Open-access Aspectos epidemiológicos, clínicos e anatomopatológicos da hepatite infecciosa canina: 15 casos

Epidemiological, clinical and pathological aspects of infectious canine hepatitis: 15 cases

RESUMO:

Descrevem-se os principais aspectos epidemiológicos, clínicos e anatomopatológicos de casos de hepatite infecciosa canina diagnosticados no Laboratório de Patologia Animal da Universidade Federal de Campina Grande, durante o período de janeiro de 2003 a dezembro de 2016. Dos 1.640 cães necropsiados, 15 foram diagnosticados como hepatite infecciosa canina (0,91%). Dos cães acometidos nove eram machos e seis fêmeas. As idades variaram de 45 dias a sete anos, sendo a maioria filhotes. Dez animais não apresentavam raça definida, quatro eram Poodles e um Rottweiler. A maioria dos cães não recebeu nenhum tipo de protocolo vacinal. Os cães eram oriundos dos municípios de Patos, São Mamede e Teixeira, pertencentes ao estado da Paraíba, Nordeste do Brasil. A maioria dos cães apresentou curso clínico variando de hiperagudo a agudo. Os principais sinais clínicos foram convulsão, apatia e hiporexia. Na necropsia, as principais alterações foram observadas no fígado que se apresentava de pálido a alaranjado e com áreas irregulares avermelhadas na superfície capsular, além de acentuação do padrão lobular e edema na parede da vesícula biliar. Hemorragias foram observadas em vários órgãos. Na histopatologia havia necrose centrolobular de hepatócitos associada a corpúsculos de inclusão viral intranucleares, hemorragia e infiltrado inflamatório misto. O diagnóstico foi estabelecido com base nas características lesões histopatológicas e foi confirmado por imuno-histoquímica. A hepatite infecciosa canina ocorre ocasionalmente na Paraíba, acometendo particularmente cães jovens e não vacinados.

TERMOS DE INDEXAÇÃO: Epidemiologia; clínica; anatomopatologia; hepatite infecciosa; caninos; doenças de cães; necrose hepática; inclusão viral; viroses

ABSTRACT:

We described the main epidemiological, clinical and pathological aspects of canine infectious hepatitis diagnosed in the Laboratory of Animal Pathology of the Federal University of Campina Grande during the period from January 2003 to December 2016. Of the 1,640 necropsied dogs, 15 were diagnosed as infectious canine hepatitis (0.91%). Of the dogs affected nine were males and six females. The ages ranged from 45 days to seven years, being most of them young. Ten animals were mixed breed, four were Poodles and one Rottweiler. Most of the dogs do not received any vaccine protocol. The dogs came from the municipalities of Patos, São Mamede and Teixeira, from Paraiba, northeastern of Brazil. Most of the dogs presented clinical course varying from hyperacute to acute. The main clinical signs were seizure, apathy and hyporexia. At necropsy, the major alterations were observed in the liver, which was pale to orange and with irregular reddish areas on the capsular surface, besides accentuation of the lobular pattern and edema in the wall of the gallbladder. Hemorrhages were observed in several organs. In the histopathology there was centrolobular necrosis of hepatocytes associated with intranuclear viral inclusion bodies, hemorrhages and mixed inflammatory infiltrate. The diagnosis was established based on the characteristic histopathological lesions and was confirmed by immunohistochemistry. Infectious canine hepatitis occurs occasionally in the Paraiba, affecting particularly young and unvaccinated dogs.

INDEX TERMS: Epidemiology; clinic; pathology; canine; hepatitis; dog diseases; hepatic necrosis; viral inclusion; viroses

Introdução

Hepatite infecciosa canina (HIC) é uma doença infectocontagiosa e multissistêmica causada pelo Adenovírus canino tipo-1 (CAV-1). Essa doença acomete canídeos domésticos e silvestres, sendo os cães domésticos jovens e não vacinados particularmente susceptíveis (Cullen & Stalker 2016). A principal via de transmissão ocorre pela exposição das mucosas oronasal à urina, saliva, fezes ou secreções respiratórias de animais infectados. O vírus foi isolado de todos os tecidos e excreções de cães infectados, podendo ser excretado pela urina de seis a nove meses se o animal se recupera da fase aguda da doença (Greene 2012).

Uma vez exposto ao vírus, o curso da infecção é variável e diretamente relacionado aos títulos de anticorpos neutralizantes previamente presentes. Os cães com altos títulos de anticorpos apresentam infecção subclínica, enquanto os que possuem baixos títulos adoecem (Greene 2012); podendo a doença cursar de forma hiperaguda, aguda, subaguda ou crônica (Barros & Fighera 2011), sendo consenso que, na maioria dos casos, a doença cursa de forma hiperaguda a aguda (Barros & Fighera 2011, Greene 2012, Cullen & Stalker 2016). A variabilidade do curso clínico e a inespecificidade dos sinais clínicos, por vezes observados por um curto intervalo de tempo, usualmente dificultam o diagnóstico clínico de HIC. A confirmação do diagnóstico clínico pode ser obtida por técnicas sorológicas, moleculares, imunofluorescência e isolamento viral (Greene 2012). O objetivo desse trabalho é descrever os principais aspectos epidemiológicos, clínicos e anatomopatológicos de casos de HIC diagnosticados no estado da Paraíba, Nordeste do Brasil.

Material e Métodos

Foram revisadas todas as fichas de necropsias de cães realizadas durante o período de janeiro de 2003 a dezembro de 2016 no Laboratório de Patologia Animal da Universidade Federal de Campina Grande. Foram identificados os casos de hepatopatias e posteriormente selecionados os que apresentavam lesões compatíveis com hepatite infecciosa canina.

Dos protocolos clínicos e de necropsia foram obtidas informações referentes aos dados epidemiológicos (raça, sexo, idade, estado vacinal e procedência do animal), sinais clínicos e achados anatomopatológicos. Os cães afetados foram agrupados em três categorias, quanto a idade, sendo considerados filhotes (até 1 ano), adultos (de 1 a 9 anos) e idosos (10 anos ou mais) (Hoskins 1993).

Os tecidos coletados foram fixados em formol tamponado a 10%, processados rotineiramente e corados por hematoxilina e eosina (HE). Secções histológicas do fígado foram ainda submetidas à técnica imuno-histoquímica (IHQ) com anticorpo monoclonal anti-Adenovírus canino tipo 1 (VMRD - 2E10-H2). A técnica foi realizada pelo método estreptavidina-biotina ligada à peroxidase. A inibição da peroxidase foi realizada com peróxido de hidrogênio a 10% em solução de metanol durante 30 minutos. Para recuperação antigênica foi utilizada a enzima proteinase K ready-to-use (S3020, Dako Cytomation) por 1 minuto. O bloqueio das reações inespecíficas foi realizado com leite em pó por 20 minutos. Foi utilizado anticorpo primário na diluição de 1:400 durante 15 horas (overnight) a 4oC. Os cortes histológicos foram então incubados por 40 minutos com anticorpo secundário biotinilado ligado a estreptavidina-peroxidase (kit LSAB-K0690, Dako Cytomation). Como cromógeno utilizou-se o 3,3’diaminobenzidina (DAB-K3468, Dako Cytomation) por um 1 minuto.

Resultados

Durante o período de estudo foram realizadas 1.640 necropsias de cães, das quais 73 (4,45%) foram diagnosticadas como hepatopatias. Desses casos, em 15 (0,91%) foi observada necrose hepatocelular associada a corpúsculos de inclusão viral basofílicos ou anfofílicos intranucleares, característicos de hepatite infecciosa canina.

Dos cães acometidos nove eram machos e seis fêmeas. As idades variaram de 45 dias a sete anos, sendo a maioria filhotes (8/15). Dez animais não apresentavam raça definida, quatro eram da raça Poodle e um da raça Rottweiler. Com relação à imunização, 12 cães não receberam nenhum tipo de protocolo vacinal e três foram submetidos à vacinação (antígeno vacinal de adenovírus atenuado), mas apenas um recebeu as três doses recomendadas da vacina. Os cães eram oriundos dos municípios de Patos (13/15), São Mamede (1/15) e Teixeira (1/15), pertencentes à mesorregião do Sertão Paraibano, Nordeste do Brasil.

A maioria dos cães apresentou curso clínico variando de hiperagudo (6/15) a agudo (6/15), com duração de 12 a 24 horas e de dois a sete dias, respectivamente. Em três casos não foram informados dados relativos ao curso clínico apresentado. Os diagnósticos clínicos presuntivos foram: intoxicação (4/15), erliquiose (4/15), parvovirose (2/15), endoparasitose (1/15) e trauma crânioencefálico (1/15); em três casos não foi estabelecido diagnóstico clínico. Dados relativos à epidemiologia e clínica dos casos de HIC estão relacionados, em detalhes, no Quadro 1.

Quadro 1.
Dados epidemiológicos e clínicos de casos de HIC diagnosticados no LPA/UFCG (2003-2016)

Na necropsia, as principais alterações foram observadas no fígado, que apresentava coloração variando de pálida a alaranjada com múltiplos pontos avermelhados distribuídos aleatoriamente pelo parênquima (12/15) (Fig.1A), acentuação do padrão lobular (9/15) e aumento de volume (3/15). Foram observados ainda edema da parede da vesícula biliar (6/15) (Fig.1B) e fibrina aderida à superfície capsular e entre os lobos hepáticos (6/15). Petéquias e equimoses foram observadas na mucosa e/ou serosa do estômago (11/15) e intestinos (11/15); nesse último, havia conteúdo hemorrágico intraluminal (11/12) (Fig.1C) e serosa com aspecto rugoso (5/15). Hemorragias foram visualizadas ainda nos rins (9/15), mucosas oral e oculares (7/15), tecido subcutâneo (7/15), pulmões (7/15) (Fig.1D), coração (7/15) (Fig.1E), baço (5/15), encéfalo (5/15) (Fig.1F), bexiga (3/15) e timo (2/15). Foi observado ocasionalmente líquido avermelhado na cavidade abdominal (4/15), linfonodos mesentéricos aumentados (4/15) e hemorrágicos (2/15), icterícia (2/15), edema submandibular (2/15) e tonsilite (2/15).

Fig.1.
Hepatite infecciosa canina. (A) Fígado com áreas avermelhadas irregulares na superfície capsular. (B) Parede da vesicula biliar distendida por edema. (C) Serosa do intestino avermelhada e conteúdo líquido vermelho escuro intraluminal. (D) Pulmões com hemorragias multifocais a coalescentes na superfície pleural. (E) Coração com hemorragias multifocais a coalescentes no epicárdio. (F) Encéfalo com hemorragias multifocais a coalescentes nas leptomeninges.

Na histopatologia, as principais alterações foram verificadas no fígado e consistiam de necrose de hepatócitos (15/15), com distribuição centrolobular (12/15) (Fig.2A), centrolobular a mediozonal (2/15) e massiva (1/15); associada a corpúsculos de inclusão viral basofílicos ou anfofílicos intranucleares em hepatócitos (15/15) (Fig.2B), hemorragia (13/15) e discreto infiltrado inflamatório misto (10/15). As inclusões virais frequentemente apresentavam-se delimitadas por um halo claro (14/15) ou preenchiam todo o núcleo (1/15). Foram observadas em hepatócitos aparentemente normais, degenerados e em processo de necrose individual, sendo particularmente presentes em hepatócitos adjacentes às áreas de necrose.

Fig.2.
Hepatite infecciosa canina. (A) Fígado com necrose centrolobular de hepatócitos. HE, obj.20x. (B) Corpúsculo de inclusão viral intranuclear basofílico (seta) em hepatócito adjacente à área de necrose (asterísco). HE, obj.40x. (C) Hemorragia subaracnoide no lobo temporal do cérebro (asterisco). HE, obj.20x. (D) Inclusão viral intranuclear basofílica em endotélio vascular do cérebro (seta). HE, obj.40x. (E) Inclusão viral intranuclear basofílica em célula endotelial de capilar glomerular (seta) e discreto infiltrado inflamatório linfoplasmocitário periglomerular (cabeça de seta). HE, obj.40x. (F) Fígado com corpúsculos de inclusão viral intranucleares em hepatócitos imunomarcados em marrom para CAV-1. IHQ, obj.40x.

No encéfalo, havia discreta vasculite linfoplasmocitária multifocal associada à hemorragia (Fig.2C) e corpúsculos de inclusão viral intranucleares em células endoteliais de vasos sanguíneos (10/15) (Fig.2D), afetando principalmente os córtices frontal, parietal e temporal, núcleos da base, hipocampo, tálamo e óbex. Em todos os casos nos quais foram observadas lesões vasculares no encéfalo, os cães apresentaram manifestações clínicas neurológicas. Nos rins, havia corpúsculos de inclusão viral intranucleares em células endoteliais de capilares glomerulares, associados a discreto infiltrado inflamatório linfoplasmocitário periglomerular e hemorragia (6/15) (Fig.2E). No baço, havia necrose de células dos folículos linfoides, depleção linfoide e corpúsculos de inclusão viral intranucleares em células reticuloendoteliais (3/15). Nos linfonodos mesentéricos havia necrose de células dos folículos linfoides, depleção linfoide, hemorragia e corpúsculos de inclusão viral intranucleares em histiócitos (2/15).

As inclusões virais, vistas basofílicas ou anfofílicas por HE, foram fortemente imunomarcadas em marrom para CAV-1 (Fig.2F).

Discussão

O diagnóstico de HIC foi estabelecido com base nos achados epidemiológicos, clínicos e anatomopatológicos, e foi confirmado por imuno-histoquímica. Os óbitos por HIC, durante o período de estudo, representaram reduzido percentual (0,91%) de necropsias no LPA da UFCG. Resultados semelhantes foram encontrados em estudos desenvolvidos nos municípios de Santa Maria (1,2%) (Inkelmann et al. 2007) e Porto Alegre (0,34%) (Oliveira et al. 2011), pertencentes ao estado do Rio Grande do Sul, Brasil. É importante considerar que esse trabalho e os desenvolvidos na região Sul do Brasil compreendem apenas os casos fatais da doença, desconsiderando as infecções que cursam de forma subclínica ou os casos nos quais os animais se recuperam. É reconhecido que a maioria das infecções evolui de forma subclínica ou causa apenas doença leve, e, nessas condições, os cães se recuperam e mantém os níveis séricos de anticorpos neutralizantes (Greene 2012, Cullen & Brown 2013). A taxa de mortalidade varia entre 10 e 30% dos casos (Decaro et al. 2008).

Com relação à imunização, apenas um filhote recebeu um protocolo vacinal completo. Essa circunstância pode ser atribuída ao perfil dos cães atendidos no Hospital Veterinário da UFCG, que, devido às condições socioeconômicas da maioria dos proprietários, usualmente não recebem essa ou outras medidas profiláticas básicas. O reduzido percentual de imunização é semelhante ao observado em outro levantamento (Oliveira et al. 2011). A realização de adequados protocolos de imunização tem tornado a HIC rara em muitos países (Decaro et al. 2007), com relatos de casos isolados (Piacesi et al. 2010, Rossato & Martins 2015) ou surtos (Pratelli et al. 2001, Caudell et al. 2005, Decaro et al. 2007) ocorrendo apenas ocasionalmente.

Na Paraíba, a HIC demonstrou ser uma doença que afeta principalmente cães jovens (até um ano de idade). Essa doença pode ocorrer em cães de todas as idades, mas filhotes de cães menores de um ano são mais frequentemente acometidos e mais propensos a morrer da infecção (Greene 2012, Cullen & Brown 2013).

A HIC pode cursar de forma hiperaguda, aguda, subaguda ou crônica, sendo consenso que, na maioria dos casos, a doença cursa de forma hiperaguda a aguda (Barros & Fighera 2011, Greene 2012, Cullen & Stalker 2016,), o que pode ser constatado nesses casos.

Os cães podem morrer poucas horas após o início dos sinais clínicos ou podem ser encontrados mortos sem que se observem sinais clínicos (Cullen & Stalker 2016); essa última condição pode ser atribuída ao, por vezes, curto intervalo de tempo no qual se manifestam os sinais clínicos, intervalo que pode coincidir com a ausência do proprietário (Barros & Fighera 2011). É comum que o proprietário ou o médico veterinário cogitem a possibilidade de intoxicação ou trauma crânioencefálico (Barros & Fighera 2011).

Em nenhum desses casos a suspeita clínica foi de HIC. Essa doença costuma apresentar um conjunto de sinais que podem mimetizar várias enfermidades, o que dificulta muito o diagnóstico clínico. Diante disso, a HIC representa importante diagnóstico clínico diferencial em cães com suspeita de intoxicação, trauma crânioencefálico, hemoparasitoses, parvovirose, leptospirose e insuficiência cardíaca congênita (Barros & Fighera 2011).

As principais alterações macroscópicas foram observadas no fígado, mas hemorragias puderam ser visualizadas em vários órgãos. A tendência a processos hemorrágicos observada nessa doença está relacionada ao tropismo do CAV-1 por células endoteliais e hepatócitos (Greene 2012). As lesões no endotélio vascular associadas à inabilidade do fígado lesionado em produzir os fatores de coagulação foram, por muito tempo, imputadas como a principal causa de hemorragia nessa doença. Embora esses fatores associados desempenhem influência no desenvolvimento das hemorragias, atualmente acredita-se que resultem do dano endotelial associado ao acelerado consumo dos fatores de coagulação (coagulação intravascular disseminada), uma vez que o dano endotelial é um potente indutor da cascata de coagulação (Cullen & Stalker 2016).

Edema na parede da vesícula biliar é um achado patológico importante nessa doença e já foi descrito como sendo muito frequente (Cornwell & Wright 1969), contudo nesse e em outros estudos foi observado em menos da metade dos casos (Inkelmann et al. 2007, Oliveira et al. 2011). Icterícia não é um achado patológico frequente em casos de HIC (Parry 1950, Kelly 1993, Inkelmann et al. 2007, Oliveira et al. 2011), provavelmente pelo rápido curso clínico da doença. Edema de subcutâneo na região da cabeça, pescoço e porções inferiores do tronco, costuma ser observado em associação à linfadenomegalia (Greene 2012), mas pode ainda ser secundário ao aumento da permeabilidade vascular devido o dano endotelial (Cullen & Stalker 2016). Lesões em tonsilas foram pouco observadas, mas esse é o sítio primário da replicação viral ocorrendo inflamação evidente, mais comumente, na fase inicial da infecção (Cullen & Brown 2013).

Opacidade da córnea não foi observada em nenhum desses cães, provavelmente pela evolução hiperaguda ou aguda da maioria desses casos. Essa é uma condição clínica de desenvolvimento tardio que ocorre em cães convalescentes, usualmente entre 14 e 21 dias após a infecção (Carmichael 1964). Trata-se de uma uveíte e edema de córnea secundários a uma reação de hipersensibilidade do tipo III, mediada pela deposição de imunocomplexos (Cullen & Stalker 2016).

As alterações microscópicas observadas no fígado em associação aos corpúsculos de inclusão viral intranucleares em hepatócitos, vistos em todos os casos, permitem o diagnóstico de HIC (Rakich et al. 1986). Contudo, nos raros casos nos quais a doença não assume a apresentação clássica e não são visualizadas as inclusões virais, a técnica IHQ constitui uma importante ferramenta auxiliar para a confirmação do diagnóstico etiológico (Oliveira et al. 2011). É importante considerar que nos hepatócitos de cães podem ocorrer inclusões intranucleares inespecíficas que têm sido confundidas com as inclusões de HIC (Myers et al. 2013). Essas inclusões são fortemente acidofílicas, poliédricas e ocorrem em cães de meia idade ou idosos e sem as demais alterações associadas à HIC (Kelly 1993, Inkelmann et al. 2007, Myers et al. 2013).

As inclusões virais puderam ser visualizadas ainda no endotélio vascular de outros órgãos, quase sempre associadas à hemorragia. Esses achados extra-hepáticos são comumente verificados e auxiliam o diagnóstico de HIC, principalmente quando não se tem disponibilidade da técnica IHQ. Em todos os casos nos quais se observaram lesões vasculares no encéfalo, os cães haviam apresentado sinais clínicos neurológicos, o que reitera que essa sintomatologia seja secundária ao dano vascular (Caudell et al. 2005, Cullen & Stalker 2016). As alterações renais estão relacionadas à lesão viral direta sobre o endotélio glomerular, mas podem ainda ser atribuídas à deposição de imunocomplexos nos casos que se cronificam (Serakides 2010), em ambas as condições ocorre discreta infiltração de células inflamatórias.

Considerando a dificuldade para se estabelecer o diagnóstico clínico de HIC, usualmente o diagnóstico é obtido através do exame anatomopatológico. Na região de estudo, a HIC tem como principais diagnósticos diferenciais a leptospirose, a parvovirose e as hemoparasitoses, particularmente por Babesia spp. e Ehrlichia spp.

Na leptospirose canina observam-se comumente alterações hepáticas e renais, icterícia e lesões extrarrenais de uremia. Na histopatologia, pode se observar nos rins uma associação de nefrose tubular aguda e nefrite intersticial não supurativa e no fígado dissociação de hepatócitos, necrose de hepatócitos e colestase (Tochetto et al. 2012). Na parvovirose verifica-se hemorragia e aspecto granular na serosa intestinal, conteúdo intraluminal hemorrágico e linfonodos mesentéricos aumentados e hemorrágicos, achados comuns à HIC. Contudo, as hemorragias na parvovirose se restringem a esses órgãos e na histopatologia do intestino delgado, verificam-se necrose das células epiteliais das criptas, atrofia e fusão das vilosidades intestinais e discreto infiltrado inflamatório mononuclear, além de necrose e rarefação linfoides nas placas de Peyer, linfonodos mesentéricos, baço e medula óssea (Guedes et al. 2010, Rodrigues 2011). Nas hemoparasitoses há significativa alteração no quadro hematológico e os agentes etiológicos podem ser visualizados nos constituintes celulares do sangue através de esfregaços sanguíneos. Na necropsia de cães com babesiose observa-se hemoglobinúria, esplenomegalia e hepatomegalia e no exame histopatológico comumente se observam nefrose hemoglobinúrica e eritrofagocitose. Nos casos de erliquiose, pode ser observada palidez nas mucosas e processos hemorrágicos no subcutâneo, mucosas e serosas de órgãos da cavidade abdominal (Fighera & Graça 2014).

Conclusões

A hepatite infecciosa canina (HIC) ocorre ocasionalmente na Paraíba, acometendo particularmente cães jovens e não vacinados. Os cães afetados geralmente apresentam manifestações clínicas inespecíficas e curso clínico variando de hiperagudo a agudo, condições que dificultam o diagnóstico clínico da doença.

As lesões microscópicas observadas no fígado são características e permitem o diagnóstico da doença. O diagnóstico diferencial deve ser realizado principalmente em casos suspeitos de intoxicação, erliquiose ou parvovirose.

Agradecimentos

Ao CNPq pela concessão da bolsa de mestrado ao primeiro autor.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2017
  • Aceito
    18 Jul 2017
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