A epilepsia é uma doença antiga, com relatos da sua ocorrência desde antes dos tempos bíblicos, frequentemente ligada à ideia de uma possessão espiritual. Mesmo assim - e talvez justamente por esse motivo -, permanece, ainda hoje, marcada por fantasias, preconceito e estigma, controvérsias que não se limitam ao público leigo. A história nos mostra que muitas pessoas famosas tiveram o diagnóstico de epilepsia: de Machado de Assis a Agatha Christie, passando por Dostoiévski, só para citar alguns exemplos no campo da literatura. Mas isso não impediu que a discriminação contra os portadores da doença fosse eliminada.
Em antropologia médica, falamos sobre “construção social do processo saúde-doença”, no sentido de entender como a sociedade elabora a imagem das doenças e como lida com as consequências delas. Isso ocorre de uma forma diferente entre os médicos e os pacientes, e acaba por exercer uma forte influência sobre esses dois grupos distintos, gerando um certo distanciamento entre ambos nessas percepções11. Conrad P, Barker K. A construção social da doença: insights-chave e implicações para políticas de saúde. Ideias. 2013;2(2):183-219.. Assim, fica claro que, muito além de um substrato exclusivamente biológico, sempre há uma “representação da doença” em que a cultura de cada grupo social desempenha um papel fundamental.
Em função dessas diversas compreensões, um dos grandes desafios da educação médica ainda é formar médicos capazes de criar uma relação de empatia com os seus pacientes, ou seja, permitir que possamos nos colocar no lugar dos nossos pacientes, estabelecendo uma relação que permita entendê-los de maneira mais aprofundada e, portanto, com melhor perspectiva de ajuda efetiva. Contudo, ter compaixão e uma melhor ideia do sofrimento humano perante a doença não é uma tarefa fácil. Inúmeros escritores têm buscado traduzir essa trajetória em narrativas, alguns com grande maestria, como Tolstói, no clássico A morte de Ivan Ilitch22. Tolstói L. A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Martin Claret; 2007..
Apesar de o tratamento destinado aos pacientes ser parte inevitável da rotina de trabalho de todos os médicos, muitos deles não têm uma percepção clara de como é conviver com uma doença crônica que afeta de modo muito intenso o cotidiano das pessoas. Um atendimento médico episódico num ambulatório ou numa internação hospitalar é completamente diferente de conviver 24 horas por dia, sete dias da semana, com uma doença que pode determinar uma série de limitações e de ajustes na vida dos pacientes e das pessoas próximas a eles.
Nesse sentido, o livro A cor púrpura da epilepsia33. Scomazzon C. A cor púrpura da epilepsia. Porto Alegre: Casa Verde; 2023. é um achado! Escrito pelo jornalista Carlos Scomazzon, o livro retrata, ao longo de dez capítulos, a trajetória do autor com a doença desde a idade pré-escolar. Incentivado por seu antigo professor de redação jornalística (ninguém menos que Luís Augusto Fischer, autor do capítulo de introdução), o livro reúne textos publicados inicialmente nas redes sociais e, após, numa revista digital. O que pareceu ser um tema despretensioso, teve uma grande repercussão por meio do compartilhamento de inúmeros relatos semelhantes no grau de sofrimento e na incompreensão.
Parafraseando Cecil Helman, o livro reafirma a ideia de que a medicina é uma arte literária44. Helman C. Suburban shaman: tales from medicine’s frontline. London: Hammersmith Press; 2006.. O livro de Scomazzon é um relato emotivo, carregado de angústias e que conduz o leitor à saga pela qual o autor passou, desde o início dos sintomas, aos 2 anos de idade, até a neurocirurgia que proporcionou a sua cura, aos 28.
Cada capítulo do livro se dedica a contar as situações vividas nesse longo percurso com a doença, a começar, ainda na infância, pela busca por uma explicação do que sentia e pela sensação de alívio ao poder dar um nome a essa condição. Além disso, há relatos detalhados sobre as estranhas sensações da aura, as crises epilépticas, o constrangimento, a vergonha, as diversas explicações que deveriam ser dadas a quem testemunhava as crises e as estratégias para, tanto quanto possível, fazer com que as crises passassem despercebidas. Aborda também o longo período em que ficou internado em um hospital em São Paulo como etapa necessária para o planejamento adequado da sua cirurgia.
Além das incontáveis consultas médicas, o livro também inclui os relatos das frustrantes buscas por curas milagrosas. O autor conta como sentiu na própria pele os efeitos de ter sido vítima desse vasto mundo de despreparados e mal-intencionados que ficam à espreita para, aproveitando-se da fragilidade das pessoas, simplesmente vender tratamentos mágicos, como infelizmente é comum nessas situações. Foi assim que recebeu a explicação de que a origem das suas crises era por ele “ter visto os seus pais fazendo sexo”, ou, em outro momento, seguiu as rígidas recomendações para a realização de uma fracassada “cirurgia astral”.
Como na literatura, faço a ressalva de que há o sofrimento pela doença, mas há também a alegria e a gratidão pela cura. Em todo o livro, o autor não deixa de fazer referências carinhosas ao clínico que fez toda a diferença no seu caso: Frederico Kliemann, o neurologista e professor que o acompanhou por boa parte dessa jornada até a “cirurgia redentora” a que foi submetido. Uma pessoa que encantava pelo profundo conhecimento científico e um enorme viés humanista. Ou seja, um médico comprometido com os pacientes e que conseguia realmente ouvi-lo, entender as suas agruras e que, ao longo dos anos, acabou sendo chamado de amigo. Enfim, um médico que ajudou, no seu caso, a ciência vencer o preconceito, nem que tenha sido só um pouco... Esse é o aspecto pedagógico que merece ser destacado, pois parece que essa é uma das grandes qualidades do livro para quem está envolvido com a formação médica, isto é, que possamos nos espelhar em médicos realmente devotados aos seus pacientes.
Nessa mesma linha de pensamento, o breve capítulo de encerramento é escrito pelo psicanalista e escritor Celso Gutfreind. Sucinto, mas muito potente para reafirmar a importância de entendermos o que representa conviver com uma doença crônica. Uma lição que, na sua visão, todos os estudantes de Medicina (e professores também) deveriam aprender: realmente ouvir os nossos pacientes, com a ênfase de que ouvir é mais importante do aquilo que se ouve, buscando mostrar que a relação humana permanece sendo um elemento fundamental da prática médica. “Gente doída precisa de gente. Sempre e desde sempre.” Não é exatamente essa a medicina que deveríamos ensinar?
REFERÊNCIAS
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1Conrad P, Barker K. A construção social da doença: insights-chave e implicações para políticas de saúde. Ideias. 2013;2(2):183-219.
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2Tolstói L. A morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Martin Claret; 2007.
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3Scomazzon C. A cor púrpura da epilepsia. Porto Alegre: Casa Verde; 2023.
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4Helman C. Suburban shaman: tales from medicine’s frontline. London: Hammersmith Press; 2006.
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Avaliado pelo processo de double blind review.
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FINANCIAMENTO
Declaro não haver financiamento.
Editado por
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
31 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
07 Set 2023 -
Aceito
01 Abr 2024