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Preço da terra, taxa de juro e acumulação financeira no Brasil

Land price, interest rate and financial accumulation in Brazil

RESUMO

A relação entre o preço da terra e o sistema financeiro no Brasil tem sido analisada sob diversos pontos de vista, mas pouca ou nenhuma importância é dada à taxa de juros como fator que fundamenta o mercado de terras com a acumulação financeira. O principal objetivo deste trabalho é analisar, numa perspectiva histórica, como o preço da terra expressa diferentes fases de desenvolvimento das atividades financeiras e como a taxa de juro faz uma ponte entre o mercado imobiliário e o mercado de capitais.

PALAVRAS-CHAVE:
Preço da terra; história econômica do Brasil; financiamento habitacional

ABSTRACT

The relationship between the land price and the financial system in Brazil has been analysed under different points of view, but little or none significance is given to the interest rate as a factor that underlies the land market with the financial accumulation. The main purpose of this work is to analyse, in a historical perspective, how the land price expresses different stages of development of the financial activities and how the interest rate makes a bridge between land and capital markets.

KEYWORDS:
Land price; economic history of Brazil; land financing

As relações entre o preço da terra e o sistema financeiro no Brasil têm sido analisadas sob diferentes pontos de vista, entretanto, pouco ou nenhuma importância tem sido dada à taxa de juro como fator fundamental que liga o mercado fundiário à acumulação financeira.

Neste trabalho a preocupação fundamental é de analisar, em uma perspectiva histórica, como a terra manifesta, através de seu preço, distintos estágios de desenvolvimento da intermediação financeira, e, também, como a taxa de juros é a ponte entre o mercado fundiário e o financeiro.

Neste sentido, procura mostrar que a industrialização no período posterior à década de 30 foi acompanhada por uma valorização da terra enquanto ativo financeiro e como a crise do mercado fundiário, que se segue à reversão cíclica no início da década de 60, é o resultado das novas necessidades de valorização das massas de capital acumuladas durante a expansão industrial.

Por final, analisa como a “imaginação reformista” pós-64 intervém no mercado fundiário e busca lançar as bases de um sistema financeiro relativamente independente, cujo resultado são dois mercados sensíveis ao comportamento das taxas de juros, e que permitem movimentos especulativos de valorização fictícia de capitais.

1. PREÇO DA TERRA E INTERMEDIÁRIOS FINANCEIROS NO BRASIL

As relações entre o preço da terra e a intermediação financeira no Brasil são analisadas a partir de duas vertentes básicas. A primeira, de caráter pioneiro, está expressa nas teses de RANGEL1 1 Ver RANGEL, I. Questão Agrária e Agricultura. Encontros com a Civilização Brasileira, n. 7, janeiro, 1975 - como, também, Síndrome da Recessão Brasileira. Encontros com a Civilização Brasileira n. 16, outubro/1979. acerca do comportamento do preço da terra no ciclo econômico e no papel do sistema financeiro em transferir e realocar recursos entre a reversão de um ciclo para a retomada de outro.

A segunda concepção estruturada é a de SAYAD2 2 SAYAD, J. - Preço da Terra e Mercados Financeiros. Pesquisa e Planejamento Econômico. Vol. 7, n. 3 e Especulação Financeira, Crédito subsidiado e preço da terra. Reforma Agrária, Ano X, n° 04 e 05, 1980. que coloca a terra como a “reserva de valor” preferida na economia brasileira, sujeita, portanto, a processos especulativos que elevam seu preço e vê a intermediação financeira como um elo potencial entre o “mercado de reservas de valor” e o setor produtivo, pois seria capaz de interligar as “poupanças” do setor privado, através da emissão de títulos mobiliários, ao segmento produtivo da economia. Vamos detalhar a seguir cada uma destas concepções.

1.1. Preço da terra e ciclo econômico

O processo de formação do preço da terra é determinado, para Rangel, pelo comportamento da renda fundiária vis-à-vis ao da taxa de lucro (e juro) durante o ciclo econômico. Para tanto, descarta a possibilidade de a demanda por terras influir em seu preço, pois o progresso técnico tanto na agricultura, como na indústria da construção civil, tenderia a elevar a produtividade por unidade de área, intensificando o uso do solo.

Ora, se a demanda “produtiva” de terra pode ser satisfeita através do progresso técnico, qual a causa da elevação de seu preço? Rangel explica este processo pela relativa estabilidade da renda territorial durante o ciclo econômico. Pois considerando uma queda na taxa de lucro, devido a reversão cíclica, a renda tende a ser vendida mais caro, ou seja, há uma elevação no preço da terra. Este crescimento do preço no mercado fundiário provoca o aumento das expectativas quanto a valorização futura, com isto cresce a demanda por terras e daí o “diferencial esperado do preço da terra de um ano para o outro passará a comportar-se como se ele próprio fosse uma renda; a 4ª. renda...“3 3 Ver RANGEL, I. - Questão Agrária ... opus cit. p. 190.

Detalhando no tempo as concepções de Rangel é possível detectar três momentos distintos:

  1. com a reversão cíclica cai a taxa de lucro (e juro) e a renda permanece constante ou cai mais lentamente, logo sobe o preço da terra;

  2. a elevação induz novas expectativas de incremento do preço da terra; surge a 4ª. renda, uma renda puramente especulativa que resulta do aumento da demanda por terras;

  3. retoma-se o nível de atividades, a taxa de lucro (e juros) tende a subir e gradativamente cai o preço da terra e desaparece a 4ª. renda.

É importante esta segmentação no tempo para explicitar que existe uma dupla dinâmica nas concepções de Rangel. Primeiro: uma dinâmica que é dada pelo comportamento do preço da terra enquanto renda capitalizada, isto é que responde de modo direto às variações da renda e de modo inverso a uma taxa de valorização do capital. Rangel utiliza tanto lucro, como juro, como também eficiência marginal do capital.4 4 Ver RANGEL, I. - Síndrome da Recessão Brasileira. Opus cit., pp. 46-7.

Por outro lado, é necessário reconhecer que além da dinâmica “normal” do preço da terra, Rangel agrega, durante a fase depressiva e mesmo no começo da recuperação, uma renda que provém de processos especulativos, o que levaria o preço da terra além da elevação que seria explicada pelas flutuações na taxa de lucro (e juro). É claro que esta parcela agregada desaparece à medida que a economia volte a aquecer.

É importante esta ressalva, pois analistas como RESENDE5 5 RESENDE, Gervásio C. - Crédito Rural subsidiado e preço da terra no Brasil. Brasília, IPEAINPES, outubro 1981, mimeo, p. 49. manifestam explicita concordância com as teses de Rangel quanto a variação tida como “normal” do preço da terra, porém sequer mencionam a componente especulativa expressa na “4ª. renda”. Do mesmo modo, PINHEIRO6 6 PINHEIRO, F. A. - A renda e o preço da terra, uma contribuição à análise da questão agrária brasileira. Tese de Livre-docência apresentada a E.S.A. “Luiz de Queiroz”, Piracicaba, setembro 1980, pp. xii e xiii. , embora discorde da tese das flutuações da taxa de lucro como fator de explicação da alta de preços da terra, não deixa claro esta componente (4ª. renda) quando discute a visão de Rangel.

Qual a relação que se manifesta deste processo de elevação do preço da terra com o sistema financeiro para Rangel? A resposta é simples, está justamente no momento (b) quando se forma a 4ª. renda e a expectativa de valorização da terra induz sua compra e venda especulativa, daí o mercado de títulos imobiliários constituir-se como o primeiro mercado financeiro no Brasil.

Ao cumprir esta função, o mercado fundiário inibe o desenvolvimento de um verdadeiro mercado de capitais, capaz de mobilizar os recursos ociosos provenientes do auge cíclico e de transferi-los para os pontos de estrangulamento que se conformaram na economia e exigem novos investimentos para superá-los. Por outro lado, ao constituir-se como ativo financeiro, a terra torna-se inatingível para o pequeno produtor, daí a “questão agrária” ser antes de tudo uma “questão financeira”.

Em texto mais recente, Rangel admite que no ciclo entre 1968 e 1973 foi criado um aparelho financeiro, fundado no crédito ao consumidor de bens duráveis (financeiras) e financiamento habitacional (SFH), que comandaram a expansão do “milagre”. A existência deste sistema financeiro, embora incipiente desenvolvido, alterou o comportamento do preço da terra que, “nas presentes condições brasileiras, é agudamente sensível às flutuações do mercado mobiliário de valores” (grifos do autor)7 7 RANGEL, I. - Posfácio à Inflação Brasileira: A Inflação Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 4ª. edição, 1981, pp. 129-50 .

Em poucas palavras, embora não esteja explicitamente colocado, Rangel admite que a partir da conformação do setor financeiro, o preço da terra está diretamente vinculado ao comportamento do mercado de haveres não-bancários e, portanto, sujeito às especulações entre as alternativas de rentabilidade, ora apresentada pelo mercado de papéis mobiliários, ora pelo mercado fundiário.

1.2. Preço da terra e “reserva de valor”

Contrapondo-se à visão apontada antes, destaca-se a análise de Sayad. Para este autor a terra constitui, no Brasil, a “reserva de valor” por excelência, pois além de dispor dos requisitos de elasticidade de produção e de substituição praticamente nulos, tem a vantagem de sua aceitação generalizada pela “tradição rural” do país.

Sendo a terra “reserva de valor”, seu preço é determinado exclusivamente pela demanda, já que a oferta de novos terrenos e imóveis representaria uma parcela reduzida dos estoques existentes. Dada as características dos mercados de “reserva de valor” o preço da terra tenderia a se manter em constante elevação, porém as altas pronunciadas revelariam um aumento das expectativas de valorização do ativo “terra”, ou seja, respondem a um processo puramente especulativo.

Pela concepção de Sayad, a riqueza do setor privado está formada no Brasil pelos investimentos em capital produtivo e em terra. Assim “a demanda de capital produtivo crescerá a uma taxa menor no caso de investimentos especulativos em terras”8 8 SAYAD, J. - Preço da Terra ... , opus cit., p. 627. ; pressupondo que os investidores do setor privado comparem taxas de rentabilidade nos dois segmentos e decidam, segundo as expectativas coerentes, em qual deles investir suas “poupanças”.

Neste sentido, não há qualquer perspectiva dinâmica no comportamento do “modelo”, pois várias medidas de caráter conjuntural, como uma brusca mudança nas relações de troca entre agricultura e indústria ou um corte nos empréstimos hipotecários para a compra de imóveis urbanos podem alterar as expectativas quanto ao comportamento do preço da terra.

Para Sayad, o sistema financeiro deveria através da emissão de títulos mobiliários exercer a intermediação entre os “poupadores” e as unidades deficitárias no setor produtivo; entretanto questiona se o setor financeiro teria capacidade de concorrer com o mercado de terras na captação das “poupanças” do setor privado e conclui que isto só seria possível através da redução do retorno, liquidez e atratividade dos investimentos imobiliários, o que poderia ser atingido através da taxação dos ganhos de capital9 9 SAYAD, J. - Preço da Terra ... , opus cit., pp. 657-8. .

Concluindo, Sayad duvida da capacidade do sistema financeiro nacional em fazer frente aos reclamos do desenvolvimento econômico, entretanto restaria uma importante tarefa para os intermediários financeiros; qual seja: a modificação dos hábitos do setor privado, no sentido de inverter a preferência demonstrada pela terra como “reserva de valor”.

Resumindo as duas concepções é possível afirmar que:

  • a) Quanto ao preço da terra

  • - Para Rangel, o preço da terra é determinado pela oferta, que é função do progresso técnico na agricultura e na construção civil, exceto nos momentos de reversão cíclica onde a demanda especulativa por terras pode criar uma 4ª. renda, meramente especulativa.

  • - Para Sayad, o preço da terra é determinado pela demanda, já que ao constituir-se enquanto “reserva de valor” possui elasticidades de produção e substituição ínfimas. As elevações súbitas do preço da terra devem-se, portanto, à intensificação dos processos especulativos no mercado fundiário.

  • b) Quanto ao sistema financeiro

  • - Para Rangel, o sistema financeiro desempenha o papel de transferir recursos ociosos dos setores que se expandiram no auge do ciclo para os pontos de estrangulamento que se manifestam na economia. Nesse sentido, existe uma dupla dinâmica na intermediação financeira: uma intertemporal, isto é, entre a reversão e a retomada; e a outra intersetorial, dos setores com excesso de capacidade ociosa para os pontos de estrangulamento.

  • - Para Sayad, a intermediação financeira deve permitir, através da multiplicação das relações de crédito-débito a emissão de papéis financeiros capazes de captar as “poupanças” disponíveis no setor privado para a atividade produtiva, evitando que elas se esterilizem nos mercados de “reserva de valor”.

  • c) Quanto às relações entre o sistema financeiro e o preço da terra no Brasil

  • - Para Rangel existem dois momentos históricos distintos: primeiro antes da constituição do sistema financeiro pós-64, quando a 4ª. renda, isto é, aquela derivada de processos puramente especulativos ativa o mercado de títulos imobiliários e inibia a captação financeira dos capitais excedentários com o auge cíclico. O segundo refere-se ao momento posterior à constituição de um segmento financeiro, onde o preço da terra sofre alterações em função das oscilações do mercado.de valores mobiliários.

  • - Sayad é bastante cético quanto ao desempenho da intermediação financeira em uma economia onde a terra detém há muito a preferência como “reserva de valor”. A menos que se eleve a taxação dos ganhos especulativos com terras e outros bens capazes de servir como “reserva de valor”, o sistema financeiro literalmente vegetará à sombra do mercado fundiário.

O problema fundamental que se apresenta é o hiato que existe entre estas duas concepções, pois se de um lado Rangel explica por que a terra apresenta rentabilidade positiva durante o ciclo e devido a 4ª. renda inibe o desenvolvimento do sistema financeiro, apenas faz referência à possibilidade de coexistir um mercado fundiário com um mercado de títulos mobiliários. Neste caso, admite explicitamente que a 4ª. renda “é agudamente sensível às flutuações do mercado mobiliário de valores”, isto é, as expectativas de rentabilidade de toda a espécie de haveres não bancários disponíveis para a valorização de capitais excedentários.

Por outro lado, Sayad trabalha exatamente com estes dois mercados; isto é, o da terra como “reserva de valor” e o financeiro, que poderia transferir as “poupanças” das famílias e empresas superavitárias para o setor produtivo, e mostra a coexistência difícil entre uma escritura de compra e venda e os papéis financeiros na atual conjuntura brasileira. Sua principal conclusão é que os investidores só tenderão a modificar sua escala de preferência se forem alteradas as regras vigentes no segmento imobiliário, buscando reduzir o nível de juros elevados que vigora no mercado de terras e imóveis, o que só seria possível através da taxação dos ganhos de capital.

A hipótese que será desenvolvida neste trabalho procura. situar-se justamente no hiato entre estas duas concepções, hiato que está presente na análise do comportamento do preço da terra vis-à-vis a taxa de juro, que a nosso ver constitui a peça-chave para o entendimento da dinâmica atual do mercado fundiário no Brasil.

É evidente que a origem última da valorização do preço da terra é a renda fundiária, entretanto a capitalização da renda impõe uma transformação fundamental que permite a comparação dos rendimentos da propriedade da terra aos da propriedade do capital. Por outro lado, na medida em que não existe um mercado de títulos mobiliários, são as próprias variações do preço da terra que exprimem uma taxa de referência para a valorização do capital, o que é uma das consequências dos atributos de liquidez que possui, ou seja, cumpre o papel de moeda.

Entretanto a valorização do capital na órbita financeira é uma exigência do processo de concentração e centralização de capitais, e, embora o mercado fundiário sirva a este papel nas fases iniciais de desenvolvimento do capitalismo, é absolutamente insuficiente quando este atinge dimensões oligopólicas. Este problema se torna particularmente agudo à medida que a economia se torna cada vez mais internacionalizada e as grandes empresas transnacionais buscam formas financeiras para valorizar o capital investido em cada espaço nacional. Nesta circunstância a propriedade da terra constitui uma alternativa limitada e, em alguns casos, arriscada.

Neste sentido, existe, na análise das relações entre o mercado fundiário e a intermediação financeira, uma dimensão histórica subjacente que resulta da própria dinâmica do processo de desenvolvimento capitalista. É justamente este caminho que nos proporemos a seguir, tendo como base de periodização: as relações entre o preço da terra e a taxa de juro.

2. PREÇO DA TERRA, LEI DA USURA E INDUSTRIALIZAÇÃO

O período que se inicia após 1933 é caracterizado pelo desenvolvimento da atividade industrial, que no caso brasileiro pode ser dividido em duas fases distintas: um período em que a substituição de importações constitui a mola mestra que impulsiona a expansão industrial, que se estende até o pós-guerra imediato.

A segunda fase corresponde a uma forte aceleração do investimento na indústria de bens de capital e consumo durável que se estende entre 1956 e 1961 e é seguido por uma estagnação relativa até 1967.

2.1. Intermediação financeira e Lei da Usura

Embora nestes períodos o crescimento industrial demandasse suporte financeiro de distinta magnitude e qualidade, não houve qualquer alteração profunda na estrutura de financiamento entre 1933 e 1964; quando se desenvolveu e consolidou um sistema bancário voltado para o crédito de curto prazo, que supria capital de giro para as empresas; excetuando apenas a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), em 1952, com a proposta explícita de banco de investimento estatal.

O limite nos juros, imposto pela lei de usura, ao teto de 12% a.a. frente a taxas de inflação que em alguns momentos foram duas vezes maiores, esvaziava os bancos comerciais de depósitos a prazo e os raros títulos financeiros restringiam-se às apólices da dívida e ações e debêntures de algumas companhias.

Neste quadro, é possível explicar a valorização da terra pela simples presença de juros negativos, pois bastava que a terra pagasse uma renda positiva, por menor que fosse, para que seu preço se mantivesse em constante aceleração. Em uma economia com taxas crescentes de industrialização e uma demanda acelerada por alimentos podia esperar-se que a renda fundiária não fosse só positiva, como também se apresentasse crescente.

Mais do que isto, sem considerar a renda fundiária, o preço da terra também tenderia a se elevar, pois, sob expectativas inflacionárias e na ausência de qualquer título financeiro de rentabilidade positiva, seria esperado que os investidores buscassem a terra como “reserva de valor”, precavendo-se de perdas futuras em sua riqueza.

Assim não há como discordar de Rangel quando afirma que “o primeiro mercado de valores a se estruturar no Brasil, nos quadros do processo de industrialização, foi, precisamente, o mercado de papéis imobiliários”10 10 RANGEL, I. - A questão agrária ... , opus cit., p. 190. . A escritura de compra e venda tinha liquidez certa e valorização garantida diante da aceleração inflacionária, para confirmar isto basta observar a Tabela nesta página, que mostra a carteira de aplicações do sistema bancário no Brasil em 1955.

Este portfólio que pode ser considerado como típico da década de 50 não se refere ao imobilizado, nem a qualquer instrumento de dívida interbancária, trata-se efetivamente de uma carteira de investimentos, onde assumem preponderância maciça os títulos imobiliários.11 11 Os Bancos, embora não constituíssem o típico investidor em terras urbanas e rurais, servem como exemplo da importância do mercado de títulos fundiários nesta fase do capitalismo brasileiro.

2.2. Preço da terra e a industrialização pós-56

Poderia argumentar-se que o ano de 1955 é atípico, pois representaria o período imediatamente anterior à retomada do investimento em 1956 e, portanto, reflete um momento em que a preferência dos investidores estava integralmente voltada para a terra como alternativa de valorização de capital em um momento de baixa conjuntura. Mas isto não é verdade, já que considerando a retomada em 1956 e o rápido crescimento do produto que se segue seria de esperar que os investidores mudassem sua preferência em direção a outros ativos, mas isto não se deu, pelo contrário, a participação dos títulos imobiliários é crescente até 1959.

Tabela 1
Aplicações do sistema bancário* (saldo em 31/12/1955)
Tabela 2
Aplicações do sistema bancário* (saldo em 31/12 1956 a 1960)

É flagrante que mesmo com a aceleração cíclica, a escala de preferência dos investidores não tenha sofrido qualquer alteração significativa, e, ao contrário do que poderia ser esperado, as terras e os imóveis aumentam sua participação relativa no portfólio dos aplicadores. O que na verdade vai ocorrer é que se mantém praticamente constante o volume real de aplicações “financeiras” do sistema bancário, apenas declinando a partir de 1958 (Tabela 3).

Tabela 3
Total de aplicações financeiras do sistema bancário* (em milhões de cruzeiros de 1975)

O simples fato de que se manteve constante, ou declinante, o volume real de aplicações financeiras do sistema bancário durante todo o ascenso cíclico parece confirmar a hipótese de que o investimento produtivo constituía o principal atrativo para investidores, e os bancos somente atualizavam suas carteiras de títulos de acordo com a evolução dos preços nominais.

Por outro lado, o comportamento do preço da terra assume um papel fundamental nesta fase. Tendo como indicador o preço dos terrenos no município de São Paulo é possível constatar que atingiu um ápice no momento em que se inicia a intensificação dos investimentos em 1956, a partir daí é francamente declinante durante todo o ciclo expansivo, o que é consistente com as hipóteses teóricas discutidas anteriormente.

A Tabela 4 é bastante ilustrativa, principalmente pelo acentuado declínio do preço da terra entre 1956 e 1957 (-26,39%) que pode ser atribuído ao momento efetivo da aceleração do investimento produtivo; por outro lado, em 1959, quando se acentua a aceleração inflacionária, a terra apresenta um pico de valorização positiva em seu preço.

Tabela 4
Média dos preços dos terrenos no município de são paulo 1955/60 - Cr$/m2*

Cruzando as observações sobre o preço da terra em São Paulo com a distribuição dos investimentos bancários (Tabela 2), observa-se que os aplicadores eram bastante sensíveis a qualquer variação no preço da terra; pois, com ligeira defasagem temporal, a percentagem de imóveis no portfólio dos bancos acompanha sua variação de preço e, de um modo geral, é possível estender este comportamento a todos os detentores de recursos excedentários, que buscassem valorizá-los sem investir diretamente nas atividades produtivas (Gráfico 1).

Gráfico 1

2.3. A Conjuntura 1962/64

Após a expansão que marca o final da década dos 50, a economia brasileira apresenta sinais claros de sobre acumulação. A taxa de crescimento do produto real que havia atingido 10,3% em 1961, cai para 5,3% em 1962 e para 1,5% no ano seguinte; demonstrando que a partir de 1962 aprofunda-se a reversão do ciclo.

Neste quadro, o comportamento esperado do preço da terra deveria ser uma tendência à alta, pois os investidores passariam a buscar imobilizar recursos em terrenos e imóveis, seja porque a renda não estaria caindo tão rápido como o lucro (hipótese de Rangel), seja porque a terra constituiria “reserva de valor” (hipótese de Sayad). Entretanto, o preço da terra não se elevou, pelo menos de acordo com o indicador para o município de São Paulo, ao contrário, revelou-se em baixa até 1964.

Considerando a possibilidade de que algum viés distorcesse os dados, foi calculado, a título de ilustração, o valor médio das transmissões de compra e venda nos três principais mercados imobiliários urbanos do Brasil, já que não são disponíveis séries estatísticas sobre o preço da terra agrícola no período. Este dado apresenta uma certa defasagem temporal, que manifesta o lapso entre o ato da compra e venda e o seu registro em cartório, entretanto seu comportamento em todo o período confirma a tendência anterior. (Tabela 6).

Tabela 5
Média dos preços dos terrenos do município de são paulo 1960/1965 - Cr$/m2*
Tabela 6
valor médio das transcrições de transmissão de imóveis por compra e venda - São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre 1960 - 1967

Quais os motivos que explicariam tal tendência à queda nos preços reais dos terrenos e imóveis urbanos entre 1962 e 1964? Por que a redução do nível do investimento produtivo não provocou uma “corrida” ao mercado de terras, elevando especulativamente seu preço?

Uma resposta provém da vigência da Lei do Inquilinato que praticamente congelava os aluguéis imobiliários desde 1950; restringindo a compra de imóveis para alugar. Entretanto, este mecanismo tem um duplo efeito, pois se de um lado reduzia os investimentos em novas construções, de outro elevaria o preço especulativo das já existentes, ou utilizando as palavras de Sayad, o preço da terra enquanto “reserva de valor” que determina o custo de construção, e não o contrário.

Por outro lado, em junho de 1963 foi aprovada uma nova lei12 12 CÂMARA DE DEPUTADOS=Inquilinato. (Lei n° 4.240 de 28-6-1963.) Brasília, 1964. que, embora mantendo o texto básico do diploma legal de 1950, permitiu o reajustamento dos aluguéis a índices que variavam entre 10% e 200%.

É extremamente curioso observar os indicadores de área licenciada para construção na cidade do Rio de Janeiro, um mercado imobiliário fortemente especulativo, para notar que as licenças para construir atingem seu nível mais baixo após a revogação da Lei do Inquilinato e instituição da correção monetária nos aluguéis pelo regime autoritário pós-64. Por outro lado, o custo da construção imobiliária, que reflete mais o preço dos estoques, tem um comportamento contrário, mostrando que com a redução na oferta de novos imóveis observa-se uma elevação nos preços dos estoques já existentes.

Tabela 7
Indices de área licenciada para construção e de custos da construção civil base: 1965/67 - 100

Outro aspecto que pode ser considerado para explicar esta queda no preço da terra está na especial conjuntura política que marca os anos 62/64, onde no quadro de reformas propostas destaca-se uma profunda modificação da estrutura fundiária. É difícil avaliar qual a influência que exerceria um programa de reforma agrária e urbana redistributiva sobre os investimentos tradicionais no mercado de terra, entretanto não seria anacrônico supor que, pela lógica do investidor, as margens de risco da imobilização em terras se apresentassem crescentes durante todo o período.

Entretanto, mesmo considerando todos estes fatores, a crise do mercado fundiário, no início da década de 1960, é uma crise financeira. A acumulação de capitais e a oligopolização crescente que resultam do ciclo expansivo 56/61 geraram necessidades de valorização financeira que não podiam ser integralmente satisfeitas nos estreitos limites do mercado fundiário. Neste sentido, era uma imposição que se desenvolvesse uma estrutura de valorização adequada aos novos marcos do capitalismo brasileiro.

3. A REFORMA FINANCEIRA E O PREÇO DA TERRA

A expansão dos investimentos entre 1956/61 colocou sérios problemas financeiros que foram parcialmente resolvidos de forma inflacionária, entretanto já estava presente a necessidade de desenvolver um sistema financeiro capaz de multiplicar as relações débito/crédito através da emissão de títulos de dívida privada. É assim que desde 1958 começa a assumir importância no cenário financeiro as letras de câmbio.

As letras de câmbio emitidas pelas companhias de crédito e financiamento constituíram o primeiro título de dívida privada a circular efetivamente no mercado financeiro nacional. Sua origem está ligada às necessidades de crédito a médio prazo das empresas, que não eram satisfeitas pelo sistema bancário; seu sucesso no período devia-se ao deságio com que era colocada junto aos investidores nas principais bolsas de valores do País.

O deságio nas letras de câmbio conseguia romper com os limites impostos pela lei da usura, pois as letras eram negociadas não por seu valor nominal, mas, sim, por um preço de mercado inferior que trazia embutido uma certa previsão acerca do comportamento futuro da taxa de inflação.

O volume de letras de câmbio lançado no mercado entre 1958 e 1964 é difícil de ser avaliado, pois o deságio permitiu o ativo desenvolvimento de um mercado de títulos não-oficializado, isto é, fora do controle das autoridades monetárias, o conhecido “mercado paralelo” cujo volume de transações pode ter atingido cerca de oito a dez vezes o total movimentado de forma oficial pelas financeiras13 13 Ver EPEA-MINIPLAN: Situação Monetária, Creditícia e do Mercado de Capitais. Diagnóstico Preliminar, Brasília, rnaio/1966, p. 136. .

Entretanto, a despeito do marcado paralelo as aplicações em letras de câmbio vinham se apresentando crescentes desce 1960, sendo que em 1964 o volume total negociado no mercado oficial supera os depósitos a prazo nos bancos comerciais e os títulos da dívida pública, as tradicionais aplicações do mercado financeiro nacional (Tabela 8).

Tabela 8
Evolução de alguns ativos financeiros no Brasil em milhões de cruzeiros em 1975

Mesmo considerando que a percentagem dos ativos financeiros não monetários fosse irrelevante quando considerada em relação à moeda em circulação e aos depósitos a vista (M1), é importante ressaltar o crescimento real das letras de câmbio enquanto título mobiliário no início da década de 1960.

Outro indício de que os investidores estariam buscando diversificar suas aplicações no momento da reversão cíclica pode ser buscado no “boom” das bolsas de valores em 1962, quando as ações de companhia selecionadas, as “blue-chips” nacionais apresentaram rentabilidade positiva e foram objeto de intensa procura pelos detentores de recursos excedentários14 14 LEVY, Maria B. - História da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, IBMEC, 1977, p. 606. .

Estes fatores combinados com os lançamentos de Letras do Tesouro, como parte dos programas de estabilização de Quadros em 61 e de Goulart em 63, fizeram com que a estrutura de aplicações financeiras dos bancos desse sinais de que estava se alterando, com um significativo crescimento dos títulos mobiliários15 15 Em 1961 e 1963 a maior parcela dos Títulos de Dívida Pública em poder dos bancos eram Letras do Tesouro Nacional, de resgate a curto prazo. - (Tabela 9).

Tabela 9
Aplicações financeiras do sistema bancário 1961 a 1967*

3.1. O golpe de 1964 e a Instituição da correção monetária

O período entre 1964 e 1967 é marcado por sensíveis transformações no sistema financeiro e no mercado fundiário. Imediatamente após o movimento golpista em março de 1964 são promulgados uma série de leis e decretos-leis16 16 Ver CHANCEL, J. et alii. - Correção Monetária, Rio de Janeiro, APEC, 1974, pp. 109-117. que instituem a correção monetária, tanto no mercado de títulos mobiliários com a criação das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN) (Lei n. 4.357 de julho de 1964) títulos da dívida pública, que além da correção rendiam juros de 6 a 8% a.a. e com um prazo de resgate não inferior a três anos. Da mesma maneira no setor imobiliário urbano, com a aplicação da correção monetária aos contratos de compra e venda de residências com menos de 180 dias de “habite-se” (Lei 4.380, de agosto de 64), e aos aluguéis imobiliários urbanos.

Estas medidas foram acompanhadas pela criação do Banco Nacional de Habitação e das Sociedades de Crédito Imobiliário, com direito a emissão das letras imobiliárias expressas nominalmente em Unidade Padrão de Capital do BNH, reajustáveis de acordo com as variações do salário-mínimo, isto é, corrigidas em termos monetários e juros máximos de 8% a.a. e com prazo de resgate não inferior a dois anos.

Na “imaginação reformista” estava manifesta a ideia de que seria necessário remunerar com juros positivos ao possuidor de recursos excedentários, para que este viesse a orientar suas “poupanças” para aplicações com garantia do Estado e com prazo de maturação relativamente longo.

Em 1965, com a lei do mercado de capitais (Lei n. 4.278 de julho de 1965), a correção monetária foi estendida a uma longa série de títulos mobiliários como letras de câmbio, debêntures e depósitos a prazo, reduzindo o prazo das aplicações com correção monetária para um período não inferior a um ano.

Entretanto, apesar dos esforços das autoridades monetárias em generalizar a correção monetária pós-fixada para a maioria dos títulos mobiliários, isto não foi alcançado, pois as letras de câmbio e os depósitos a prazo nos bancos comerciais permaneceram utilizando o deságio, uma taxa de desconto preestabelecida de acordo com as expectativas de inflação.

Deste modo, no mercado financeiro brasileiro coexistiam dois segmentos distintos: um deles fundado na emissão de ORTNs e nas operações do BNH que trabalha com correção monetária pós-fixada mais juros e um segmento que opera com correção monetária prefixada, através do deságio17 17 SILVA, A. M. - Intermediação Financeira no Brasil. São Paulo, FIPE, 1980, p. 31 e seguintes. .

Por outro lado, o Sistema Financeiro da Habitação, operando com fundos provenientes das letras imobiliárias, não se revelou um grande estimulador da indústria da construção civil nos dois primeiros anos de sua fundação. A partir de 1966 com a criação de um fundo compulsório sobre salários (FGTS) sob gestão do BNH e com a introdução em 1967 das Cadernetas de Poupança, como instrumento de captação de recursos para o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), remunerando o depositante com juros anuais de 6% além da correção monetária; o SFH passa a dispor de um volume de recursos capaz de acelerar o crescimento da construção civil no Brasil.

Pode-se juntar a estas modificações no SFH, a introdução em 1966 das cédulas hipotecárias, peça chave para a criação do promotor imobiliário urbano, pois, com suporte do BNH, foi instituído um mercado secundário de hipotecas, já que o BNH recompra estas cédulas como o sistema bancário redesconta uma duplicata.

Deste modo, às vésperas da expansão do “milagre”, o SFH já havia desenvolvido as linhas mestras de seu sistema operacional e os resultados de sua ação estiveram manifestos na extraordinária expansão do setor de construção civil entre 1968 e 1972, que praticamente dobrou a área licenciada para construção nas principais capitais brasileiras.

3.2. O BNH e o preço da terra urbana

O Sistema Financeiro de Habitação articula de forma explícita os instrumentos de captação com os empréstimos, ou seja, ao atuar no mercado imobiliário, o BNH e o SBPE captam recursos de forma compulsória (FGTS) ou voluntária (através das Cadernetas de Poupança e Letras Imobiliárias) que são remuneradas com juros (5 a 8% a.a.) mais correção monetária e os aplica na compra e venda ou financiamento da construção de habitações, onde vigoram da mesma maneira contratos com correção monetária (UPC), mais juros de até 10% a.a., com prazos que podem atingir até vinte e cinco anos para casas populares.

Para evitar qualquer interrupção no fluxo captação/empréstimo o SFH desenvolveu um complexo sistema de seguros, que distribui o custo da inadimplência sobre o conjunto dos mutuários, bem como fundos financeiros específicos para evitar possíveis variações na relação depósitos/empréstimos. Este sistema de seguros é uma das peças-chaves para a manutenção do sistema financeiro relativamente estanque às flutuações da economia.

A atuação do Sistema Financeiro de Habitação tem sido objeto de diversas críticas; cabe, entretanto, questionar quais seus efeitos sobre o preço da terra e dos imóveis urbanos no Brasil? Pela observação da Tabela 10 é fácil constatar que a partir de 1966 o preço dos terrenos urbanos é crescente e sempre sua valorização esteve acima da inflação, apenas em 1978 é que o mercado imobiliário deu sinais de que estaria invertendo a tendência anterior.

Tabela 10
Média dos preços dos terrenos do município de São Paulo 1966/1978

O SFH atua com uma garantia fundamental: o imóvel financiado, ou seja, desenvolveu-se uma estrutura de hipotecas em que o total da dívida do mutuário com o agente financeiro está lastreada no imóvel-objeto do financiamento, e como as dívidas são corrigidas anualmente de acordo com as variações na taxa de inflação e sobre o total corrigido ainda incidem juros; é fundamental para a liquidez do SFH que a valorização dos imóveis acompanhe as dívidas contraídas pelos mutuários, caso contrário a inadimplência é um prêmio para o tomador do empréstimo que veria sua dívida crescer muito mais rapidamente do que o bem que lhe dá garantia.

Devido a isto não é de estranhar que os investimentos do sistema de poupança e empréstimo, que são resultantes da captação voluntária tenham operado com habitações de padrão médio para alto, pois é justamente nesta faixa que a valorização dos imóveis é mais intensa.

Assim, no auge do “milagre”, isto é, em 1972, das 121.000 unidades habitacionais financiadas pelo SFH, 67.000 estavam na faixa de média e alta renda com empréstimos do SBPE, enquanto apenas 39.000 habitações situavam-se na área de interesse social e os restantes 15.000 são do programa de financiamento à aquisição de material de construção (RECON), isto é, uma linha de crédito destinada principalmente às empresas construtoras.

Por outro lado, há fortes evidências de que o Sistema Financeiro da Habitação exerce influência decisiva sobre o comportamento da terra urbana; para avaliar esta influência considerou-se, como indicador do desempenho do SFH, o valor médio das operações de financiamento à habitação do SBPE no período entre 1968 e 1978, estes financiamentos atingem o segmento mais especulativo do mercado imobiliário, isto é, as habitações de médio e alto padrão.

Observa-se que durante os anos do “milagre” o valor médio dos financiamentos foi ascendente, atingindo um pico em 1974, quando o mercado imobiliário estava bastante aquecido; a partir daí há uma queda brusca que reduz o valor real dos financiamentos à metade, marcando um brusco corte na atividade imobiliária urbana. Os efeitos destas medidas são percebwdos de modo intenso, porém defasado pelo mercado imobiliário, que em 1978 apresenta sinais de retração.

O Gráfico 2, a seguir, ilustra melhor este comportamento, e embora as informações sejam insatisfatórias, algumas evidências tendem a demonstrar que a atuação do BNH e seus agentes financeiros influenciam diretamente o mercado imobiliário urbano através de um conjunto de medidas de política econômica internas ao SFH.

Gráfico 2

Dentre estas decisões de política interna merece especial destaque a resolução da diretoria do BNH n. 01/76, que institui a compra antecipada de terras destinadas a construção de núcleos habitacionais, ou seja, esboçou-se a criação de um “banco de terras” que desde a sua instituição até 1980 já financiou a aquisição de mais de 126,4 milhões de m2 nas principais cidades brasileiras, o equivalente a 1/10 da área do município de São Paulo. Os efeitos da compra antecipada ainda são de difícil avaliação, entretanto, a afirmação deste mecanismo, sob o aval do BNH, lança as bases institucionais de um “mercado futuro” no setor imobiliário, cujo resultado sob o preço da terra urbana é hoje uma incógnita.

Tabela 11
Valor médio dos financiamentos do SBPE 1968/1978
Tabela 12
Número índices valor médio dos financiamentos do SBPE e preço dos terrenos no município de São Paulo (base 1968=100)

3.3. Preço da terra e taxa de juro no ciclo recente

O desenvolvimento de um ativo mercado de haveres não-bancários, como resultado das alterações introduzidas pela reforma financeira, inevitavelmente produziu modificações no comportamento do preço da terra no Brasil.

A simples existência de rentabilidade positiva no mercado de títulos mobiliários já permite supor que a capitalização da renda fundiária passe a refletir parcialmente as flutuações das taxas de juro.

Para testar esta hipótese calculou-se a rentabilidade nominal do preço da terra agrícola vis-à-vis aquela apresentada pelas letras de câmbio das financeiras e pela UPC do BNH. A Tabela 13, a seguir, mostra estas rentabilidades.

Tabela 13
Valorização do preço da terra e de alguns títulos financeiros % a.a.

A utilização do preço da terra agrícola como indicador pressupõe algumas considerações: primeiro pelo seu comportamento distinto do seu equivalente urbano, isto porque o mercado de títulos fundiários agrícolas não possui a mesma estrutura formal daquele existente nas cidades brasileiras, segundo porque através dos mecanismos de crédito subsidiado, o governo interferiu diretamente no comportamento especulativo da terra rural, principalmente entre 1970 e 1979. No entanto, a despeito destas limitações apontadas, a disponibilidade de dados seriados sobre o preço da terra agrícola constitui um elemento importante a ser considerado na análise do comportamento do mercado fundiário no Brasil.

É evidente que estas rentabilidades são apenas estimativas grosseiras que dão uma indicação das tendências apresentadas por um título financeiro de correção prefixada (letras de câmbio), outro de correção monetária pós-fixada (UPC) e por final o preço da terra agrícola. Tendo estas ressalvas em mente, pode-se notar que o preço da terra começa a se elevar em 1968, quando se inicia o «milagre» e as taxas de juro das letras de câmbio e a rentabilidade da UPC são constantes ou ligeiramente declinantes.

A partir de 1971, quando se inicia o esgotamento do ciclo expansivo, as taxas de juros começam a declinar, e o preço da terra agrícola dispara movido não só pelo aumento da renda capitalizada, mas também por processos especulativos que inevitavelmente acompanharam esta súbita elevação, entretanto, a partir de 1973, quando voltam a se elevar as taxas de juro, a rentabilidade anual da terra é declinante.

O Gráfico 3 ilustra este movimento no ciclo recente, e demonstra como o preço da terra foi sensível às variações na taxa de juros.

Gráfico 3

A conclusão que se pode retirar desta análise é de que, a partir do desenvolvimento de um sistema financeiro capaz de valorizar de modo fictício as massas de capital, o preço da terra agrícola reflete de modo inverso às variações da taxa de juro o que inevitavelmente permite que se especule em dois mercados distintos: o de títulos mobiliários e o fundiário.

O período posterior a 1976 vai mostrar uma sucessão de surtos especulativos, ora no mercado de títulos mobiliários, entre 1977 e 78, ora no mercado fundiário, entre 1979 e 80, o que tende a comprovar que a economia brasileiro desenvolveu dois segmentos relativamente independentes, porém interligados que permitem a “migração” de capitais em busca de valorização fictícia.

Tabela 14
Letras de câmbio taxa de juro para o tomador de letras de câmbio de 360 dias
Tabela 15
Unidade padrão de capital (UPC)

Entretanto, à medida que se aprofunda o processo recessivo, vai-se mostrando flagrante que a crise se estende tanto no mercado fundiário, como no financeiro, já que a liquidez de ambos é antes de tudo financeira e dependem diretamente dos instrumentos de política econômica do Estado, seja através do Sistema Financeiro da Habitação, seja através do controle da Dívida Pública.

Tabela 16
Brasil preço de vendas de terras agrícolas médias anuais - Cr$/ha

No entanto, o leque de manobras está cada vez mais estreito, pois, através de expedientes conjunturais, as autoridades governamentais vêm sucessivamente contribuindo para amarrar o mercado fundiário ao financeiro. Dentre estas medidas pode-se destacar a colocação quase compulsória de ORTNs junto ao BNH, o que praticamente significa transferir recursos do SFH para o Tesouro Nacional ou a autorização do Conselho Monetário Nacional para a Caixa Econômica Federal emitir Letras Imobiliárias para subsidiar às exportações.

Neste quadro, uma crise mais séria de liquidez em qualquer um destes dois mercados pode-se propagar como uma avalanche, que dificilmente os malabarismos da atual política econômica conseguirão conter.

POST SCRIPTUM

Este artigo foi escrito em fevereiro de 1982; os acontecimentos posteriores têm mostrado o nó górdio em que se encontra o Sistema Financeiro da Habitação, premido por altas taxas nominais de captação e elevada liquidez das cadernetas de poupança, por um lado, e por um desaquecimento do mercado imobiliário e uma crescente inadimplência dos mutuários de outro.

Hoje a caderneta de poupança apenas substitui o título imobiliário, enquanto reserva de valor e fonte de renda. A propriedade da terra transformou-se na posse de um papel cujo lastro último é a dívida imobiliária de milhares de mutuários no Brasil; é a tentativa -de completa volatização financeira do ativo fundiário. Entretanto, a busca de soluções “inovadoras” e a quebra generalizada das sociedades de crédito imobiliário constituem a demonstração cabal de que somente uma profunda reforma na estrutura do SFH será capaz de superar a crise em que se debate a espinha dorsal da política habitacional e urbana do governo.

O ponto de partida desta reforma deve estar, conforme apontado anteriormente, em medidas que possam desconectar o setor imobiliário do mercado financeiro, transformando a questão da habitação em prioridade social e não em instrumento de valorização especulativa de capitais.

  • 1
    Ver RANGEL, I. Questão Agrária e Agricultura. Encontros com a Civilização Brasileira, n. 7, janeiro, 1975 - como, também, Síndrome da Recessão Brasileira. Encontros com a Civilização Brasileira n. 16, outubro/1979.
  • 2
    SAYAD, J. - Preço da Terra e Mercados Financeiros. Pesquisa e Planejamento Econômico. Vol. 7, n. 3 e Especulação Financeira, Crédito subsidiado e preço da terra. Reforma Agrária, Ano X, n° 04 e 05, 1980.
  • 3
    Ver RANGEL, I. - Questão Agrária ... opus cit. p. 190.
  • 4
    Ver RANGEL, I. - Síndrome da Recessão Brasileira. Opus cit., pp. 46-7.
  • 5
    RESENDE, Gervásio C. - Crédito Rural subsidiado e preço da terra no Brasil. Brasília, IPEAINPES, outubro 1981, mimeo, p. 49.
  • 6
    PINHEIRO, F. A. - A renda e o preço da terra, uma contribuição à análise da questão agrária brasileira. Tese de Livre-docência apresentada a E.S.A. “Luiz de Queiroz”, Piracicaba, setembro 1980, pp. xii e xiii.
  • 7
    RANGEL, I. - Posfácio à Inflação Brasileira: A Inflação Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 4ª. edição, 1981, pp. 129-50
  • 8
    SAYAD, J. - Preço da Terra ... , opus cit., p. 627.
  • 9
    SAYAD, J. - Preço da Terra ... , opus cit., pp. 657-8.
  • 10
    RANGEL, I. - A questão agrária ... , opus cit., p. 190.
  • 11
    Os Bancos, embora não constituíssem o típico investidor em terras urbanas e rurais, servem como exemplo da importância do mercado de títulos fundiários nesta fase do capitalismo brasileiro.
  • 12
    CÂMARA DE DEPUTADOS=Inquilinato. (Lei n° 4.240 de 28-6-1963.) Brasília, 1964.
  • 13
    Ver EPEA-MINIPLAN: Situação Monetária, Creditícia e do Mercado de Capitais. Diagnóstico Preliminar, Brasília, rnaio/1966, p. 136.
  • 14
    LEVY, Maria B. - História da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, IBMEC, 1977, p. 606.
  • 15
    Em 1961 e 1963 a maior parcela dos Títulos de Dívida Pública em poder dos bancos eram Letras do Tesouro Nacional, de resgate a curto prazo.
  • 16
    Ver CHANCEL, J. et alii. - Correção Monetária, Rio de Janeiro, APEC, 1974, pp. 109-117.
  • 17
    SILVA, A. M. - Intermediação Financeira no Brasil. São Paulo, FIPE, 1980, p. 31 e seguintes.
  • JEL Classification: Q15; G12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1985
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