Preceptor: o profissional de saúde-educador do século XXI

Resumo

Introdução:

É fato que os avanços pedagógicos na formação profissional em saúde não resultaram em melhor qualidade do cuidado, entretanto o trabalho em saúde como fonte para a formação e para a conscientização do preceptor como profissional de saúde-educador aparece como um caminho.

Desenvolvimento:

Tendo como base o envolvimento nas atividades cotidianas do trabalho, o preceptor oferece oportunidades de ensinagem; planeja, controla e guia o processo; estimula o raciocínio e a postura ativa do aluno; realiza procedimentos técnicos; modera a discussão de casos; observa, avalia o aluno executando suas atividades e analisa o seu desempenho; aconselha e cuida do crescimento profissional e pessoal do acadêmico; colabora na identificação de problemas éticos e em suas possíveis soluções; e estabelece os limites e cria possibilidades do uso da inteligência artificial.

Conclusão:

O preceptor - docente-clínico - transforma o ambiente de trabalho em momentos educacionais propícios, objetivando oferecer melhor cuidado à saúde da população.

Palavras-chave:
Preceptor; Formação Profissional em Saúde; Docente-Clínico

Abstract

Introduction:

It is a fact that the pedagogical advancements in professional healthcare education have not resulted in better quality of care. However, healthcare work as a source for a preceptor’s education and awareness as an educator-healthcare provider rises as a path to follow.

Design:

Based on the involvement in daily work activities, a preceptor offers teaching opportunities; plans, controls and guides the process; stimulates the student’s reasoning and active attitude; performs technical procedures; moderates case discussions; observes, assesses a student performing their activities and analyzes their performance; advises and supervises a student’s professional and personal growth; collaborates in the identification of ethical problems and their possible solutions; and sets limits and creates possibilities for the use of artificial intelligence.

Conclusion:

A preceptor - a clinical teacher - turns the work environment into appropriate educational moments to provide better healthcare to the population.

Keywords:
preceptor; professional healthcare education; clinical teacher

INTRODUÇÃO

A formação profissional em saúde tem sua base no desenvolvimento coordenado de diversas formas de saberes, conhecimentos e habilidades, e na aquisição de atributos técnicos e ético-relacionais¹. É uma prática social complexa, em que se estabelece um contrato de parceria entre o aprendiz e o mestre, que engloba as ações de ensinar e de aprender. Em uma perspectiva dialética, é um processo bilateral que ocorre em mão dupla entre pessoas e saberes. O ensinar e o aprender fundem-se em uma mesma ação, dialogando entre si e tornando-se inseparáveis. É, portanto, uma ação de ensinagem, por meio da qual o aprender e o ensinar, juntos e misturados, estão em um mesmo ato compartilhado por duas pessoas, que permutam o local de quem aprende e de quem ensina constantemente².

Sobre essa relação de ensino eaprendizagem, houve grandes avanços pedagógicos na educação dos profissionais de saúde desde o final do século XX e início do XXI^3)-(5, ressaltando o ensino baseado em problemas^6),(7, o ensino baseado em equipe⁸, a sala de aula invertida⁹, a educação baseada em competências¹⁰, além da adoção das mais variadas concepções pedagógicas e metodologias ativas e inovadoras. As escolas das áreas da saúde instrumentalizaram-se com esses conceitos e práticas. Mas nem todo esse avanço pedagógico conseguiu resultar em profissionais capazes de reduzir o significativo sofrimento das pessoas que procuram cuidado, nem a expressiva manifestação da doença que elas possam ter^3)-(5),(11.

E qual será o maior objetivo de uma formação profissional, se não for este?

O principal alcance da educação de profissionais de saúde deve ser a oferta de maior qualidade no cuidado em saúde, para torná-lo o que julgamos digno para as pessoas que mais amamos: integral, não fragmentado, de baixo custo e com grande efetividade. Há, então, uma premente responsabilidade da ensinagem em saúde de reformar custos, transformar processos e construir, conjuntamente, novos ambientes de prática. É preciso privilegiar o cuidado interprofissional, a colaboração entre os atores e as redes de atenção. Para isso, devemos superar a antiga dicotomia entre a formação de profissionais para o mercado e a formação para a busca e produção de conhecimento^{3)-(5),(12)-(14}.

O caminho é um redesenho educacional, baseado na reestruturação dos papéis da ciência básica e da clínica; na ensinagem advinda do trabalho, na ensinagem que acontece no trabalho e para o trabalho¹⁵; buscando habilidades necessárias para prática e para liderar sistemas complexos. Trata-se de rearranjar as relações nos ambientes clínicos de formação para que a educação na graduação e pós-graduação em saúde acelere a transformação necessária no sentido de se cumprir o contrato dos educadores com a sociedade^3)-(5.

Assim, o preceptor assume um papel essencial atuando como profissional de saúde-educador: com formação superior, esse profissional tem um compromisso duplo e complexo de cuidar da saúde da população e de cuidar da formação profissional daqueles que cuidam do outro, no mesmo ato, ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Atua efetivamente na ensinagem de estudantes da graduação e pós-graduação das áreas da saúde, fazendo parte do corpo docente. É ator no processo de desenvolvimento progressivo de competências marcantes para o profissionalismo a citar conhecimentos, habilidades e atitudes^16),(17. Por essa razão, é preciso alertar sobre a importância do preparo para tais tarefas, cabendo às instituições de saúde o apoio para a construção de saberes para o exercício da preceptoria.

DESENVOLVIMENTO

Os papéis do preceptor na formação profissional já foram tema da literatura científica discutido por nós^1),(18)-(21. Neste artigo, apresentamos nossa opinião crítica sobre o papel do preceptor no século atual. O envolvimento nas atividades diárias do trabalho é a base das ações do preceptor no processo de ensinagem (Quadro 1). É o seu ponto de partida, o caminho e, também, o seu ponto de chegada. É o momento em que se desenvolvem atributos técnicos e relacionais tanto do preceptor quanto do estudante^3),(5. O estudo teórico, as discussões de casos e as reuniões científicas ^22)-(24) estimulam a capacidade de raciocínio. Essa capacidade de raciocínio e de decisões alcança seu maior potencial como processo de ensinagem, se advinda dessa prática diária, servindo de base para aperfeiçoar o exercício profissional em saúde^25)-(31. Por conseguinte, ultrapassando a exposição a dados e informações, valorizam-se a atitude ativa e a participação do aluno na construção do conhecimento^25)-(27. O preceptor prepara-se para o exercício de sua função, transformando sua prática diária em prática reflexiva, na construção da melhor maneira de exercer a profissão em saúde e da melhor maneira de atuar na ensinagem da profissão, baseadas na literatura científica atual.

Quadro 1
Onze ações do preceptor.

1. Oferecer oportunidades de ensinagem.	2. Planejar o processo de ensinagem.
3. Controlar e guiar o processo de ensinagem.	4. Estimular o raciocínio e a postura ativa do aluno.
5. Realizar procedimentos técnicos.	6. Moderar a discussão de casos.
7. Observar e avaliar o aluno executando suas atividades.	8. Analisar o desempenho do aluno.
9. Aconselhar e cuidar do crescimento profissional e pessoal.	10. Colaborar na identificação dos problemas éticos inerentes a qualquer ação de cuidado e em possíveis soluções.
11. Avaliar os limites e as possibilidades do uso da inteligência artificial em todas as fases do cuidado.

• Fonte: Elaborado pelos autores.

O preceptor oferece oportunidades de ensinagem³¹ em ambientes que permitam construir e reconstruir conhecimentos, atuando como verdadeiro educador. Essas oportunidades são momentos da ação cotidiana do profissional de saúde em que o conhecimento é construído e explicitado em habilidades práticas. O preceptor propõe também ao estudante as atividades mais propícias para ensinagem, variando de acordo com o período determinado de sua formação.

Importa refletir sobre o fato de que planejar o processo de ensinagem faz parte das ações do preceptor. Ele planeja o número de participantes no ambiente e no momento; o tempo de duração da atividade durante o processo de formação; como inserir o estudante para que sua adaptação ao ambiente seja propícia; quais habilidades pretende-se ganhar; quais referências científicas atuais servem como base para a atividade; quais referências pedagógicas atuais sedimentam a ensinagem da atividade; como será a avaliação da atividade, com momentos de pré-avaliação, avaliação formativa, avaliação somativa e autoavaliação de todos os atores³².

O preceptor controla e guia a ensinagem. Acompanha o processo, do início ao fim, no tempo e local onde acontece. Diante dos acontecimentos cotidianos, realiza adaptações e readaptações nas atividades, agindo em conjunto com preceptores e estudantes^33),(34.

Ao estimular raciocínio e postura ativa do estudante, o preceptor compartilha a responsabilidade da ensinagem, que assume, então, seu conceito bidirecional. Há grande preocupação de que o aluno formule questões, além de apresentar respostas, e estabeleça um raciocínio crítico. A discussão das questões é fomentada, tendo a literatura científica como base³¹.

Realizando procedimentos técnicos e mostrando como se faz, o preceptor educa. Os passos do método clínico³⁵⁾ devem ser realizados pelo preceptor, acompanhado pelos estudantes, exercitando habilidades técnicas e éticas, como a entrevista profissional, o exame físico pertinente, a proposta de exames complementares, a proposta terapêutica e a proposta de acompanhamento da pessoa cuidada. Esses momentos não devem ser usados com a visão antiga da ensinagem pela experiência, que ocorre simplesmente por meio da exposição. Ao contrário, devem abranger sistematização, estrutura formal, planejamento e preparação, transformando a ensinagem pela experiência em ensinagem efetiva^36),(37.

Moderar a discussão de casos suscitada pela prática diária faz com que o preceptor consiga oferecer oportunidades de expansão de toda a ensinagem para a prática³⁸. Construir com todos os atores a forma melhor de apresentação dos casos²⁵ é um caminho. Durante a discussão, importa explicitar todos os pontos de ensino planejados previamente e usar estratégias para trabalhar com o conteúdo, por meio de scripts internalizados, de roteiros com gatilhos para a discussão, pontos-chave de ensino e estratégias eficientes em termos de tempo e recursos^35),(36.

O preceptor deve observar e avaliar o aluno executando suas atividades³⁹. Os passos do método clínico³⁵⁾ realizados pelo acadêmico devem ser observados e avaliados pelo preceptor, objetivando a ensinagem de habilidades técnicas e éticas: a entrevista profissional, o exame físico pertinente, a proposta de exames complementares, a proposta terapêutica e a proposta de acompanhamento da pessoa cuidada. O preceptor adiciona hipóteses e alternativas não pensadas pelo estudante para a condução do caso, numa discussão frutífera para construção do conhecimento.

Analisar o desempenho do estudante, discutindo com ele todas as questões, construindo uma cultura de análise do desempenho, avaliação e devolutiva, estabelece relações estáveis, respeitosas e de apoio entre preceptor e aprendiz. É necessário que o preceptor observe o estudante em ato. Integrar a avaliação ao processo de ensinagem, com comunicação prévia e transparente dos objetivos e do que vai ser avaliado é um dos caminhos. É importante deixar claro quais objetivos devem ser alcançados, como o estudante está no momento e como ele pode e deve continuar para alcançar os objetivos até o final da formação^40),(41.

É ação do preceptor aconselhar e cuidar do crescimento profissional e pessoal do estudante, usando de sua maior experiência para guiar, orientar e aconselhar um profissional em formação, e, portanto, cuidar do crescimento pessoal e profissional⁴², atuando na formação moral não exclusivamente como exemplo, mas também como um modelo a ser copiado e reproduzido⁴³. O preceptor deve estimular o aprendiz a perceber e a debater as variadas questões atuais da bioética. Ele é vitrine de atributos morais, que inspira tanto o estudante em relação ao que quer e como deve ser, quanto ao que não quer e não deve ser. O estudante não é sujeito passivo, apenas recebe influências. Com sua bagagem, seu espaço social e os conteúdos interiorizados na socialização primária, seu habitus⁴⁴ é ator principal. Livre para escolher entre os valores que a escola lhe oferece para humanizar as relações, mas também sofrendo certa coação a seguir um padrão mínimo de conhecimentos, valores e atitudes típicos da corporação⁴⁵.

A prática cotidiana continua a ser o ponto de partida, o caminho e a chegada; sem necessidades de se recorrer à artificialidade de temas em casos construídos apenas para discussão. O preceptor, que cuida da saúde de uma pessoa e da formação em saúde de outra pessoa, deve estar atento à discussão dos aspectos morais desse cuidado duplo, baseado na “caixa de ferramentas” da bioética⁴⁶. E deve chamar a atenção dos estudantes sobre as dimensões morais envolvidas no cotidiano do trabalho, tanto as relativas ao cuidado quanto às relativas à ensinagem.

A inteligência artificial deve ser usada pelo preceptor, pois auxilia na performance. O principal cuidado é não se limitar às respostas da inteligência artificial, mas utilizá-la como uma das ferramentas, indo além no desenvolvimento do raciocínio clínico, por meio de percepções e particularidades só acessíveis à inteligência humana. O preceptor constrói, com o estudante, usando a inteligência artificial, um senso que permite ultrapassar os consensos⁴⁷.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com essas 11 ações essenciais, o preceptor assume papel do docente-clínico, educador, e profissional que domina e exerce com destreza sua atividade. Domina os aspectos educacionais relacionados a ela, coloca-os em prática, transformando o cotidiano do trabalho em ambiente e momento educacionais propícios, com o mais alto grau de profissionalismo. A formação abarca o desenvolvimento de atributos técnicos e relacionais. Preceptor e aluno fazem, de sua ação diária, um processo educacional. São profissionais graduados e especializados ou estão na graduação/especialização, porém todos em formação permanente. Tanto o aluno como o preceptor devem, no relacionamento diário com as pessoas que buscam cuidado, preocupar-se com a formação técnica e ética para atingir a qualidade profissional em plenitude, que somente se explicitará na redução do fardo de sofrimento e da doença^3),(4. O preceptor educa!

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• 2
  Avaliado pelo processo de double blind review.

• FINANCIAMENTO

  Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editora associada: Daniela Chiesa.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  15 Abr 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  14 Ago 2023
• Aceito
  06 Fev 2024