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O proletariado como produtor e como produto* * Agradeço a Rita Delgado suas críticas e sugestões feitas após leitura da primeira versão deste artigo.

The proletariat as producer and as product

RESUMO

O autor critica as teses segundo as quais a força de trabalho é produzida fora do processo de produção capitalista. No modelo que ele propõe, os salários-família cobrem tanto a produção de bens e serviços quanto a produção de força de trabalho. O proletariado considerado como insumo produz mais-valia e considerado como produto incorpora a mais-valia. O autor analisa a relação entre a força de trabalho como produto e como insumo. Ele também pretende mostrar que o papel do mercado no capitalismo é menor, e o papel do Estado é o central. Ao mudar de produto para insumo, a força de trabalho é desvalorizada pelo processo da mais-valia relativa. Por fim, analisa algumas implicações desse modelo no que diz respeito às lutas sociais.

PALAVRAS-CHAVE:
Força de trabalho; teoria do valor; marxismo

ABSTRACT

The author criticizes the theses according to which the labour force is produced outside the capitalist production process. In the model he proposes the family wages cover both the production of goods and services and the production of labour force. The proletariat considered as input produces surplus value and considered as output embodies surplus value. The author analyses the relationship between the labour force as output and as input. He also intends to show that the market role in capitalism is minor, and the state role is the central one. In changing from output to input the labour force is devalued by the process of the relative surplus value. At last, he analyses some implications of this model as far as social struggles are concerned.

KEYWORDS:
Labor force; value theory; Marxism

Considero que no modo de produção capitalista se articulam desde início três classes. As classes capitalistas são a burguesia e os gestores, definindo a burguesia como a classe dos proprietários particulares do capital e os gestores como a classe dos proprietários coletivos do capital. A classe explorada é o proletariado. Embora em vários casos empregando outras denominações, são muitos os autores que admitem a existência de uma classe gestorial.1 1 O problema da existência da classe dos gestores está intimamente ligado à definição do capitalismo de Estado. A crítica da sociedade soviética enquanto capitalismo de Estado possibilitou seu confronto teórico com as formas de capitalismo vigentes nos outros países, produzindo-se assim novos modelos de análise em que se atribui aos gestores um papel histórico decisivo enquanto classe exploradora, pois constituem um elemento comum aos vários sistemas capitalistas. De início, foi sobretudo entre as correntes marxistas, ou de inspiração marxista, opostas ao leninismo que essas teses se desenvolveram. Posteriormente, com inspiração teórica e objetivos políticos opostos, algumas correntes conservadoras abordaram também essa problemática. Uma etapa crucial iniciou-se com a assinatura, em 1939, do Pacto Germano-Soviético. A aliança entre as classes dirigentes da URSS e da Alemanha nazi desencadeou uma série de cisões no movimento trotskista, cuja doutrina oficial afirma o caráter socialista da economia da URSS e que apoiava a posição dos seus governantes na guerra mundial; estes cisionistas baseavam-se nas teses que consideravam a URSS como um capitalismo de Estado e a classe então dominante como uma classe gestorial. As transformações operadas pela Segunda Guerra Mundial e pela Guerra Fria levaram vários desses ex-trotskistas, dos quais James Burnham é o mais conhecido, a defender orientações políticas conservadoras. Veicularam-se assim influências teóricas reciprocas entre as correntes de esquerda e de direita que se propunham a analisar o capitalismo de Estado e a classe dos gestores, e essa situação manteve-se até hoje. Uma bibliografia detalhada dessa problemática no período mais decisivo do seu desenvolvimento é-nos fornecida por MOREL, Henri E .. “As discussões sobre a natureza dos países do Leste (até a II Guerra Mundial). Nota Bibliográfica”. in NEVES. Artur J. Castro (org.). A natureza da URSS (antologia). Porto, Afrontamento, 1977. pp. 227-252. Alguns, porém, encaram-na numa perspectiva supra histórica, analisando sistemas normais de organização, ditos burocráticos, e não uma classe social específica do capitalismo. Para outros autores, a classe gestorial fundamentaria uma forma de organização capitalista radicalmente distinta da que prevalecera no período de hegemonia da classe burguesa, ou sustentaria até um modo de produção novo, ultrapassando os quadros do capitalismo. A minha posição é diferente de qualquer dessas. Considero os gestores como uma classe especificamente capitalista e tenho pretendido mostrar como os mecanismos do capitalismo de Estado sustentados pela classe gestorial permitem repensar o modo de funcionamento das épocas anteriores do capitalismo.

É a tentativa de analisar todas as formas históricas de existência do capital, à luz da experiência das formas totalizantes do capitalismo contemporâneo, que inspira o presente artigo. Procuro aqui propor um modelo que explique a produção e a reprodução do proletariado, mediante a completa integração de toda a vida social dos trabalhadores nos mecanismos da produção de mais-valia. O proletariado enquanto produtor, quer no sentido mais restrito de fabricante de bens, quer na acepção ampla de produtor do próprio movimento histórico, é um tema referido na teoria marxista com muita frequência. Menos analisado é o problema do proletariado enquanto produto.

1. A tese clássica considera que os proletários são produzidos num processo exterior à produção capitalista e decorrente no âmbito de cada unidade familiar isoladamente considerada.2 2 Na maior parte dos casos, esta tese é afirmada apenas implicitamente, à medida que a produção do proletariado não é inserida no âmbito da produção da mais-valia nem, por conseguinte, abarcada pela lei do valor, ficando assim excluída do processo central que define o capitalismo. É esta a concepção que prevalece na obra de Marx e é significativo considerar que, quando ele se refere à produção da classe operária, atribui-a geralmente à expansão do capitalismo sobre áreas sociais que até então se lhe mantinham exteriores, não considerando o problema da produção de proletários no interior do capitalismo. Numa passagem da sua obra máxima, a propósito da reprodução da força de trabalho, Marx parece apontar noutro sentido, sublinhando a íntima relação estrutural entre capitalistas e proletários, considerados como classes globais; ao mesmo tempo, porém, não deixa de afirmar que a produção e reprodução da força de trabalho ocorrem na esfera privada de cada trabalhador: cf. MARX, Karl. Le capital. Paris, Editions Sociales, 1973. Livro I, v. 3, cap. 23, p. 14-20. Em 1884, no prefácio à primeira edição de um dos seus livros, Engels parecia inclinar-se no sentido de incluir a análise do processo de reprodução dos trabalhadores no interior da produção econômica global, mas sem empregar, porém, esta orientação no estudo da sociedade capitalista. É curioso considerar que, mesmo assim, um ortodoxo editor francês se apressou em nota a restabelecer a tese clássica: cf. ENGELS, Friedrich. L’orgine de la familie, de la propriété privée et de l’Etat. Paris, Éditions Sociales, 1972, pp. 17-18 e 18 n. 1. Em suma, apesar de uma ou outra intuição em sentido diferente, é a tese clássica que vigora nas análises de Marx e de Engels, como tem daí em diante presidido às da generalidade dos seus continuadores. Uma recente defesa da tese clássica. com abundantes referências polêmicas a outras formulações dessa mesma tese, encontra-se em: LINDSEY, J.K. The work that must be done; social practice and society. Faculté de Droit, Université de Liêge, em especial no cap. 6. (Manuscrito ainda não publicado.) Tratar-se-ia então do único caso a que seria possível aplicar o modelo da “produção mercantil simples”, que em meu entender não possui nenhuma outra validade, nem como instrumento de análise histórica, nem como elemento da gênese do capitalismo.

Nas sociedades contemporâneas articular-se-iam, segundo essa tese, em dois processos:

Num deles o proletário vende ao capitalista a utilização da sua força de trabalho por um prazo determinado, apropriando-se o capitalista dos frutos do valor de uso dessa força de trabalho. Como o valor de uso da força de trabalho consiste na possibilidade de incorporar nos produtos, no ato de fabrico, um tempo de trabalho superior ao incorporado na própria força de trabalho e, como é o tempo de trabalho incorporado o fundamento do valor dos produtos, resulta daqui que, no processo de trabalho, o proletário cria um excedente de valor igual à diferença entre o tempo de trabalho que incorpora nos produtos e o tempo de trabalho incorporado na sua força de trabalho. É esse o mecanismo da mais-valia. Nesse processo transfere-se do proletário para o capitalista essa mais-valia, de que é suporte material o produto fabricado.

Num segundo processo transferem-se do capitalista para o proletário as subsistências fabricadas no primeiro processo, em troca da transferência do proletário para o capitalista do montante do salário que, no primeiro processo, constituíra o preço do uso da força de trabalho. Esses bens de subsistência iriam então ser consumidos no âmbito de cada unidade familiar, o que seria, relativamente ao capitalismo, uma esfera inteiramente privada. Aí, exteriormente ao capital, o proletariado organizaria, ele próprio, a reprodução da sua força de trabalho e a procriação dos futuros trabalhadores. Consumidas as subsistências e reconstituída a força de trabalho, o proletário pode de novo vendê-la no primeiro processo, inaugurando-se novo ciclo.

Segundo a tese clássica os dois processos articular-se-iam da maneira seguinte:

Os capitalistas funcionariam, relativamente ao proletariado, como um monopsônio no assalariamento de força de trabalho e como um monopólio na venda dos bens de subsistência exigidos pela produção e pela reprodução da força de trabalho. O proletariado constituir-se-ia, relativamente aos capitalistas, como um monopólio na venda de força de trabalho. Essa articulação é desprovida de simetria, pois a aquisição dos bens produzidos no primeiro processo não obedece ao modelo do monopsônio; enquanto adquiridores desses bens, além dos proletários, contam-se os capitalistas, quer como consumidores (adquiridores do output do setor IIb), quer como organizadores do processo produtivo (adquiridores do output do setor 1). Desse modo, os adquiridores de produtos repartem-se socialmente e são insuscetíveis de se organizarem num monopsônio. Nessa articulação, o processo de produção da mais-valia, que é o próprio fulcro da sociedade capitalista, circunscreveria o processo de produção e reprodução da força de trabalho, mas sem o invadir nem lhe alterar o seu caráter de produção mercantil simples. Por outras palavras, dominá-lo-ia sem o assimilar. Seria o caráter simultaneamente monopsonista e monopolista das classes capitalistas que lhes garantiria a hegemonia.

Essa tese clássica é suficientemente ampla para poder sustentar interpretações políticas diferentes, ou até opostas. Nomeadamente, uma perspectiva anticapitalista, como é aquela que sigo, pode adotar essa tese. Os sindicatos seriam então a organização onde se articulariam as classes capitalistas enquanto compradoras monopsonistas do uso da força de trabalho e a classe proletária enquanto seu vendedor monopolista, funcionando os dirigentes sindicais enquanto gestores do mercado de trabalho. As organizações de consumidores, numa situação em que a aquisição dos produtos fabricados no primeiro processo não pode obedecer ao modelo monopsonista, pois reparte-se por funções sociais distintas, estão condenadas a um âmbito muito mais restrito do que o das organizações sindicais; representam formas de ambiguidade e de confusão de interesses entre as classes capitalistas e o proletariado.

Numa orientação contrária à que sigo, a tese clássica pode ainda servir de quadro à perspectiva reformista hoje muito em voga, que encontra no interior do capitalismo espaços de liberdade e que considera que a transformação da sociedade atual poderia resultar do desenvolvimento desses espaços num sentido não-capitalista. É no segundo processo que essa perspectiva localiza tais áreas exteriores ao domínio capitalista direto, daí o interesse com que se ocupa, conjugada ou alternadamente, das relações sexuais, dos ócios e da problemática do consumo. Além disso, o quadro da produção mercantil simples em que decorreria o segundo processo fornece o modelo econômico às sociedades alternativas que nessa perspectiva são propostas: pequenas comunidades de produtores-consumidores relacionadas entre si por um mercado ele unidades indiferenciadas.

Uma tese tão ampla que abarca perspectivas opostas pode parecer indestrutível e essa própria amplidão será talvez um pesado argumento em seu favor. A uma análise mais atenta, porém, erguem-se contra essa tese clássica várias objeções:

  1. É muito difícil explicar o comportamento monopolista da classe proletária na venda do uso da sua força de trabalho por um modelo em que todo o processo de produção e de reprodução dessa força de trabalho ocorreria em unidades familiares particularizadas e absolutamente desprovidas de qualquer inter-relação estruturada. Para justificar esse comportamento monopolista, invocam-se geralmente as relações de classe estabelecidas entre os proletários no processo de produção ao nível das empresas. Mas fica por explicar o fundamental, isto é, como se transferem essas relações de classe do primeiro processo para o segundo, de maneira a poderem servir de base ao movimento pelo qual, a partir do segundo processo, se entra em relação com o primeiro. Enquanto, no processo de produção da mais-valia, o monopólio de que as classes capitalistas desfrutam relativamente aos bens fabricados é indissociável do próprio processo de produção desses bens, o processo de produção da força de trabalho ocorreria, pelo contrário, em unidades familiares particularizadas, só posteriormente aparecendo o proletariado enquanto classe, como vendedor monopolista do uso da sua força de trabalho. Nada na tese clássica permite explicar tal salto.

  2. Sempre que a produção capitalista se articulou com outros sistemas de produção, como ocorreu durante a expansão colonial, em caso nenhum se limitou a circunscrevê-los mediante os mecanismos meramente econômicos do mercado, e estes apareceram sempre estreitamente associados à repressão e à violência física. Se a produção da força de trabalho ocorrer num processo exterior à produção capitalista, como pode esta limitar-se a circunscrevê-lo economicamente, sem o procurar controlar mais estreitamente nem nele interferir permanentemente pela repressão? No entanto, o capitalismo não intervém habitualmente na esfera doméstica mediante quaisquer formas repressivas diretas e a vida segue aí o mesmo tipo de normalidade econômica que caracteriza a produção capitalista de bens. Nada na tese clássica permite explicar esse comportamento do capitalismo, absolutamente contraditório com todos os seus outros aspectos e com toda a sua história.

Parece-me possível apresentar outro modelo que procure analisar o processo de produção da força de trabalho sem se deparar com as insuficiências da tese clássica.

2. O ponto de partida deste modelo, que aqui apresento como uma hipótese de trabalho, é a concepção do salário como salário familiar.3 3 Nos últimos anos desenvolveu-se em crítica à tese clássica uma corrente distinta da que aqui proponho; essa orientação encontra-se expressa, por exemplo, em: CLEAVER, Harry. Reading “Capital” politically. Brighton, Harvester Press, 1979, onde existem abundantes referências a outros autores da mesma corrente. Enquanto eu pretendo aqui integrar o processo de produção e de reprodução do proletariado nos mecanismos da mais-valia definidos a partir da análise do processo de produção na empresa, os autores inseridos nessa outra corrente procuram, pelo contrário, reformular o modelo da mais-valia e da lei do valor, a partir de campos sociais exteriores à empresa, considerando largas camadas da classe gestorial como pertencentes ao proletariado. Por isso, embora tanto nas teses desses autores como no modelo que aqui proponho se inclua a reprodução do proletariado no interior dos mecanismos do capital, estes são concebidos de forma diferente e as conclusões a que chegamos são consideravelmente distintas, quer quanto ao funcionamento dos mecanismos da lei do valor implicados na produção e reprodução da força de trabalho, quer quanto à apreciação dos movimentos de luta social. Em meu entender essa corrente, ao mesmo tempo que critica a tese clássica, arrisca-se a partilhar com ela - ou fá-lo efetivamente - a já referida perspectiva reformista que encontra no interior do capitalismo espaços de liberdade. O salário que o pai e a mãe recebem na(s) empresa(s) onde trabalham não se destina apenas a remunerar a utilização aí da sua força de trabalho, mas também o trabalho doméstico de ambos; ou, se apenas um deles trabalhar numa empresa, o salário familiar remunera a utilização parcial da força de trabalho desse elemento na empresa, a sua utilização parcial no trabalho doméstico e a utilização exclusiva no trabalho doméstico da força de trabalho do outro elemento da família.

O trabalho na empresa destina-se à produção de bens materiais ou de serviços. O trabalho doméstico destina-se exclusivamente a colaborar em duas operações: a reconstituição da força de trabalho assalariada e a produção de nova força de trabalho. Quer dizer, o trabalho doméstico incide na reprodução alargada da força de trabalho proletária de geração para geração, mediante a conservação da força de trabalho existente já produzida e a criação e educação de filhas e filhos, que irão ser a nova força de trabalho. O ato sexual, em si, é trans-histórico, isto é, ultrapassa os modos de produção. É a forma da sua realização que é social e decorre do modo de produção. Copular é exterior ao capitalismo; ter filhos e educá-los é para o proletariado, neste modelo, um processo interno ao capital.

A articulação do trabalho na empresa e do trabalho doméstico processa-se, de imediato, por quatro mecanismos:

Em primeiro lugar, pelo fato de o salário recebido pagar conjuntamente e sem distinção a utilização da força de trabalho em ambos os locais; no salário familiar são sempre indiscrimináveis as partes que se destinam ao trabalho na empresa e ao trabalho doméstico. A produção da força de trabalho proletária aparece assim desde início, e completamente, inserida na esfera do assalariamento proletário.

A situação de proletário não é uma característica individual. As classes referem-se a práticas sociais e não a um agregado de indivíduos que, enquanto tais, são apenas elementos biológicos e psicológicos. Se neste modelo o salário é familiar, só pode então definir-se, como unidade constitutiva da classe proletária, a família proletária.

Em segundo lugar, pelo fato de a reconstituição da força de trabalho despendida e a produção de nova força de trabalho resultarem da combinação do trabalho doméstico com o trabalho nas empresas que produzem serviços destinados à produção e à reprodução da força de trabalho (infantários, escolas, centros culturais e recreativos, cantinas etc.), essas empresas excluem-se dos setores de produção no início definidos. O trabalho de produção e reprodução da força de trabalho reparte-se de modo variável por esses dois tipos de locais. Assim, neste modelo, conjugam-se dois critérios de divisão: o que distingue consoante o produto, opondo a produção de bens materiais e de serviços com eles relacionados nos setores I e II, ao trabalho doméstico e às empresas de serviços destinados à produção de força de trabalho; e o que distingue consoante os locais de trabalho, opondo ao trabalho doméstico o que decorre em empresas de qualquer tipo.

Os limites temporais da utilização da força de trabalho estabelecem-se de maneira diferente na empresa e em casa. Na empresa, a fixação desses limites é aparentemente rigorosa, resultante do jogo de forças entre um coletivo de operários e os capitalistas; na prática, o rigor é muito menor, pois a imposição de horas extraordinárias ou a suspensão do trabalho permite aos capitalistas certa adequação do horário de trabalho às variações de fluxo de produção. Quanto ao trabalho doméstico, pelo contrário, seria aparentemente impossível estabelecer-lhe limites de tempo; porém, consoante for organizada a oferta de serviços destinados à produção e reprodução de força de trabalho e a oferta de certos serviços e bens materiais decorrentes do setor IIa (máquinas para trabalho doméstico, alimentos já preparados etc.), o trabalho em casa, para a execução das mesmas tarefas, variará de duração.

Em terceiro lugar, os processos de trabalho em ambos os locais se articulam porque o output do trabalho nas empresas do setor IIa constitui o input na produção de força de trabalho.

Daqui decorrem, de imediato, duas consequências. Existe uma radical distinção, quanto aos mecanismos e ao significado econômico, entre o consumo de bens pelo proletariado e pelas classes capitalistas; a produção e reprodução física dos capitalistas é um processo interno ao consumo improdutivo, quer dizer, respeita à utilização do lucro e não à produção de mais-valia. E o consumo proletário está inteiramente englobado, tanto como output como input, no processo de produção. Por essas duas razões, é inteiramente inviável pensar o consumo como uma categoria econômica própria e autônoma.

A transformação dos bens do setor IIa de output em input opera-se parcialmente mediante o mercado; mas a função do mercado varia para a classe proletária consoante seja maior ou menor a parte ocupada pela prestação direta de serviços destinados à produção da força de trabalho, e consoante a composição da oferta de bens e serviços do setor IIa. Assim, por exemplo, a criação de infantários e escolas permite diminuir o tempo de trabalho doméstico destinado à formação da nova força de trabalho, transferindo-o para processos de trabalho que ocorrem no interior de empresas (os infantários e escolas enquanto empresas), e/ou concentrar esse trabalho doméstico em certos aspectos apenas da formação da força de trabalho. Se o acesso aos infantários e escolas não depender de pagamento direto por parte dos pais cujos filhos e filhas constituem força de trabalho em formação, então a transferência do processo de produção de força de trabalho da casa para a empresa não implicará qualquer papel acrescido do mercado; se nos infantários e escolas se exigir pagamento, então dessa transferência resultará o aumento do papel do mercado. O mesmo sucede com todos os outros serviços ou bens que possam ser prestados sem pagamento direto por parte dos utentes. Deve sublinhar-se aqui que a ausência de pagamento não significa gratuitidade. Quanto maior for a parte ocupada pelo mercado nesse processo, tanto mais considerável terá de ser o salário familiar em dinheiro. Quando o proletariado, para a reprodução da sua força de trabalho, pode dispor de bens e serviços na aparência gratuitos, isso significa na verdade que eles constituem um elemento em gêneros do salário, diminuindo correspondentemente a parte em dinheiro. O mercado dos serviços que colaboram na produção de força de trabalho e dos bens e serviços do setor IIa constitui, por conseguinte, um mecanismo substituível pelo pagamento direto em gêneros de parte do salário.

A utilização de um ou outro desses mecanismos deve-se ao seguinte fator: quando o empregador direto de uma dada força de trabalho prevê que continuará a sê-lo, pode diminuir a parte em dinheiro do salário e fornecer parte em gêneros - tanto bens como serviços - destinados a reconstituir essa força de trabalho assalariada. É o que sucede, por exemplo, com as cantinas das empresas. E quando o empregador de indivíduos pertencentes a dadas famílias prevê que virá a empregar os seus descendentes, pode fornecer, como parte em gêneros dos salários, bens e serviços destinados à formação das novas gerações proletárias. É o que se passa desde o princípio do capitalismo com as empresas que aparecem como empregadores monopsonistas numa dada localidade, fornecendo bairros, escolas etc., e também desde os inícios do modo de produção, cada vez mais à medida que aumentam as funções do Estado, com os bens e serviços urbanos e escolares que este fornece sem pagamento direto pelos utentes. À medida que se desenvolve a concentração econômica, diminuindo a dispersão das empresas, os empregadores tornam-se mais homogêneos, com o consequente reforço do papel do Estado e a hegemonia da classe dos gestores sobre os restantes capitalistas. Aumenta-se assim o número de famílias proletárias decorrentes de um mesmo polo de assalariamento e torna-se mais estável e continuada a relação que mantêm com o empregador; tanto mais vasta e variada pode ser por isso a parte em gêneros dos salários - e tanto mais a relação entre os proletários e os capitalistas aparece como uma relação entre classes organicamente constituídas. Em suma: há uma relação direta entre a previsão por um dado empregador do período de tempo em que reproduzirá o assalariamento nas mesmas famílias proletárias e a parte ocupada no salário pelas prestações em gêneros, que é inversamente proporcional ao papel desempenhado pelo mercado. O que confirma o caráter meramente secundário do mercado no capitalismo, substituível desde o próprio início deste modo de produção por outros mecanismos econômicos.

Por sua vez, a gama de artigos necessários à produção da força de trabalho e à adaptação das prestações regulares de salário à procura esporádica e irregular de vários bens impede que a parte em dinheiro do salário seja inferior a certos limites, no interior dos quais se mantém em vigor esse tipo de mercado.

Em quarto lugar, o trabalho na empresa e o trabalho doméstico articulam-se porque o produto do processo em que incide o trabalho doméstico - a força de trabalho reconstituída ou a nova força de trabalho criada - irá assalariar-se numa empresa, ou integrar-se na família de um assalariado, participando então do salário familiar. Enquanto no mecanismo anterior o output do trabalho em empresas (do setor IIa) ia servir de input ao trabalho doméstico (bem como ao trabalho nas empresas que colaboram na produção de força de trabalho), neste quarto mecanismo é o output em cuja elaboração participa o processo de trabalho doméstico a servir de input à totalidade das empresas.

A classificação de input é, porém, inteiramente técnica e os mecanismos econômicos são radicalmente diferentes consoante o input seja um bem ou força de trabalho. A força de trabalho é o único input capaz de incorporar mais tempo de trabalho do que aquele nele incorporado - e a mais-valia assim produzida sustenta todo o sistema econômico e a sua reprodução alargada. Assim, a força de trabalho proletária que se assalaria nas empresas é produtora de mais-valia; mas ela é também produto, resultado de um trabalho que decorreu no âmbito do salário familiar, por isso o trabalho doméstico é produtor de mais-valia. Se o proletariado enquanto produtor é o agente da mais-valia, enquanto produto é o suporte de uma mais-valia produzida pelo processo de trabalho de que ele, como proletário, resulta. É este o fulcro dos mecanismos de articulação dos vários processos de trabalho cobertos pelo salário familiar e, como veremos na seção seguinte, o centro da própria dinâmica do capitalismo.

A produção de mais-valia provém sempre de uma troca: do capitalista para o proletário vai um salário; do proletário para o capitalista vai o direito ao uso da força de trabalho, que inclui o direito à apropriação dos resultados do processo de trabalho em que essa força de trabalho se inseriu. Sendo duplo o processo de trabalho coberto pelo salário familiar, na empresa o proletário incorpora tempo de trabalho num bem ou num serviço de que o capitalista se apropria e, no âmbito doméstico, incorpora também tempo de trabalho num produto apropriado pelo capitalismo: a força de trabalho. A condição proletária de cada nova geração criada pelas famílias proletárias é, pois, fixada de antemão. Ela é uma condenação.

O ato do assalariamento não marca, portanto, a inauguração do processo de apropriação, pelo capitalista, do uso da força de trabalho. O assalariamento ocorre porque o capitalista já detinha previamente o direito de usar a força de trabalho proletária. O salário é, neste modelo, a condição para a reprodução desse processo de apropriação, e não o seu fundamento.

Sob o ponto de vista dos capitalistas particulares, há aqui uma diferença de ritmos importante: os produtos materiais e os serviços neles incidentes têm um tempo de fabrico relativamente curto, enquanto o produto, em cuja elaboração participam o trabalho doméstico e o trabalho nas empresas destinadas à formação da força de trabalho, tem um tempo de produção muito longo. Assim, o capitalista particular que vai usar efetivamente uma dada força de trabalho será eventualmente diferente daquele que pagou pelo menos parte dos salários familiares com que se sustentou a produção dessa força de trabalho. Essa defasagem de ritmos explica por que, desde o início do capitalismo, tem cabido a um órgão do conjunto dos capitalistas - o aparelho de Estado - a incumbência de contribuir com parte considerável do salário familiar, em dinheiro ou pela prestação direta de bens e serviços. Nas fases iniciais do processo de concentração, o âmbito reduzido de cada uma das empresas e a sua acentuada particularização, agravando as consequências da referida defasagem de ritmos, dão grande relevo à cooperação do Estado no pagamento do salário familiar. Quando a concentração das empresas atinge uma maior dimensão e o âmbito de cada uma se alarga, essa intervenção do Estado não se reduz: mostrei no terceiro mecanismo como, pelo contrário, se amplifica. Sucede, então, que a cooperação entre os empregadores diretos e o Estado, no pagamento dos salários, torna-se cada vez mais estreita. Assim, o papel do Estado neste mecanismo nuclear do capitalismo é amplo e decisivo desde o próprio início do modo de produção, constituindo-se uma necessidade estrutural. A evolução do sistema não faz declinar esse papel do Estado, mas integra-o com o das empresas cada vez mais concentradas. Mostrei já como, neste modelo, o mercado destinado à classe proletária não é estruturalmente exigido pelo capitalismo: vemos agora como o papel do Estado enquanto empregador, ou empregador central, é desde sempre requerido pelo funcionamento do sistema.

Deste quarto mecanismo resultam problemas que aparecem como o exato recíproco dos que, no terceiro mecanismo, enunciei em torno da questão do mercado. Se a dispersão e a particularização das unidades empresariais forem grandes, torna-se necessário repartir entre os vários capitalistas particulares a força de trabalho cuja produção decorreu, em grande parte, no âmbito das instituições conjuntas dos capitalistas. É esta a função do mercado de trabalho. O que geralmente se denomina liberdade da força de trabalho resume-se à questão do ajustamento, entre as várias empresas, da força de trabalho produzida. É um problema que se integra, antes de mais, nas relações intercapitalistas. O mercado de trabalho aparece, portanto, neste modelo, como um mecanismo substituível por outros, sem que decorra de qualquer necessidade estrutural do sistema. Por outras palavras: se neste modelo a produção da força de trabalho não obedece ao quadro da “produção mercantil simples”, então o apropriador do produto desse processo de produção são as classes capitalistas globalmente consideradas. A apropriação da força de trabalho não resulta de uma relação entre um capitalista particular e um proletário particular, mas de uma relação entre classes globalizadas, só eventualmente mediatizada pelo mercado enquanto instrumento de repartição da força de trabalho entre os capitalistas.

Até aqui os mecanismos deste modelo foram apresentados independentemente do funcionamento dinâmico do sistema. Vou procurar em seguida aplicar o modelo à reprodução dos ciclos do capital. Veremos então que a articulação do trabalho doméstico e do trabalho nas empresas é mais estreita ainda e decorre de vários outros mecanismos.

3. Se o processo de reprodução da força de trabalho é um processo de produção de mais-valia e, se a mais-valia consiste no fato de o tempo de trabalho incorporado no conjunto dos produtos ser superior ao tempo de trabalho incorporado na força de trabalho produtora, conclui-se que o produto do trabalho de reprodução da força de trabalho, isto é, uma nova geração proletária, incorpora um tempo de trabalho superior ao incorporado na geração proletária precedente. Se, para já, admitirmos um sistema em que se mantém constante o número de elementos componentes do produto, quer dizer, se aceitarmos como hipótese a estabilidade demográfica, concluímos que na formação de cada novo proletário se despende um tempo de trabalho superior ao despendido na constituição de cada um dos proletários. Esta é uma conclusão central, que resulta imediatamente da admissão da força de trabalho como produto de um processo de produção capitalista. É este o fundamento do progresso tecnológico no capitalismo.

É certo que a própria força de trabalho luta permanentemente para ampliar o seu direito ao consumo, mediante a elevação dos salários. Mas o que o proletariado pretende assim fundamentalmente obter é um maior input de bens materiais na sua força de trabalho, enquanto a produção capitalista de força de trabalho consiste sobretudo na incorporação direta de tempo de trabalho nos jovens proletários em formação. Mediante um vasto conjunto de mecanismos, que vão desde o estabelecimento de normas jurídicas e a coação policial até as formas mais sub-reptícias de pressão resultantes da oferta de certos serviços e bens destinados à formação da nova força de trabalho, que incluem a recusa por parte dos capitalistas de assalariar força de trabalho que não obtenha dado grau e certo tipo de formação, o capital consegue impor que, na produção de cada nova geração de força de trabalho, se despenda um tempo de trabalho crescente e que essa formação se oriente em dados sentidos. Há um aumento permanente do nível de instrução e alarga-se a difusão de conhecimentos porque esses são requisitos de uma produção da força de trabalho que obedece ao modelo da produção da mais-valia. Assim, uma parte considerável da formação ministrada a cada nova geração proletária não pode estar a cargo da generalidade dos proletários da geração precedente, que não possuem os novos conhecimentos e especialidades requeridos. Verifica-se por isso um permanente acréscimo da importância relativa das empresas de serviços especializados em aspectos específicos dessa formação, nomeadamente as de âmbito escolar - o que é mais um fator que reforça o papel do Estado. Mas esse aumento relativo não implica qualquer diminuição absoluta da importância do trabalho doméstico nos restantes aspectos da formação das novas gerações proletárias. Cada geração incorpora, assim, uma parte relativa sempre maior de tempo de trabalho especializado. Desse modo, o capitalismo produz gerações proletárias capazes de proceder a um trabalho sempre mais complexo.

Como o trabalho complexo corresponde à uma multiplicação de trabalhos simples, implica uma utilização mais intensiva e concentrada da força de trabalho; por isso, sendo dados os mesmos limites da jornada de trabalho, o tempo de trabalho despendido por um processo de trabalho complexo é quantitativamente superior ao despendido por um processo de trabalho mais simples. Cada nova geração proletária é, assim, capaz de incorporar no produto de uma mesma jornada de trabalho um tempo de trabalho quantitativamente superior ao incorporado pela geração anterior. Daí, que, ao nível das empresas, se desenvolvam técnicas de produção mais complexas e/ou sistemas de organização do trabalho que cada vez mais exigem, além da força muscular, a atividade cerebral do proletário, precisamente para aproveitar e realizar produtivamente as capacidades decorrentes desse crescendo de tempo de trabalho incorporado em cada nova geração de força de trabalho produzida. Neste modelo não é um progresso tecnológico materialmente considerado a arrastar um progresso na instrução e na preparação técnica do proletariado; pelo contrário, é o aumento da preparação do proletariado, socialmente considerado, a arrastar o progresso tecnológico. Uma tecnologia é meramente a realização material de relações sociais.

Porém, se enquanto ouput o proletariado resulta de um processo de produção de mais-valia e tem incorporado em si um tempo de trabalho superior ao incorporado na força de trabalho que o fabricou, enquanto input, para o capitalista que o vai assalariar, esse acréscimo do valor das novas gerações proletárias seria um fator de redução da mais-valia na globalidade dos ramos de produção (pois trata-se de um aumento do tempo de trabalho incorporado na força de trabalho produtora) e/ou um fator de redução do lucro realizável (pois para acrescer a mais-valia numa situação de aumento do valor da força de trabalho seria necessário aumentar o valor dos produtos, reduzindo por conseguinte as possibilidades da sua comercialização). Assim, entre o processo pelo qual o proletariado acaba de se constituir como output e aquele em que começa a aparecer como input há uma radical contradição. No primeiro processo convém ao capitalista que o proletariado incorpore um tempo de trabalho crescente; no segundo processo convém ao capitalista que o valor da força de trabalho proletária seja reduzido. Essa contradição é, no modelo que aqui apresento, o fulcro da dinâmica do capitalismo. A forma capitalista de resolução desta contradição consiste na desvalorização da força de trabalho proletária quando da sua passagem do processo em que é output para o processo em que é input.

Essa desvalorização pode ocorrer porque o interesse do capitalista consiste apenas na apropriação do valor de uso da força de trabalho. Ao capitalista interessa que a força de trabalho, enquanto output, represente um tempo de trabalho superior ao incorporado na força de trabalho que a produz; porém, transformada em input, a força de trabalho já interessa ao capitalista só pelo seu valor de uso, isto é, pela capacidade de incorporar um tempo de trabalho superior ao nela incorporado, sem que seja para isso necessário manter o valor efetivo da força de trabalho acabada de produzir. Assim, quando as novas gerações proletárias, com a capacidade acumulada para proceder a um trabalho mais complexo, começam a realizar na prática, em proveito do capitalista, o valor de uso da sua força de trabalho, o capitalista, ao mesmo tempo que se apropria dos frutos desse valor acrescido, desvaloriza essa força de trabalho.

Os mecanismos deste processo de desvalorização constituem a mais-valia relativa, que é a própria dinâmica do modo de produção. A problemática da mais-valia relativa surge assim, estruturalmente, no centro do capitalismo; ela só secundariamente é analisável ao nível da concorrência entre capitalistas particulares, explicando-se sobretudo num sistema de produção globalmente considerado e integrado, ao nível da própria relação entre as classes, no movimento do proletariado de output para input.

A forma de mais-valia relativa primordial para essa desvalorização da força de trabalho consiste no seguinte processo:

∆ valor das subsistências4 4 O símbolo do delta invertido indica aqui um incremento negativo, ou seja, uma diminuição. -> ∇ valor da força de trabalho - ∇ duração do tempo de trabalho necessário -> ∆ duração do sobretrabalho -> ∆ mais-valia.

Esse processo de mais-valia relativa exige formas de inter-relação das empresas ao nível da globalidade do sistema econômico. Para que diminua o valor das subsistências, é necessário que diminua o tempo de trabalho incorporado em cada unidade, ou seja, que aumente a produtividade com que são fabricadas. Assim, neste processo: ∆ produtividade no setor IIa -> ∇ valor das subsistências -> etc. O primeiro movimento, porém, não depende apesar do setor IIa. Qualquer aumento da produtividade pode resultar ou de uma redução do valor dos inputs, ou de uma reorganização dos processos de fabrico de modo a diminuir os inputs por cada unidade produzida, ou de diferentes combinações dos dois movimentos. A diminuição relativa do valor da força de trabalho é a forma mais imediata de redução do valor dos inputs, mas ela aqui é a consequência, e não o dado inicial. Temos por isso de tomar outro ponto de partida. Como esse processo da mais-valia relativa decorre de uma necessidade vital para todos os capitalistas, a todos os ramos de produção interessa fazer convergir os esforços nesse sentido. O movimento ∆ produtividade no setor IIa não resulta apenas da reorganização aí dos processos de trabalho, colaborando também nesse movimento a redução do valor dos inputs do setor, que são os outputs do setor Ib. O movimento: ∆ intensidade do trabalho (=duração constante dos limites extremos do tempo de trabalho total/menores períodos intermédios de não-trabalho) -> ∆ quantidade de produtos -> ∇ valor de cada produto sustenta o aumento da produtividade do trabalho em cada um dos setores. E o movimento: ∆ produtividade no setor Ib -> ∇ valor da maquinaria destinada ao fabrico de subsistência -> ∆ produtividade no setor IIa -> etc. concorre para acentuar o processo de mais-valia relativa. Por sua vez, a produtividade no setor Ib decorre também dos ramos de produção que se destinam ao fabrico mais geral de máquinas para fazer máquinas. Assim, essa mesma dinâmica processa-se entre o setor Ia e o setor Ib. Como o setor Ia se relaciona com a generalidade dos processos industriais, esses vários movimentos integram a totalidade da economia nessa forma de mais-valia relativa. E como: ∆ produtividade num dado ramo -> ∇ quantidade de força de trabalho necessária nesse ramo, libertam-se permanentemente trabalhadores dos ramos de produção já estabelecidos para outros a desenvolver ou a criar, pelo que essa forma de mais-valia relativa reproduz alargadamente a totalidade econômica.

Assim, a inter-relação econômica e tecnológica das várias empresas e dos vários setores de produção é uma necessidade estrutural do funcionamento do capitalismo. Por isso, o capitalismo desenvolve, desde o seu início e como condição da sua vigência, um campo de instituições próprio a essa inter-relação - as Condições Gerais de Produção, que fundamentam a existência social da classe dos gestores e onde se expande a ação do Estado.

Em conclusão, a ação de todos os setores econômicos converge nessa forma de mais-valia relativa. Mas vejamos o funcionamento do seu mecanismo central: V valor das subsistências -> ∆ valor da força de trabalho. É necessário distinguir entre dois processos: o da reconstituição da força de trabalho assalariada e o da produção de nova força de trabalho.

Na produção de nova força de trabalho uma quantidade muito considerável de tempo de trabalho é despendida sob forma direta, não mediatizada por quaisquer bens, nas operações de criação, instrução, treino etc.; trata-se do dispêndio de um trabalho sempre mais complexo, que é o valor de uso da força de trabalho assalariada na criação de nova força de trabalho. A outra componente deste processo são os bens de subsistência, que podemos considerar em sentido lato, se neles incluirmos, além da alimentação, vestuário etc., as instalações onde decorrem os serviços que colaboram com o trabalho doméstico na produção do proletariado. A diminuição do valor das subsistências tem efeitos distintos consoante o tempo de trabalho despendido seja diretamente incorporado, ou se essa incorporação for mediatizada por bens produzidos, quer sejam bens de subsistência ou outros. A diminuição do valor dos bens de subsistência consumidos pela jovem força de trabalho durante a sua formação corresponde a uma diminuição do tempo de trabalho (aqui, tempo de trabalho cristalizado nesses bens) incorporado na nova geração proletária, sendo, portanto, um fator que tende a baixar o seu valor. Esse fator pode ser mitigado pelo aumento do consumo de subsistências; mas a prazo a diminuição do valor das subsistências ultrapassa sempre o aumento quantitativo do seu consumo. Quanto mais baixar o valor das subsistências, enquanto componentes do processo de produção da nova força de trabalho, tanto mais considerável se torna relativamente a parte que corresponde ao outro elemento desse processo, o tempo de trabalho diretamente despendido; a defasagem é acentuada ainda pelo fato de o tempo de trabalho resultar do uso de capacidades de trabalho cada vez mais complexas. Assim, no que diz respeito ao processo de criação da nova força de trabalho, os mecanismos desta forma de mais-valia relativa sustentam o crescente valor incorporado nas sucessivas gerações proletárias; com efeito, ao diminuir a parte relativa das subsistências enquanto input direto e ao aumentar correspondentemente a parte do tempo de trabalho direto enquanto input, essa forma de mais-valia relativa assegura ao capital que as novas gerações proletárias consubstanciarão um crescente valor.

Sob esse ponto de vista são três os aspectos que distinguem radicalmente a produção de proletários dos outros tipos de serviços e processos de fabrico que têm como objeto bens materiais; na produção de proletários: o trabalho é muito mais complexo e, portanto, o tempo de trabalho incorporado é quantitativamente muito superior; o tempo de trabalho diretamente despendido ocupa uma parte muito mais considerável no processo de produção total; a parte que corresponde à incorporação direta de tempo de trabalho tem sempre aumentado, sem que se desenvolvam processos mecânicos intermediários entre o trabalho e o seu objeto. Exprime-se assim, a nível tecnológico, a necessidade de o capital valorizar permanentemente a força de trabalho no processo da sua formação, não surgindo por isso quaisquer formas de mecanização que aumentem a produtividade com que são produzidas as novas gerações proletárias. É essa a razão por que, havendo frangos de aviário, não existem proletários de incubadora

Quanto ao tempo de trabalho despendido, ele decorre do uso de dada força de trabalho que é remunerada pelo salário familiar. A diminuição do valor das subsistências permite múltiplas combinações de duas variantes: o salário e o input físico de bens. Como todo o condicionalismo capitalista obriga ao dispêndio de um tempo de trabalho crescente na produção de novos proletários, temos que, para a força de trabalho que os produz, diminuindo o valor das subsistências, diminui a duração do tempo de trabalho necessário à sua reconstituição e aumenta a duração do sobretrabalho. Aumenta, por conseguinte, a mais-valia corporizada na jovem geração proletária em formação. Vimos antes como aumenta o valor de cada nova geração proletária enquanto o produto aumenta - relativamente ao valor da precedente-; vemos agora como, para os capitalistas, os custos da formação da nova força de trabalho diminuem - relativamente ao maior tempo de trabalho nela incorporado.

A nível global do capitalismo, o movimento do proletariado de output para input é evidentemente contínuo. Em cada momento novos proletários começam a ser criados, outros iniciam o percurso do assalariado. Por isso, ao mesmo tempo que essa forma da mais-valia relativa exerce os efeitos descritos quanto aos processos de produção da nova força de trabalho, exerce outro tipo de efeitos sobre o processo de reconstituição da força de trabalho assalariada, isto é, já produzida. Nesse último processo, ao contrário do que sucedia no primeiro, é mínimo o dispêndio de tempo de trabalho sob uma forma direta, enquanto o consumo de subsistências constitui a sua componente quase exclusiva. Ora, a partir do momento em que uma força de trabalho se assalaria e se torna input e outras começam a ser produzidas, o proletário que se assalaria não tem outra realidade senão a da sua reconstituição. nem outra medida senão a da sua comparação com as novas gerações proletárias em formação. Quanto à sua reconstituição, a parte praticamente exclusiva que nela ocupa o consumo de subsistências permite agora que, com cada novo ciclo dessa forma de mais-valia relativa, diminua o valor da força de trabalho; e, como tal diminuição não é compensada por qualquer dispêndio apreciável de novo tempo de trabalho incorporado diretamente no proletário assalariado, prevalece a tendência para a desvalorização deste enquanto força de trabalho. A cada novo ciclo que ocorrer, o tempo de trabalho que foi diretamente incorporado no proletário durante o período da sua formação será o denominador de uma fração em que o numerador são os valores sucessivamente diminuídos das subsistências. É essa a fórmula da desvalorização permanente da força de trabalho, uma vez convertida em input. Essa desvalorização é acelerada ainda por outra forma. O valor é relativo e o trabalho complexo de que é capaz uma dada geração proletária, se é mais complexo relativamente à anterior, é menos complexo relativamente à seguinte. O proletário não tem outra medida senão a da sua comparação com os jovens proletários. E os níveis de preparação atingidos por cada geração e o próprio conteúdo dessa instrução são permanentemente desqualificados tendo em conta as novas gerações. Mediante a conjugação de todos esses mecanismos, esta forma de mais-valia simultaneamente permite o aumento do valor da força de trabalho a ser produzida e a desvalorização da força de trabalho a ser utilizada.

Se essas serão as formas normais, ou permanentes, do processo, a inflação e o desemprego podem apresentar-se como as suas formas extremas. A inflação exprime e ao mesmo tempo realiza a desvalorização acelerada da força de trabalho. E o desemprego, reduzindo a reconstituição da força de trabalho ao mínimo físico socialmente admitido e eliminando a reconstituição das suas capacidades técnicas, é uma forma brusca e maciça de proceder à desvalorização da força de trabalho, pela sua própria desqualificação. Por isso, a inflação e o desemprego são recursos capitalistas complementares. Uma forma mais paulatina de desemprego, mas também mais durável e generalizada, porque tendente a impor novos padrões sociais, é a reforma antecipada. Ela marca para a força de trabalho o ponto a partir do qual se arrasta no declínio. A morte, tal como a cópula, é trans-histórica e exterior ao capitalismo. Mas tanto a juventude como a velhice são hoje processos internos ao capital.

A ecologia é, nos países industrializados, a ideologia capitalista da atual crise e a sua, correspondente nos países menos industrializados é o fundamentalismo religioso. Ambos propõem um vasto programa de desvalorização da força de trabalho, assente no retrocesso tecnológico geral e na liquidação maciça de numerosas técnicas particulares. Projetam simultaneamente drásticas reduções do consumo e uma reforma dos padrões de vida que levem a fortes economias na reconstituição da força de trabalho. Assim, ao mesmo tempo que o proletariado assalariado se desqualificaria nas capacidades técnicas, veria reduzida a sua margem de consumo, desvalorizando-se duplamente.

Tenho até agora suposto neste modelo que se verifica uma estabilidade demográfica, e é esse o caso nos países onde os mecanismos da produtividade são mais desenvolvidos e onde, por conseguinte, é mais acelerada a sucessão dos ciclos da mais-valia relativa. Pelo contrário, nos países onde a produtividade é mais reduzida, são também menores as possibilidades de preparar e instruir a força de trabalho. Verifica-se aí que o tempo de formação de cada proletário é mais curto e a sua procriação é mais abundante, o que representa uma elevada taxa de crescimento da população. Quanto mais acentuado for o crescimento demográfico, tanto menor será a diferença entre o tempo de trabalho incorporado num novo proletário e o incorporado em cada elemento da força de trabalho que o formou. Daqui provém uma redução da capacidade de trabalho complexo, possível de executar pelas gerações proletárias que resultam de taxas demográficas muito elevadas; essa força de trabalho pode apenas sustentar as tecnologias menos sofisticadas, o que por sua vez reproduz e amplifica os efeitos dessa situação. A composição da população mundial reflete assim a distribuição mundial da mais-valia entre os capitalistas. Se o proletariado enquanto produto incorpora mais-valia, os proletários-output em que essa mais-valia é menor encontram-se precisamente naqueles países onde são mais escassos os recursos da produtividade e mais lenta a sucessão dos ciclos da mais-valia relativa.

É agora que o salário pode ser definido. Sabe-se bem que ele corresponde ao valor da força de trabalho. Mas que significa isso? Nos termos deste modelo, o salário não paga o valor da força de trabalho enquanto output; paga o valor de uma força de trabalho enquanto input, em desvalorização permanente. O mecanismo da mais-valia consiste numa troca, indo do capitalista para o proletário um salário e, do proletário para o capitalista, o uso da força de trabalho. Ora, a capacidade laboral da força de trabalho é fundamentalmente determinada no período de sua formação e é essa capacidade acumulada que o capitalista usa. Mas o valor da força de trabalho que define o montante salarial é determinado, agora, não pelo processo de produção dessa força de trabalho, já praticamente encerrado, mas pelo pr­cesso de sua reconstituição - é neste que incidem os mecanismos de desvalorização.

Em conclusão: a mais-valia, mecanismo central de todo o capitalismo, explica também o movimento do proletariado de output para input.

4. O processo descrito neste modelo é profundamente desequilibrado. Entre o proletariado como produto e o proletariado como produtor há uma radical defasagem econômica, que o capitalista pode resolver no seu interesse, mas sem que por isso incuta mais equilíbrio ao modelo. O desequilíbrio é, porém, para os modelos econômicos, uma condição necessária de realismo. O modelo da mais-valia, em que a força de trabalho é explorada apesar de paga ao seu valor, permite construir um sistema matematicamente coerente e, portanto, de funcionamento econômico viável - embora socialmente desequilibrado - e, portanto, de solução revolucionária possível. Limitei-me aqui a tentar ampliar o modelo da mais-valia, da esfera da produção de bens e serviços, para a da própria redução do proletariado, fazendo com que a totalidade social obedeça à mais-valia.

O modo de produção capitalista é assim apresentado, neste modelo, como uma globalidade que encerra toda a sociedade, tanto a vida na empresa como a vida doméstica. E nenhum elemento dessa globalidade pode servir de veículo de transição para um futuro modo de produção. É um modelo fechado de capitalismo que pretendo aqui apresentar, onde é desprovida de sentido qualquer problemática de uma “fase de transição”.

Nem são também contrárias ao capitalismo, neste modelo, as reivindicações formuladas pelos proletários em luta - e cuja sistematização e negociação constituem o objetivo das instituições sindicais. Relativamente aos elementos materiais do processo produtivo, o proletariado tem uma dupla particularidade: a de poder incorporar mais tempo de trabalho do que o nele incorporado, que lhe permite tornar-se num produtor de mais-valia, e a de pretender que na sua constituição entrem inputs em quantidades sempre crescentes, que lhes permitam tornar-se num reivindicador salarial. De imediato, essas reivindicações apresentam-se contrárias à produtividade capitalista, que consiste precisamente na diminuição dos inputs incorporados num produto. Para que o capitalista possa responder no campo econômico às reivindicações, é preciso que o acréscimo de inputs reclamado pelo proletariado se torne um acréscimo em termos meramente materiais, e não em termos de valor. Ou seja, é necessário que o valor desses inputs baixe tanto, ou mais, quanto aumente o seu consumo material. É o processo da mais-valia relativa que garante ao capital o funcionamento desse mecanismo. Mas o processo da mais-valia. relativa é também o próprio processo da desvalorização da força de trabalho assalariada. Por isso, ao nível exclusivamente dessas reivindicações, não se liberta o proletariado do sistema global do capital, em cuja engrenagem continuará então a constituir um mero elemento.

Mas quando os proletários reivindicam - se o fazem diretamente - não se limitam a formular essas exigências pontuais e integráveis no capital. Organizam-se para isso; e ao organizarem-se estabelecem entre si relações inteiramente distintas das que prevalecem na sociedade capitalista. São essas relações o único campo possível de constituir exteriormente ao capitalismo e que a ele se opõe, porque apenas elas obedecem a um modelo radicalmente antagônico do capitalismo - são relações de forma igualitária e comunitária.

Não cabe aqui analisar as condições de desenvolvimento dessa forma de relações, nem as suas possibilidades. Nem estas decorrem, aliás, de qualquer análise, mas só da experiência prática futura. O que me parece desde já possível é apresentar ambas as formas sociais como sistemas fechados e globalmente opostos, relativamente aos quais não se pode falar em fases de transição, e apenas em modos de destruição. Mas as relações que se desenvolvem a partir das formas diretas de luta proletária podem ocorrer precisamente porque o capitalismo funciona num modelo desequilibrado e porque sempre as reivindicações assimiláveis pelo funcionamento do modo de produção, quando formuladas diretamente, sustentam formas de organização antagônicas ao modo de produção.

As formas proletárias de luta concentram-se no ponto crucial de desequilíbrio do modelo, na desvalorização da força de trabalho. Por isso, elas desencadeiam-se fundamentalmente ao nível das empresas, onde pelos mecanismos da mais-valia relativa a força de trabalho é continuamente desvalorizada. O processo de desenvolvimento da totalidade social contida em gérmen nessas formas de luta - tal como até aqui tem ocorrido em experiências históricas múltiplas - visa, numa primeira fase, reestruturar o processo de produção ao nível da empresa. Mas se as relações sociais decorrentes dessas formas de luta continuarem· a desenvolver-se, entram então numa segunda fase, abarcando o trabalho doméstico e pondo em causa as relações capitalistas na família e nos locais de habitação. O trabalho doméstico não constitui o foco de aparecimento das formas de luta - mas sem que elas o englobem no seu desenvolvimento, as novas relações sociais não poderão expandir-se numa totalidade crescente. A dinâmica desse processo resulta, assim, dos mecanismos da formação e da desvalorização da força de trabalho e não obedece aos critérios da “concentração operária”, entendida como o número de trabalhadores por local de trabalho. Esse critério vigorou no período em que as lutas proletárias se organizaram por um padrão militarizado, durante as Segunda e, sobretudo, Terceira Internacionais. Na realidade, porém, a concentração de trabalhadores não é forçosamente, em todas as épocas, maior nas empresas do que nas áreas de habitação; tudo depende dos sistemas de trabalho e dos padrões urbanísticos.

Se o modelo de Sraffa, da “produção de mercadorias por meio de mercadorias”, representa uma forma máxima de reificacão do capitalismo, de naturalização das relações sociais que o constituem, anulando nas mercadorias qualquer realidade que não seja a da sua mera existência material, um modelo como este, a produção de proletários por meio de proletários, de que aqui apresento apenas os lineamentos, poderá talvez, depois de desenvolvido, permitir a exposição com critérios rigorosos do que tem sido dito de modo apenas lírico pelas teorias da práxis. Nomeadamente: poderá analisar, consoante um modelo unificado, a totalidade das práticas sociais; poderá integrar num modelo único as práticas decorrentes em qualquer das formas de capitalismo hoje prevalecentes no mundo, quer sejam as de tipo soviético, ou norte-americano, ou de qualquer variante mista. Pretendi, com efeito, mostrar ao longo da exposição deste modelo, em primeiro lugar, que a redução do papel do mercado era estruturalmente possível no capitalismo desde o seu próprio início; em segundo lugar, que a função econômica do Estado é primordial em todo o sistema capitalista; em terceiro lugar, que a mais-valia relativa, ou seja, a própria dinâmica do modo de produção, não resulta da concorrência entre empresas particulares; em quarto lugar, que a classe dos gestores está definida na estrutura originária do capitalismo, assentando-se nas Condições Gerais de Produção, sem as quais não opera o processo da mais-valia relativa.

Pela passagem do proletariado de produto a produtor explicar-se-iam os fatos mais correntes da vida quotidiana. O proletário adulto, que sofre o processo de desvalorização da sua força de trabalho, que se desespera ou que contra ela luta, oscila entre o paraíso prometido da revolução e a idade de ouro da sua juventude. O jovem proletário em formação, consciente da superioridade da capacidade de trabalho que adquire relativamente à dos adultos, seus contemporâneos, mas sofrendo a situação de dependência em que se encontra ainda enquanto produto, dirige contra os adultos o seu desprezo, sem deles, porém, conseguir libertar-se. E são ainda jovens proletários em formação que tentam sabotar a instrução e a aprendizagem de que são objeto, recusando a escola e os ensinamentos; pretende nesses casos o proletário-output limitar a mais-valia de que capitalista se apropriará, mas no mesmo gesto sacrifica mais ainda o seu valor futuro. E uma autoimolação, elitista como todos os atos românticos, afinal, inútil. O conflito de gerações e a recusa da escola, a raiva, o sonho, a nostalgia não são aspectos periféricos nem fenômenos exteriores à luta de classes. Pretendo com este modelo mostrar como eles são, entre tantos outros, elementos componentes de uma luta de classes globalmente concebida.

Um modelo não se justifica por qualquer eventual coerência interna, mas tão-só pela capacidade de explicar uma dada prática social. Por isso, este primeiro esboço, que aqui apresento como uma hipótese de trabalho, fica aberto à principal das críticas: a da prática desejada sobre os fatos existentes.

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    O problema da existência da classe dos gestores está intimamente ligado à definição do capitalismo de Estado. A crítica da sociedade soviética enquanto capitalismo de Estado possibilitou seu confronto teórico com as formas de capitalismo vigentes nos outros países, produzindo-se assim novos modelos de análise em que se atribui aos gestores um papel histórico decisivo enquanto classe exploradora, pois constituem um elemento comum aos vários sistemas capitalistas. De início, foi sobretudo entre as correntes marxistas, ou de inspiração marxista, opostas ao leninismo que essas teses se desenvolveram. Posteriormente, com inspiração teórica e objetivos políticos opostos, algumas correntes conservadoras abordaram também essa problemática. Uma etapa crucial iniciou-se com a assinatura, em 1939, do Pacto Germano-Soviético. A aliança entre as classes dirigentes da URSS e da Alemanha nazi desencadeou uma série de cisões no movimento trotskista, cuja doutrina oficial afirma o caráter socialista da economia da URSS e que apoiava a posição dos seus governantes na guerra mundial; estes cisionistas baseavam-se nas teses que consideravam a URSS como um capitalismo de Estado e a classe então dominante como uma classe gestorial. As transformações operadas pela Segunda Guerra Mundial e pela Guerra Fria levaram vários desses ex-trotskistas, dos quais James Burnham é o mais conhecido, a defender orientações políticas conservadoras. Veicularam-se assim influências teóricas reciprocas entre as correntes de esquerda e de direita que se propunham a analisar o capitalismo de Estado e a classe dos gestores, e essa situação manteve-se até hoje. Uma bibliografia detalhada dessa problemática no período mais decisivo do seu desenvolvimento é-nos fornecida por MOREL, Henri E .. “As discussões sobre a natureza dos países do Leste (até a II Guerra Mundial). Nota Bibliográfica”. in NEVES. Artur J. Castro (org.). A natureza da URSS (antologia). Porto, Afrontamento, 1977. pp. 227-252.
  • 2
    Na maior parte dos casos, esta tese é afirmada apenas implicitamente, à medida que a produção do proletariado não é inserida no âmbito da produção da mais-valia nem, por conseguinte, abarcada pela lei do valor, ficando assim excluída do processo central que define o capitalismo. É esta a concepção que prevalece na obra de Marx e é significativo considerar que, quando ele se refere à produção da classe operária, atribui-a geralmente à expansão do capitalismo sobre áreas sociais que até então se lhe mantinham exteriores, não considerando o problema da produção de proletários no interior do capitalismo. Numa passagem da sua obra máxima, a propósito da reprodução da força de trabalho, Marx parece apontar noutro sentido, sublinhando a íntima relação estrutural entre capitalistas e proletários, considerados como classes globais; ao mesmo tempo, porém, não deixa de afirmar que a produção e reprodução da força de trabalho ocorrem na esfera privada de cada trabalhador: cf. MARX, Karl. Le capital. Paris, Editions Sociales, 1973. Livro I, v. 3, cap. 23, p. 14-20. Em 1884, no prefácio à primeira edição de um dos seus livros, Engels parecia inclinar-se no sentido de incluir a análise do processo de reprodução dos trabalhadores no interior da produção econômica global, mas sem empregar, porém, esta orientação no estudo da sociedade capitalista. É curioso considerar que, mesmo assim, um ortodoxo editor francês se apressou em nota a restabelecer a tese clássica: cf. ENGELS, Friedrich. L’orgine de la familie, de la propriété privée et de l’Etat. Paris, Éditions Sociales, 1972, pp. 17-18 e 18 n. 1. Em suma, apesar de uma ou outra intuição em sentido diferente, é a tese clássica que vigora nas análises de Marx e de Engels, como tem daí em diante presidido às da generalidade dos seus continuadores. Uma recente defesa da tese clássica. com abundantes referências polêmicas a outras formulações dessa mesma tese, encontra-se em: LINDSEY, J.K. The work that must be done; social practice and society. Faculté de Droit, Université de Liêge, em especial no cap. 6. (Manuscrito ainda não publicado.)
  • 3
    Nos últimos anos desenvolveu-se em crítica à tese clássica uma corrente distinta da que aqui proponho; essa orientação encontra-se expressa, por exemplo, em: CLEAVER, Harry. Reading “Capital” politically. Brighton, Harvester Press, 1979, onde existem abundantes referências a outros autores da mesma corrente. Enquanto eu pretendo aqui integrar o processo de produção e de reprodução do proletariado nos mecanismos da mais-valia definidos a partir da análise do processo de produção na empresa, os autores inseridos nessa outra corrente procuram, pelo contrário, reformular o modelo da mais-valia e da lei do valor, a partir de campos sociais exteriores à empresa, considerando largas camadas da classe gestorial como pertencentes ao proletariado. Por isso, embora tanto nas teses desses autores como no modelo que aqui proponho se inclua a reprodução do proletariado no interior dos mecanismos do capital, estes são concebidos de forma diferente e as conclusões a que chegamos são consideravelmente distintas, quer quanto ao funcionamento dos mecanismos da lei do valor implicados na produção e reprodução da força de trabalho, quer quanto à apreciação dos movimentos de luta social. Em meu entender essa corrente, ao mesmo tempo que critica a tese clássica, arrisca-se a partilhar com ela - ou fá-lo efetivamente - a já referida perspectiva reformista que encontra no interior do capitalismo espaços de liberdade.
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    O símbolo do delta invertido indica aqui um incremento negativo, ou seja, uma diminuição.
  • JEL Classification: J21; J10; B52.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1985
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