Resumo:
Nas religiões afro-brasileiras, as oferendas são geralmente despachadas em florestas, rios ou no oceano, reforçando a conexão entre as divindades e seus domínios naturais. Entretanto, com a disseminação de preocupações éticas sobre a conservação do meio ambiente, a composição das oferendas e a prática ritual estão se adaptando para atender aos critérios de sustentabilidade. Essas novas abordagem à cultura material são tanto uma estratégia para neutralizar as acusações de poluição do meio ambiente feitas por oponentes políticos e religiosos, quanto de reafirmar as religiões afro-brasileiras como “religiões da natureza” no âmbito do ativismo social e ambiental. Com base em dados de pesquisa coletados em diferentes terreiros de umbanda e candomblé nas regiões de São Paulo e Rio de Janeiro, este artigo tem como objetivo analisar as renegociações e tensões entre tradição e inovação na era da sustentabilidade.
Palavras-chave: Religiões Afro-Brasileiras; Ritual; Sustentabilidade; Cultura Material; Resíduos
Abstract:
In Afro-Brazilian religions, offerings are usually left (“dispatched”, from Portuguese despachar) in forests, rivers, or the ocean, reinforcing the connection between deities and their natural domains. However, with the spread of ethical concerns about the conservation of the environment, the composition of the offerings and the ritual practice are adapting in order to meet the criteria of sustainability. These new approaches to material culture are both a strategy to neutralise accusations of polluting the environment by political and religious opponents and of reaffirming Afro-Brazilian religions as “religions of nature” in the framework of social and environmental activism. Drawing from research data collected in different umbanda and candomblé temples in the regions of São Paulo and Rio de Janeiro, this article aims to analyse the renegotiations and tensions between tradition and innovation in the age of sustainability.
Keywords: Afro-Brazilian Religions; Ritual; Sustainability; Material Culture; Waste
Introdução
As religiões afro-brasileiras podem ser definidas como um conjunto heterogêneo de práticas rituais cujas origens remontam à África Ocidental e Central e que assumiram sua forma atual após o tráfico transatlântico de escravizados. A prática religiosa está baseada no culto dos orixás, divindades ligadas a elementos do ambiente natural e a diferentes estágios da vida e da matéria. Essas “religiões da natureza”, como são definidas pelos próprios afro-religiosos, atraíram numerosos estudiosos por sua relação com diferentes ambientes geográficos e ecológicos, mas também pela surpreendente variedade de cultura material empregada em seus rituais (Espírito Santo & Tassi 2013). Os rituais são baseados na manipulação da energia sagrada, chamada axé, a força divina infundida em uma multiplicidade de matérias, ingredientes, substâncias vegetais e animais. O axé precisa ser alimentado e revigorado por meio de oferendas de alimentos e sacrifícios, criando uma conexão entre os seres humanos e os orixás, que providenciariam favores e energia positiva em troca. A comida, repleta de energia sagrada após os rituais, é geralmente consumida dentro da comunidade religiosa. Os rituais costumam ser realizados dentro dos templos de candomblé e umbanda - os terreiros - onde estão instalados os santuários dos orixás. As oferendas são normalmente colocadas aos pés do assentamento, ou igbá, que é considerado o próprio orixá, mas também um canal de comunicação com as forças naturais correspondentes. Esses artefatos são receptáculos físicos das divindades, construídos através da assemblagem de diferentes materiais, como recipientes de barro ou porcelana, pedras, ferro, objetos de madeira e símbolos relacionados ao orixá específico que foi “feito”.
No entanto, as oferendas também podem ser colocadas diretamente nos ambientes onde os orixás residem, como rios, florestas, oceanos, além de pedreiras, encruzilhadas e cemitérios. De fato, devido à complexa relação entre corpos, elementos na paisagem natural e objetos materiais, as religiões afro-diaspóricas foram definidas como religiões de “lugares” (Kerestetzi 2018). Praias, santuários, corpos humanos e objetos materiais podem servir como pontos de encontro entre humanos e seres invisíveis.
Muito já foi escrito sobre esses sofisticados rituais, sua preparação e seu desempenho. No entanto, minha intenção aqui é analisar o que ocorre com as oferendas e outros objetos rituais no momento de seu descarte. Os objetos rituais e os restos de comida, tendo passado por um processo de ritualização, não podem ser simplesmente jogados fora. Às vezes eles são embrulhados em um pedaço de pano, ou colocados em um prato, e deixados em algum lugar no ambiente natural, como em uma floresta ou em um rio. Outros casos dizem respeito a oferendas que são entregues diretamente no ambiente natural e são deixadas no local para serem consumidas pelos orixás.
Esse processo é chamado de despachar, e as oferendas ou sobras de comida que são colocadas na natureza são chamadas de despachos. Deixar os despachos fora do perímetro da casa de candomblé não está relacionado apenas à alimentação dos orixás, mas também à ideia de descartar um tipo de resíduo muito delicado. Esse é o caso das oferendas feitas em rituais de purificação, cura ou limpeza espiritual (ebós), que não são consideradas aptas para o consumo humano. Em vez disso, a negatividade que elas absorveram deve ser levada embora e dispersada no ambiente natural. Wilk (2015:226) chama essa ideia de “o poder purificador da natureza”: o conceito segundo o qual, transversalmente e em uma variedade de contextos culturais - incluindo as noções ocidentais de poluição e pureza -, os princípios de contaminação e desperdício são regidos pela “magia e não pela química”. O ambiente natural é frequentemente considerado como capaz de diluir e absorver o que foi descartado.
Nos últimos anos, práticas rituais comuns, como a entrega de balaios com perfumes e pulseiras no mar, ou garrafas de álcool e pratos de barro com oferendas de alimentos na floresta, começaram a levantar questões de ética e sustentabilidade. Devido a essas preocupações, às vezes os presentes são desembrulhados para retirar o excesso de plástico, os pratos de barro são substituídos por folhas, e as oferendas são entregues em locais específicos onde os voluntários limpam o “lixo religioso” (garrafas, alimentos em decomposição) no final do dia (Renou 2011). Essa mudança de foco para o que é considerado mais ecologicamente sustentável, biodegradável e compatível com a paisagem natural faz parte da incorporação mais ampla de ideias contemporâneas sobre o meio ambiente, a conservação e a poluição. À medida que esses tópicos ganharam relevância no debate social brasileiro nas últimas décadas, as religiões afro-brasileiras começaram a rediscutir algumas de suas práticas mais comuns à luz dos discursos ambientalistas (Araújo 2019). Essas transformações rituais nos obrigam a analisar as implicações morais da matéria (Espírito Santo 2010), mas também as maneiras pelas quais o discurso científico é reinterpretado pelas comunidades religiosas em sua abordagem da materialidade e do meio ambiente.
Os dados que apresentarei foram coletados principalmente na região metropolitana e urbana de São Paulo (Brasil) entre 2014 e 2016, e durante algumas visitas curtas subsequentes, especialmente em dezembro de 2019. Como as religiões afro-diaspóricas são distribuídas ao longo de um continuum de práticas (Capone 2010), levei em consideração uma variedade de interlocutores que se identificaram tanto com o candomblé quanto com a umbanda. Enquanto o primeiro valoriza especialmente suas origens da África Ocidental, o segundo também abrange a presença de outras entidades e seres espirituais ligados ao cenário sócio-histórico brasileiro. Em particular, realizei entrevistas e pesquisas em dois terreiros de candomblé e quatro templos de umbanda localizados em São Paulo; uma casa de candomblé em Salvador, Bahia; e uma no Rio de Janeiro.
Na primeira seção, descreverei como os praticantes afro-religiosos usam o espaço público para os despachos e como os discursos ambientalistas moldam os conflitos sociais e religiosos no contexto urbano. As festas religiosas populares, como a Festa de Yemanjá, são um exemplo perfeito para entender como as diferentes percepções sobre o meio ambiente se entrelaçam com as relações políticas, ecológicas e sociais. Na segunda seção, analisarei como o conhecimento científico e religioso é disputado e negociado em nível interno, tentando entender como materiais poluentes, como o plástico, são incorporados à compreensão religiosa das oferendas.
O sujo e o sagrado. Conflitos sociais e ecológicos no espaço público
A necessidade de deixar os despachos em um espaço natural é uma das razões pelas quais a maioria dos sacerdotes e sacerdotisas tende a construir seu próprio terreiro em uma área rural ou florestal, para ter acesso imediato a uma parte do ambiente natural, de preferência não frequentada e fora da vista. De acordo com autores como Bastide (2005:72-73) e Sodré (2002), esse espaço mato que frequentemente circunda os terreiros serve para recriar a estrutura espacial de uma paisagem africana imaginada. Quando isso não é possível, os terrenos públicos - parques, praias e reservatórios de água urbanos - substituem esses míticos “bosques sagrados”. Vagner Gonçalves da Silva, ecoando a famosa etnografia de Victor Turner, chama esse processo de substituição de “cidade dos símbolos”, e explora as adaptações que o culto aos orixás sofre no ambiente urbano de São Paulo e a consequente ressignificação do espaço urbano:
Praças arborizadas, jardins, bambuzais ou até mesmo postes da rede de iluminação pública podem, também, representar na cidade, a “floresta” necessária aos cultos das divindades (Silva 2000:110).
De fato, conforme observado por Silva, é comum encontrar um despacho embaixo de uma árvore ou em uma encruzilhada na metrópole brasileira. Essa questão, segundo o autor, resultou em uma exacerbação do conflito já existente entre os afro-religiosos e outros grupos religiosos, como as igrejas evangélicas neopentecostais (Silva 2005), cujos líderes com poder mediático apontaram como exemplos de bruxaria. Emerson Giumbelli (2007) argumenta que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) desempenhou um papel de liderança na construção de um campo religioso conservador no Brasil, principalmente a partir das últimas décadas do século XX. Através da participação ativa na política do Estado, esses grupos conseguiram desenvolver ações e posturas convergentes com outros movimentos neopentecostais e com católicos carismáticos, definindo um novo modelo de conservadorismo religioso tanto no Brasil quanto no contexto transnacional (Oro 2014).
Um dos efeitos da construção desse novo campo religioso foi a crescente demonização das religiões afro-brasileiras, que revela não somente um projeto de fé “verdadeira” e hegemônica que alimenta os conflitos sociais, mas também uma disputa de fiéis onde as práticas das religiões afro-brasileiras (como o uso de velas, azeite, sal, a incorporação espiritual, etc.) são mobilizadas e apropriadas dentro de uma lógica de guerra entre o bem e o mal (Oro 1997).
À luz desse quadro complexo, a presença dos despachos no ambiente urbano representa um dos desafios do pluralismo religioso no Brasil contemporâneo. Conforme argumentado por Montero (2006:63-64), a negociação dos limites entre magia e religião desempenhou um papel importante no processo de secularização do Estado brasileiro. Para serem legitimadas no espaço público, as práticas afro-brasileiras precisavam estar em conformidade com a ideia de “religião”, em oposição à “feitiçaria”, “superstição” e “charlatanismo”. No entanto, após a longa busca pela legitimação religiosa e moral das religiões afro-brasileiras na esfera pública, as questões ambientais começaram a se tornar as novas lentes para analisar esse conflito social e cultural.
Nos debates mais recentes, os afro-religiosos começaram a receber críticas por supostamente poluírem o meio ambiente com seus despachos. Alguns trabalhos argumentam como as controvérsias sobre o uso religioso do espaço público e das áreas de preservação ambiental passam pela tentativa do poder público de regulamentar essas práticas a partir de um discurso que reproduz dicotomias coloniais de civilização e barbárie. Nessas dinâmicas, os direitos religiosos são postos em oposição aos direitos de outros seres ou do próprio ecossistema impactados pela presença de resíduos (Guedes 2016).
Cabe aqui ressaltar uma questão ao mesmo tempo terminológica e teórica no uso das categorias de “resíduos” ou “lixo” dentro desse contexto. O campo semântico de “lixo” na língua portuguesa remete a uma conotação de valor, sendo associado à sujeira e ao descarte de forma negativa. Porém, a abordagem que pretendo adotar neste artigo está em consonância com a linha teórica dos waste studies, onde o termo waste não está necessariamente ligado à sujeira (Cooper 2010), mas sim aos estudos da trajetória dos objetos dentro e fora de diversas categorias de uso e de valor (Appadurai 2008; Kopytoff 2008). Por isso, mesmo adotando o termo “resíduos”, que é mais neutro na língua portuguesa, é importante ressaltar como a caracterização de valor ainda é importante para entender o lugar que esses objetos ocupam ao longo de suas vidas sociais. Esses termos podem ainda ser enquadrados em uma categoria de valor subjetiva, na qual o que é considerado “lixo” para algumas pessoas pode ser um material ritual na visão do terreiro. O que este trabalho pretende demonstrar é como essas categorias semânticas e analíticas são fluídas e como o discurso ambientalista vai influenciando a percepção dos objetos nas diferentes fases do ritual, incorporando valores e visões contemporâneas sobre o meio ambiente, especialmente no contexto do colapso climático.
A visão de oferendas de alimentos em decomposição e restos de animais abandonados na rua, em um parque ou nas margens de um rio, pode gerar, dentro de uma lógica de convívio no espaço público, ideias de desconforto, perigo e sujeira, o que é reconhecido às vezes pelos próprios afro-religiosos. Os possíveis conflitos decorrentes da presença de despachos no espaço público são relatados aqui por dois interlocutores: Pai Odé, zelador do templo de candomblé Ile Axé Alaketu Odé Tola, localizado em Juquitiba (SP), e Yá Paula, uma jovem mãe de santo responsável pelo Axé Ilé Oba, um terreiro de candomblé situado no bairro de Jabaquara, na cidade de São Paulo.
Em última análise, tudo está sendo sustentável, e a gente também está se adaptando. Por exemplo, você vai oferecer um galo para Exu e vai deixar onde? Na encruzilhada. Então eu concordo que aí tem um tipo de preconceito, então o que a gente faz? A gente deixa na mata, por exemplo. Entendeu? Que daí é uma coisa que degrada, automaticamente vira... e não tem como ninguém falar nada! [...] Está tendo o pensamento da sustentabilidade... e é verdade, se não a gente vai contra os nossos objetivos e os nossos valores. Não é a ligação da natureza, o bem-estar das pessoas, e aí, bom, a gente coloca lá uma galinha, fica fedendo, não sei o quê, não degrada, a pessoa tem medo de pegar, que acha que é macumba, [...] (Yá Paula, novembro de 2015).
Se você vê numa encruzilhada um alguidar com uma galinha inteira morta não é coisa de povo de santo, ... Não é uma prática de povo de axé, a nossa prática é aquela de alimentar, tem que servir, é uma cadeia alimentar... você leva no meio do mato, no meio da floresta, onde aquele animal vai servir de alimento para outro animal. Jamais numa encruzilhada, num cemitério, numa praça pública (Pai Odé, dezembro de 2015).
Tanto Pai Odé quanto Yá Paula discordam da colocação dos despachos em espaços públicos e urbanos porque essa prática gera conflitos e preconceitos e não transmite uma imagem positiva do candomblé na atual atmosfera social e política. Entretanto, eles também acham importante que as oferendas sejam transformadas, consumidas e absorvidas pelo ambiente natural. Conforme argumentado por Wirtz (2009), os resíduos rituais são considerados “perigosos” não apenas porque estão carregados de energia espiritual, mas também porque, uma vez misturado ao lixo comum, sua origem ritual não pode ser facilmente identificada. Essa noção “douglasiana” de “matéria fora do lugar” também dialoga com ideias racializadas de higiene e contaminação, desencadeando episódios de intolerância religiosa e discriminação (Wirtz 2009:482). Por essa razão, os despachos no Brasil se tornaram um local privilegiado para observar conflitos sociais e religiosos, especialmente entre os praticantes afro-brasileiros e os cristãos neopentecostais. Os interlocutores frequentemente relatam que os despachos deixados no espaço público são propositalmente destruídos ou até mesmo “neutralizados” com sal grosso (uma substância frequentemente usada em exorcismos por diferentes denominações cristãs). Essa guerra material e semiótica leva em conta as noções de pureza, magia e perigo de ambos os lados. Nos últimos tempos, esses aspectos sociais e mágicos da poluição começaram a se misturar com preocupações éticas e ambientais.
Um exemplo interessante de como essas dinâmicas e conflitos emergem no espaço público e urbano é representado pela Festa de Yemanjá. Essa celebração adquiriu importância não apenas no Nordeste do Brasil (onde as práticas afro-religiosas estão historicamente enraizadas), mas também no Sudeste, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre as décadas de 1940 e 1970 (Bahia 2018:200). Em muitas partes do país, as festas populares em homenagem a essa divindade ocorrem em diferentes datas do ano, às vezes seguindo a tradição baiana (2 de fevereiro), o calendário da umbanda (8 de dezembro) e outros calendários regionais (como o 15 de agosto no estado do Ceará). Embora essas diferentes datas sirvam para demarcar a especificidade de cada identidade religiosa dentro do espectro afro-brasileiro, na prática, os diferentes grupos se misturam. Essa característica torna a Festa de Yemanjá um evento interessante, no qual diferentes interpretações, tradições e práticas rituais se reúnem no espaço público.
No estado de São Paulo, a Festa de Yemanjá é um evento religioso público organizado por várias federações afro-religiosas e frequentado principalmente por praticantes da umbanda. Ela é realizada durante as duas primeiras semanas de dezembro nas praias de Itanhaém, Mongaguá e Praia Grande, três municípios litorâneos localizados a cerca de 80 km da capital. Dezembro também é a época do ano em que a maioria dos templos de candomblé e umbanda no Sudeste celebram as Yabás, as divindades femininas Yemanjá e Oxum. Essa época também representa o encerramento do calendário ritual antes das férias de verão. Essa celebração é considerada uma instituição na vida cultural dessa área litorânea, tanto que Praia Grande apresenta uma estátua monumental da deusa Yemanjá que atrai turistas e devotos (Fig. 1). Na tarde anterior à celebração, umbandistas e candomblecistas ocupam os quase 30 km de costa entre Praia Grande e Itanhaém. Cada terreiro delimita seu espaço ritual erguendo tendas e cercas improvisadas com cordões e areia. Os rituais começam ao entardecer e se estendem pela noite, quando os devotos cantam, tocam tambores, dançam e são possuídos por vários tipos de orixás e entidades.
De acordo com o desenvolvimento dos rituais, algumas oferendas são também preparadas. As oferendas para Yemanjá são geralmente compostas de grandes balaios enfeitados com frutas, flores e, tradicionalmente, com símbolos de vaidade e feminilidade, como pentes, perfumes, joias, batons, garrafas de champanhe e moedas. Esses presentes costumam ser cuidadosamente embrulhados com fitas e acompanhados de pedidos de bênçãos, saúde, prosperidade e amor. Os balaios são então carregados na cabeça pelos devotos e entregues no mar. Às vezes, os balaios são substituídos por recipientes de poliestireno ou madeira em forma de barco, por serem mais leves e capazes de flutuar por mais tempo.
Esse tipo de celebração exige organização em nível administrativo, e as federações de umbanda e candomblé pagam taxas e cumprem as regulamentações burocráticas impostas pelo município de Praia Grande para poderem realizar suas atividades rituais no espaço público. Em debates recentes, esse evento tem sido criticado por poluir as águas e as praias. Esse grande festival religioso produz quantidade significativa de resíduos que precisam ser coletados pela administração municipal. Essa carga de resíduos rituais geralmente inclui copos e pentes de plástico, barcos de poliestireno quebrados, garrafas e objetos semelhantes, além disso, pétalas de flores e alimentos em decomposição também são encontrados na praia (Fig. 2).
Pai Cássio Riberio é um sacerdote de umbanda que vive em Diadema, uma cidade da região do ABC Paulista, na Grande São Paulo, onde dirige um terreiro. Ele é o presidente da Federação de Umbanda e Cultos Afro de Diadema (FUCABRAD) e tem sido ativo na promoção e defesa das religiões afro-brasileiras durante a maior parte de sua vida. Na sua perspectiva de ativista, Pai Cássio argumenta que as críticas vêm principalmente de políticos locais neopentecostais. Ele está convencido de que eles aumentaram as taxas e os regulamentos como uma forma de boicotar o evento e restringir o acesso ao espaço público:
Eu acho que esse viés ecológico é um preconceito disfarçado de ecologia. Quem usa esse discurso de que é ecologicamente incorreto ter o despacho, não quer perceber que muitas vezes o que é despachado são coisas da natureza, que a natureza consome. Fruta, alguidares de barro... são coisas que a natureza se encarrega de consumir. Os próprios umbandistas e candomblecistas têm a natureza como uma referência para o orixá, então não somos nós que vamos degradar a natureza com as nossas oferendas. Esse discurso ecológico de dizer que as oferendas são contra a natureza é uma desculpa das pessoas preconceituosas que querem disfarçar de ecologicamente correto. Eles não vão criticar o Vale do Rio Doce que fez o maior desastre ecológico do mundo, o maior do mundo e o maior do Brasil, porque lá tem poder econômico e ninguém quer brigar com a Vale. Então, o que nós fazemos, nas oferendas, não pode ser caraterizado como agressão à natureza, porque nós amamos os orixás, orixá é força viva da natureza, então as oferendas são uma forma de encontro com os orixás na natureza, e não de sujar a natureza que é dos orixás (Pai Cássio, dezembro de 2015).
Embora considere, com razão, que os governos e as empresas são responsáveis pela poluição ambiental em uma escala muito maior, Pai Cássio também reconhece a responsabilidade individual das minorias religiosas. Nos últimos anos, ele começou a instruir seus seguidores a evitar o uso de materiais que têm um forte impacto ecológico, como copos ou garrafas de plástico:
Existe uma consciência de que é bom pôr flores... pedidos que as pessoas põem, mas enfeitam em papel... coisas que não têm aquele impacto de agredir. Quando faz na beira-mar, o mar devolve, depois você vai e limpa, mas quando se faz em alto-mar não tem devolução, e aí é que é o problema. A quantidade de terreiros que faz em alto-mar é mínima, porque tem que alugar barco... mas isso que fazem em alto-mar, eu tenho visto um discurso coerente de colocar flores, coisas que não agridem a natureza, porque sabe que vai ser... essa é preocupação (Pai Cássio, dezembro de 2015).
A visão de Pai Cássio é compartilhada por uma minoria de templos de umbanda, entre os quais o Centro Espírita de Umbanda Caboclo Inco, localizado em São Paulo, e a Casa do Pai Benedito de Aruanda, localizada em São Caetano do Sul, no Grande ABC Paulista. Em ambos os casos, são dadas instruções precisas aos devotos com relação às oferendas, que podem incluir apenas “flores sem vasos plásticos com terra, champanhe apenas o liquido, perfume apenas o liquido, talco sem o invólucro, pétalas de rosas”. Durante as comemorações, seguidores e simpatizantes despejam os líquidos e arrumam as flores em um barco de madeira cuidadosamente decorado, que é levado para a praia para ser esvaziado na água e subsequentemente resgatado de volta para a beira (Fig. 3).
Segundo o antropólogo holandês Van de Port, o motivo que historicamente levou os praticantes afro-brasileiros a incluírem objetos elaborados em suas oferendas foi a adoção do que o autor chama de “baroque modalities of world-making”:
It might be argued that next to a Black Atlantic there was a Baroque Atlantic. The garments in which the spirit mediums are dressed when possessed by the orixás - silver crowns, golden helmets, lavishly decorated staffs and scepters, lace blouses, hoop skirts and crinolines are but the outward signs of what is a far deeper merging of the religious imagination in Candomblé with baroque forms of world-making (Van de Port 2011:42).
Fitas, espelhos, roupas brilhantes, envoltórios coloridos e laços respondem a uma estética barroca de como deve ser um belo presente. Nas últimas décadas, todo um mercado de itens religiosos se desenvolveu em torno dessas práticas. Lojas especializadas com todos os tipos de itens rituais, sabonetes, estátuas, ícones, velas, ervas e roupas, começaram a vender também barcos de poliestireno e kits de plástico prontos para a Festa de Yemanjá. Esse modelo de negócios se baseia principalmente em processos industrializados de produção em larga escala e apenas parcialmente na produção artesanal de alguns itens.
Além de ser sacerdote de umbanda, Pai Cássio também é proprietário de uma pequena rede de lojas chamada Casa de Umbanda Zezinho Bahiano, onde vende artigos especializados para as religiões afro-brasileiras. Apesar de suas posições ambientalistas, Pai Cássio precisa acomodar as demandas de uma clientela mais ampla, e alguns desses kits de oferenda de plástico também podem ser encontrados em suas lojas. Quando perguntei se ele notou uma mudança na demanda por objetos rituais mais sustentáveis, ele respondeu:
Eu já não uso no meu terreiro, mas a gente vende, porque senão outros vão vender. Não vi mudança na demanda de objetos. Alguns preferem barquinho de madeira, outros ficam com o isopor porque é mais barato (Pai Cássio, dezembro de 2015).
As polêmicas em torno da Festa de Yemanjá começaram a ganhar relevância entre as comunidades afro-religiosas em dezembro de 2015. Naquele ano, Mãe Stella de Oxossi, líder do Ilê Axé Opô Afonjá, um dos terreiros mais antigos e respeitados de Salvador, publicou um artigo no jornal baiano A Tarde. Em sua carta aberta, intitulada “Presença, sim! Presentes, não!”, ela declarou que não apoiaria mais a tradição de entregar presentes para Yemanjá no oceano:
Encaro o desafio e digo que a partir de 2016 o “Presente de Iyemanjá” do Ilê Axé Opô Afonjá não mais poluirá o mar com presentes. Meus filhos serão orientados a oferendar Iyemanjá com harmoniosos cânticos. Quem for consciente e corajoso entenderá que os ritos podem e devem ser adaptados às transformações do planeta e da sociedade (A Tarde 2015).
Mãe Stella, que faleceu em 2018, sempre foi ativa na promoção de mudanças culturais e sociais, adaptando a prática religiosa aos tempos atuais, tornando-se famosa por sua campanha contra o sincretismo religioso na década de 1980, que transformou radicalmente a estética do candomblé em todo o país. No entanto, o impulso que levou os candomblecistas a removerem as imagens católicas dos terreiros fazem parte de um movimento de reafricanização que condena os afro-religiosos a uma busca perene por uma autenticidade africana (Capone 2010:18). De fato, para alguns interlocutores, os argumentos ambientalistas são acompanhados pela necessidade de recuperar a “africanidade” perdida da prática religiosa. Esse ponto de vista é compartilhado pelo Babá Egbé Leandro, porta-voz do Axé Oxumaré, de Salvador:
Não tem nada de alguidar na rua, não tem nada disso, até porque o alguidar era coisa fina, era para comer, é prato de comida o alguidar de barro. O negro não tinha dinheiro para botar comida na rua, vai na folha, mamona ou folha de banana. Não tem garrafinha nem nada, não tem presente de Oxossi e essa bijuteria que vai [...] tudo fica, pode trazer para Yemanjá, para Oxum, fica tudo na casa, que já dá para enfeitar as filhas de santo (Babá Egbé, dezembro de 2015).
Analisando as palavras dos sacerdotes, parece que, ao incorporar o discurso ambientalista em sua compreensão dos despachos, os praticantes do candomblé também estão reformulando esses traços barrocos em favor de uma estética mais minimalista, remetendo-se ao imaginário das origens africanas da prática ritual.
No entanto, seria mais correto argumentar que novas formas de estética também estão surgindo desses debates. É o caso de Babá Rodrigo Carneiro, um jovem pai de santo de candomblé, zelador do Ilé Omi Orun, no bairro de Sepetiba, Rio de Janeiro. Em 2019, ele fundou a pioneira Oficina de Presente de Yemanjá Sustentável, que faz parte de um projeto mais amplo de educação ambiental com o objetivo de ensinar os praticantes afro-religiosos a fazer oferendas sustentáveis e biodegradáveis. Em sua oficina, os balaios são confeccionados com folhas, os colares e joias são montados com sementes, e bonecas e imagens são esculpidas em esponjas vegetais. Baba Rodrigo critica as palavras de Mãe Stella de Oxossi, pois argumenta que a entrega das oferendas para as divindades femininas da água é uma parte fundamental da liturgia: “Dentro da liturgia é impossível deixar de fazer balaios, a Mãe Stella do Axé Opo Afonjá tentou mudar a liturgia, eu não concordo”. Babá Rodrigo também está convencido de que esse tipo de conhecimento prático já estava incorporado à herança africana do candomblé:
Você falou de inovação, não é nada de inovação! Tudo o que eu faço como oficina ambiental só é um conhecimento que já existe. [...] O conhecimento tradicional acaba se perdendo por causa do comércio, as pessoas não têm mais contato com a natureza [...] Substituir, mas na verdade é resgatar o que já tinha, é repensar o que o capitalismo tirou (Babá Rodrigo, março de 2020).
O jovem pai de santo argumenta que, desde que o mercado de artigos religiosos se transformou em um sistema de produção em larga escala, os praticantes começaram a comprar materiais prontos e perderam o conhecimento de como fabricar esses artefatos por conta própria. Sua abordagem não é apoiada apenas por preocupações ambientalistas, mas também por uma crítica de como o crescente processo de mercantilização reduziu as chances do que ele chama de “contato com a natureza” e a transmissão do conhecimento tradicional.
Uma variedade de questões emerge dessa visão geral de como diferentes autoridades religiosas problematizam os despachos, tanto em relação à atual crise climática quanto aos conflitos sociais e religiosos locais. Devido ao papel central dos elementos naturais, tanto como locais de culto quanto como entidades deificadas, as religiões afro-brasileiras assumiram facilmente o papel de ativistas ambientais na esfera pública (Van de Port 2005:17). Entretanto, elas precisam levar em conta a poluição mágica e ecológica que a presença de suas oferendas e objetos rituais gera no espaço público. As maneiras pelas quais a prática ritual é adaptada e reconsiderada trazem novas éticas e estéticas. Por um lado, há uma preocupação em preservar a imagem pública das religiões afro-brasileiras à luz dos conflitos religiosos. Por outro lado, as práticas sustentáveis são reinseridas na narrativa da autenticidade do conhecimento ancestral.
De fato, outros autores apontaram como a estética africana, quando exportada para o exterior, está frequentemente ligada à ideia de reciclagem (Malaquais 2006), que é, aliás, um dos imperativos morais do ambientalismo contemporâneo. É interessante notar que essas sugestões sobre matéria, estética e ética também estimularam artistas brasileiros contemporâneos, como Valter Nu, que usa materiais reciclados para construir esculturas que retratam divindades afro-brasileiras como se fossem encontradas no ambiente urbano . Em sua exposição intitulada Tecno-Orixás, apresentada em vários locais em São Paulo e no exterior, o artista representou sua compreensão pessoal dos orixás na metrópole: Oxumaré, o deus serpente do arco-íris, feito de cabos e fios coloridos reciclados; Yemanjá, construída com alto-falantes como senhora das ondas sonoras da cidade (Fig. 4); e Yansã, deusa do vento, cuja saia é feita de pás de ventiladores elétricos. O trabalho artístico de Valter Nu representa uma reflexão interessante sobre como a cultura popular responde aos conflitos sociais e ambientais, onde as “divindades da natureza” são imaginadas e reinterpretadas em uma nova forma, se tornando patronos e patronas de novos elementos na metrópole. Além disso, o uso de materiais reciclados reforça a ideia dos orixás como guardiões do meio ambiente.
O tamanho do oceano. Renegociando conhecimentos científicos e religiosos
Vimos como o pluralismo religioso das metrópoles brasileiras por vezes gera conflitos no espaço público. Entretanto, as questões ambientais também estão no centro dos conflitos internos das comunidades afro-religiosas, entre diferentes faixas etárias, posições hierárquicas, mas também entre diferentes ontologias que giram em torno das oferendas sagradas.
A compatibilidade epistemológica entre tecnologia, modernidade e pensamento religioso foi comprovada por vários autores (Stolow 2013; Meyer 2012; Palmié 2002) em diferentes contextos. Isso também se aplica às ciências ambientais, conforme descrito na etnografia de Renzo Taddei, Meteorologistas e Profetas da Chuva (2017), onde o autor analisa as colaborações peculiares entre meteorologistas, xamãs indígenas e entidades da umbanda na atuação contra condições climáticas desfavoráveis. Taddei desconstrói a ideia de oposições entre diferentes ontologias (a ontologia científica e a ameríndia ou espírita). Ele descreve como diferentes atores estão coproduzindo conhecimento de uma forma verdadeiramente interdisciplinar, em vez de simplesmente expor diferentes realidades ontológicas.
Um exemplo semelhante é o de Babá Rodrigo, já mencionado anteriormente, que é também professor de biologia. Tendo passado a maior parte da infância no terreiro da mãe, ajudando-a a colher folhas para os rituais, ele se orgulha: “quem me formou biólogo não foi a academia, foi o candomblé!”. Enquanto, por um lado, Babá Rodrigo acha difícil expressar sua religiosidade entre seus colegas acadêmicos, por outro lado, seu compromisso em realizar a oficina de oferendas sustentáveis é informado por seus estudos em biologia. Ele argumenta que sua busca pela promoção da educação ambiental nos terreiros foi muitas vezes recebida com desconfiança pelos “mais velhos” - aqueles em posições hierárquicas mais elevadas no candomblé.
As tentativas de modificar os rituais e incluir noções de sustentabilidade na prática geralmente precisam ser negociadas entre diferentes atores, humanos e não humanos. Um dos aspectos mais problemáticos é a negociação do conhecimento tradicional em contextos fortemente hierárquicos, como as comunidades afro-religiosas. Em geral, dadas as prescrições rituais detalhadas do candomblé e da umbanda, há uma certa resistência em acomodar posições que colocariam em risco a autoridade e a convicção de alguém sobre como os rituais devem ser realizados. As autoridades também temem ser acusadas de marmotagem, ou charlatanismo, caso sua prática ritual seja muito diferente do padrão reconhecido. Essas questões de legitimação giram em torno da noção de fundamento, ou seja, o elemento central do ritual que determina sua eficácia.
Ana Cláudia, praticante de umbanda e residente na cidade de São Paulo, relata as dificuldades em negociar a composição das oferendas com a sua mãe de santo, Mãe Gilda:
Ela me disse que tinha que fazer uma oferenda no mar para o meu eré [entidade infantil que come doces], e eu lhe disse que me recusava a jogar balas no mar porque os peixes não comem balas. Vou colocar flores, frutas e perfume, mas só vou colocar o líquido e vou guardar a garrafa. Mas ela [Mãe Gilda] não entende. Ela diz: “Que mal podem fazer algumas balas? O oceano é tão grande!” (Ana Cláudia, dezembro de 2015).
Ao observar esse diálogo, pode parecer que os dois atores sociais estão negociando com base em duas posições ontológicas diferentes. Ana Cláudia está defendendo sua posição por meio do conhecimento científico ambientalista, enquanto Mãe Gilda está defendendo o conhecimento ritual tradicional às custas da sustentabilidade ambiental. No entanto, eu argumentaria que ambas estão negociando dentro da mesma perspectiva. Por um lado, Mãe Gilda está abordando as características nutritivas e acolhedoras do oceano como uma pessoa não humana (Yemanjá, a grande mãe de todos os seres) e sua capacidade de absorver e transformar a matéria. Por outro lado, Ana Cláudia está se sentindo responsável pelas extensões vivas desse ecossistema, os peixes que não comem balas (sendo Yemanjá em yoruba Ìyá-ọmọ-ejá, “a mãe cujos filhos são peixes”). Pode-se dizer que elas estão negociando responsabilidades diferentes em relação à mesma entidade ecológica: o oceano e Yemanjá ao mesmo tempo.
Olhar para as negociações entre as ciências ambientais e o conhecimento tradicional não em termos de oposição, mas como epistemologias colaboradoras, nos ajuda a entender o surgimento de novas formas de cuidado e responsabilidade distribuídas - ou, como diz Haraway (2016:78), “cultivando a capacidade de responder” em um mundo multiespécie. Garvey argumenta que as crescentes preocupações com a mudança climática exigiram o surgimento de um novo tipo de estrutura ética, na qual as obrigações morais foram estendidas não apenas a outros seres humanos, mas também a animais não humanos, elementos do ambiente natural e ecossistemas inteiros, como os oceanos ou as florestas tropicais, com os quais os seres humanos estavam interagindo (Garvey 2008:52-53). Essa nova estrutura e processo de pensamento, impulsionados pela literatura científica sobre o aquecimento global e preocupações com a preservação do meio ambiente, tornaram-se tópicos abrangentes capazes de influenciar a política, a economia e as relações internacionais sobre o gerenciamento de recursos naturais. A ética dos discursos ambientais foi incorporada em uma variedade de contextos religiosos, incluindo religiões monoteístas, que foram obrigadas a repensar o papel da natureza em sua teologia e rituais (Gottlieb 2006:19)
Quando os discursos ambientalistas entraram nos terreiros, as comunidades afro-religiosas tiveram de repensar as noções do que é considerado limpo, natural e poluente em seu próprio entendimento e dentro dos limites da prática ritual, como explicarei no relato etnográfico a seguir.
Como mencionado anteriormente, alguns terreiros programam a entrega dos balaios em seus calendários rituais como parte das celebrações em homenagem às Yabás. Isso inclui não apenas as oferendas a Yemanjá, realizadas em águas salgadas, mas também a outros orixás femininos que são tipicamente associados às águas doces: Oxum, Yansá, Obá, Yewá e Naná. Essas divindades representam diferentes aspectos e manifestações do elemento água, desde a cachoeira até o pântano. Durante minha entrevista com Yá Paula, ela fala desse evento como uma tradição em transformação e explica como os rituais estão se adaptando às preocupações ambientalistas:
Justamente para as coisas estarem... se adequando, porque é assim, o que é fundamento é fundamento e acabou, o que é dogma, a gente pode ir atualizando, adequando à época, adequando ao momento, então tem essa... essa questão da sustentabilidade...por exemplo, a gente aqui na casa entrega os balaios para as Yabás, [...] Os balaios esse ano a gente está adequando para ser tudo sustentável, então flores secas, flores naturais, tecidos de algodão feitos naturalmente, também porque quando aquele vai pro rio, vai desfazer, a gente continua o nosso fundamento, o ritual certinho, mas adequando, usando um material biodegradável... isso é a questão de você estar aberto a evolução do mundo... Tem coisas que não tem como mudar. Tem coisas que são fundamentos, são fundamentos milenares e a gente não pode modificar, mas coisas que a gente consegue modificar a gente modifica (Yá Paula, novembro de 2015).
Durante meu trabalho de campo em 2015, Yá Paula me convidou para participar do ritual da Entrega dos Balaios no Axé Ilê Obá. Ao entrar no barracão, vi alguns filhos e filhas de santo preparando seis grandes balaios, dispostos em círculo na sala, cada um deles colocado em cima de um suporte de madeira, para que não encostasse no chão. Os cestos tinham cerca de 80 cm de diâmetro e estavam enfeitados com tecidos coloridos, cada um nas cores favoritas do respectivo orixá feminino. Cada balaio continha um prato de barro menor com oferendas de alimentos e frutas, mas também todos os tipos de presentes: batons, espelhos, maquiagem, sabonetes, gel de banho, bijuterias etc. Esses presentes foram trazidos por clientes e simpatizantes do terreiro, os quais, segundo a tradição do terreiro, são encorajados a levar objetos a serem incluídos na oferenda durante a Festa das Yabás. Porém, nem todos os participantes trouxeram presentes “sustentáveis”. Ao redor das cestas, filhas e filhos de santo tentavam meticulosamente tirar e remover o excesso de embalagens, as tampas de plástico e os grampos de metal dos presentes. Um filho de santo comentava: “Me dá uma dor... a gente reza tanto pela natureza, e depois joga isso... quanto menos plástico, melhor.” Fui orientada a ajudar na remoção do máximo possível de material plástico, enquanto outras pessoas comentavam e concordavam com o filho de santo. No entanto, de repente, uma egbomi repreendeu uma filha de santo ao vê-la abrir um pequeno saco plástico com pétalas de potpourri e rasgar completamente a fita. “Isso precisa ficar assim”, disse ela, recompondo a embalagem e acrescentando:
Gente, aqui tem que entender uma coisa: têm coisas que a gente não vai conseguir mudar. […] Têm algumas coisas que a gente pode tirar, mas depois tem o carinho da pessoa que comprou, o pedido que ela fez quando colocou a embalagem... isso a gente não pode mexer (Egbomi).
Nesse relato, a egbomi argumenta que os presentes não podem ser totalmente modificados, pois os objetos trazidos pelos clientes e simpatizantes do terreiro são carregados de uma energia especial. Seguindo um paradigma maussiano, o presente sempre carrega a essência e a vida do presenteador, simboliza um vínculo entre as duas partes e implica uma promessa de reciprocidade por parte do receptor. Entretanto, o que está em jogo aqui não é o objeto-símbolo, mas a energia que foi investida na preparação do presente. Os pedidos estão contidos não no valor simbólico ou efetivo do presente, mas na maneira como ele foi manipulado, cuidadosamente embrulhado e graciosamente decorado. As ações e intenções empregadas na manipulação da cultura material são consideradas uma forma importante de transmitir o axé. Por essa razão, esses pacotes e invólucros plásticos não podem ser desfeitos ou removidos, pois isso comprometeria as mensagens e os pedidos específicos que foram feitos durante sua preparação.
De volta ao barracão do Axé Ilê Obá, terminamos de enfeitar os balaios com flores. Quando finalmente tudo ficou pronto, uma a uma, algumas filhas de santo se levantaram e carregaram as cestas na cabeça, auxiliadas por outros devotos. Assim que as oferendas foram colocadas em suas cabeças, elas foram incorporadas pelos orixás e começaram a dançar em círculo. Na solenidade desse momento, ouvi uma das filhas de santo comentar com outra: “Você se lembra do que eu te falei? Que, quando carreguei o balaio no ano passado, foi como se eu tivesse que carregar todos os pedidos do mundo?” De fato, o peso do balaio se configura especialmente como um fardo emocional que representa a responsabilidade de carregar as necessidades e os pedidos de outras pessoas. Os orixás caminharam lentamente em direção ao portão de entrada, e cada balaio foi colocado no porta-malas de alguns carros. As filhas de santo foram despertadas de seus transes e todos entramos nos carros, seguindo pela Rodovia dos Imigrantes, que liga a região sul de São Paulo ao litoral de Praia Grande. Após quarenta minutos de viagem, saímos da rodovia e paramos em uma clareira à beira de uma estrada. Estávamos na divisa entre São Paulo e São Bernardo do Campo e, da estrada, podíamos ver um dos braços da Represa Billings, um dos maiores reservatórios artificiais de água da região metropolitana de São Paulo, com uma extensão de 127 km², que fornece água potável para os municípios da região do Grande ABC.
Descemos dos carros e, uma a uma, as filhas de santo levantaram os balaios em suas cabeças e foram imediatamente incorporadas por seus respectivos orixás. Os balaios que seriam depositados na represa pertenciam às divindades ligadas às águas doces: Oxum, Yansã, Obá, Yewá e Nanã. Em transe, as filhas de santo desceram lentamente por uma trilha lamacenta, com a ajuda de outros devotos, até chegarem às margens do rio. Em seguida, depositaram os balaios na água, foram ajudadas a subir até a clareira e despertadas de seus transes.
Enquanto observávamos as cestas sendo levadas pela correnteza, uma filha de santo chamou minha atenção para alguns lírios d’água que pareciam estar empurrando as oferendas para longe das margens. Ela comentou: “A natureza é interessante...”. Nesse relato, a mulher percebe os movimentos dos nenúfares em relação à posição das oferendas na água como um sinal de aceitação dos presentes.
Concluindo nossas tarefas na Represa Billings, ainda restava o balaio de Yemanjá. Voltamos para os carros e seguimos pela costa em direção à praia de Mongaguá. A orla marítima estava ocupada pelas tendas de alguns terreiros de umbanda, pois a popular Festa de Yamanjá estava marcada para aquela mesma noite. Estacionamos os carros no calçadão e pegamos o balaio para Yemanjá, que tem o formato de um pequeno barco de madeira e é decorado com fitas e flores brancas, azuis e prateadas. Alguns devotos entraram na água e empurram o barco sobre as ondas, enquanto outros ficaram na margem e observaram a cena à distância.
Como foi mencionado neste relato etnográfico, o processo de adaptação do ritual de acordo com a ética ambientalista geralmente envolve a renegociação de práticas de cuidado e responsabilidade com diferentes atores - devotos, orixás, mas também clientes e simpatizantes que trazem seus objetos e pedidos. Embora o plástico em si seja considerado problemático e seja evitado ou retirado das oferendas o máximo possível, ele também é uma das características essenciais da estética barroca que constitui a identidade de um presente. Um presente não pode ser considerado completo se não estiver embrulhado, e a ação de embrulhar, decorar e confeccionar um belo presente é capaz de carregar aquela energia de cuidado e devoção que o torna carregado de votos e pedidos. Os filhos de santo que se envolvem com essa operação perigosa precisam ter cuidado para não “desfazer” os presentes, dispersando o axé e os pedidos que eles contêm.
O tempo é tudo. Limpeza e relações mais-que-humanas nas ecologias afro-religiosas
As inovações rituais não se referem apenas a uma mudança nos materiais, objetos e procedimentos, mas também a uma modificação ativa da paisagem como uma construção cultural e histórica. Historiadores ambientais como Crumley e Marquardt (1990) e Balée (1998) argumentam que os ambientes naturais são construídos e gerenciados por meio de ações humanas para se tornarem paisagens, que são definidas como “ambientes físicos cultural e historicamente determinados” (Balée 1998:15-16).
É o caso do Santuário Nacional de Umbanda, também conhecido como Santuário Ecológico da Serra do Mar, localizado em Santo André, na região do ABC, na Grande São Paulo. O Santuário é uma reserva ecológica composta por 645.000 m² de área florestal que fazia parte da antiga Pedreira Montanhão. A área foi recuperada há quarenta anos por Pai Ronaldo Linares e Babá Dirce, um sacerdote e uma sacerdotisa que dirigem um templo de umbanda em São Caetano do Sul (Grande ABC), a Casa do Pai Benedito de Aruanda. Pai Ronaldo é também o presidente da Federação Umbandista do Grande ABC (FUGABC). Em 1978, ele conseguiu transformar a antiga pedreira em uma reserva ecológica, cujo objetivo é permitir que os afro-religiosos depositem suas oferendas com segurança na paisagem natural, sem infringir a lei, poluir o meio ambiente ou agravar os conflitos sociopolíticos nas áreas urbanas. A reserva que foi reflorestada com plantas nativas reúne todos os elementos que os praticantes da umbanda ou do candomblé considerariam necessários para representar as forças naturais dos orixás: rios, cachoeiras, matas e, claro, pedreiras. De fato, o ambiente foi manipulado e reconstruído para servir a esses propósitos. No entanto, ele também foi complementado com um grande estacionamento, uma loja de artigos religiosos e trilhas que levam a diferentes partes da reserva. Além disso, estátuas monumentais representando os orixás e as entidades da umbanda foram erguidas estrategicamente em uma praça central, no meio do Santuário. Embora existam locais semelhantes em outras partes do estado de São Paulo, esse é particularmente famoso por estar localizado a apenas 25 km da capital. Os praticantes afro-religiosos pagam uma pequena taxa de entrada e são bem-vindos para entregar oferendas e realizar sessões rituais. Devido à sua infraestrutura confortável, o local é frequentado por muitos devotos especialmente nos fins de semana.
O Santuário é administrado de forma familiar, por Babá Dirce, Pai Ronaldo, seu filho Rodolfo e sua nora Maria Aparecida. Enquanto Rodolfo e Maria Aparecida cuidam da parte administrativa, Babá Dirce desempenha as funções de guia espiritual. O Santuário permanece fechado às segundas-feiras, enquanto as terças são dedicadas à limpeza das sobras dos rituais da semana anterior. O local possui políticas rígidas com relação ao seu compromisso ambiental, e os administradores garantem que os objetos de plástico sejam descartados corretamente, que os alimentos que não foram comidos por animais ou insetos sejam removidos, e que o restante do material seja reciclado. Esse trabalho é realizado por garis contratados pela FUGABC, alguns em regime de tempo integral, enquanto outros prestam o serviço de forma autônoma. Os funcionários são incentivados a separar garrafas de vidro e alumínio, que são armazenadas e depois vendidas para reciclagem. Os alguidares são quebrados e usados para pavimentar as calçadas e as trilhas, já os artefatos de cera, normalmente representando partes do corpo humano, são derretidos e moldados em novos itens, prontos para serem vendidos e reutilizados.
Quando perguntei como os funcionários são preparados, espiritual ou ritualmente, para lidar com esse processo de desfazer e selecionar as oferendas, surpreendi-me com o fato de que nem todos são praticantes da umbanda. Alguns, inclusive, são cristãos evangélicos e não recebem orientações específicas da administração do Santuário sobre precauções no manuseio dos resíduos sagrados considerados “perigosos”.
Da mesma forma, Babá Rodrigo explica que realiza mutirões de limpeza de resíduos religiosos nos parques ecológicos próximos à cidade do Rio de Janeiro e, muitas vezes, recicla os alguidares que encontra no local: “Eu reciclo e reutilizo o alguidar, talvez não para as oferendas, mas como prato..., mas eu uso também pros orixás, pintou, lavou, tá novo minha filha!”
O princípio segundo o qual é considerado seguro desfazer e limpar os resíduos sagrados está relacionado a noções de tempo e consumo. Como argumenta Maria Aparecida: “Depois que você entregou, aquela energia que você colocou ali já foi, 24 horas são mais do que suficientes”. No entanto, Babá Dirce, em seu papel de líder espiritual, tem o hábito de anotar os nomes dos garis e pedir proteção em nome deles:
Os orixás não vão fazer mal, mesmo que alguém mexa com as oferendas deles. O problema são os Exus, essas energias mais ciumentas, aí eu converso com eles, às vezes até saindo de casa fico já conversando com eles para pedir [permissão], para explicar que a gente tem necessidade de limpar (Babá Dirce, dezembro de 2019).
Portanto, enquanto algumas entidades são consideradas menos apegadas às oferendas materiais, outras, como os Exus, entidades fortes e poderosas que frequentemente lidam com energias negativas, são vistas como mais “ciumentas”, pois se apegam à matéria. Diana Espírito Santo (2010:75) já descreveu uma categorização moral semelhante dos espíritos com base em sua relação com a matéria, na qual os espíritos mais evoluídos são considerados como tendo menos necessidade de serem “materializados” por meio de alimentos, sangue sacrificial ou objetos rituais.
A sobreposição entre as categorias de “oferendas” e “resíduos” (Wirtz 2009:15) deve levar em conta a agência e as necessidades dos atores humanos e não humanos que giram em torno desses objetos. Pai Odé argumenta que as oferendas devem ser deixadas durante a noite, enquanto Yá Paula as coloca aos pés dos assentamentos em seu templo de candomblé por mais de uma semana. Segundo ela, as oferendas precisam mostrar sinais de decomposição como prova de que foram aceitas, incluindo a presença de cheiro intenso, insetos, vermes e outros animais que podem se aproveitar dos restos de comida. De fato, a área arborizada do Santuário Nacional de Umbanda tornou-se um local privilegiado de alimentação para uma variedade de animais e pássaros, atraídos por um grande número de ofertas de alimentos. Atualmente, o local é especialmente famoso por sua presença marcante de urubus. Como brinca Babá Dirce, “os urubus se tornaram vegetarianos”, o que significa que esses carniceiros naturais se acostumaram com ofertas sem carne, como grãos e frutas (Fig. 5).
Agustin Fuentes (2010) descreve um tipo de relação semelhante ao mostrar como as oferendas de alimentos deixadas do lado de fora dos templos hindus balineses tornam-se parte da dieta dos macacos locais. Na Indonésia e no Brasil, essas colaborações multiespécies contribuem para a construção de “nichos” ecológicos, em um processo histórico e de longo prazo por meio do qual diferentes espécies moldam o ambiente que habitam (Fuentes 2010:605). O Santuário, com seus bosques replantados de mata atlântica, urubus vegetarianos que se alimentam de oferendas, espíritos invejosos que se apegam a resíduos de rituais e garis humanos que reciclam garrafas de cachaça, é um exemplo interessante de como vários seres visíveis e invisíveis estão presentes nas ecologias afro-religiosas.
Os resíduos rituais parecem ser o local onde esse encontro acontece e também onde diferentes ontologias se encontram. Recuperando uma antiga analogia entre espíritos e microrganismos em uma compreensão do mundo entre a biologia e o candomblé, Baba Rodrigo argumenta que:
O tempo é tudo. Depois de um certo período já aquela energia foi consumida, tem que ter contato com a terra porque a terra absorve [...] Quem se alimenta da comida apodrecida são os Eguns [os espíritos dos mortos e ancestrais], Egum faz a compostagem! (Baba Rodrigo, março de 2020).
Entretanto, as noções sobre como o tempo, juntamente com a ação de micróbios espiritualmente carregados, deve estabelecer o limite entre a oferta e o desperdício, são sempre disputadas. Lidar com resíduos sagrados significa lidar com ameaças higiênicas e espirituais, nas quais, mais uma vez, a materialidade e a moralidade estão conectadas (Espírito Santo 2010).
Esse lapso de tempo de transformação da oferenda sagrada em resíduo pode ser reduzido para atender às ideias contemporâneas de limpeza e moralidade?
Maria Aparecida, que está profundamente comprometida com a causa ambientalista, explica seus projetos ambiciosos para o Santuário. Entre seus planos futuros, ela deseja transformar o espaço do Santuário em um projeto mais amplo de educação ambiental. Seu objetivo é instruir os praticantes afro-religiosos, mas também as entidades espirituais, sobre a necessidade de uma prática ritual sustentável:
Às vezes, as pessoas aprenderam de uma determinada forma, e é difícil chegar lá e pedir para um caboclo ou um Exu não jogar azeite de dendê no rio, porque a entidade também aprendeu daquela forma [...] Queremos fazer essas oficinas para as pessoas entenderem que, no momento em que você entrega a oferenda, a energia já se foi, e você pode limpar na hora (Maria Aparecida, dezembro de 2019).
Enquanto Yá Paula e outros devotos afro-religiosos precisam ver os insetos atacando fisicamente o alimento e as energias ancestrais consumindo as oferendas, Maria Aparecida entende que a absorção de energia opera em um nível muito mais espiritual e imaterial. Em seu entendimento religioso e em sua postura ambientalista, é necessário cortar o período de transformação entre “oferenda” e “resíduo” até um ponto em que as duas categorias quase coincidam, e a oferenda se torne, apenas um momento depois, um resíduo que pode ser retirado. Ao fazer isso, tanto a poluição ambiental quanto o perigo espiritual são neutralizados. Entretanto, essa posição coloca uma contradição em pauta: como reduzir o tempo sem rediscutir as ecologias metabólicas nas quais os seres humanos, os animais e os espíritos prosperam?
Conclusão: visando uma ecologia afro-religiosa
Neste texto, busquei analisar os “resíduos sagrados” como lugares de conflitos sociais, de coprodução de conhecimento científico e religioso, e locais onde diferentes ontologias se encontram em um ambiente construído e moldado por vários seres. Os despachos afro-brasileiros provocam conflitos não apenas na esfera pública, mas também no interior das comunidades afro-religiosas. Sua relação com o meio ambiente, sua composição e seus materiais são repensados continuamente e negociados à luz da ética ambientalista e de acordo com a capacidade de resposta de cada praticante em relação a divindades, elementos naturais e suas extensões físicas e biológicas. Ao mesmo tempo, a necessidade ética de transformar os rituais em uma prática mais sustentável gera uma nova estética minimalista de reciclagem e autoprodução, que muitas vezes faz referência a um passado africano imaginado.
O tempo desempenha um papel fundamental na transformação de uma oferenda em resíduo, juntamente com diferentes agentes espirituais e biológicos que devem consumi-la. Nas religiões afro-brasileiras, tudo e todos (humanos, espíritos, micróbios e animais) “comem” (Johnson 2002:36), contribuindo para a construção de ecologias compartilhadas. Um dos elementos que perpassa todos os diferentes relatos etnográficos é que o “resíduo sagrado” depende de certa capacidade de resposta do ambiente. As reações responsivas incluem animais e insetos que consomem a comida, mas também plantas aquáticas que abraçam os balaios, o solo que absorve as sobras e os espíritos que possuem seus devotos.
Nessa estrutura, o sucesso de uma ação ritual coincide com uma comunicação bem-sucedida. Essa interação também implica a expectativa de que os orixás - na forma de animais específicos, agentes naturais ou humanos incorporados - comam, absorvam e respondam ativamente às oferendas. Essa maneira particular de perceber e olhar para a paisagem natural não se refere apenas a um mundo de referências simbólicas e práticas culturais; ela incorpora discursos contemporâneos e entendimentos científicos de como o ambiente funciona.
Entretanto, essas respostas não funcionam apenas em termos de aceitação, mas também em termos de rejeição. Aqui, estou pensando, por exemplo, nos peixes que não comem balas ou no oceano que, por meio do movimento de ondas e correntes, traz objetos poluentes de volta à costa. Também estou considerando alguidares, garrafas de vidro e imagens religiosas que o ambiente natural não absorve prontamente, pelo menos não no período dos rituais conduzidos pelos humanos. As ideias de reciclagem e reutilização apresentadas por alguns interlocutores também poderiam ser analisadas pelas lentes da construção mútua de ecologias afro-religiosas. De certa forma, a possibilidade de reciclar cria uma nova fronteira entre o que é considerado “sagrado” e o que é considerado “lixo”. Esse mesmo resíduo, que foi rejeitado pela agência “metabólica” de várias espécies e entidades, pode ser reutilizado pelos seres humanos de acordo com a ética ambientalista contemporânea.
Se o desejo de reciclar - um dos principais imperativos da ética ambientalista - se tornar mais incorporado às práticas afro-religiosas e indígenas em um futuro próximo, talvez possamos observar mais ontologias em ação para moldar um novo tipo de “matéria fora do lugar”.
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RIFAI, Ryan. (2015). “Toxic sludge reaches Atlantic after Brazil dams burst”. Aljazeera, 22 nov. 2015. Disponível em: http://www.aljazeera.com/news/2015/11/brazil-dam-bursts-toxic-sludge-151122125732943.html Data de acesso: 30/08/2024.
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A TARDE. (2015). “Presença, sim! Presente, não!”. A Tarde online, 21 dez. 2015. Disponível em: https://atarde.com.br/opiniao/presenca-sim-presente-nao-744112 Acesso em: 05/01/2024.
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VALTER NU. Disponível em: https://www.instagram.com/valternuart/ Acesso em: 15/10/2024
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CENTRO ESPÍRITA DE UMBANDA CABOCLO INCO. Disponível em:https://blogcabocloinco.tumblr.com Acesso em 05/01/2024.
» https://blogcabocloinco.tumblr.com
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1
A pesquisa realizada entre 2014 e 2016 como parte do meu campo de doutorado pela University of Roehampton (Londres) teve como objetivo analisar as oferendas e os sacrifícios animais no candomblé dentro da abordagem teórica das relações humano-animais e humano-ambiente na antropologia. Os dados coletados nessa primeira fase impulsionaram a criação de um projeto de pós-doutorado em 2019-2020 desenvolvido no centro de pesquisa do Musée du quai Branly - Jacques Chirac (Paris), que teve como foco principal a questão das oferendas dentro dos discursos ambientalistas, tomando em consideração a Festa de Yemanjá como espaço de conflito e redefinição da materialidade e das relações ecológicas no contexto da crise ambiental, o que deu origem a esse trabalho.
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2
As pesquisas nos terreiros da região de São Paulo e Salvador foram realizadas por meio de observação participante extensiva ao longo de três visitas por um total de 6 meses de trabalho campo. A pesquisa no terreiro do Rio de Janeiro foi realizada exclusivamente por meio de entrevistas telefônicas durante a crise pandêmica da Covid-19.
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3
Embora tenha sido relatado que as acusações diretas e a estigmatização das práticas afro-religiosas foram recentemente impulsionadas pela ação de grupos neopentecostais, principalmente da IURD, nos casos descritos os atores envolvidos não são necessariamente definíveis dentro dessas categorias devido às dimensões mais amplas desses conflitos e às ressonâncias das ações políticas dos neopentecostais na sociedade em geral.
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4
Referente ao desastre ecológico causado pelo rompimento de uma barragem no rio Doce em novembro de 2015 (Cf. Rifai 2015).
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5
Fonte: Centro Espírita de Umbanda Caboclo Inco. Disponível em: https://blogcabocloinco.tumblr.com. Acesso em 05/01/2024.
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6
Para mais informações, ver o website do artista. Disponível em: https://www.instagram.com/valternuart/. Acesso em: 15/10/2024.
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7
Comunicação pessoal, novembro de 2015.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
05 Jan 2024 -
Aceito
05 Set 2024