Introdução
A irrupção de eventos socioambientais extremos, em escalas locais e planetárias, associados à crise climática, nos situa num ponto de não retorno diante do enfrentamento de um “tempo de catástrofes” (Stengers 2016) e dos desafios da sobrevivência num “mundo em ruínas” (Tsing 2018). Essa condição tem colocado em risco não apenas o mundo natural, mas também as imaginações, utopias e esperanças num futuro comum.
O ano de 2024, em que publicamos este dossiê, deverá ser o mais quente desde o século XIX, quando medidas sistemáticas de temperatura começaram a ser registradas. Considerando o período de 12 meses, de setembro de 2023 a agosto de 2024, a temperatura média global foi a mais elevada já alcançada para um período de um ano na série histórica: 1,64°C acima da média pré-industrial (1850-1900). Com isso, alcançamos o teto que o Acordo de Paris considera o limite a partir do qual os eventos climáticos, mais frequentes e extremos, tornam-se fatores de alto risco para a vida como nós a conhecemos.
Para citar uma referência religiosa como indicativo, neste ano, mais de mil pessoas morreram na peregrinação a Meca (Hajj), quando as temperaturas atingiram mais de 50°C. Uma situação que tende a se agravar. Uma pesquisa conduzida por cientistas da Universidade de King Abdulaziz, na Arábia Saudita, destacou que as temperaturas durante o Hajj estão aumentando a uma taxa de aproximadamente 0,4°C por década (Yezli et al. 2024).
No Brasil, as cheias que atingiram o Rio Grande do Sul, em maio de 2024, superaram os marcos das cheias históricas de 1941.1 Mas, não o suficiente, também enfrentamos, nos últimos meses, nas estações de inverno e primavera, a pior seca desde 1950, afetando uma área de 58% do território nacional (Cemadem 2024).
Esses indicadores acarretam uma avalanche de consequências tanto em termos ambientais quanto humanitários, aprofundando as desigualdades sociais. Bairros periféricos se tornam ilhas de calor e/ou áreas alagáveis, em contraste com outros espaços da cidade. Epidemias, doenças respiratórias e mentais atingem, de forma seletiva, as populações mais pobres e sobrecarregam os sistemas públicos de saúde. Além disso, prejuízos na produção de alimentos encarecem a cesta básica e agravam a insegurança alimentar.
Exaustão climática, escassez e fome tornam inviável a vida em vastas regiões do planeta, provocando deslocamentos e migrações forçadas. A presença massiva de refugiados climáticos, obrigados a deixar seus países de origem, traz para o centro do capitalismo a pobreza e a suspensão dos direitos humanos que o colonialismo racial havia represado, pela força ideológica e das armas, nas periferias do sistema.
Esse horizonte de imprevisibilidade ambiental e de vulnerabilidade de todos os viventes, humanos e não humanos, incide profundamente na gramática, na prática e nos discursos religiosos e espirituais em todo o planeta. Nesse movimento de reconexão do religioso/espiritual com o ambiental, antigos rituais e dogmas têm se reformulado e novos têm sido inventados. A relação dos humanos com a natureza e com os mais-que-humanos (animais, plantas, pedras, materiais, ventos etc.) está passando por um questionamento em todas as tradições religiosas. Os artigos reunidos neste dossiê, Religião, Espiritualidade e Ecologia, oferecem uma amostra significativa das inflexões que vêm ocorrendo, especialmente a partir das mudanças climáticas, no campo religioso e das espiritualidades.
As espiritualidades ecológicas e seculares
Há uma percepção generalizada, tanto por parte daqueles que falam em nome das religiões quanto dos seus estudiosos, de que se vive uma crise da religião. Essa crise, no entanto, não se manifesta necessariamente em formas tradicionais de ateísmo ou mesmo de agnosticismo. Pelo contrário, ela tem sido expressa por meio de uma pluralidade de experiências que se configuram como novos modelos de relação com o sagrado, questionando as instituições religiosas. Essas experiências, por sua vez, geralmente ocorrem em espaços que se apresentam como seculares, sendo mediadas por instâncias e agentes como o Estado, o mercado e as organizações da sociedade civil. Esse contexto permite projetar um espaço público diverso daquele desenhado pelas teorias modernas da secularização, em que a espiritualidade se distancia da religião, apresentando-se como não religiosa.
Neste cenário, o ideário ecológico opera como um dispositivo recorrente para efetivar o distanciamento da espiritualidade em relação à religião. Observa-se, então, um movimento de mão dupla, de naturalização do sagrado e de sacralização da natureza, que atravessa o campo religioso como um todo. Na intersecção entre o sagrado e a natureza, produz-se um distanciamento dos deuses da transcendência, que estão fora do mundo, e a afirmação do sagrado como uma força e potência acessível e palpável, presente na imanência do mundo visível. Esse deslocamento da transcendência para a imanência cria as condições para o surgimento das espiritualidades ecológicas, que se inscrevem no horizonte de uma cosmologia em que a salvação se realiza na comunhão de todos os seres no universo. As espiritualidades ecológicas também são signatárias de uma ética ambiental, que se traduz em um encontro respeitoso, reverente e simétrico com a natureza. Isso contrasta com o dogma cristão da criação, em que o mundo é tomado como um referente externo e objetivo, em oposição ao ser humano, que se percebe como um ente separado da natureza.
O distanciamento da espiritualidade em relação à religião possui uma versão contemporânea, expressa na percepção e no discurso de sujeitos que afirmam que são “espirituais, mas não religiosos”. Se, por um lado, parte destes sujeitos situa-se no contingente daqueles que se afirmam como “sem religião”, por outro, muitos deles pertencem a instituições religiosas. Ou seja, como mostram os artigos aqui reunidos, a tensão entre espiritualidade e religião pode tanto surgir em espaços seculares quanto no interior das religiões estabelecidas. Em ambos, contudo, o ideário e a ética ecológicas desempenham um papel fundamental na conformação da espiritualidade.
A existência dessa conectividade entre o sagrado e a natureza, que está na base das espiritualidades ecológicas, tem permanecido à margem tanto das ciências naturais normativas quanto das ciências humanas. Para ambas, trata-se de resguardar a objetividade científica, evitando qualquer intrusão do sagrado na análise material da realidade. Na contramão desse caminho, como apontam os artigos deste dossiê, a articulação da espiritualidade com a ecologia enseja a possibilidade de um retorno do sagrado ao campo das ciências modernas. Um retorno que se apresenta como “a volta do recalcado” ou do objeto que regressa como sujeito. Como afirmava Gregory Bateson, o Deus que retorna na esteira da ecologia “já não possui nada de divino” (Bateson 1972:267-468). Está muito distante de qualquer concepção cristã de um Deus transcendente, absoluto, onipotente, “totalmente outro” em relação ao mundo criado.
Artigos
O primeiro artigo, intitulado “Clima, fé, educação: caminhos possíveis num planeta sob pressão”, de autoria de Maria Rita Villela, chama a atenção para a articulação entre os campos da antropologia e da educação socioambiental. Tendo como pano de fundo a presença do movimento ambientalista, nos últimos 20 anos, no contexto brasileiro, a autora aborda o envolvimento de comunidades religiosas como agentes políticos na arena de disputas em torno das mudanças climáticas. Destaca, então, o papel dos conhecimentos e das religiões tradicionais na formulação de epistemologias e valores que se inscrevem na agenda dos debates que emergem na esfera pública contemporânea. Nos marcos da antropologia do desenvolvimento, discute questões relativas ao ofício do/a antropólogo/a, o estatuto da etnografia, o ativismo político, tendo como foco a formulação e a gestão de políticas públicas na área ambiental.
Ainda no horizonte das práticas e dos saberes tradicionais, o segundo artigo, “Religiões ayahuasqueiras e ambientalismo: análise das práticas sob a perspectiva da sustentabilidade”, de autoria de Igor Antunes, aborda as relações entre cultura, cosmologia e ambientalismo. Tomando como critério a sustentabilidade, o autor se propõe a analisar a incidência positiva e/ou negativa das práticas dos coletivos ayahuasqueiros sobre o ambiente em que estão inseridos. Apresenta, ainda, uma resenha da literatura sobre esse segmento religioso, ao mesmo tempo em que traz, para o texto, dados etnográficos do trabalho de campo, realizado pelo autor, nas regiões Norte, Sudeste e Sul do país. Aqui, também, a questão da sacralidade da natureza surge como um fio condutor que atravessa tanto a cosmologia ayahuasqueira. Neste quadro analítico, o artigo chama a atenção para a dualidade e complexidade da interação entre esses atores religiosos e o movimento ambientalista.
Os dois artigos que seguem retomam a questão ambiental em relação com as religiões de matriz africana. O foco, em ambos, contudo, está posto nos materiais que sustentam os ritos afro-diaspóricos, conferindo-lhes eficácia e plausibilidade. Assim, em continuidade com o artigo anterior, a questão dos materiais rituais será o centro da reflexão do texto intitulado “Resíduos sagrados: inovações rituais e oferendas afro-brasileiras na era da crise ambiental”, escrito por Giovanna Capponi. A questão central, abordada, aqui, é a tensão entre os resíduos produzidos pelas oferendas, despachadas em florestas, rios e oceano, como parte da conexão entre as divindades e seus domínios naturais, e uma ética ambiental, fundada sobre um ideário de conservação, que vê, nestes resíduos, agentes de poluição. Na esteira desse debate, a autora assinala o surgimento de um ponto de negociação entre a disseminação da ética ambiental e a adaptação ritual na confecção das oferendas, de modo a atender aos critérios de sustentabilidade. Nesse sentido, a ênfase atual na dimensão material das religiões tem operado tanto como uma estratégia para neutralizar as acusações às religiões de matriz africana, quanto como um fator de sua afirmação como “religiões da natureza”, no âmbito do ativismo social e ambiental.
Por sua vez, o artigo “O terreiro na paisagem feral: as folhas de Exu crescem junto às ruínas do capitalismo”, de autoria de Hugo Weslley Oliveira Silva, mostra como Exu participa do antropoceno. Partindo do debate atual sobre as ruínas do capitalismo, o texto foca na relação entre as religiões de matriz africana e os seres mais-que-humanos que crescem e prosperam em paisagens ferais. Em termos etnográficos, o autor acompanha a coleta das folhas da mamona, que cresce às margens dos rios, formados por efluentes domésticos, não tratados, que cortam as periferias da cidade de Caruaru; e o seu uso ritual no terreiro Ilê Axé Ojú Obá Ayrá e Nanã. Ao descrever esse ritual, o artigo estabelece conexões, até pouco impensadas, entre o candomblé e o surgimento destas paisagens ferais, que acompanham a expansão do capitalismo. Nesse sentido, o texto desloca o debate, que se concentrava nos efeitos do capitalismo sobre a religião, ou seu contrário, para a discussão sobre a presença dos seres mais-que-humanos, que surgem das ruínas do capitalismo, na reconfiguração de rituais tradicionais.
O último artigo, que compõe este dossiê, se debruça sobre a presença tímida e apagada dos evangélicos no campo ambiental. O título, “Evangélicos brasileiros e o ativismo ambiental: incompatibilidades estruturais ou rivalidades eletivas?”, em forma de pergunta, coloca em pauta a reflexão do seu autor, Renan William dos Santos, sobre a recorrência de tendências antiecológicas entre a maioria dos segmentos evangélicos brasileiros. Como ele constata, iniciativas ecorreligiosas têm sido raras no âmbito das igrejas evangélicas. O referencial empírico da pesquisa, que embasa o artigo, são documentos e entrevistas com sujeitos evangélicos que participam de eventos de teor ambiental. A análise deste material, permite o autor concluir que a escassez destas iniciativas ambientais, contudo, não decorre da falta de repertórios ou de incompatibilidades ideológicas intrínsecas entre o ambientalismo e o evangelismo. Mas, como entende o autor, o principal empecilho para o investimento nessa pauta, por parte das lideranças evangélicas, é a percepção de que, estrategicamente, isso traria mais riscos do que benefícios às denominações.
Finalmente, gostaríamos de agradecer a todos/as os autores/as que submeteram seus artigos, e aos editores de Religião & Sociedade, que propuseram este dossiê e nos acolheram como organizadores deste número. Agradecemos o convite e a mediação inicial de Regina Novaes, que nos desafiou a organizar esta publicação. Durante o processo de trabalho, foi fundamental contar com a presença da editora, Christina Vital da Cunha, e a assistência de Lucas Bártolo, que conduziram nossos encontros, sempre disponíveis e ativos, desde a divulgação da chamada, a submissão aos avaliadores e a seleção dos artigos, até a finalização de todo esse processo. Lembramos, também, a presença do colega do Instituto de Estudos da Religião (ISER), o teólogo Clemir Fernandes, que integrou este grupo de trabalho, participando da discussão sobre os parâmetros desta publicação.
Referências bibliográficasSite consultado
- BATESON, Gregory. (1972), Steps to an ecology of mind: collected essays in Anthropology, Psychiatry, Evolution and Epistemology New York: Ballatine Books.
- MARCUZZO, Francisco Fernando Noronha et al (2024). Nota técnica: aferição direta e avalição indireta do nível máximo de rios em estações fluviométricas e marcas de inundação no Rio Grande do Sul na grande cheia de maio de 2024 Porto Alegre: Serviço Geológico do Brasil.
- YEZLI, Saber et al (2024), “Escalating climate-related health risks for Hajj pilgrims to Mecca”. Journal of Travel Medicine, vol. 31, nº 4.
- STENGERS, Isabelle. (2015), No tempo das catástrofes - resistir à barbárie que se aproxima São Paulo: Cosac & Naify.
- TSING, Anna Lowenhaupt. (2017), Le champignon de la fin du monde; sur la possibilité de vivre dans les ruines du capitalisme Paris: La Découverte.
-
CEMADEM. (2024), “Número de municípios em situação de seca extrema deve subir 35,64% em outubro”. Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais - Cemaden/MCTI, 3 out. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/cemaden/pt-br/assuntos/noticias-cemaden/numero-de-municipios-em-situacao-de-seca-extrema-deve-subir-35-64-em-outubro Acesso em: 08/10/2024.
» https://www.gov.br/cemaden/pt-br/assuntos/noticias-cemaden/numero-de-municipios-em-situacao-de-seca-extrema-deve-subir-35-64-em-outubro
-
1
A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) considera que qualquer elevação de Rio acima de 3 metros é uma inundação. Na cheia considerada histórica no Rio Grande do Sul, em 8 de maio de 1941, há 83 anos, o Rio Guaíba chegou a 4,76 metros de elevação acima do seu nível regular. Em 5 de maio de 2024, a elevação do Guaíba alcançou 5,35 metros, ultrapassando o marco da cheia histórica. Sobre esses dados, ver Nota Técnica: aferição direta e avalição indireta do nível máximo de rios em estações fluviométricas e marcas de inundação no Rio Grande do Sul na grande cheia de maio de 2024 (Marcuzzo et al. 2024).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024