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Recessão e taxa de juros: o Brasil nos primórdios da década de 1980* * Os autores agradecem os comentários de Edmar Bacha, Alkimar Moura e participantes de Conferência “Opportunities and Constraints in Peripheral Industrial Society: The Case of Brazil”, Stanford-Berkeley Joint Center for Latin American Studies, Berkeley, ocorrida no final de janeiro de 1983. O presente texto é uma versão modificada do que foi apresentado na Conferência. Uma outra versão será publicada em livro, a sair em 1985, editado por Edson Nunes, Albert Fishlow e John Wirth. A responsabilidade por imperfeições remanescentes é nossa.

Recession and interest rates: Brazil in the early 1980s

RESUMO

A economia brasileira enfrenta a mais profunda contração em sua atividade econômica dos últimos sessenta anos. A queda da produção per capita no período 1980/83 merece comparação com a do período 1928/33. Usando semi-oficial, conservador mais severo que o de 1928/33. Não há dúvida de que a pressão atual foi desencadeada por dificuldades crescentes em cumprir obrigações em moeda estrangeira. Este artigo argumenta que a atual forma de ajuste à crise externa é inadequada. O peso da dívida externa foi desnecessariamente ampliado por políticas que identificam erroneamente a taxa de juros como a variável crucial do ajuste.

PALAVRAS-CHAVE:
Recessão; juros; crise da dívida; dívida externa

ABSTRACT

The Brazilian economy faces the deepest contraction in its economic activity of the last sixty years. The declining output per capita for the period 1980/83 merits comparison with that of the period 1928/33. Using semi-official, conservative more severe than that of 1928/33. That current pression was unleashed by growing difficulties in meeting obligations in foreign exchange is beyond doubt. This article argues that the present form of adjustment to the external crisis is inadequate. The burden of external debt was needlessly magnified by policies which erroneously identify the interest rate as the crucial adjustment variable.

KEYWORDS:
Recession; interest rates; debt crisis; external debt

Entre 1981 e 1983, a economia brasileira enfrentou uma recessão sem paralelo na sua história. Como no período recessivo entre 1963 e 1965, a recessão foi desencadeada pelas crescentes dificuldades no atendimento de obrigações em moeda estrangeira. Constitui ainda uma questão não resolvida determinar até que ponto a escassez recorrente de divisas revela, de forma camuflada, o sutil desdobramento de um ciclo econômico endogenamente determinado. A visão endógena dos problemas do Balanço de Pagamentos no Brasil é, no entanto, menos persuasiva para a crise atual do que para sua predecessora de 20 anos atrás. De um ponto de vista mais geral, déficits em conta corrente podem emergir, mesmo quando os preços relativos internos estão adequados e o gasto real não supera o PNB medido com expurgo dos choques.

A acumulação da dívida externa, ao longo dos anos 70 e primórdios dos anos 80, derivou basicamente da deterioração dos termos de troca (os dois choques do petróleo), de mudanças na taxa de juros (os dois choques, de 1979 e 1981) e da recessão mundial resultante destes choques. O fracasso em promover respostas rápidas a estes choques externos, em termos de controle orçamentário e de políticas orientadas para aumentar a abertura da economia ao comércio externo, magnificaram o já vasto problema da dívida. No entanto, é evidente que a política econômica interna não pode ser responsabilizada, em última instância, pelo endividamento global do país.

Neste texto, discutimos o estilo de ajustamento doméstico à crise externa implementado de 1981 a 1983. Argumentamos que o peso da dívida externa foi desnecessariamente magnificado em consequência das políticas que erroneamente identificaram a taxa de juros como a variável chave para o ajuste. Após discutir com algum detalhe o funcionamento da economia sob juros reais positivos extremamente elevados, sugerimos um caminho alternativo de ajuste que asseguraria a recuperação econômica no restante desta década.

O texto é organizado da seguinte forma. A Seção 1 destaca dois legados da década de 70, importantes para a análise aqui empreendida. A Seção 2 acentua processos de arbitragem para captar, em um nível necessariamente elevado de abstração, o funcionamento da economia brasileira ao longo do período 1981-1983. Após apontar os equívocos do ajuste via taxa de juros, a Seção 3 discute um caminho alternativo. Duas observações encerram o texto na Seção 4.

1. DÍVIDA EXTERNA E MECANISMOS DA INDEXAÇÃO

A economia brasileira emergiu dos anos 70 sob a dupla pressão de uma grande dívida externa ainda em expansão e de uma inflação em aceleração. No final de 1980, a ameaça de inadimplência externa tornou-se real. A inflação atingiu 100%. A persistência na adoção de mecanismos generalizados de indexação impedia perspectivas de uma rápida queda da inflação, enquanto a desconfiança dos credores se refletia nos elevados “spreads” pagos nos empréstimos externos.

A asfixia cambial moldou a política econômica ao longo de todo o período 1981-1983. Ao final de 1980, muito antes do Setembro Negro de 1982, o Brasil já tinha recorrido ao endividamento de curto prazo, para cumprir suas obrigações em moeda estrangeira. A partir do início de 1981, políticas de ajuste voluntário, baseadas em elevadas taxas reais de juros, foram postas em vigor. O tenso processo de negociação com o FMI, desde o final de 1982, não trouxe alívio em termos de capacidade de honrar compromissos externos. Em consequência, as reservas em moeda conversível permaneceram negativas durante o período. A solvência só foi assegurada por operações de socorro articuladas pelas autoridades oficiais dos países desenvolvidos.

Não discutiremos as causas dessa asfixia cambial, mas é importante assinalar que não foi nem gerada nem desencadeada pela supervalorização do cruzeiro. A este respeito, o caso brasileiro distingue-se radicalmente dos casos do Chile e da Argentina. A desvalorização nominal do cruzeiro acompanhou, grosso modo, a inflação doméstica em todo o período 1981-1983. A maxidesvalorização de fevereiro de 1983 foi a maior exceção a essa regra de paridade. A taxa real do câmbio permaneceu aproximadamente constante de janeiro de 1981 a janeiro de 1983, sofreu uma depreciação de 30% em fevereiro e manteve-se nesse nível até o final de 1983.

A indexação da taxa nominal de câmbio à inflação é somente um dos vários mecanismos de indexação desenvolvidos antes do período 1981-1983, para minorar as distorções causadas por processos crônicos de inflação. Os mecanismos de indexação então existentes, contudo, não eram capazes de neutralizar a inflação à medida que se materializavam em contratos com reajustes em períodos discretos de tempo. Como os preços sobem continuamente, quanto maior a taxa de inflação ou menor a frequência dos reajustes, menor o valor real dos contratos, mesmo quando supõem o reajuste integral das perdas devidas à inflação passada.

Dois efeitos não-neutros da inflação foram cruciais na recessão de 1981-1983. Primeiro, como o salário-mínimo é corrigido por lei a cada seis meses, de acordo com a inflação passada, é evidente que o salário real médio é gravemente erodido por uma inflação de três dígitos. Supondo uma estrutura salarial relativamente constante entre as várias categorias, essa aceleração da inflação resultou no aumento dos lucros reais à custa dos salários. Segundo, as taxas de juros sobre o crédito subsidiado ou foram fixadas em termos nominais, ou foram estabelecidas abaixo da correção monetária, que, por sua vez, permaneceu abaixo da inflação, exceto em 1981. Consequentemente, uma aceleração inflacionária ampliava o valor real dos subsídios, fazendo crescer os lucros reais a expensas do equilíbrio orçamentário público.

2. PROCESSOS DE ARBITRAGEM

Em qualquer economia capitalista opera continuamente um processo de arbitragem, na margem, entre a taxa de juros e o retorno médio sobre o capital não-financeiro. Se a taxa de juros é alta (ou baixa) demais em relação à taxa média de retorno sobre o capital não-financeiro, a demanda dos detentores de riquezas se desloca para os ativos financeiros (ou para os não-financeiros). O preço relativo dos ativos financeiros (ou dos não-financeiros) tende a crescer, reduzindo consequentemente a diferença entre as taxas de retorno dos dois tipos de ativo.

No período 1981-1983, este processo de arbitragem apresentou uma especificidade crucial. Um menu sofisticado de instrumentos de política conseguiu que a taxa real de juros no país, apesar de fixada a níveis muito maiores do que a taxa real externa, ficasse insensível aos processos de arbitragem. Como consequência, a arbitragem só pôde efetivar-se através de um aumento na taxa de retorno sobre o capital não-financeiro que a tornasse compatível com a taxa de juros fixada. Uma vez que a insensibilidade da taxa doméstica de juros à arbitragem foi uma característica tão importante do processo de ajustamento interno, discutiremos agora de forma breve tanto os três instrumentos de política responsáveis por esta insensibilidade quanto seus fatores limitativos.

O primeiro instrumento foi a clássica utilização das operações de dívida pública através do mercado aberto. As autoridades monetárias venderam títulos, provocando a contração da base monetária e o aumento das taxas de rentabilidade dos títulos do Governo. Como os títulos privados devem oferecer rentabilidade superior aos títulos públicos, devido ao maior risco, a política monetária restritiva aumentou o custo de captação de recursos para o sistema bancário. Tais custos foram repassados através de juros mais altos, cobrados nos empréstimos ao setor privado não-financeiro. O efeito direto da redução da taxa de crescimento da base monetária sobre a inflação permaneceu, entretanto, parcialmente obscurecido pelo fato de que, além do impacto do maior financiamento não-monetário do setor público, também a simultânea elevação do coeficiente de reservas compulsórias sobre os depósitos do sistema bancário foi responsável pela alta da taxa de juros dos empréstimos ao setor privado não-bancário.

O segundo instrumento foi o racionamento de crédito. Os empréstimos bancários foram quantitativamente limitados em níveis que implicaram redução dramática do volume real de crédito disponível. O crédito não racionado ficou limitado a certas atividades específicas, como exportação, agricultura e mineração, e atividades substituidoras de energia importada. A adoção de controles quantitativos à expansão do crédito doméstico procurou estimular a tomada de empréstimos externos, para financiar o déficit em conta corrente do Balanço de Pagamentos. A expectativa de desvalorização cambial iminente, contudo, aumentou o custo esperado dos empréstimos externos e impediu que se materializasse a almejada substituição de financiamento privado doméstico por externo. Diante do racionamento de crédito, o equilíbrio no mercado privado de crédito só poderia ser obtido através de taxas de juros mais altas, enquanto o financiamento externo foi feito compulsoriamente pelas empresas estatais.

O terceiro instrumento foi fornecido pela Resolução 432 do Conselho Monetário Nacional. Tal Resolução permitiu às firmas com dívidas em moedas estrangeiras repagar seus empréstimos antecipadamente através de depósitos no Banco Central, que assumia assim o empréstimo até o seu vencimento. A expectativa de desvalorizações reais do câmbio torna muito atraente a possibilidade de fazer depósitos, através da Resolução 432, no Banco Central, que assume assim o risco cambial. A expectativa de desvalorização estimula, portanto, a demanda doméstica de crédito até o ponto em que o custo do crédito em cruzeiro excede o custo do crédito em moeda estrangeira, com um diferencial tal que torna as empresas dispostas a correr o risco cambial. A especulação de desvalorização aumenta assim a taxa de juros doméstica, a menos que as Autoridades Monetárias acomodem a maior demanda por crédito doméstico. A adoção de políticas monetária e creditícia restritivas, combinada com a existência da Resolução 432, tornou a taxa de juros interna função crescente do risco cambial percebido.

O peso relativo destes três instrumentos não foi constante ao longo do período 1981-1983. Em 1981, os dois primeiros foram decisivos para assegurar a permanência das taxas de juros em níveis elevados. À medida que diminuía a possibilidade de sustentação da estratégia de rolar a dívida, sem promover uma desvalorização real substantiva da taxa de câmbio, o impacto adverso da incerteza cambial sobre as taxas domésticas de juros tornou-se crescentemente importante. O papel da Resolução 432 foi consequentemente maior em 1983. Para nossos propósitos, é suficiente observar que estes instrumentos foram efetivos na fixação da taxa de juros, ao longo do período. Esta fixação, todavia, obedeceu a limites de dois tipos.

O primeiro fator limitativo foram as pressões políticas suscitadas por tais políticas. Muito embora não tenham sido suficientes para revertê-las, atuaram como um fator moderador não desprezível, à medida que retiravam legitimidade dos responsáveis pela política econômica. O segundo fator limitativo foi a forma legal de remuneração das cadernetas de poupança. Uma vez que os juros eram predeterminados, sua remuneração real dependia da relação entre a correção monetária e a inflação. Por um lado, o expurgo da correção monetária diminuía a remuneração real, provocando perdas no sistema de captação à medida que a taxa de juros de aplicações alternativas, decorrentes da ação dos três instrumentos acima, atraía os investidores das cadernetas de poupança. Manter taxas de juros reais muito elevadas nos demais ativos, sem perder depósitos nas cadernetas de poupança, era incompatível com as políticas de expurgo na correção monetária. Por outro lado, temia-se que fixar a correção monetária acima da inflação conduzisse à sua aceleração. Entre o temor da aceleração da inflação e o temor de perdas de depósitos no sistema de poupança, restava a alternativa de igualar a correção monetária à inflação. Com plena correção monetária, os juros prefixados legalmente tornavam-se os juros reais oferecidos por esta forma de aplicação. Os juros nos demais ativos financeiros, levando em conta diferenças em tributação, risco e efetivos de segmentação de mercado, foram ajustados à remuneração real de 6% das cadernetas de poupança. O complexo processo de busca do equilíbrio entre ativos financeiros, ao longo de 1981-1983, pode, em última análise, ser descrito, dada a legislação relevante, como um “tatonnement” em torno da estrutura de taxas de juros para aplicação compatível com a remuneração legal das cadernetas de poupança. Políticas exageradamente restritivas aumentariam a taxa de juros, tanto na ponta de empréstimos, quanto na captação, mas em contrapartida desequilibrariam o sistema das cadernetas de poupança.

A presença destes dois fatores impedia que as Autoridades Monetárias fixassem a taxa real de juros em níveis arbitrariamente altos. No entanto, a taxa real de juros compatível com os limites impostos pelas cadernetas de poupança e por pressões políticas mostrou-se ainda assim substantivamente maior, no momento inicial, do que a taxa de retorno dos ativos não-financeiros. Uma vez que a taxa real de juros era fixada pelos instrumentos de política, os processos de arbitragem exerceram-se através de um aumento na taxa de retorno dos ativos não-financeiros. Mesmo antes de descrever com algum detalhe sua determinação no contexto 1981-1983, é importante ressaltar que seu aumento ao longo da depressão, paradoxal quando julgado à luz de ciclos econômicos espontâneos e endógenos, reflete bem o caráter intencional da forma de ajuste à crise cambial adotada durante o período.

Por definição, a taxa de retorno sobre o capital não-financeiro é dada pela razão NP/VC, onde NP representa os lucros líquidos, isto é, lucros operacionais menos depreciação do capital fixo, e VC representa o valor de mercado do capital. VC é o valor da firma a preços de mercado e inclui tanto o capital fixo como o capital organizacional. Capital fixo é a soma a preços de mercado dos itens físicos do estoque de capital (máquinas, instalações etc.). Capital organizacional é o valor residual da firma após a dedução do valor do capital fixo. Alternativamente, o capital organizacional é o equivalente monetário do esforço para estruturar a firma, entendida como entidade dotada de memória, de identidade e de uma rede de relações estáveis com empregados, clientes e fornecedores.

Uma vez que a taxa de retorno sobre o capital é dada por NP/VC, o processo de arbitragem entre taxas de retorno dos capitais financeiro e não-financeiro pode ocorrer através de duas trajetórias não excludentes: aumentos em NP ou reduções em VC.

NP é dado pelos lucros operacionais, menos a depreciação do capital fixo. O conceito keynesiano do “user cost” mostra que um conceito relevante de depreciação deveria levar em conta os efeitos das taxas de juros e das expectativas. Em um ambiente de profundo pessimismo, com taxas altas de juros e com capacidade ociosa generalizada, é pequena a redução do valor do capital fixo devida ao seu uso, quando comparada à alternativa de preservá-lo inalterado. Como aproximação, consideraremos NP uma fração constante dos lucros operacionais, função que é menor, embora próxima da unidade. Os lucros operacionais, por sua vez, dependem dos salários reais, dos custos reais dos materiais importados, da taxa real de juros (devido aos financiamentos) e da quantidade real de crédito subsidiado. Estes são os quatro determinantes de NP. Quanto maiores, em termos reais, os salários, as importações e a taxa de juros, menor NP; quanto maior a quantidade de subsídios, maior será NP. Uma aceleração na inflação aumenta NP, já que reduz o salário médio real e aumenta a quantidade real de subsídios. Uma maxidesvalorização reduz NP, porque o custo real de importação depende da taxa real de câmbio. Uma política monetária obstinada, mantendo a taxa real de juros a um nível superior ao normal, reduz NP.

No período 1981-1983, foi necessária uma aceleração inflacionária para compensar os efeitos depressivos sobre NP causados pela política monetária e pela depreciação real do cruzeiro. A aceleração inflacionária de um patamar de 100% em janeiro de 1981, para 200% em dezembro de 1983, pode ter sido suficiente para contrabalançar parcialmente tanto a elevação na taxa preferencial de juros -20% (durante 1980) para +25% (em 1981), como os 30% de desvalorização cambial real em 1983. Não impediu, todavia, que a outra forma de ajustamento entre a taxa de juros e a taxa de retorno também se efetivasse. Independentemente da aceleração inflacionária, o processo de arbitragem na economia de 1981-1983 também funcionou através de reduções em VC, ou seja, por meio da desvalorização do capital.

A desvalorização do capital aumentou a concentração industrial porque a habilidade de se tornar um poupador líquido variou consideravelmente dentro do setor industrial. Algumas firmas diminuíram a produção para uma escala mínima e orientaram os lucros para a aquisição de ativos financeiros. As receitas sobre a forma de juros frequentemente mais do que compensaram os declínios nos lucros operacionais. Em contraste, noutras firmas a desvalorização do capital foi sentida de forma mais aguda, devido à incapacidade de aproveitar as altas taxas de juros dos ativos financeiros. Quanto maior o grau de endividamento herdado do passado, quanto maiores os custos de interromper ou desacelerar os investimentos planejados e quanto mais míope foi a visão da firma sobre a permanência das políticas do Banco Central, maior o peso da desvalorização do capital. As altas taxas de juros criaram assim uma clivagem na estrutura industrial.

Esta clivagem na estrutura industrial tem uma dimensão adicional: o grau de acesso ao mercado externo. É possível definir dois casos. No primeiro caso, incluem-se as firmas que, dada as características essencialmente não-comerciáveis de suas atividades, não têm possibilidade de acesso ao mercado externo. No segundo caso, encontram-se as firmas que sempre estiveram dirigidas primordialmente para o mercado externo, ou que, tendo antecipado corretamente a extensão e a duração da recessão doméstica, desenvolveram recentemente programas de exportação agressivos.

Combinando as dimensões de liquidez e grau-de-acesso-ao-mercado-externo, é possível classificar as empresas em quatro categorias representadas na matriz 1. Ao longo da diagonal negativamente inclinada, estão os dois casos extremos: primeiro, as firmas que estão ilíquidas e não exportam; e segundo, as firmas que têm alto grau de liquidez e são primordialmente exportadoras. Ao longo da diagonal positivamente inclinada, estão os dois casos intermediários: firmas que estão líquidas, mas não têm acesso ao mercado externo, e firmas que estão ilíquidas, mas são primordialmente exportadoras.

Matriz 1

À. medida que a crise atual se prolonga, a polarização nos dois casos extremos, ao longo da diagonal negativamente inclinada, tende a se intensificar. Por um lado, as firmas líquidas, mas não exportadoras, ou investirão em novas atividades que lhes abrirão as portas do mercado externo, ou terminarão por eventualmente perder suas funções privilegiadas de liquidez, através de prejuízos operacionais prolongados em suas atividades. Por outro lado, as empresas ilíquidas, mas exportadoras, se tornarão capazes de se capitalizarem através dos retornos elevados obtidos em suas vendas externas. A imposição da restrição externa terminará por concentrar as empresas ao longo da diagonal negativamente inclinada, com o domínio da dimensão acesso-ao-mercado-externo sobre a dimensão de liquidez. Uma mudança, através da política econômica, para a dimensão de acesso-ao-mercado-externo, em contraste com a ênfase na dimensão de liquidez, é a essência do ajustamento estrutural que se discute na Seção 3.

A acumulação de receitas financeiras em firmas cuja história anterior era inteiramente devotada às atividades não-financeiras gerou tensões que tenderam a ser resolvidas por ondas de fusões e aquisições. Em lugar de se metamorfosearem em intermediários financeiros, passaram a absorver empresas beirando a insolvência. A ênfase na dimensão de liquidez prolongada pela política econômica em prática, além de efeitos distributivos, acarretou também efeitos destrutivos. No caso do capital fixo, a destruição do ponto de vista da sociedade está confinada aos itens do capital físico, que se tornam inutilizáveis para qualquer firma ou setor da economia. Tais itens formam uma parte relativamente pequena do capital fixo total e geralmente muito correlacionada com a distribuição etária do capital. A desvalorização acelera a obsolescência e, consequentemente, aumenta a taxa econômica de depreciação.

O impacto destrutivo fez-se sentir, todavia, mais intensamente sobre o capital organizacional. A recessão caracterizou-se, primeiro, pela demissão inelutável de empregados treinados e identificados com as suas empresas. Ante a alternativa da falência ou da concordata, as firmas foram forçadas a reduzir custos em dimensões prejudiciais à sua capacidade ótima de retornar futuramente o nível normal de atividade. Segundo, a recessão desorganizou as redes estáveis de comércio com fornecedores e compradores. Como tais redes resultaram tipicamente de um custoso processo mútuo de ajuste e de busca de informação, sua dissolução acarreta um custo líquido para a sociedade. Recessões prolongadas e profundas contraem a rede de contratos implícitos que constituem as empresas como entidades orgânicas. O aforismo “a recessão destrói empregos, mas não capital” exerce apelo tanto para aqueles sensíveis ao sofrimento da classe trabalhadora quanto para aqueles que tendem minimizar seus efeitos. No contexto da economia brasileira de 1981-1983, todavia, este aforismo não pode ter pretensões à verdade, nem mesmo quando se interpreta “capital” como significando exclusivamente “capital fixo”.

A concentração crescente da estrutura industrial, acoplada à destruição de capital, sugere efeitos irreversíveis sobre o funcionamento da economia decorrentes do ajustamento via altas taxas de juros. Tais efeitos devem, no entanto, ser ponderados contra as dimensões criativas da recessão. A destruição de capital organizacional, por exemplo, dá origem a novas redes de contratos cuja reorganização em parte compensa os efeitos destrutivos iniciais. Constituem evidências neste sentido a reativação da economia informal baseada na evasão fiscal, a proliferação de firmas de capital de risco de pequena escala, o aumento do esforço exercido e a maior consciência para oportunidades, antes não aproveitadas, de reduzir custos ou internalizar lucros. A descrição Schumpeteriana do capitalismo como processo de criação destrutiva aplica-se tanto à depressão quanto à recuperação. O elogio das virtudes purificadoras da recessão, no entanto, viola qualquer avaliação equilibrada da forma de ajustamento posta em prática no período 1981-1983.

O Gráfico 1 abaixo mostra trajetórias possíveis de ajustamento, podendo-se nele visualizar o processo de arbitragem entre a taxa de juros e a taxa de retorno NP/VC. A reta OR0 representa a combinação de valores de NP e VC compatíveis com a taxa de retorno R0 prevalecente antes da recessão de 1981. A reta OR1 representa aquelas combinações que geram taxas de retorno R1 maiores que R0. R1 é a taxa de retorno estabelecida pelo processo de arbitragem em face de uma taxa de juros maior. O ponto A representa a posição da economia antes de 1981.

Gráfico 1

O movimento de A para B mostra um processo de ajuste baseado tanto na desvalorização do capital como no aumento da inflação. O estoque de capital em B é menor do que em A por causa do efeito destruição; a estrutura industrial é mais concentrada em B do que em A. A inflação é superior em B, relativamente a A, porque sua aceleração foi necessária para preservar o valor real dos lucros líquidos em face da elevação das taxas de juros e da maxidesvalorização de 1983. Se a inflação fosse constante, o ajuste seria do ponto A para o ponto C; haveria declínio nos lucros e a desvalorização do capital requerida pelo processo de arbitragem seria bem maior. Finalmente, o movimento de A para E mostra o caso extremo no qual o valor do capital é preservado. O processo de arbitragem, nesse caso extremo, opera exclusivamente através de uma enorme aceleração inflacionária.

O Gráfico 1 ilustra o dilema da economia brasileira: a inflação é um mecanismo de proteção do valor líquido das firmas, à custa dos trabalhadores (porque reduz os salários reais) e do equilíbrio do orçamento (porque aumenta o valor real dos subsídios). A inflação permaneceu constante de 1980 até 1981, cresceu em 1982 e acelerou-se em 1983, após a desvalorização real da moeda de fevereiro. Em termos sugestivos, a economia brasileira moveu-se do ponto A para B. Os trabalhadores perderam porque os salários reais caíram; as firmas perderam porque o valor de mercado do capital declinou de VC0 para VC1; as pressões sobre o déficit público cresceram; e a estrutura industrial tornou-se mais concentrada. Com taxas menores de inflação, a posição dos trabalhadores seria melhor e o déficit público mais equilibrado; entretanto, os processos de desvalorização do capital, de concentração industrial e de destruição de capital teriam sido intensificados.

Estes “trade-offs” decorrem inevitavelmente de um processo de arbitragem em que a taxa real de juros é fixada deliberadamente em níveis extraordinariamente elevados. Convém fazer duas observações.

Primeiro, a aceleração da inflação opera como mecanismo protetor do valor líquido das empresas somente dentro de certos limites. A funcionalidade das acelerações da inflação, no período 1981-1983, é evidente. Acelerações muito intensas podem, todavia, desencadear. uma hiperinflação e, portanto, perda de funcionalidade. Além disto, uma vez determinada a combinação entre LL e VC vigente, a inflação permanece estável e perpetua-se inercialmente. Seria um erro, no entanto, atribuir à inércia inflacionária as alegadas propriedades de estabilidade a longo prazo do equilíbrio real em face da inflação antecipada, pois as diferentes taxas estáveis de inflação, no contexto brasileiro de 1981-1983, estiveram associadas a diferentes valores do salário real, do montante real de subsídios, do grau de concentração industrial etc. Em outras palavras, o fato de a inflação ser inercial e, nesta medida, relativamente antecipável, não implica que o funcionamento do sistema econômico seja o mesmo, qualquer que seja o patamar estável de inflação.

Segundo, as altas taxas de retorno para o capital não-financeiro resultante dos processos de arbitragem tiveram pouco efeito sobre o investimento. Estas taxas refletiram lucros possíveis a partir do capital já existente. A decisão de investir, contudo, depende das expectativas e das taxas de juros. A fraqueza dos “animal spirits” empresariais somou-se às altas taxas de juros para inibir o investimento privado.

Por um lado, a expansão da capacidade foi seriamente reduzida. O valor presente dos incrementas ao estoque de capital existente tende a ser negativo quando os fluxos futuros de demanda são percebidos como fracos e incertos, enquanto os retornos esperados são simultaneamente descontados a taxas de juros elevadas. Por outro lado, o investimento em estoques ficou penalizado pelos altos custos de carregá-los, também em função das taxas de juros. A forte redução do investimento privado levou à redução da demanda interna. Como se verá na próxima Seção, tal redução foi vista como necessária para o ajustamento à crise externa.

3. PREÇOS RELATIVOS E TAXAS DE JUROS

As extraordinárias taxas de juros que prevaleceram em 1981-1983 foram consequência deliberada da política econômica. Qual é a “rationale” para essa política? Seu ponto de partida é igualdade macroeconômica entre a demanda agregada (AD) e a oferta doméstica agregada (AS).

A D = A S (1)

A demanda agregada pode ser decomposta em consumo (C), investimento privado (1), despesas do governo (G) e exportações (X). Portanto,

A D = C + I + G + X (2)

A oferta pode ser expressa como o produto interno (Y), mais importações (M), menos os pagamentos de juros e as amortizações da dívida externa (D):

A S = Y + M - r + a D (3)

onde r representa a taxa de juros e a a taxa líquida de amortizações.

O produto interno (Y), por sua vez, pode ser decomposto em consumo, poupança privada (S) e tributos (T):

Y = C + S + T (4)

Das equações (1) a (4) deduz-se a conhecida identidade macroeconômica:

M - X - r + a D = I - S + G - T (5)

O déficit em conta corrente do Balanço de Pagamentos (o lado esquerdo de (5)) é assim expresso como o excesso de investimento privado sobre a poupança (o déficit privado), mais o excesso de despesas públicas sobre os tributos (o déficit público).

Essa identidade pode ser interpretada como uma afirmação de que o déficit em conta corrente é causado pelo déficit público e privado do país. A interpretação apela para o senso comum, através de uma analogia com a situação de um indivíduo cujo déficit é simplesmente a consequência de estar gastando acima de sua renda. Como no caso individual, diz-se que o país está “vivendo além de seus meios”. Se esta interpretação é tida como verdadeira, a eliminação do déficit em conta corrente requer apenas uma redução na demanda agregada. O investimento privado e as despesas públicas têm que ser reduzidos, enquanto a poupança e os tributos têm que ser ampliados.

Aí surge o papel da taxa de juros. Agindo como determinante dos investimentos e estímulo à poupança, um crescimento na taxa de juros redundaria em menores déficits em conta corrente, de acordo com a interpretação “vivendo acima dos seus meios”. Quanto maior a taxa de juros, mais intenso seria o ajuste à crise no Balanço de Pagamentos.

Esta interpretação de (5) fornece a base teórica que sustentou a política de ajuste adotada no Brasil desde 1981. Antes da crise no mercado internacional de crédito, em setembro de 1982, as elevadas taxas de juros domésticos serviram também para estimular as empresas a recorrer a empréstimos no exterior, reduzindo, assim, a taxa líquida de amortização da dívida externa. Isto permitiu uma redução menos dramática na demanda doméstica nesse período.

Mas, com o colapso do mercado internacional de crédito para países latino-americanos, após a moratória mexicana, a taxa líquida de amortização cresceu drasticamente. Nessas novas condições, as altas taxas de juros passaram simplesmente a desempenhar o papel de inibir os investimentos e estimular a poupança.

Existem várias armadilhas nesse arcabouço teórico e na política de ajuste que inspira. As analogias com situações individuais e as identidades macroeconômicas excessivamente agregadas conduzem a diagnósticos errados da crise do balanço de pagamentos. Primeiro, um país que enfrenta um déficit em sua conta corrente não está necessariamente “vivendo além dos seus recursos”. A dívida acumulada anteriormente poderia ter sido considerada perfeitamente razoável para uma economia em desenvolvimento, crescendo rapidamente e explorando as oportunidades oferecidas pelo sistema internacional. Uma brusca elevação da taxa de juros internacional - num contexto de empréstimos de longo prazo contratados a taxa de juros flutuantes - somada com uma alteração adversa nas relações de troca, pode transformar o que era anteriormente uma estrutura razoável de endividamento em um peso agora insuportável. Se este foi o caso, o julgamento moral contido na versão “vivendo além dos seus recursos” de (5) é duvidoso.

Em segundo lugar, tal interpretação depende criticamente da hipótese de constância no produto interno. Se o produto é estável em relação aos valores de cada item de (5), então na verdade uma redução no déficit em conta corrente decorre necessariamente de um decréscimo no investimento privado (ou gasto público) e de um acréscimo na poupança privada (ou nos tributos). Para um dado nível de produto, toda redução na demanda agregada - em (I-S) ou em (G-T) - transforma-se em uma redução proporcional no déficit comercial (M-X). Mas isto não é necessariamente verdadeiro. Aquilo que não é consumido internamente não é automaticamente exportado. Uma queda na demanda interna pode simplesmente reduzir o produto doméstico e criar desemprego, se as exportações não crescem proporcionalmente. Numa economia hipotética, produzindo apenas um bem, sem nenhuma restrição de demanda externa aos preços relativos correntes, a contração na demanda interna corrigiria o déficit em conta corrente, sem sacrificar o nível de emprego. Terapias válidas para uma economia artificial, aplicadas à situação concreta do Brasil no início da década de 80, resultaram desastrosas aqui, à medida que o país foi forçado a transformar grandes déficits comerciais em superávits expressivos num curto espaço de tempo.

A obtenção de um excedente comercial pode ser compatível com a recuperação econômica sob duas condições: com preços relativos adequados e uma estrutura industrial apropriada.

Preços relativos adequados, dos quais a taxa de câmbio é o elemento chave, são uma condição indispensável para o ajuste não-recessivo. Na ausência dessa correção nos preços relativos, o espaço aberto por uma queda na atividade doméstica não seria coberto por exportações, mas redundaria simplesmente em desemprego e capacidade ociosa.

Por sua vez, a construção de uma estrutura industrial apropriada requer novos investimentos. É equivocada a ideia de que uma economia com altos níveis de ociosidade estaria apta a crescer, utilizando simplesmente a capacidade existente. A atual estrutura industrial não é adequada à transformação do país numa economia orientada para as exportações e não pode atingir a plena ocupação sem correr o risco de novos déficits comerciais. Os índices de capacidade ociosa, baseados em informações estatísticas ou técnicas do produto potencial, ignoram as restrições que geram expressivo excedente comercial. Atualmente, o Brasil está mais próximo de uma situação econômica de plena capacidade do que em geral se imagina. Uma recuperação econômica depende crucialmente, portanto, de uma realocação de fatores de produção, o que ocorrerá somente através de novos investimentos.

Nem todo investimento, contudo, contribui para a transformação estrutural numa economia orientada para as exportações. Preços relativos adequados premiam os investimentos orientados para o superávit comercial. Taxas de juros moderadamente positivas são necessárias, como instrumento seletivo, para impedir investimentos excessivos e generalizados. Ao contrário de uma trajetória recessiva, calcada em taxas de juros excessivamente altas, o ajuste estrutural sugerido aqui baseia-se numa desvalorização moderada na taxa de câmbio e numa taxa real de juros positiva, mas também moderada.

O ajuste estrutural deve ser pensado como um problema de incentivos. Altas taxas positivas de juros tendem a inibir todas as formas de investimento - inclusive aquelas necessárias para efetivar o ajuste estrutural da economia. A fim de estimular o investimento necessário para sustentar superávits comerciais expressivos, em face das taxas positivas elevadas de juros, deve-se contrabalançar seu efeito inibidor através de uma taxa de câmbio muito depreciada. Como uma desvalorização substantiva do câmbio aceleraria a inflação, realizar o ajuste estrutural sob altas taxas positivas de juros acarretaria taxas de inflação significativamente maiores do que aquelas observadas durante o ajuste recessivo. Para evitar a aceleração inflacionária durante o ajuste estrutural, é necessário reduzir permanentemente as taxas de juros. Com juros reais negativos, floresce, porém, o investimento indiscriminado, inclusive nas suas formas prejudiciais à transformação estrutural desejada. A solução para o problema dos incentivos reside· em estimular o investimento adequado através de uma taxa de câmbio moderadamente desvalorizada (abaixo da paridade histórica), enquanto se desencoraja as demais formas de investimento através de juros reais moderadamente positivos.

Do ponto de vista do ajuste estrutural, a decisão de desvalorizar o câmbio em fevereiro de 1983 foi acertada, embora tardia. Determinar se o câmbio real vigente desde então aproxima-se da norma prescrita pelo ajuste estrutural, no sentido de manter o câmbio abaixo da paridade, é uma questão a ser decidida empiricamente. Na ausência de estudos empíricos adequados, o teste prático da adequação do câmbio real vigente estará na sua capacidade de compatibilizar expressivos superávits comerciais com a retornada sustentada do crescimento. Na perspectiva do ajuste estrutural, é, no entanto, evidente, que o câmbio real vigente de 1981 até os primórdios de 1983 estava sobrevalorizado, assim como as taxas de juros em vigor ao longo de todo o período foram excessivamente elevadas.

O Gráfico 2 a seguir ilustra possíveis trajetórias de ajuste estrutural. A transformação da estrutura produtiva guiada por juros e câmbio moderados não é visualizada no Gráfico 2, mas serve para mostrar alternativas para o valor do capital e da inflação. A representa a posição corrente da economia com taxa de retorno R1; R2 é a taxa de retorno que prevaleceria, através do processo de arbitragem, após a redução nas taxas de juros.

Gráfico 2

A redução nas taxas de juros, contemplada pelo ajuste estrutural, aumenta NP porque reduz os custos financeiros; mas a desvalorização cambial moderada, prescrita no receituário do ajuste estrutural, introduz o efeito oposto de reduzir NP, porque aumenta o custo real das importações. Suponha-se que os dois efeitos em NP se cancelem. Então, o movimento de A para B é seguido por um declínio na inflação. De A para C a inflação é constante, mas ocorre uma valorização do capital. Torna-se viável ou reduzir a inflação sem alterar o valor líquido da firma, ou crescer este sem aumentar aquela. O movimento de A para D é uma possibilidade intermediária, no qual ocorre tanto uma valorização do capital como uma redução na inflação.

Suponhamos agora que um declínio nas taxas de juros mais do que compense o efeito da desvalorização cambial. Se a inflação permanecer constante, NP crescerá. O movimento de A para C significa, então, valorização do capital e menos inflação; somente num ponto como E a economia estabilizará com a mesma taxa de inflação. Este caso é obviamente mais favorável do que o anterior, no qual os dois efeitos se neutralizam. Para qualquer taxa de inflação pretendida, a valorização do capital é maior do que quando os dois efeitos se cancelam.

Finalmente, suponha-se que o efeito desvalorização predomine. Se a inflação permaneceu constante, NP decresceria. Se NP, para uma taxa de inflação constante, cair para um ponto entre A e B (Gráfico 2), pode ocorrer desinflação sem prejuízos no valor líquido da firma, ou a valorização da firma sem necessariamente ocasionar mais inflação. Mas se NP, para a mesma taxa de inflação que prevalecia antes, cair para um ponto entre B e K, tais possibilidades deixam de existir. Segue-se que o “trade-off” entre a inflação e o valor do capital, presente no ajuste recessivo, pode ser evitado no caso do ajuste estrutural, exceto quando os efeitos depressivos sobre os lucros ocasionados pela desvalorização dominam amplamente o estímulo causado pelo declínio na taxa de juros. Note-se, contudo, que mesmo neste caso perverso ainda é preferível implementar o ajuste estrutural através da taxa de juros e de desvalorização cambial moderados, nunca elevadas; pois quando o efeito da desvalorização predomina, o impacto sobre a inflação é ainda maior se a taxa de câmbio tiver que ser muito desvalorizada.

Em suma, o ajuste estrutural é mais adequado às noções de equidade do que a via recessiva. No período 1981-1983, os salários reais e o nível de emprego caíram dramaticamente. No ajuste estrutural, os salários reais, em termos de bens “internacionais”, sofreriam um declínio menor devido à desvalorização cambial mais moderada. A supressão da troca adversa entre a inflação e o valor líquido das firmas abre a possibilidade de queda na inflação, o que representa salários reais mais elevados em termos de bens domésticos. O efeito líquido sobre os salários reais dependeria da proporção entre bens domésticos e “internacionais” na estrutura de consumo dos trabalhadores. Esta indeterminação “a priori” do impacto sobre os salários reais teria que ser comparada, entretanto, com o impacto positivo sobre o nível de emprego. A retomada dos investimentos imaginada por este ajuste estrutural não poderia provavelmente, e em curto prazo, gerar taxas de crescimento iguais aos 7% da tradição histórica do Brasil. Mas seria seguramente suficiente para pôr fim no declínio da renda “per capita” que vem ocorrendo desde 1981. A médio prazo, a taxa histórica poderia ser atingida se a transformação estrutural da economia permitisse simultaneamente a consecução de um crescimento normal e de expressivos superávits comerciais.

O peso da recessão de 1981-1983 foi maior para os trabalhadores. A superioridade do ajuste estrutural sobre o ajuste recessivo decorre do fim da atual recessão. O argumento de Malthus sobre os pesares causados por recessões prolongadas aplica-se bem ao Brasil - 81/83: “Nas épocas de prosperidade, a classe mercantil frequentemente ganha fortunas, que vão além de garanti-la contra adversidades futuras; mas as classes trabalhadoras, desafortunadamente, apesar de participar da prosperidade geral, nas épocas de adversidade geral têm participação bem maior” (PPE, 1836, 2ed., pág. 437). A reversão do estado de “adversidade geral” não será viável se persistirem as políticas de ajustes recessivos baseadas em elevadas taxas de juros.

4. OBSERVAÇÕES FINAIS

Dois temas não foram considerados nestas notas: o papel do investimento público e as possibilidades decorrentes de uma renegociação da dívida externa. Sua relevância para o futuro da economia brasileira na década de 80 é inegável e alguns comentários se impõem.

Os cortes substanciais no investimento público contribuíram para a contração na demanda agregada nos últimos três anos e as altas taxas de juros impediram completamente qualquer movimento compensatório por parte do investimento privado. A inquestionável complementariedade entre investimento público e privado numa economia de industrialização tardia contribuiu para acentuar a retração nos investimentos. Cortes indiscriminados e elevados no investimento público são coerentes na estratégia meramente recessiva inspirada em (5). Desempenham o mesmo papel de reduzir a observação doméstica tal como uma contração no investimento privado diante de taxas de juros excessivas. Além das razões derivadas da interpretação “vivendo acima dos seus recursos” de (5), as reduções do investimento público têm sido defendidas com base no argumento de que teriam eficiência menor do que a do investimento privado. É claro, contudo, que o investimento público pode ser um poderoso instrumento para remodelar a estrutura industrial em direção a uma economia orientada para a exportação. A racionalização do setor público, para essa remodelação da economia, não se resume a simples cortes ou acréscimos nos investimentos. É necessário um conhecimento específico e detalhado da matriz industrial. Atingir esse ponto não é simples, como a performance de economias centralmente planificadas o tem demonstrado, ao tentar ajustar-se aos choques externos. No entanto, não existe motivo para renunciar de todo a tão poderoso instrumento, ou para concluir “a priori” que o investimento público teria que ser severamente cortado.

Com o mercado internacional de crédito virtualmente fechado, o Brasil tem que contar com alguma forma de renegociação de sua dívida. Não existe nenhuma estratégia de ajuste capaz de gerar os superávits comerciais necessários para viabilizar a transferência líquida de recursos para o exterior, tal como o quer a retração dos credores. A crise é um problema global, que reclama obrigatórias negociações políticas, só elas capazes de evitar um colapso do sistema financeiro internacional. Os graus de liberdade do país devedor dependerão fundamentalmente do êxito dessas negociações. Entretanto, o Brasil terá que gerar superávits comerciais que eliminem ou reduzam significativamente o déficit em conta corrente, a despeito do sucesso e da rapidez das negociações e de uma solução institucional satisfatória para a crise internacional. As negociações em torno da dívida apenas aliviam o peso do ajuste, mas não eliminam o seu caráter compulsório. A argumentação anterior sobre ajustes recessivos ou estruturais permanece, portanto, inalterada, porque se sustenta a hipótese de que um superavit comercial terá sempre que ser obtido. Esta hipótese só será afastada por um eventual colapso do sistema monetário internacional. Neste caso, que é pouco provável, uma saída autárquica seria a única alternativa para o Brasil.

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    Os autores agradecem os comentários de Edmar Bacha, Alkimar Moura e participantes de Conferência “Opportunities and Constraints in Peripheral Industrial Society: The Case of Brazil”, Stanford-Berkeley Joint Center for Latin American Studies, Berkeley, ocorrida no final de janeiro de 1983. O presente texto é uma versão modificada do que foi apresentado na Conferência. Uma outra versão será publicada em livro, a sair em 1985, editado por Edson Nunes, Albert Fishlow e John Wirth. A responsabilidade por imperfeições remanescentes é nossa.
  • JEL Classification: F34; O40; E61.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1985
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