RESUMO
O ensino baseado na comunidade trata-se de uma abordagem educacional voltada à inserção de estudantes em cenários de prática real desde os anos iniciais dos cursos, principalmente em comunidades urbanas e/ou rurais e em serviços da atenção primária à saúde, em que o planejamento, a execução e a avaliação das ações desenvolvidas partem das necessidades de saúde local e, idealmente, inclui a participação de pessoas da comunidade, das equipes de saúde e da própria universidade em todas as suas etapas. Este estudo problematizou o processo de implementação de um currículo baseado no ensino em comunidade em uma escola médica criada no âmbito do Programa Mais Médicos, no sertão nordestino. Para isto, trabalhou-se com interlocuções teóricas entre narrativas, memória e currículo. Teve-se por objetivo compreender como docentes médicos vivenciam o ensino baseado na comunidade, tendo em vista suas memórias da formação médica. Trata-se de estudo qualitativo, nos marcos da história oral. Para a produção das narrativas e contextualização dos sujeitos, utilizaram-se observações participantes, questionários socioeconômicos e entrevistas individuais semiestruturadas. As informações foram analisadas pela técnica de codificação temática. Os resultados são apresentados e discutidos por meio de duas categorias temáticas: “eles serão médicos dentro de uma comunidade”: currículo, memória e formação médica; e “na hora em que eu cheguei lá, quis ir embora”: atuação docente no ensino baseado na comunidade. As narrativas desvelaram as disparidades e incongruências entre uma formação médica modelada nas prescrições do currículo “tradicional” e as expectativas de atuação docente num currículo “inovador”, caracterizado pela centralidade do estudante e das necessidades de saúde locais que produzem arranjos pedagógicos diversos próprios do ensino baseado na comunidade. Nesse panorama, imbricam-se desafios, dificuldades e gratificações num movimento ainda amorfo e num espaço ainda com muitos vazios que esperam para serem preenchidos, descritos, narrados com futuras histórias de vida que poderão elucidar como se aprendeu a ser docente nesse horizonte que se espraia a nossa frente. Cumpre destacar a polissemia do termo “comunidade” no contexto estudado e as dificuldades vivenciadas no início da carreira docente, o que evidencia a necessidade de investimentos em desenvolvimento docente nos cursos médicos, em geral, e nos recém-criados, em particular.
PALAVRAS-CHAVE
Educação Médica; Narrativa e Memória; Currículo; Programa Mais Médicos; Ensino Baseado na Comunidade
ABSTRACT
Community-based education is an educational approach aimed at integrating students into real practice scenarios from the initial years of the courses, mainly in urban and/or rural communities and in primary health care services, where the planning, implementation and evaluation of actions are developed from local health needs and ideally involve the participation of the community, health team members and the university itself at all stages. This study critically questionned the implementation process of a community-based education curriculum at a medical school created as part of the More Doctors Program in the sertão (dry hinterland) of the Brazilian Northeast. To this end, theoretical dialogues were developed between narratives, memories and the curriculum. The objective was to understand how medical professors experience community-based teaching, given the memories of their medical training. The study was qualitative in nature and developed within the framework of oral history. We used participant observation, socioeconomic questionnaires and individual semi-structured interviews to produce the narratives and contextualize the subjects. The data were analyzed by means of the thematic coding technique. The results are presented and discussed through two thematic categories: “they will be doctors within a community”: curriculum, memory and medical training and “the moment I arrived, I wanted to leave”: teaching practices in community-based education. The narratives uncovered the disparities and incongruences between a medical training modeled on prescriptions of the “traditional” curriculum and the expectations of teaching practices in the “innovative” curriculum, characterized by the centrality of the student and the local health needs that produce diverse pedagogical arrangements particular to community-based education. In this panorama, challenges, difficulties and gratifications are interwoven in a still amorphous movement and in a space where several gaps still await to be filled, described, narrated with future life histories that might elucidate how one learns to be a teacher on that horizon that expands out in front of us. Finally, it is important to highlight the polysemy of the term “community” in the context studied and the difficulties experienced at the beginning of a teaching career, which demonstrates the need for investments in teaching development in medical courses in general, and in newly created ones in particular.
KEY-WORDS
Medical Education; Narrative and Memory; Curriculum; More Doctors Program; Community-Based Education
INTRODUÇÃO
O ensino baseado na comunidade (EBC) na formação de profissionais da saúde tem sido formulado teórica e metodologicamente desde a década de 1960 no bojo das discussões do projeto da Medicina Preventiva e da Conferência da Alma—Ata, embora, no Brasil, tal perspectiva pedagógica tenha ganhado força em 1988, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). O EBC trata-se de uma abordagem educacional voltada à inserção de estudantes em cenários de prática real desde os anos iniciais dos cursos, principalmente em comunidades urbanas e/ou rurais e em serviços da atenção primária à saúde, em que o planejamento, a execução e a avaliação das ações desenvolvidas partem das necessidades de saúde local e, idealmente, inclui a participação de pessoas da comunidade, das equipes de saúde e da própria universidade em todas as suas etapas11. Talaat W, Ladhani Z. Community based education in health professions: global perspectives. Cairo: Regional Office for the Eastern Mediterranean/World Health Organization, 2014..
Nesse contexto, historicamente, o EBC tem possibilitado aos estudantes maior aproximação dos serviços de saúde e de tudo o que permeia o processo de trabalho das equipes no cotidiano de trabalho, além de oferecer condições ao desenvolvimento de competências e habilidades fundamentais para o cuidado e planejamento em saúde. Além disso, permite um engajamento criativo com as comunidades no contexto real dos problemas de saúde e, ao mesmo tempo, a aprendizagem de atitudes e habilidades essenciais aplicáveis tanto no contexto comunitário quanto no hospitalar22. Mennin S,Petroni-Mennin R. Community based medical education. ClinTeach 2006;3(2):90-6..
Se, por um lado, o EBC apresenta uma série de vantagens e potencialidades para a educação e a prática em saúde33. Brandão ERM, Rocha SV, Silva SS. Práticas de integração ensino-serviço-comunidade: reorientando a formação médica. RevBrasEducMéd 2013;37(4):573-7.–55. Atuyambe LM, Baingana RK, Kibira SPS, Katahoire A, Okello E, Mafigiri DK et al. Undergraduate students' contributions to health service delivery through community based education: a qualitative study by the MESAU Consortium in Uganda. BMC MedEduc [online].2016; 16:123 [capturado 05 out. 2016]. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4845440/.
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, por outro, sua implementação suscita um conjunto de desafios que envolvem a universidade, o sistema de saúde, os estudantes, os profissionais da rede de saúde e os docentes66. Cavalheiro MTP, Guimarães AL. Formação para o SUS e os desafios da integração ensino serviço. Caderno FNEPAS 2011;1:19-27.,77. Murray E, Modell M. Community-based teaching: the challenges. Br J GenPract 1999;49(442):395-8.. No que tange à formação médica no Brasil, mesmo com o estímulo promovido pelas políticas indutoras da reorientação da formação em saúde no SUS e para o SUS88. Oliveira NNA, Meirelles RMS, Cury GC, Alves LA. Mudanças curriculares no ensino médico brasileiro: um debate crucial no contexto do Promed. RevBrasEducMed 2008;32(3):333-46.,99. Haddad AE. Educação baseada na comunidade e as políticas indutoras junto aos cursos de graduação na saúde. In: Bollela VR, Germani ACCG, Campos HH, Amaral E, org. Educação baseada na comunidade para as profissões da saúde: aprendendo com a experiência brasileira. Ribeirão Preto: FUNPEC-Editora, 2014. p.9-36., corroboradas nas novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (DCN)1010. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº3 de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 23 jun. 2014; Seção 1, p.8-11., tais desafios ainda podem ser sentidos.
Nesse sentido, este artigo busca problematizar um contexto específico: a implementação de currículos baseados no EBC em uma escola médica criada no âmbito do Programa Mais Médicos (PMM)1111. Brasil. Presidência da República. Lei Federal nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis no 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e no 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 23 out. 2013; Seção 1, p.1-4., no sertão nordestino, com base em narrativas e memórias de docentes médicos. Para isto, buscou-se responder à questão: como docentes médicos experienciam o ensino baseado na comunidade num contexto de currículo integrado e com metodologias centradas no estudante e nas necessidades de saúde locais, tendo em vista suas memórias da formação médica?
No contexto atual, o PMM constitui o ponto alto das políticas indutoras da formação médica no Brasil e da distribuição de médicos no território nacional. O PMM tem como objetivo diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS (eixo 1), aprimorar a formação médica no País por meio da expansão de vagas de Medicina, da interiorização das escolas médicas e da universalização do acesso à residência médica (eixo 2); e investir na infraestrutura da rede de serviços básicos de saúde (eixo 3)1111. Brasil. Presidência da República. Lei Federal nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis no 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e no 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 23 out. 2013; Seção 1, p.1-4.. Sendo assim, em consonância com as DCN1010. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº3 de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 23 jun. 2014; Seção 1, p.8-11., o modelo de ensino vigente para a medicina brasileira compreende a inserção do estudante nas comunidades e unidades de atendimento do SUS, principalmente na atenção básica, desde os anos iniciais do curso1010. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº3 de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 23 jun. 2014; Seção 1, p.8-11..
Diante disso, teve-se como objetivo compreender como docentes médicos experienciam o ensino baseado na comunidade, tendo em vista suas memórias da formação médica, em uma escola criada no âmbito do PMM. Estudos desta natureza tornam-se relevantes uma vez que permitem pensar o perfil do docente desses novos cursos, bem como as potencialidades, limitações e desafios presentes.
METODOLOGIA
Os estudos sobre narrativas, memória e currículo, e suas interlocuções foram os referenciais teóricos utilizados neste estudo1212. Goodson I. Currículo, narrativa e o futuro social. RevBrasEduc 2007;12(35):241-52.–1515. Benjamin W. Obras Escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. 3 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.. Trabalhou-se com a perspectiva de que a produção de narrativas está relacionada ao ato de rememorar. Tal ato possibilita que dimensões pessoais perdidas com o avanço do mundo moderno e capitalista sejam recuperadas na relação temporal entre passado, presente e futuro. Rememorar é recuperar experiências vividas a partir de indagações e trazer o passado como possibilidade de construir rumos atentos para o presente e o futuro. Assim, é possível ampliar nossa capacidade de análise sobre o nosso modo de ver, sentir e agir no mundo, em condições de romper com padrões automatizados de pensamento e de conduta. Muitas vezes, nossas ações se dão de forma irrefletida e mecanizada, haja vista serem emolduradas pelo modo de produção capitalista, absorvendo tudo sem momentos para pensar no que está sendo visto e feito, sem tirar disso experiência, mas apenas vivência e reprodução1515. Benjamin W. Obras Escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. 3 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987..
Nessa perspectiva teórica, defende-se o currículo como identidade narrativa, em que o capital narrativo dos sujeitos possibilita aprender sobre si mesmo como pessoa e definir um projeto identitário. O currículo narrativo é um currículo de empoderamento, uma vez que se compromete com as missões, paixões e propósitos que as pessoas articulam em suas vidas1212. Goodson I. Currículo, narrativa e o futuro social. RevBrasEduc 2007;12(35):241-52.. Além disso, potencializa diferentes estéticas, que incluem sentimentos, escolhas, rememoração e transformação do passado revisitado a partir das experiências presentes1414. Rosa MIP, Ramos TA, Corrêa BR, Almeida Júnior AR. Narrativas e mônadas: potencialidades para uma outra compreensão de currículo. Currículo sem Fronteiras 2011;11(1):198-217.. O narrador, nesse sentido, renuncia à clausura e à sufocação de sua particularidade individual, já que sua experiência é atravessada por desejos, revoltas, desesperos, paixões, estéticas que são entretecidos no espaço-tempo dos encontros entre o individual e o social1515. Benjamin W. Obras Escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. 3 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.,1616. Gagnebin JM. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004..
Do ponto de vista metodológico, trata-se de uma pesquisa qualitativa, pois teve como objeto o ser humano em sociedade, suas relações e instituições, sua história e sua produção simbólica1717. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11 ed. São Paulo: HUCITEC, 2008., por meio de narrativas limitadas dos pontos de vista local, temporal e situacional1818. Flick U. An introduction to qualitative research. 4th ed. London: Sage, 2009.. Como referencial metodológico foi empregada a história oral em sua modalidade temática. Para se aproximar das experiências dos sujeitos, a história oral como técnica de apreensão de narrativas se fez importante. Significar, pela história oral, a narrativa individual representa acessar os sentidos atribuídos pelos sujeitos aos processos socioculturais vividos, num processo que entrelaça o vivido, o adquirido e o imaginado e, por isso, o verdadeiro1919. Meihy JCSB, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007..
O estudo foi desenvolvido com oito docentes médicos que atuam nos módulos de Ensino na Comunidade do curso de Medicina de uma universidade pública federal, em Caicó (RN). Esses componentes curriculares são oferecidos do primeiro ao oitavo semestre do curso e compreendem atividades em equipamentos sociais da comunidade e em serviços da atenção básica (primeiro ao quarto ano), secundária e terciária (terceiro e quarto anos). Além das atividades em campo, são desenvolvidas atividades teóricas para instrumentalizar o ensino na comunidade e promover a discussão e avaliação das ações executadas. A composição da amostra foi intencional. Os convites para participar do estudo foram feitos pessoalmente ou por contato telefônico. Os critérios de inclusão foram: ser docente do quadro permanente da universidade ou professor substituto com atuação mínima, atual ou pregressa, de dois semestres nos módulos de Ensino na Comunidade; aceitar participar voluntariamente do estudo após explicação e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Utilizaram-se três procedimentos para a coleta de dados: caracterização social, observação participante e entrevistas individuais semiestruturadas. No total, foram realizadas oito entrevistas com duração média de 40 minutos, conduzidas na própria universidade. Elas foram orientadas por roteiro semiestruturado com tópicos-guia, previamente testado antes da sua utilização. As informações foram registradas em áudio, conforme a permissão dos informantes e, imediatamente após, foram transcritas e codificadas. Outras informações foram obtidas por meio de observações participantes que foram registradas em diário de campo e, posteriormente, integradas ao processo de análise. Já os dados de caracterização social dos informantes foram coletados por meio de questionário socioeconômico estruturado.
A análise das informações ocorreu concomitantemente à coleta, em quatro etapas. Na primeira, realizou-se uma descrição breve de cada narrativa: informações sobre a pessoa entrevistada, o contexto de realização da entrevista e identificação dos tópicos centrais. Na segunda, aprofundou-se a primeira narrativa para obter a codificação dos dados, tendo como base o tema da pesquisa, os objetivos e os pressupostos teóricos. Na terceira, fez-se a análise das outras narrativas e, posteriormente, a identificação das unidades de sentido, por meio do agrupamento dos códigos comuns e dos incomuns. Com isso, finalizou-se uma primeira fase da interpretação, na qual emergiram as unidades de significados. Na quarta e última etapa, passagens do texto foram analisadas com maior detalhe. Analisado todo o corpus, produziu-se uma tabela na qual foram definidos os núcleos de significados. Por fim, tendo como base os núcleos de significados gerados, foram construídas as categorias temáticas1818. Flick U. An introduction to qualitative research. 4th ed. London: Sage, 2009..
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade em que foi realizada a pesquisa, de acordo com o Parecer nº 1.530.844/2016. Todos os informantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foram identificados neste texto por nomes fictícios, de escolha aleatória.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Na caracterização social dos interlocutores, observou-se que 50% eram do sexo feminino, a idade média foi de 34 anos, e todos se autorreferiram brancos. Em relação ao estado civil, 50% eram casados e 25% tinham filhos. Quanto ao ano de conclusão do curso de graduação, 75% concluíram entre 2010 e 2013, e 25% na década de 1990. Além disso, 75% estudaram em instituições de ensino superior públicas e 25% possuíam pós-graduação stricto sensu.
Após análise e interpretação do material empírico, foram estruturadas duas categorias temáticas: “Eles serão médicos dentro de uma comunidade”: currículo, memória e formação médica; e “Na hora em que eu cheguei lá, quis ir embora”: atuação docente no ensino baseado na comunidade. O conteúdo êmico de cada uma delas é demonstrado e discutido a seguir.
“Eles serão médicos dentro de uma comunidade”: currículo, memória e formação médica
Esta categoria apresenta a expressão êmica “comunidade” como uma catalisadora das memórias e das análises comparativas tecidas sobre currículo, formação médica e atuação docente. No contexto estudado, o termo “comunidade” apareceu nos discursos de diferentes sujeitos e assumiu um caráter polissêmico, tal como: componentes curriculares, eixo do Projeto Pedagógico do curso, ações de integração ensino-serviço-comunidade, cenários de prática dos três níveis de atenção à saúde no SUS, lócus ou campo de atuação de especialistas em Medicina de Família e Comunidade ou em Saúde Coletiva, e de realização das atividades dessas áreas. Sem a pretensão de abordar aqui essa polissemia de forma exaustiva, ela será compreendida como um “termo-contexto” que possibilitou aos interlocutores deste estudo acionar/produzir mônadas2020. Leibniz W. Os princípios da filosofia ditos a monadologia. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores)..
As mônadas são as miniaturas simples, os elementos que compõem as coisas, indivisíveis e indissolúveis, partes-todo e não apenas partes de um todo. As mônadas conformam mudança e permanência, assim como a diferença em relação às demais partes, por isso expressam a variedade e a multiplicidade na unidade2020. Leibniz W. Os princípios da filosofia ditos a monadologia. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores).. No que concerne à aplicação desse conceito na pesquisa com memórias e narrativas, pode-se compreender as mônadas como “pequenos fragmentos de histórias que juntas exibem a capacidade de contar sobre um todo, muito embora esse todo possa também ser contado por um de seus fragmentos”1414. Rosa MIP, Ramos TA, Corrêa BR, Almeida Júnior AR. Narrativas e mônadas: potencialidades para uma outra compreensão de currículo. Currículo sem Fronteiras 2011;11(1):198-217.. Dessa forma, nas narrativas que seguem, buscou-se resgatar o olhar de estudante de Medicina do passado por meio do olhar de docente do presente e, com isso, trazer à discussão significados atribuídos ao currículo e à formação médica.
Com base em suas memórias e experiências, foi possível construir uma classificação dos currículos vividos e apreendidos pelos sujeitos em suas formações. Tal classificação levou em conta critérios que compõem a experiência prática dos entrevistados, sendo acionada e orientada, principalmente, pela atuação como docentes num curso estruturado em EBC. São eles: tipos de componentes curriculares; frequência de atividade em “comunidade”; vinculação ao território ao longo do curso; abordagem da clínica; e abordagem didático-pedagógica do ensino em comunidade. Trata-se, portanto, de uma classificação curricular baseada em alguns elementos do EBC; logo, não se propõe como modelo amplo e generalizável. De acordo com nossos interlocutores, os currículos das escolas médicas nas quais se formaram podem ser: tradicional, misto ou inovador.
Currículo tradicional
No “currículo tradicional”, as disciplinas eram o tipo predominante de componente curricular. As atividades em “comunidade” eram pontuais ou não existiam, já que o ensino estava centrado em hospitais e ambulatórios universitários. Quando tais atividades existiam, tinham uma abordagem didático-pedagógica mais teórica ou de visita técnica, o que, consequentemente, não gerava vinculação dos estudantes ao território dessas “comunidades”. Nessa experiência curricular, a clínica estava desintegrada das demais áreas do conhecimento, se caracterizando por uma clínica-clínica2121. Campos GWS. Saúde paidéia. 3 ed. São Paulo: HUCITEC, 2003.. Nesses currículos, a inserção do estudante em “comunidade” tende a se dar no internato, já que as demais situações de aprendizagem tomam o hospital como cenário privilegiado da prática médica.
O currículo do meu curso era tradicional. Eu acho que o grosso mesmo veio no décimo período [internato] com Saúde Preventiva. Foi aí que eu comecei a acessar os serviços [da atenção básica]. (Charles)
As memórias recorrentes da minha inserção como estudante na atenção primária são do período do internato, porque o ensino era voltado para o ambiente hospitalar. (Thaís)
Meu currículo foi totalmente tradicional. O SUS tinha começado a engatinhar durante a minha formação. Nós não tínhamos esses conhecimentos de atenção primária porque a [ensino em] comunidade não existia. A gente não tinha a ideia que hoje tentamos incutir nos nossos estudantes: eles serão médicos dentro de uma comunidade. (Daniele)
Currículo misto
No “currículo misto”, os componentes curriculares podem ser módulos ou disciplinas. As atividades em “comunidade” existem, podendo ser esporádicas ou semanais, uma vez que disputam espaços com os hospitais e ambulatórios universitários. Apesar de os estudantes terem mais vivências em “comunidade”, sua inserção nos territórios varia semestralmente, o que, em alguma medida, compromete sua vinculação às pessoas e aos serviços. Nesse modelo curricular, de acordo com os interlocutores, apesar dos avanços, a abordagem didático-pedagógica é fragmentada, de maneira a contemplar as áreas básicas da medicina estudadas em outros eixos do currículo. Nesse contexto de transição entre um “currículo tradicional” e um “currículo inovador”, o semblante da clínica que se destaca ainda é a clínica-clínica2121. Campos GWS. Saúde paidéia. 3 ed. São Paulo: HUCITEC, 2003..
Meu currículo era misto, porque era modular e tinha parte tradicional. Tinha acesso à atenção primária, através da disciplina de Atenção à Saúde da Mulher, do Idoso, com aulas teóricas na maioria das vezes. As idas à comunidade eram poucas e em cada semestre íamos para uma comunidade diferente. Nessas ocasiões, era mais para ver a questão biomédica e não a questão social, dos fatores determinantes de saúde. (Caio)
No primeiro semestre do curso, a gente fez a territorialização. Os módulos seguintes eram divididos entre os grandes temas da medicina: saúde da criança, saúde da mulher, saúde do idoso. A gente sempre ia uma vez por semana durante os oito períodos do curso. Foi uma experiência totalmente diferente e me motivou a escolher a especialidade [Medicina de Família e Comunidade] porque era um campo da medicina que eu não conhecia. (Camila)
Currículo inovador
O parâmetro utilizado pelos interlocutores para definir um currículo como “inovador” foi o currículo da escola cenário desta investigação. Nesse movimento, buscaram identificar aproximações entre as suas experiências curriculares como estudantes e aquelas vivenciadas agora como docentes. Assim, o currículo orientado para o ensino na comunidade se colocou como “imagem abreviada do mundo”2424. Watmough S, O'Sullivan H, Taylor D. Graduates from a traditional medical curriculum evaluate the effectiveness of their medical curriculum through interviews. BMC MedEduc [online].2009; 9:64 [capturado em 17 fev. 2017]. Disponível em: http://www.biomedcentral.com/1472-6920/9/64
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, parâmetro de comparação, e se aproximou daquilo que eles consideraram ser um “currículo inovador”.
No ‘currículo inovador”, os módulos cujas atividades teórico-práticas e práticas se desenvolvem em “comunidade” têm frequência semanal. Os estudantes são inseridos na “comunidade” no início do curso e permanecem naquele território do primeiro ao oitavo semestre, favorecendo, assim, a vinculação deles às pessoas e aos equipamentos sociais. Dada a natureza das relações entre estudantes, usuários-moradores, equipes de saúde, território e necessidades de saúde que se produzem nesse tipo de currículo, a abordagem didático-pedagógica é integrada, uma vez que busca dar conta da complexidade da vida real. Por conseguinte, o semblante da clínica que se destaca é a clínica ampliada ou do sujeito2121. Campos GWS. Saúde paidéia. 3 ed. São Paulo: HUCITEC, 2003..
Desde o início [do curso] atuei na atenção primária. Eu tive oito módulos de comunidade. Cada semestre a gente ia para outra UBS, não éramos acompanhados por docentes. A minha formação, apesar de ser no modelo PBL, de ser no modelo da comunidade, foi muito voltada ao ambiente hospitalar e ambulatorial. (Edson)
A gente acompanhava os serviços da médica e dos outros profissionais da unidade, o que envolvia atuação na sala de vacinas, em atendimentos de enfermagem, em visitas domiciliares, na territorialização com os agentes comunitários de saúde e em intervenções nas escolas. Eu sempre gostei muito dessas atividades multidisciplinares onde se tem a oportunidade de ver um pouquinho de cada área, da atuação de cada um e de participar disso, ouvindo as experiências e tentando contribuir e colaborar para olhar o paciente como um todo. (Bruna)
Nas narrativas ficaram evidentes contextos, histórias e transições educacionais na formação médica. Como se observa, tal classificação expressa algumas categorias já consagradas no campo de estudos sobre currículos em medicina, tais como: tradicional, não tradicional, inovador, avançado, integrado2323. Lampert JB. Tendências de mudanças na formação médica no Brasil: tipologias das escolas. 2 ed. São Paulo: HUCITEC/ABEM, 2009.–2525. Souza PA, Zeferino AMB, Da Ros MA. Currículo integrado: entre o discurso e a prática. Rev Bras Educ Med 2011;35(1):20-5.. No Brasil, têm-se privilegiado análises classificatórias de currículos com base em eixos que reúnem áreas temáticas de relevância no encaminhamento da formação médica e nos paradigmas flexneriano e da integralidade, a saber: enfoque teórico; abordagem pedagógica; cenários da prática; capacitação docente; e mercado de trabalho e serviços de saúde2323. Lampert JB. Tendências de mudanças na formação médica no Brasil: tipologias das escolas. 2 ed. São Paulo: HUCITEC/ABEM, 2009.. Ou ainda: orientação teórica, cenários de práticas e abordagem pedagógica2525. Souza PA, Zeferino AMB, Da Ros MA. Currículo integrado: entre o discurso e a prática. Rev Bras Educ Med 2011;35(1):20-5..
Nesse sentido, trata-se de docentes cuja formação médica se deu, predominantemente, nos moldes da ideologia de currículo como prescrição (curriculum as prescription)1212. Goodson I. Currículo, narrativa e o futuro social. RevBrasEduc 2007;12(35):241-52.. Nessa perspectiva, o currículo, como campo de disputas entre objetivos, conteúdos e resultados, sustenta místicas importantes sobre Estado, escolarização e sociedade; visa ao desenvolvimento de habilidades necessárias para exercer com eficiência as ocupações profissionais; traduz-se em modelos educacionais mecânicos e burocráticos; e, por fim, se coloca como mecanismo de reprodução das relações de poder existentes na sociedade1212. Goodson I. Currículo, narrativa e o futuro social. RevBrasEduc 2007;12(35):241-52.. Dessa forma, a experiência curricular que marca a formação médica dos interlocutores se contrapõe ao modelo pedagógico em que estão inseridos, hoje, como docentes. Essas contraposições se refletirão na atuação docente, como se verá a seguir.
“Na hora em que eu cheguei lá, quis ir embora”: atuação docente no ensino baseado na comunidade
Esta categoria expõe como se deu a experiência docente dos interlocutores, em geral, e em “comunidade”, em particular. As memórias expressam de forma enfática os momentos de incerteza e insegurança vivenciados, seja pela falta de experiência em docência, seja pela ausência de formação e/ou capacitação pedagógica, seja pelas especificidades do currículo.
Por se tratar de um cenário novo para a prática de ensino-aprendizagem, a “comunidade” gera e acentua sentimentos de confusão e estranhamento que emergem da dificuldade de compreender os limites e imbricamentos existentes entre os papéis de médico e de docente. Cria-se, assim, uma ambiguidade de posições, além da dificuldade de entendimento entre o papel costumeiramente assumido (ser médico) e a condição atual (ser docente).
Minha primeira experiência [de docência] foi aqui. Eu sou aquele médico que achava que ser docente era simplesmente repassar o conhecimento adquirido como profissional. Nas primeiras vezes em que eu fui [à comunidade], me senti muito estranho de estar ali e não estar atendendo alguém. Eu estava ali como docente e não como profissional de saúde. (Flaviano)
Quando eu fui pra UBS como docente pela primeira vez, eu me senti um pouco desconfortável, estranho, porque eu nem estava indo lá como médico, nem como usuário. Eu estava indo como uma figura que até então eu não tinha pensado em ser. Mas eu tive excelentes professores que eram excelentes médicos. Eu pretendo um dia chegar ao nível deles ou próximo. (Charles)
A atuação como docente apareceu nas narrativas como um “papel” em que os interlocutores não tinham experiências anteriores (diferente do “papel” do médico que “atende alguém”) e nem formação para exercê-lo. Esses resultados têm sido recorrentes nos estudos sobre docência em cursos de Medicina, destacando-se, em geral, a ausência da formação para o exercício da docência, principalmente nos anos iniciais da carreira2626. Clark JM, Houston TK, Kolodner K, Branch Jr WT, Levine RB, Kern DE. Teaching the teachers: national survey of faculty development in departments of medicine of U.S. teaching hospitals. J GenInternMed 2004;19(3):205-14.–2828. McLeod PF, Steinert Y, Meagher T, McLeod A. The ABCs of pedagogy for clinical teachers. MedEduc 2003;37(7):638-44.. Além disso, os estudos apontam as dificuldades vivenciadas por docentes médicos no que diz respeito a conciliar a “dupla” identidade: médico e docente. Em geral, a identidade profissional dos professores de Medicina costuma estar mais centrada em suas especialidades científicas do que em sua atividade docente2929. Costa NMSC. Docência no ensino médico: por que é tão difícil mudar? Rev Bras Educ Med 2007;31(1):21-30. – fato que em muito se deve à crença expressa por Flaviano de que o exercício da docência consiste na transmissão de saberes adquiridos por meio da experiência profissional e na reprodução de práticas e identidades docentes dos seus antigos professores2929. Costa NMSC. Docência no ensino médico: por que é tão difícil mudar? Rev Bras Educ Med 2007;31(1):21-30.,3030. Cantillon P, D'Eath M, De Grave W, Dornan T. How do clinicians become teachers? A communities of practice perspective. Adv in Health SciEduc 2016;21(5):991-1008.. Dessa forma, há uma compreensão de que se tornar professor envolve um processo de socialização em parte intuitivo, autodidata, ou seguindo o modelo daqueles que foram considerados bons professores2727. Costa NMSC. Formação pedagógica dos professores de medicina. Rev Latino-am Enferm 2010:18(1):102-8., como sugeriu Charles.
Além desses aspectos mais amplos já discutidos na literatura, há elementos contextuais do cenário desta pesquisa que podem produzir novas dificuldades aos neófitos ou amplificar as já citadas, como: o fato de estarem inseridos numa escola em fase de implantação, no interior do Nordeste brasileiro, criada no âmbito do PMM (gera conflitos político-ideológicos entre os membros da comunidade acadêmica), currículo “inovador” (metodologias centradas no estudante e EBC) e a existência de um corpo docente multiprofissional com professores que possuem experiências prévias no ensino de graduação.
Quando eu comecei a ensinar, era muito insegura, foi totalmente difícil porque eu não conhecia nada. Até mesmo a linguagem pedagógica era difícil. Eu lia um texto uma, duas, três vezes para entender o conteúdo. Além disso, trabalhar com outros professores que tinham uma formação melhor do que a minha e experiência pedagógica gerou muita insegurança. Aos poucos fui me adaptando. O mestrado [em Ensino na Saúde] foi fundamental. (Daniele)
Meu primeiro sentimento como docente na comunidade foi de confusão. Eu cheguei lá na segunda semana de aula e eu não sabia o que fazer! Eu não sabia qual era meu papel lá! Senti-me um peixe fora d'água. Na hora em que eu cheguei lá, quis ir embora. (Carla)
No que tange ao EBC propriamente dito, os interlocutores identificaram potencialidades e desafios, como a atuação em diversos componentes curriculares, alguns deles diferentes de sua área de especialização. O currículo orientado para a “comunidade”, centrado no estudante e integrado, requer que o docente sempre esteja disponível para aprender novas práticas e saberes. Nessas circunstâncias, as memórias da sua própria formação acentuam as diferenças entre a atuação docente num “currículo tradicional” e num “currículo orientado para a comunidade”. No primeiro, o docente é o detentor do conhecimento e das práticas da sua especialidade; já no segundo, ele é um docente que precisa “voltar a ser estudante”, pois sua prática transborda os limites impostos pela especialização.
A primeira vez em que fui para a comunidade eu me senti desafiada. Pegar alunos de primeiro e segundo período que já sabem fazer alguns passos da anamnese e do exame físico assusta, principalmente quem foi formado no método tradicional. Os alunos estavam no segundo período e conheciam tudo na unidade e eu estava chegando. Além disso, no currículo tradicional, quando se faz o concurso, você é contratado para a sua especialidade. No ensino na comunidade, vai ser necessário que você saiba não só da sua área específica. É exigido que você volte a ser estudante. (Thaís)
O ensino na comunidade é uma experiência desafiadora, mas gratificante. Quando estou na comunidade, eu consigo fazer um elo entre conhecimentos básicos, técnicos e clínicos, e contextualizá-los. Consigo mostrar aos estudantes que ali não é um papel, não é uma doença. Ali está um ser humano com suas vivências. Há situações que se vive em comunidade que não vai ter em livro! Como docente, é muito bom você poder trabalhar isso desde cedo com seus alunos. (Charles)
Quando fui para a comunidade como docente, eu fiquei um pouco perdido. Ao mesmo tempo, eu gostei muito. Era um desafio, pois eu ia ter que estudar e aprender ainda mais. Eu achei formidável estar com os alunos, passar pra eles o que eu não tive durante a minha graduação. Por ter me formado num currículo orientado para o ensino na comunidade, me sinto mais à vontade, sei o quanto isso é importante e o que não deve ser feito. (Edson)
Como se observa nas narrativas de Thaís, Charles e Edson, a atuação docente em “comunidade” se coloca como um ”desafio”. A percepção desse “desafio” se dá dentro dos limites das experiências curriculares que marcaram sua formação como médicos. Por isso, a todo momento, estão presentes as comparações entre o “currículo tradicional” e o “currículo orientado para o ensino na comunidade”. Nesse sentido, o capital narrativo dos interlocutores expõe a inércia contextual do currículo como prescrição, uma vez que sua validade tem sido questionada constantemente em um mundo em mudança1212. Goodson I. Currículo, narrativa e o futuro social. RevBrasEduc 2007;12(35):241-52.. Nessa sociedade de riscos e de incertezas, a formação mecânica, burocratizada e produtora de indivíduos em série, atomizados, como peças manufaturadas numa fábrica, não consegue se inserir, compreender e intervir numa realidade que possui a objetividade e a espessura da vida de sujeitos concretos e por onde passa o econômico, o político, o religioso, o simbólico e o imaginário; onde se articulam conflitos e concessões, tradição e mudança, e onde tudo ganha sentido ou sentidos3131. Minayo MCS. Contribuições da antropologia para pensar a saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Jr M, Carvalho YM, orgs. Tratado de saúde coletiva. 2 ed. São Paulo-Rio de Janeiro: HUCITEC, Ed. Fiocruz, 2009. p.189-218.,3232. Bauman Z. The individualized society. Cambridge: Polity Cambridge Press, 2001..
Em síntese, as memórias e narrativas expõem a necessidade de passarmos de um “currículo prescritivo para um currículo como identidade narrativa; de uma aprendizagem cognitiva prescrita para uma aprendizagem narrativa de gerenciamento da vida”1212. Goodson I. Currículo, narrativa e o futuro social. RevBrasEduc 2007;12(35):241-52.. O currículo narrativo se constrói por meio desses aprendizados que “não vai ter [apenas] em livro”, pois é produzido a partir das estratégias que as pessoas usam como resposta para os acontecimentos da vida. Dessa forma, “quando vemos a aprendizagem como uma resposta para situações reais, o engajamento pode ser dado como certo”1212. Goodson I. Currículo, narrativa e o futuro social. RevBrasEduc 2007;12(35):241-52.. Esses aspectos reclamam investimentos contínuos e efetivos em desenvolvimento docente e num processo de reflexão sobre o currículo, levando em consideração a história de vida dos sujeitos envolvidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo buscou compreender como docentes médicos experienciam o ensino baseado na comunidade, tendo em vista suas memórias da formação médica, em uma escola criada no âmbito do PMM. O marco teórico-conceitual adotado possibilitou apreender o capital narrativo dos interlocutores e as formas como aprendem sobre si mesmos como pessoa e definem um projeto identitário. Assim, o ato de narrar sobre suas experiências como docentes numa escola médica orientada para o EBC integrou memórias, formação e currículos, bem como os contextos, as histórias, as transições e as continuidades aí existentes. Sendo assim, as narrativas apresentadas permitiram a apreensão de miniaturas de significados, ou mônadas, que revelaram a individualidade do narrador e as esferas sociais mais amplas – principalmente, as tendências de mudanças curriculares na formação médica no Brasil e a reorientação do modelo de formação para o SUS e no SUS. Nesse processo, os referenciais teórico-metodológicos que balizaram o desenvolvimento desta pesquisa qualitativa trouxeram contribuições que se revelaram por meio da experiência intersubjetiva vivenciada em campo, da sua natureza artesanal e das situações de alteridade suscitadas.
O estudo permitiu apreender as classificações dos currículos vividos e apreendidos pelos interlocutores em sua formação – tradicional, misto ou inovador –, tendo como parâmetro de discriminação e comparação a experiência curricular orientada para a comunidade da escola em que atuam como docentes. Tal classificação levou em conta critérios próprios que fazem sentido no contexto estudado, sem, contudo, propor um modelo analítico amplo e generalizável.
Ao mesmo tempo, expôs a predominância da formação médica dos docentes nos moldes da ideologia de currículo como prescrição, ou “tradicional”, numa perspectiva êmica, sublinhando como a experiência curricular que marca a formação médica dos interlocutores se contrapõe ao modelo pedagógico em que estão inseridos como docentes. Neste processo, foi possível reconhecer as principais dificuldades dos docentes ao ingressarem na carreira universitária como elementos geradores de sentimentos diversos nos interlocutores: ausência de formação pedagógica para lecionar; inexperiência na docência; “duplicidade” de papéis – médico e professor, a concepção de educação e de ser professor.
Neste estudo, os informantes consideraram o modelo pedagógico do curso da escola estudada como desafiante, promotor de desconfortos e insegurança, e que requer do docente uma constante disposição para aprender e rever suas práticas, contrapondo-se à autoridade catedrática do professor já naturalizada em algumas instituições de ensino. Em meio a essas dificuldades e desafios, o EBC representa uma experiência pedagógica gratificante e significativa para o docente, uma vez que reconfigura o ato médico numa perspectiva total, produzindo ruptura e descontinuidades no modelo anatomopatológico que caracteriza historicamente a medicina moderna.
Ademais, as memórias narradas pelos docentes desvelaram as disparidades e incongruências entre uma formação médica modelada nas prescrições do currículo “tradicional” e as expectativas de atuação docente num currículo “inovador”, caracterizado pela centralidade do estudante e das necessidades de saúde locais que produzem arranjos pedagógicos diversos próprios do EBC. Nesse panorama, imbricam-se desafios, dificuldades e gratificações num movimento ainda amorfo e num espaço ainda com muitos vazios que esperam para serem preenchidos, descritos, narrados com futuras histórias de vida que poderão elucidar como se aprendeu a ser docente nesse horizonte que se espraia a nossa frente.
Para finalizar, cumpre destacar a polissemia do termo “comunidade” no contexto estudado como uma questão suscitada neste estudo e que requer aprofundamentos teóricos e a centralidade que o investimento em desenvolvimento docente deve assumir, sobretudo no interior das novas escolas médicas criadas no âmbito do PMM.
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28McLeod PF, Steinert Y, Meagher T, McLeod A. The ABCs of pedagogy for clinical teachers. MedEduc 2003;37(7):638-44.
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29Costa NMSC. Docência no ensino médico: por que é tão difícil mudar? Rev Bras Educ Med 2007;31(1):21-30.
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30Cantillon P, D'Eath M, De Grave W, Dornan T. How do clinicians become teachers? A communities of practice perspective. Adv in Health SciEduc 2016;21(5):991-1008.
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31Minayo MCS. Contribuições da antropologia para pensar a saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Jr M, Carvalho YM, orgs. Tratado de saúde coletiva. 2 ed. São Paulo-Rio de Janeiro: HUCITEC, Ed. Fiocruz, 2009. p.189-218.
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32Bauman Z. The individualized society. Cambridge: Polity Cambridge Press, 2001.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2018
Histórico
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Recebido
10 Jul 2017 -
Aceito
28 Out 2017