstraram alta prevalência de transtorno mental comum, sintomas depressivos e síndrome de burnout entre os estudantes de Medicina, sendo que os fatores potencialmente associados após regressão logística estavam relacionados ao processo ensino-aprendizagem1616. Costa EFO, Andrade TM, Neto S, Muniz A, Melo EV, Rosa ACA, et al. Common mental disorders among medical students at Universidade Federal de Sergipe: a cross-sectional study. Rev Bras Psiquiatr. 2010;32(1):11–9.,1717. Costa EFO, Santana YS, Santos ATRA, Martins LAN, Melo EV, Andrade TM. Depressive symptoms among medical intern students in a Brazilian public university. Rev Assoc Médica Bras. 2012;58(1):53–9.,1818. Oliva Costa EF, Santos SA, Abreu Santos ATR, Melo EV, Andrade TM. Burnout Syndrome and associated factors among medical students: a cross-sectional study. Clinics. 2012;67(6):573–9.. Dessa forma, surgiu a motivação para realizar o presente estudo, que se diferencia dos demais por avaliar os alunos do curso médico recém-criado na mesma instituição,com o método de ensino ABP, comparando-o com os do curso mais antigo e de modelo tradicional no que se refere às implicações da formação médica sobre a saúde mental dos alunos.
Acreditamos que seja função da comunidade acadêmica fazer de modo continuado uma revisão crítica do seu papel na promoção, prevenção e manutenção de possíveis agravos à saúde mental dos estudantes, o que contribuirá para a formação de médicos bem preparados não só tecnicamente, mas também humanística e emocionalmente para melhor lidar com os problemas de saúde da populaçãoque necessita dos seus serviços.
OBJETIVOS
– Investigar a formação médica e suas implicações na saúde mental dos estudantes dos dois cursos de Medicina da universidade estudada;
– Identificar as principais motivações para a escolha profissional;
– Identificar fatores de estresse e de alívio da tensão associados às atividades desempenhadas;
– Identificar as estratégias defensivas utilizadas pelos estudantes de Medicina na preservação da sua saúde mental.
MÉTODO
Local de estudo
Dois campi da Saúde de universidade pública do Nordeste do Brasil.
População estudada
Esta pesquisa foi dirigida aos estudantes do terceiro semestre do curso de Medicina de dois campi, um localizado na capital e outro situado no interior do Estado.
Desenho do estudo e coleta de dados
Estudo qualitativo e transversal realizado por meio da técnica de Grupo Focal1919. Hogle J, Stalker M. Realizando Discusiones efectivas de Grupo Focal. 1994. em dois momentos, um com alunos do curso tradicional e outro com os de modelo ABP, e por meio de questionário semiestruturado. Também participaram dos grupos duas professoras, sendo uma moderadora e outra observadora, e duas alunas pesquisadoras, responsáveis pelas anotações nos cadernos de campo da fala subliminar de algum aluno no grupo e que não apareceria na gravação, sendo todas autoras do presente estudo.
As autoras elaboraram previamente um roteiro simples com temas abertos sobre saúde mental e processo de formação médica a serem debatidos nos grupos, mas a fala livre dos participantes foi priorizada.
A partir dos temas, os membros dos grupos foram convidados a falar abertamente, sabendo que suas falas seriam gravadas, e foi solicitado que dissessem seus nomes quando iniciassem as falas. As duas alunas participaram como observadoras. Ambas estavam com cadernos de notas para enumerar o nome dos alunos e relacionar suas falas a fim de facilitar a transcrição posterior. Cada sessão durou 90 minutos em ambiente confortável, em círculo, de acordo com as recomendações técnicas do autor citado acima.
Instrumentos de pesquisa
Após o preenchimento do termo de consentimento livre e esclarecido, 38 alunos do curso tradicional e 40 do ABP responderam a um questionário semiestruturado elaborado pelas autoras sobre características sociodemográficas, processo de ensino-aprendizagem e aspectos psicoemocionais. Desses alunos, foram sorteados 12 de cada curso para participarem do grupo focal a partir da numeração do termo de consentimento. Esses alunos foram consultados sobre a possibilidade de data e horário para participação nessa atividade, sendo que 11 do tradicional e 12 do ABP concordaram com uma mesma data, que foi então agendada. Sete alunos do curso tradicional e oito do ABP participaram, na data marcada, de dois diferentes grupos focais, quando também assinaram um novo termo de consentimento para a participação nessa atividade e autorização da gravação de sua fala, que foi transcrita posteriormente e analisada conforme o método de pesquisa clínico-qualitativa em saúde descrito por Turato2020. Turato ER. Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa Qualitative and quantitative methods in health: definitions, differences and research subjects. Rev Saúde Pública. 2005;39(3):507–14..
Análise de dados
– Preparação inicial: processo de editoração a partir da transcrição completa de toda a fala gravada durante os grupos focais.
– Pré-análise: leitura flutuante, numa analogia com a atenção flutuante do psicanalista, buscando retirar do texto transcrito os dados mais relevantes e/ou repetidos.
– Categorização: lapidação dos dados brutos, selecionando-se os temas, categorias e subcategorias, obedecendo aos critérios de repetição e/ou relevância.
– Validação externa: supervisão e leitura da transcrição e análise dos grupos por dois diferentes psicanalistas isentos e neutros com experiência em pesquisa qualitativa que não participaram deste estudo. A apresentação dos resultados em eventos científicos da instituição pesquisada e aos alunos participantes, com a concordância dos mesmos, reforça nossos achados.
– Apresentação dos resultados: de forma descritiva, com algumas citações de falas, preparando para a análise de conteúdo temática interpretativa dos grupos focais, numa perspectiva psicodinâmica, utilizando conceitos da teoria psicanalítica.
CONSIDERAÇÕES ÉTICAS
Este estudo foi elaborado segundo a Declaração de Helsinque (1964) e a resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, sendo liberado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Sergipe com CAAE número 21202913.1.0000.5946. Todos os procedimentos éticos propostos e aprovados por este Comitê foram estritamente seguidos pela equipe de pesquisa, sendo garantida aos participantes a confidencialidade das informações, bem como o direito de não aceitar participar da mesma.
RESULTADOS
Dos 50 alunos de cada curso, 38 estudantes da universidade que apresenta modelo tradicional de ensino entregaram o questionário com dados sociodemográficos, ao passo que 40 estudantes da universidade de modelo ABP responderam ao instrumento. O perfil epidemiológico dos estudantes dos dois cursos foi bem semelhante, já que a maioria tinha média de idade entre 22 ± 2 anos, era solteira, vivendo com a família, praticante de alguma religião e insatisfeita com as estratégias de ensino.Os alunos do curso tradicional eram principalmente do sexo masculino (60,5%), enquanto 55% dos alunos do curso ABP eram do sexo feminino (Tabela 1).
Distribuição dos alunos dos dois cursos de Medicina da UFS de acordo com variáveis sociodemográficas, aspectos pessoais e processo educacional Aracaju, Sergipe, Brasil, 2014
Em fevereiro de 2014, dois grupos focais foram realizados. O primeiro foi composto por sete estudantes do curso tradicional do campus localizado na capital, e o segundo por oito estudantes do curso ABP do campus do interior. No primeiro grupo, cinco estudantes eram do sexo feminino e dois do sexo masculino; no segundo, dois eram do sexo feminino e seis do sexo masculino.
Foi observado que as motivações para a escolha do curso foram semelhantes nos dois grupos, entre elas o desejo de uma vida estável e de reconhecimento social, o sonho de criança com amedicina e o incentivo dos pais à carreira médica.
Entre os fatores de estresse relacionados ao curso, os alunos relataram falta de tempo para o lazer, poucas horas de sono por noite e extenso conteúdo didático. Os alunos do campus de Lagarto mencionaram ainda a falta de estrutura física do campus, que se encontrava apenas no segundo ano de funcionamento. Além disso, o fato de fazerem parte da primeira turma do curso acarreta um sentimento de insegurança quanto ao método de ensino, já que não conheciam previamente profissionais formados por esse método. Por fim, esses alunos relataram sentimento de solidão relacionado ao fato de a cidade de Lagarto se situar no interior do Estado de Sergipe, e, por isso, a maioria dos estudantes cujas famílias residem em Aracaju foi morar sozinha no interior.
Os fatores de alívio e prazer apresentaram semelhanças e diferenças entre os dois grupos. Como fatores semelhantes, os alunos de ambas as escolas relataram que receberboas notas em reconhecimento dos seus esforços, verificar a aplicabilidade prática do conhecimento adquirido, ouvir música e sair com os amigos eram fatores de alívio e prazer ao longo do curso.
Em relação às particularidades de cada curso quanto aos fatores de alívio, obteve-se que estudantes do método ABP terem conhecido uma professora que exercia a medicina e que havia sido formada no mesmo método que eles estavam estudando os tranquilizou quanto ao resultado desse método. Esse mesmo grupo relatou ainda que a reunião com professores para debater a situação do curso, além dos momentos de tutoria, em que há discussão dos assuntos com seus tutores em sala com 10 a 12 alunos, foram formas de aliviar suas angústias e dúvidas em relação à matéria, como também quanto à efetividade do modelo pedagógico que estavam seguindo.
Sobre o processo de ensino-aprendizagem, as queixas foram inúmeras. No curso de modelo tradicional, foram referidos como fontes de estresse o grande volume de informação, com falta de seleção do conteúdo prioritário para ser aprendido, distanciamento das aulas teóricas da aplicação prática e falta de aulas com pacientes. Por fim, queixaram-se da dissociação entre as avaliações e o esforço realizado pelo aluno para essa avaliação, trazendo um sentimento de injustiça, segundo eles.
No curso de modelo ABP, os alunos relataram que o contato com a prática já no início do curso levou a maior motivação do aluno, propiciou o contato com o mesmo assunto em mais de um momento e foi importante na recapitulação e, com isso, na maior sedimentação do conteúdo.
Os sintomas físicos e emocionais relatados pelos alunos do modelo tradicional nos períodos de estresse foram irritabilidade, ansiedade, insônia, constipação, humor lábil, baixa autoestima e choro fácil. Os alunos do modelo ABP mencionarammenos sintomas quando comparados aos alunos do modelo tradicional, entre eles tristeza e choro fácil. Um dos alunos de Lagarto fazia uso de cigarro, o que aliviava sua ansiedade (Quadro 1).
Fatores relatados nos grupos focais relativos aos dois grupos de estudantes Aracaju, Sergipe, Brasil, 2014
DISCUSSÃO
Várias características do curso de Medicina o tornam potencialmente prejudicial na dimensão psicológica dos estudantes. Os fatores identificados como estressantes na educação médica foram alta carga horária, densidade de informações e cobrança dentro e fora do ambiente acadêmico2121. Gonçalves SS, Neto S, Muniz A. Psychological dimension of quality of life among Medical students. Rev Bras Educ Médica. 2013;37(3):385–95..
No presente estudo, foram percebidos resultados semelhantes aos citados acima, pois estudantes do segundo ano de ambos os cursos ressaltaram como principais fatores estressores falta de tempo para lazer, poucas horas de sono e conteúdo extenso para as provas: “tem professores que jogam tudo, tudo, tudo, pra você fazer uma prova com 10 capítulos, 15 capítulos...”.
Os alunos de Medicina apresentam muitas dificuldades em comum, incluindo falta de tempo e exaustão nos primeiros períodos de intenso estudo, além do convívio com o sofrimento e a dor que acompanham o processo de adoecimento e morte. Ao se deparar com tantas dificuldades, o estudante é afetado por insegurança, cansaço, tristeza. Ainda assim, não deve se deixar abater: além de todos os obstáculos que deve transpor, o futuro médico precisa aprender a se portar de modo a corresponder às demandas dos professores, dos colegas e da sociedade. Há exigência por um profissional totalmente comprometido, capaz de manter a calma e a sanidade em situações adversas, além de, muitas vezes, sacrificar a própria condição de vida a fim de se dedicar à de outros2222. Feodrippe ALO, Brandão MCF, Valente TCO. Medical students’ quality of life: a review. Rev Bras Educ Médica. 2013;37(3):418–28..
Segundo avaliação pelo Whoqol-Bref na Faculdade Pernambucana de Saúde no Recife, o estresse se torna um fator importante com o início do treinamento médico e concorre para a redução do bem-estar psíquico e o aumento de sintomas ansiosos, depressivos e síndrome de burnout, ainda que os estudantes de Medicina apresentem características psicológicas semelhantes às dos estudantes de outras áreas no início do curso de graduação: “talvez o maior reconhecimento que a gente enxergue, por mais que pra mim não seja um reconhecimento, sejam as notas, talvez seja o gratificante mesmo do momento, pelo menos pra maioria da turma.”2323. Alves JGB, Tenório M, Anjos AG dos, Figueroa JN. Quality of life among first and last-year medical students: an evaluation using Whoqol-bref. Rev Bras Educ Médica. 2010;34(1):91–6..
Estudo anterior com estudantes de Medicina na mesma universidade que pesquisamos agora detectou alta prevalência de sintomas depressivos1717. Costa EFO, Santana YS, Santos ATRA, Martins LAN, Melo EV, Andrade TM. Depressive symptoms among medical intern students in a Brazilian public university. Rev Assoc Médica Bras. 2012;58(1):53–9., Síndrome de Burnout1818. Oliva Costa EF, Santos SA, Abreu Santos ATR, Melo EV, Andrade TM. Burnout Syndrome and associated factors among medical students: a cross-sectional study. Clinics. 2012;67(6):573–9. e, ainda, de Transtorno Mental Comum1616. Costa EFO, Andrade TM, Neto S, Muniz A, Melo EV, Rosa ACA, et al. Common mental disorders among medical students at Universidade Federal de Sergipe: a cross-sectional study. Rev Bras Psiquiatr. 2010;32(1):11–9..
O presente estudo também verificou o sofrimento psíquico apresentado nos estudos anteriores e se propôs a comparar esses resultados com os dos estudantes de escola com modelo ABP, já que pesquisas com alunos de escolas que utilizam o método ABP evidenciam redução do nível de estresse em comparação a alunos de escolas tradicionais2424. Vignochi CM, Silva Benetti C, Machado CLB, Manfroi WC. Considerações sobre aprendizagem baseada em problemas na educação em saúde. Clin Biomed Res [Internet]. 2009 [citado 15 de dezembro de 2014];29(1). Recuperado de: http://www.seer.ufrgs.br/hcpa/article/viewArticle/6970
http://www.seer.ufrgs.br/hcpa/article/vi...
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Um estudo qualitativo na Universidade Federal de Santa Catarina indicou que, enquanto certos estudantes mencionaram lidar naturalmente com as situações de estresse, alguns procuraram assistência profissional de um psicólogo. Entre os que desenvolveram estratégias, as apontadas incluíam valorização dos relacionamentos interpessoais e de fenômenos do cotidiano, equilíbrio entre estudo e lazer, organização do tempo, cuidados com a saúde, alimentação e sono, prática de atividade física, religiosidade, trabalhar a própria personalidade para lidar com situações adversas e procura por assistência psicológica2525. Zonta R, Robles ACC, Grosseman S. Estratégias de enfrentamento do estresse desenvolvidas por estudantes de medicina da Universidade Federal de Santa Catarina. Rev Bras Educ Méd. 2006;30(3):147–53..
Nossa pesquisa corrobora esses dados e, além disso, detectou na fala dos alunos que nenhum dos dois cursos pesquisados conta com um serviço de apoio psicopedagógico ao estudante de Medicina, o que agrava o problema: “a gente se sente meio sozinho em relação ao que era antes, é a questão da desmotivação”.
Em estudo com alunos do curso de Medicina de Sorocaba, aproximadamente um quarto deles em cada ano não se encontrava plenamente satisfeito com sua saúde, embora a grande maioria dos jovens do primeiro ano (86%) ou do último ano (88%) tenha considerado sua qualidade de vida como boa. Este dado é intrigante, já que estamos lidando com uma população jovem, em sua grande maioria com alto poder aquisitivo e, teoricamente, com amplo acesso aos mecanismos de promoção à saúde. Os autores levantaram a hipótese de que o uso de tabaco e de bebidas alcoólicas e a falta de exercícios físicos estariam prejudicando a saúde desses estudantes2626. Ramos-Dias JC, Libardi MC, Zillo CM, Igarashi MH, Senger MH. Qualidade de vida em cem alunos do curso de Medicina de Sorocaba–PUC/SP. Rev Bras Educ Med. 2010;116–23..
Quando comparando os dois grupos, verificaram-se graus elevados de estresse e sofrimento subjetivo em ambos, porém em grau um pouco menornaquele com o método ABP. Provavelmente, a metodologia “ativa” – ou seja, a busca realizada pelo aluno do conteúdo para a discussão nas sessões de tutorial com os professores – possibilita a experiência de buscar também as soluções para seus problemas com seu curso. Inclusive, alguns deles participavam do centro acadêmico e costumavam reunir-se com os professores para falar sobre esse tema. Os mesmos alunos relataram também que essas experiências aliviavam suas ansiedades e receios relacionados à estrutura do curso e a sua metodologia. O curso tradicional já não estimula essa atitude de busca ativa do conhecimento, pois as aulas são ministradas apenas pelo professor, sem, muitas vezes, a participação do estudante no processo de aprendizado: “o que o professor diz em três minutos de aula são dez páginas, aí fica complicado a gente saber o que é importante pra estudar...”.
O menor grau de ansiedade subjetiva verificado nos alunos do campus do interior também pode estar relacionado ao maior contato deles com seus professores, característica do método ABP, visto que nas sessões tutoriais as turmas são de apenas 10 a 12 alunos, diferentemente das aulas tradicionais com os 50 alunos numa mesma aula. Essa diferença verificada no presente estudo foi corroborada por pesquisa com alunos de escolas que utilizaram o método ABP e evidenciou redução do nível de estresse em comparação a alunos de escolas tradicionais. A pesquisa justifica que um ambiente livre de tensões e limitações favorece as tentativas de conquista do saber, ao mesmo tempo em que permite ao professor a análise das relações estabelecidas em termos da lógica existente nas soluções apontadas pelo aluno2424. Vignochi CM, Silva Benetti C, Machado CLB, Manfroi WC. Considerações sobre aprendizagem baseada em problemas na educação em saúde. Clin Biomed Res [Internet]. 2009 [citado 15 de dezembro de 2014];29(1). Recuperado de: http://www.seer.ufrgs.br/hcpa/article/viewArticle/6970
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Como limitação deste estudo, temos o fato de ter sido realizado apenas com alunos que aceitaram participar e, por isso, pode não refletir o sentimento de todos os alunos do terceiro semestre de Medicina de ambos os cursos desta universidade, apesar de ter havido alta adesão das duas turmas investigadas para o preenchimento do questionário semiestruturado.
CONCLUSÃO
O presente estudo mostrou sofrimento psíquico e tensão emocional importante em ambos os cursos de Medicina da instituição pesquisada, com fatores associados semelhantes aos de estudos da literatura sobre o tema. Sintomas psíquicos foram identificados nos dois grupos e relacionados pelos estudantes à formação médica.
Os estudantes demonstraram insatisfação com as estratégias de ensino e relacionaram como principal fator estressor a falta de tempo para o lazer, sendo que os alunos do método ABP também mencionaram a insegurança com o método pedagógico, e os do método tradicional, o conflito com professores.
Análise, por meio da ferramenta Wordle, da motivação para a escolha profissional dos alunos dos dois cursos pela convergência entre os pesquisadores e avaliadores externos Aracaju, Sergipe, Brasil, 2014
Análise, por meio da ferramenta Wordle, dos fatores estressores para os alunos do curso ABP a partir da seleção dos pesquisadores e dos avaliadores externos por repetição Aracaju, Sergipe, Brasil, 2014
O lazer foi o principal fator de alívio do estresse em ambos os grupos, e no com metodologia ABP também foi referido o contato e bom convívio com os professores. Os estudantes do curso do método ABP também se mostraram mais atuantes diante da solução dos vários problemas relacionados ao seu curso, o que, aparentemente, se relacionou ao alívio do sofrimento subjetivo desses alunos.
As principais motivações para escolha do curso – reconhecimento social e realização do sonho de criança – foram semelhantes nos dois grupos.
As principais estratégias defensivas utilizadas para preservação da saúde mental apareceram nos grupos focais como: negação da dor, do sofrimento e da morte; sublimação e reparação dos impulsos agressivos; busca da rede de apoio.
Acreditamos que a ampla divulgação dos nossos resultados contribuirá para que a comunidade acadêmica e aquelas de perfil semelhante reflitam sobre seu papel no desencadeamento, manutenção e prevenção do sofrimento psíquico e/ou sintomas psíquicos detectados, bem comopara a criação de serviços de apoio psicopedagógico ao estudante e ao docente de Medicina.
Mais estudos com esta e outras populações de perfil semelhante, preferencialmente longitudinais, precisam ser realizados para fortalecer os dados aqui demonstrados.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2016
Histórico
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Recebido
25 Jan 2015 -
Aceito
26 Fev 2016