RESUMO
Este artigo enfatiza o impacto contraditório das biotecnologias no sistema econômico, tanto entre os países industrializados quanto os do Terceiro Mundo e dentro de cada um desses blocos. As aplicações heterogêneas da biotecnologia e as relações específicas que estabelecem entre recursos industriais e naturais levam a uma multiplicidade de políticas setoriais e nacionais. As biotecnologias oferecem ao Brasil a possibilidade de uso mais racional e competitivo de seus recursos naturais e, ao mesmo tempo, uma maior participação em importantes setores industriais hoje fortemente internacionalizados. A chave do sucesso, entretanto, depende da capacidade de transformar a pesquisa em estratégia industrial.
PALAVRAS-CHAVE:
Biotecnologia; agrotecnologia
ABSTRACT
This article emphasizes the contradictory impact of biotechnologies on the economic system, both between industrialized and Third World countries and within each of these blocs. The heterogeneous applications of biotechnology and the specific relations they establish between industrial and natural resources lead to a multiplicity of sectoral and national policies. Biotechnologies offer Brazil the possibility for more rational and competitive use of its natural resources, and at the same time an increased participation in key industrial sectors currently heavily internationalized. The key to success however depends on the ability to transform research into industrial strategy.
KEYWORDS:
Biotechnology; agrotechnology
Existe na atualidade uma ampla bibliografia de divulgação que delimita as características técnicas e os campos de atuação das biotecnologias. Os estudos específicos sobre o impacto socioeconômico das biotecnologias são ainda poucos e se concentram na avaliação de mercados e estratégias nacionais. Finalmente, esforços de delimitação analíticas que procuram conceitualizar as biotecnologias desde o ponto de vista da inovação tecnológica e da dinâmica industrial, são ainda mais escassos.
Tomaremos esta última questão como ponto de vista de partida do nosso trabalho. Procuraremos indicar a relevância das diferenças entre biotecnologias novas e convencionais e a necessidade de considerar os efeitos econômicos contraditórios das biotecnologias. Estes efeitos contraditórios das biotecnologias serão o ponto de partida para analisar os prováveis impactos econômicos no sistema internacional. Finalmente, tomamos o caso brasileiro para mostrar as possibilidades e dificuldades com os quais tem que defrontar-se um país em desenvolvimento, mesmo com o potencial científico do nível do Brasil.
BIOTECNOLOGIAS: NOVAS E TRADICIONAIS
A forma mais exata de definir as biotecnologias tem dado lugar a uma lista que cresce com cada nova obra sobre o tema.1 1 Cf., por exemplo, a lista de definições apresentadas por A. T. Buli, G. Holt e M. D. Lilly, lnternational Trends and Perspectives in Biotechnology: A State of the Art Report, Paris, OCDE, 1982.
As dificuldades para se chegar a uma definição consensual se concentram no âmbito da abrangência das biotecnologias. De fato, os autores sobre o tema geralmente indicam que a manipulação dos organismos vivos para fins produtivos remonta aos tempos imemoráveis, como exemplificam os casos do vinho e do queijo.
As definições mais gerais e inclusivas que integram praticamente todas as biotecnologias, embora pareçam conter uma boa dose de bom senso, nos levam naturalmente a uma pergunta: o que está acontecendo de novo para que uma técnica tão antiga seja ressuscitada para ser colocada entre as tecnologias de ponta? Indiscutivelmente, dentro do conjunto de conhecimentos e de técnicas biológicas, a engenharia genética aparece como o centro de uma revolução que permite pela primeira vez o desenho industrial de novos seres vivos. Isto implica a transformação potencial de todos os processos produtivos biológicos, assim como a utilização de seres vivos para tarefas até hoje inimaginadas.
A definição restritiva de biotecnologias, centrada na engenharia genética, é por vezes questionada, pois ela tende a menosprezar a continuidade fundamental ao nível do conhecimento científico, dentro do qual a engenharia genética aparece como uma técnica importante, porém, dentro do contexto da unidade básica do conhecimento das ciências biológicas. Para outros, uma definição restritiva das biotecnologias terminaria colocando as biotecnologias, do ponto de vista econômico, no campo da futurologia, dado o ínfimo número de produtos atualmente comercializados, produzidos via engenharia genética. Ao mesmo tempo, esses autores enfatizam o sólido campo de ação que ainda possuem as biotecnologias tradicionais.
Reconhecendo os elos básicos que as biotecnologias mantêm do ponto de vista científico - e que constituem um fator importante na definição das políticas científicas - pensamos que do ponto de vista da dinâmica industrial e da inovação tecnológica é fundamental diferenciar entre biotecnologias novas e tradicionais. Isto porque as novas biotecnologias prometem transformar radicalmente as estruturas produtivas, gerando um completo realinhamento do campo de atuação das indústrias química, farmacêutica, alimentar e agrícola. A biomassa passará a ser uma matéria de utilidade quase universal, enquanto os microrganismos passarão a constituir um instrumento de produção de utilidade e fins os mais variados possíveis.
A diferença da lógica produtiva das biotecnologias novas e tradicionais fica indicada pelas formas de expansão empresarial da engenharia genética na sua primeira fase. Estas surgiram nos Estados Unidos na forma de pequenas empresas, produto da iniciativa de pesquisadores universitários. As grandes empresas do setor químico-farmacêutico, cuja lógica de inovação estava centrada em métodos tradicionais, tiveram que aceitar as novas biotecnologias como um fait accompli, passando então a associar-se às novas empresas e/ou gerar suas próprias capacidades no setor. Na Europa e no Japão foi o Estado o fator que forçou a introdução das novas biotecnologias no sistema produtivo. De fato, as novas biotecnologias passaram a agir num setor altamente oligopolizado, que estava passando por uma fase de diminuição crescente de geração de novos produtos e custos crescentes de inovação. Assim, as biotecnologias se apresentam tanto como um fator de perturbação nas linhas tradicionais de atuação como um desencadeador de novas potencialidades para o setor.
AS BIOTECNOLOGIAS COMO CONJUNTO
Se as novas biotecnologias permitem a aproximação de setores industriais anteriormente distantes, como o da petroquímica e o agroalimentar e este com o energético e o químico, elas não atuam numa direção coerente ou convergente do ponto de vista do sistema produtivo. Pelo contrário, as novas biotecnologias podem tanto facilitar o uso de hidrocarbonos como base alimentar, quanto a utilização da biomassa como base energética. Elas permitirão o aumento da produtividade agrícola, como transformar parte desta produção em obsoleta pela produção de substitutos bioindustriais.
Os efeitos contraditórios das biotecnologias podem ser claramente exemplificados com o caso do complexo agroindustrial.2 2 O argumento aqui apresentado é amplamente desenvolvido em Goodman, D., Sorj, B., Wilkinson, J., From Farming to Biotechnologies - The Agroindustrial Revolution, Blackwell, Oxford, 1986. Elas permitiram realizar o “sonho” das duas pontas do complexo: 1) no lado dos inputs elas prometem a criação de segmentes capazes de adequar-se a qualquer solo, com redução de fertilizantes e herbicidas e alta produtividade; porém, 2) parte desse potencial de incremento de produção poderá ser inútil, dados os novos métodos bioindustriais de substituição de produtos rurais e a banalização das diferentes plantas, já que processos de fracionamento e reconstituição transformarão diferentes produtos em parte de uma mesma biomassa.
A heterogeneidade da utilização potencial das biotecnologias é um elemento analítico central para estudar o desenvolvimento futuro deste setor. Ele não será a simples realização da lógica interna das novas tecnologias, mas estará profundamente ligado aos contextos nacionais. Cada nação e dentro dela os diferentes ramos e grupos industriais procurarão desenvolver as biotecnologias no sentido de maximizar seus recursos naturais, industriais e científico-tecnológico.
BIOTECNOLOGIAS E O SISTEMA INTERNACIONAL
Os estudos sobre o impacto das biotecnologias nos países em desenvolvimento parecem seguir duas linhas contraditórias.3 3 Cf. J. T. Salomon (org.), “L’lmpact des Biotechnologies sur le Tiers-Monde”, FAST, Occasional Papers, n 55, 1983; P. Rousseau, “Impacts Previsibles du Développement des Biotechnologies sur les Pays en Voie de Développement et sur les Échanges avec L’Europe”, FAST, Occasional Papers, n 46; National Academy of Sciences, Microbial Processes: Promising Technologies for Developing Countries, Washington, 1979; ATAS Bulletin, n? l; S. Watanabe, “Employment and Income Implications of the “biorevolution: a Speculative Note”, International Labour Review, vol. 124, n? 3, 1985; McConnel, D. J. et alii, “Capability Building in Biotechnology and Genetic Engineering in Developing Countries”; UNIDO, 1986; P. Bye, A. Mounier, Les Futurs Alimentaires et Energetiques des Biotechnologies, Presse Universitaire de Grenoble, 1984; O. Junne, “New Technologies: A Threat to Developing Countries Exports’”, 1984, mimeo. Quando centrados nas consequências sobre o comércio internacional, os prognósticos são pessimistas. Quando focalizam as · perspectivas para o desenvolvimento interno, são exaltados os aspectos positivos.
Nas próprias relações dos três grandes blocos do Norte (USA, Japão e Europa), e nas relações Oeste-Leste, as biotecnologias produziram importantes modificações.4 4 Cf. G. Junne, “Biotechnology and Consequences for Changing Relations Between EEC-USA, EEC-Japan, and USA-Japan”, European Parliament Biotechnology Hearing Outline, nov. 1985. Os Estados Unidos têm razões para temer uma crescente autossuficiência da União Soviética, graças à proteína unicelular e à criação de espécies de trigo resistentes ao frio, assim como da Europa e, em menor medida, do Japão. A Europa, à medida que mantém sua agricultura subsidiada, estaria limitando o desenvolvimento de usos alternativos da biomassa.5 5 Junne, 1985, indica que a produção de ácido cítrico tem sido praticamente eliminada nos países da Comunidade Europeia por causa dos altos preços internos de amido. Este é exportado subsidiado e é industrializado nos países escandinavos. O Japão, com uma base limitada de recursos naturais, procura associar-se a países onde abundam os recursos naturais, mas possuem limitações de know-how, como é o caso do projeto Cerrados no Brasil.
À medida que o grosso da pesquisa em novas biotecnologias se concentra nos países desenvolvidos, ela naturalmente se orientará no sentido de substituir importações e aumentar as exportações. Assim, as biotecnologias levarão a aumentar a autossuficiência dos países avançados e gerar excedentes agrícolas crescentes. Isto, por sua vez, significa uma dupla pressão sobre os países em desenvolvimento: diminuição de mercados de exportação e invasão de excedentes agrícolas dos países do Norte.
Além dos problemas do comércio externo, as novas biotecnologias poderão aumentar a dependência dos países em desenvolvimento. A dependência tecnológica neste campo poderá ampliar os efeitos negativos que já se fizeram sentir na importação de pacotes tecnológicos para o setor agrícola: a pouca inadequação às condições naturais e sociais locais.6 6 Cf. Wilkinson, J., op. cit. Alguns autores têm enfatizado a exploração dos recursos genéticos dos países em desenvolvimento, por bancos de culturas monopolizados pelas empresas multinacionais e os países desenvolvidos. Os recursos genéticos dos países do Terceiro Mundo seriam transferidos sem pagamento de royalties e, depois de transformados pela engenharia genética, patenteados e reintroduzidos nos países de origem.7 7 Cf., D. Dembo, E. Moohouse, C. Dias, “Privatization and Culture Tissue Technology”, Advance Technology Alert Bulletin (ATAS), n. 1, 1984.
São praticamente inexistentes os estudos sobre as estratégias das multinacionais do setor em relação ao Terceiro Mundo. Isto se explica pela quase inexistência de produtos comercializáveis. Uma política mais agressiva de internacionalização só advirá quando o controle tecnológico e comercial de novos produtos assegurar o controle na penetração de novos mercados.
As biotecnologias, da mesma forma que afetam diferentemente os países desenvolvidos, terão um efeito igualmente diversificado nos países do Terceiro Mundo. Parece bastante inadequado seguir tratando o Terceiro Mundo como possuindo uma certa unidade básica. No caso das novas biotecnologias, as consequências não podem ser dissociadas das diferentes bases de recursos naturais, agrícolas, minerais, etc., e particularmente dos potenciais científico-tecnológicos e industriais de cada país. Enquanto certos países - como, por exemplo, os NICs e o Brasil-, procuraram o desenvolvimento de uma base técnico-industrial capaz de acompanhar de alguma forma os padrões internacionais, outros países ficam crescentemente retardados. Neste contexto, as biotecnologias possivelmente aumentarão a segmentarização e heterogeneidade dos países em desenvolvimento.
Não é totalmente fantasioso imaginar que o avanço na luta contra doenças tropicais e a disponibilidade de excedentes alimentícios transformem países ou regiões inteiras do Terceiro Mundo em massas inativas mantidas pela ajuda internacional.
O CASO BRASILEIRO8 8 A bibliografia sobre as biotecnologias no Brasil ainda é escassa. Ver, entre outros, G. Martine, C. M. Castro, Biotecnologias e Sociedade: O Caso Brasileiro, Editora da UNICAMP, Campinas, 1985; Sorj, B., Wilkinson, J., Coradini O. L., “As Biotecnologias no Brasil- Relatório ao CNPq”, 1984, mimeo; J. E. Cassiolato, W. Anciães, Biotecnologias, seus Impactos no Setor Industrial, CNPq, Brasília, 1985; W. Chagas, “Biotecnologias Aplicadas à Saúde: Passado, Presente e Perspectivas de Desenvolvimento”, FINEP, 1986, mimeo; R. Jabace, “Biotecnologia Vegetal - Uma Proposta de Atuação”, FINEP, 1986, mimeo.
Embora o Brasil tenha desenvolvido no campo das biotecnologias tradicionais uma experiência relevante, na área de engenharia genética ainda está dando os primeiros passos. São escassos, embora aumentando rapidamente, os pesquisadores que se utilizam dessa técnica, além de estarem dispersos em várias instituições e atuando na área de pesquisa de laboratório.9 9 Pesquisadores em biotecnologia no Brasil (1983) Ao nível empresarial estão aparecendo os primeiros sinais de interesse de integrar industrialmente as novas biotecnologias.
Os primeiros sinais em direção à engenharia genética são feitos através de diversos tipos de modelos empresariais. Assim, a BIOBRÁS, empresa formada a partir de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, com apoio de recursos públicos, firmou um convênio com a SIDUS, empresa argentina, para produzir insulina por meio da engenharia genética. A Bio-Matrix, formada igualmente por pesquisadores universitários, se associou à Agroceres, principal empresa nacional produtora de sementes, depois de um intento malsucedido de associação com o grupo Ipiranga, que tentou incluir na sociedade empresas norte-americanas. A EMBRABIO, por sua vez, se orienta tanto na produção como na promoção de tecnologias estrangeiras, enquanto a BIOPLANTA, controlada pela American Tobacco (Souza Cruz no Brasil) e associada à NPI (Native Plants Incorporated), formou um centro de pesquisas e contratou vários dos melhores pesquisadores brasileiros na área.
Instituições públicas também estão tendo objetivos produtivos, como o Centro de Biotecnologias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que está elaborando uma vacina para a febre aftosa, e a Fundação Oswaldo Cruz, produzindo insumos de laboratório e futuramente fármacos. Finalmente, a CIBRAN - Companhia Brasileira de Antibióticos, de capital nacional, pretende utilizar-se da engenharia genética.
Esses exemplos indicam a variedade de trajetórias empresariais pelas combinatórias estado/capital nacional/capital estrangeiro, assim como a inexistência ainda de um padrão típico de empresa no setor. Essa indefinição de padrão empresarial expressa tanto a infância do setor como a inexistência de uma política definida e a complexidade econômica e política dos setores atingidos pelas biotecnologias.
As empresas do setor, por sua vez, iniciaram um processo de organização, criando a ABRABI - Associação Brasileira de Empresas de Biotecnologias - que está em rápido processo de consolidação e crescimento. Na ABRABI, estão representadas tanto as empresas públicas como as empresas privadas nacionais e estrangeiras, cabendo um terço do poder decisório a cada setor. Mais recentemente, sob a liderança da BIOPLANTA, foi criada a ABIVEG, associação empresarial do setor de biotecnologias vegetal.
Os diferentes setores ligados às biotecnologias apresentam uma situação bastante heterogênea. Nos setores farmacêutico e alimentar, é forte a presença das multinacionais. No setor agroindustrial, embora as multinacionais ocupem um lugar central na produção de insumos, o setor público possui uma empresa de pesquisa agrícola - a EMBRAPA - com um grande potencial.10 10 A EMBRAPA tem um orçamento anual de aproximadamente USS 150 milhões, 12000 funcionários e 800 pesquisadores de alto nível.
Nos setores energéticos de química pesada e elaboração de detritos, é o Estado que domina. Ressalta aqui o sistema empresarial da PETROBRÁS e, ao nível da transformação de detritos, a SABESP.
Existem, portanto, dois setores onde as biotecnologias têm, dentro do contexto atual, um potencial de desenvolvimento mais orgânico: o energético e a agricultura. O setor energético, desenvolvido em torno do PROÁLCOOL, de fato foi o principal consumidor das verbas governamentais para a pesquisa no setor de biotecnologias. A bibliografia sobre o PROÁLCOOL é enorme, e seria ocioso retornar sobre ela.11 11 Embora, apesar da infinidade de relatórios, ainda não tenha sido foi escrita uma obra acadêmica mais definitiva sobre o tema. Interessa notar aqui as dificuldades que o programa apresenta para o desenvolvimento das biotecnologias.
O PROÁLCOOL tem permitido a concentração de um número grande de instituições e pesquisadores em torno de um eixo, o complexo açucareiro - inexistente geralmente nos outros setores. Estas pesquisas deram até o momento resultados diversos. No setor propriamente agrícola, tem permitido o rápido crescimento da produtividade açucareira. As indústrias de equipamentos para as usinas de açúcar são ainda incapazes de concorrer internacionalmente, e apresenta uma produtividade e níveis tecnológicos inferiores aos processos desenvolvidos por empresas europeias e americanas.12 12 Cf. Stuckey, D., Juma, D., “Power Alcohol in Kenya and Zimbabwe: A Case Study in the Transfer of a Renewable Energy Technology”, UNCTAD, 1985.
O complexo açucareiro tem dois importantes tendões de Aquiles, o econômico e o político. O econômico, porque ele se sustenta em fortes subsídios governamentais. À medida que continua a queda dos preços do petróleo, o subsídio aparece como um ônus difícil de justificar. Politicamente, porque ao nível da máquina governamental, o programa de pesquisa depende do Ministério de Indústria e Comércio, porém, nunca foi bem-visto pela PETROBRÁS, ligada ao Ministério das Minas e Energia, cuja lógica da empresa prospectora de petróleo não integra bem um programa sustentado na produção de biomassas.
Quiçá, porém, o pecado original principal do PROÁLCOOL, do ponto de vista das biotecnologias, seja o de ser filho de grupos pouco preocupados com o desenvolvimento deste setor. Esses grupos, os grandes usineiros de açúcar e produtores de destilarias13 13 O financiamento para a compra de destilarias recebeu mais de 50% dos recursos de financiamento do PROÁLCOOL. e a indústria automobilística, pouco se ligaram a uma estratégia biotecnológica. Os primeiros, de olho nos subsídios estatais, e os segundos, na expansão do mercado consumidor, não chegaram a atuar no sentido de transformar o complexo açucareiro num campo diversificado de pesquisa e de utilização produtiva.
No setor agrícola a situação apresenta contornos menos dramáticos. Dado o fato de a legislação brasileira não patentear sementes, as empresas estrangeiras visam mais a exploração dos recursos genéticos e condições ecológicas locais, tendo em vista o controle futuro do mercado nacional e exportações para países com condições de clima e solo similares, ou de plantas ornamentais. Será, porém, a EMBRAPA o polo central de qualquer desenvolvimento nacional mais decisivo.14 14 De acordo com a revista Senhor (1.4.1986), o presidente da EMBRAPA empossado pela Nova República foi finalmente trocado, entre outras razões pela sua linha para a empresa, enfatizando a pesquisa orientada a diminuir a dependência dos agrotóxicos e fortalecer a presença da EMBRAPA no campo das novas biotecnologias.
No campo dos fármacos, mesmo a criação em 1983 de um grupo interministerial do setor farmacêutico que objetivava um maior controle nacional do setor não conseguiu vencer o forte lobby das multinacionais. Neste setor, um avanço radical no controle dos processos tecnológicos exigiria recursos econômicos e vontade política que possivelmente não se cristalizarão no atual quadro político. Isso não elimina importantes avanços em setores específicos que poderão ser feitos por empresas privadas, como a BIOBRÁS e a CIBRAN, ou instituições públicas, como a Fundação Oswaldo Cruz ou o Instituto Butantã.
O desenvolvimento de uma estratégia industrial para as biotecnologias deve enfrentar, portanto, importantes interesses criados em forma diferencial nos vários setores produtivos. Por sua vez, as biotecnologias podem ser utilizadas como ponta de lança para desenvolver uma estratégia que venha modificar a situação existente. Dificilmente, porém, repetirá estratégias utilizadas para o desenvolvimento de outros setores industriais. Dada a heterogeneidade do setor, dificilmente poderão aplicar os modelos anteriores, como os dos setores de armamentos, comunicações, petróleo ou informática. Por um lado, já existe, instalado no país, um grande número de empresas estrangeiras, e por outro lado não existem grandes grupos econômicos nacionais, ou núcleos do aparelho estatal capazes ou interessados numa política de reserva do setor para empresas nacionais.
Se ainda levarmos em consideração as dificuldades de sustentar internacionalmente a lei de reserva de mercado para a informática, dificilmente as biotecnologias no quadro político vigente terão um tratamento similar aos setores anteriormente mencionados. As dificuldades para assegurar uma linha de proteção para o setor, similar às já apresentadas, não implicam, como veremos adiante, que inexista um amplo espaço para desenvolver o potencial e o controle técnico-industrial das biotecnologias no Brasil.
A ESTRATÉGIA BRASILEIRA
A fragilidade do sistema empresarial e os complexos interesses ligados às biotecnologias se refletem na dificuldade de definir uma estratégia para o setor. Embora as ciências biológicas no Brasil tenham tido nas últimas décadas um expressivo crescimento, elas sofreram igualmente as bruscas variações do apoio governamental aos centros de pesquisas e as dificuldades de importar materiais de laboratório. Igualmente, não se deve esquecer das cassações e perseguições do regime militar a pesquisadores, que enfraqueceram várias instituições de ponta no setor.
As ciências biológicas foram particularmente privilegiadas pelo CNPq nas últimas duas décadas, especialmente na área de formação de pesquisadores. A partir de 1980, a atuação do CNPq passa a ser reforçada pela participação da FINEP no III Programa Integrado de Genética, que introduz menções específicas à engenharia genética.
Em 1981, é criado o PRONAB (Programa Nacional de Biotecnologias), sediado no CNPq, cuja atuação na verdade “ ... consiste basicamente na consolidação dos investimentos públicos para a manutenção dos grupos universitários de pesquisa em áreas biológicas preexistentes ao lançamento do referido programa” (Anciães, Cassiolato, 1985, p. 128).
Durante o regime autoritário, as biotecnologias se encontravam dentro do âmbito de preocupações do Conselho de Segurança Nacional, que constantemente se fazia presente nos debates e nas primeiras discussões para definir a estratégia para o setor.
O Ministério da Ciência e Tecnologia, que surge com a Nova República, institui a Secretaria Especial de Biotecnologia, subordinada diretamente ao ministro, com a responsabilidade de definir uma política para o setor. No início, a Secretaria definiu como setor a ser privilegiado a pesquisa de produtos agrícolas componentes da cesta básica de consumo.15 15 A proposta de prioridades da Secretaria de Biotecnologias para um programa nacional são: 1) o apoio para a pesquisa agrícola orientada à produção de alimentos básicos; 2) reformular a legislação sobre a produção de uso de agrotóxicos; 3) desenvolver um programa de desenvolvimento de fármacos; 4) criação de um centro de biotecnologias para saneamento.
Atualmente, a Secretaria está se esforçando para mobilizar recursos para uma política de desenvolvimento industrial das biotecnologias através da criação de polos regionais, integrando seis polos - Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná.
A capacidade desses polos de integrar centros de pesquisa, empresas e linhas de financiamento públicos será decisiva para o futuro desenvolvimento das biotecnologias no Brasil.
Junto com as orientações políticas mais explícitas, a atuação constante de organismos como a FINEP e o CNPq e dos institutos públicos de pesquisa acabam tendo uma consistência própria, independentemente de definições mais claras por parte do governo central.
AS BIOTECNOLOGIAS E AS PERSPECTIVAS DO BRASIL
As biotecnologias representam um risco evidente para o futuro do comércio agrícola brasileiro. A crescente autossuficiência dos Estados Unidos no setor de adoçantes não chegou a ter um impacto no Brasil graças ao PROÁLCOOL, que internalizou o consumo da quase totalidade da produção açucareira nacional. À medida que as biotecnologias modificam, reduzindo ou mesmo eliminando, vantagens comparativas naturais, o Brasil terá que enfrentar nas próximas décadas profundas transformações na divisão internacional do trabalho.
Existe, porém, um outro grupo de consequências socioeconômicas ligadas às biotecnologias, sobre as quais pouco tem se discutido. Trata-se do possível impacto social da aplicação das biotecnologias na produção agrícola. Embora elas sejam apresentadas como potenciais redentoras das regiões áridas e pobres do Nordeste, trata-se de uma perspectiva no mínimo unilateral. À medida que potencializam a produtividade, as biotecnologias acabarão por liberar uma parte considerável da população rural. Somente uma estratégia orientada a diversificar os usos da biomassa permitirá absorver os futuros excedentes agrícolas e limita· assim a diminuição da oferta de emprego no campo.
Num informe sobre o futuro comercial das biotecnologias, a OTA (Office of Technological Assessment), do Congresso norte-americano, coloca os Estados Unidos e o Japão como os principais concorrentes pelo controle do mercado brasileiro. A Europa aparece como uma força marginal, e o próprio potencial nacional brasileiro é praticamente descartado. Trata-se, quiçá, de um diagnóstico apressado, que não reflete no conjunto o estado atual e potencial das relações do Brasil com os grandes blocos do Norte. Isto, à medida que o Brasil seja capaz de diversificar o leque de partners para melhor negociar as condições de transferência de tecnologia, a Europa poderá ser um apoio importante dentro de um plano nacional de desenvolvimento das biotecnologias. A maior fragilidade e o peso político do Estado nas orientações de empresas públicas ligadas às biotecnologias poderão quiçá levar a Europa a política de associação e transferência de tecnologias que as grandes multinacionais estadunidenses não estariam dispostas a realizar.
A associação com outros países latino-americanos, da forma que foi iniciada pelo convênio Brasil-Argentina de dezembro de 1985, propondo a cooperação científico-tecnológica e inclusive a criação de empresas binacionais, apresenta-se igualmente como uma via promissora.
A experiência brasileira em outros setores de tecnologia avançada tem mostrado que para produtos diferentes têm-se desenvolvido modelos empresariais diferentes. A forte presença estatal na petroquímica, a articulação da empresa privada com as orientações estatais no setor de armamentos, a presença dos grandes grupos privados na informática indica a diversidade de estratégias que se têm apresentado para o desenvolvimento de outros setores de ponta.
O alto grau de internacionalização dos setores industriais mais afetados pelas biotecnologias (farmacêutica, química, agroindustrial) tem como contraponto a capacidade demonstrada por sucessivos governos brasileiros de estabelecer o controle sobre produtos fundamentais para o interesse nacional.
No Brasil, as biotecnologias se apresentam como uma dupla promessa: a de potencializar e racionalizar a utilização de recursos naturais - particularmente dos solos - e de permitir uma maior participação econômica e controle tecnológico dos setores atualmente fortemente internacionalizados, particularmente o agroalimentar e o químico-farmacêutico.
A capacidade de absorver, gerar e difundir a tecnologia no tecido produtivo diz, sem dúvida, respeito à capacitação científica e técnica do país, mas, fundamentalmente, ela se refere à vontade política de mobilizar os recursos humanos e materiais de forma a permitir a transformação do conhecimento científico em produção industrial. A passagem da pesquisa à industrialização se apresenta como o gargalo central do sistema brasileiro de ciência e tecnologia. A existência de um potencial científico e tecnológico não assegura que ele se traduzirá no desenvolvimento de estruturas produtivas adequadas. A passagem de um setor para outro só é possível à medida que empresas estejam dispostas a assumir investimentos e riscos em pesquisa e desenvolvimento. É nesta questão que se colocam os impasses práticos para o avanço do controle nacional nesse setor de ponta. A necessidade de criar modelos empresariais capazes de realiza; a transferência para a produção industrial da pesquisa acadêmica se apresenta como uma questão ainda não resolvida, e na qual o Brasil apenas começa a dar os primeiros passos.
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1
Cf., por exemplo, a lista de definições apresentadas por A. T. Buli, G. Holt e M. D. Lilly, lnternational Trends and Perspectives in Biotechnology: A State of the Art Report, Paris, OCDE, 1982.
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2
O argumento aqui apresentado é amplamente desenvolvido em Goodman, D., Sorj, B., Wilkinson, J., From Farming to Biotechnologies - The Agroindustrial Revolution, Blackwell, Oxford, 1986.
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3
Cf. J. T. Salomon (org.), “L’lmpact des Biotechnologies sur le Tiers-Monde”, FAST, Occasional Papers, n 55, 1983; P. Rousseau, “Impacts Previsibles du Développement des Biotechnologies sur les Pays en Voie de Développement et sur les Échanges avec L’Europe”, FAST, Occasional Papers, n 46; National Academy of Sciences, Microbial Processes: Promising Technologies for Developing Countries, Washington, 1979; ATAS Bulletin, n? l; S. Watanabe, “Employment and Income Implications of the “biorevolution: a Speculative Note”, International Labour Review, vol. 124, n? 3, 1985; McConnel, D. J. et alii, “Capability Building in Biotechnology and Genetic Engineering in Developing Countries”; UNIDO, 1986; P. Bye, A. Mounier, Les Futurs Alimentaires et Energetiques des Biotechnologies, Presse Universitaire de Grenoble, 1984; O. Junne, “New Technologies: A Threat to Developing Countries Exports’”, 1984, mimeo.
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4
Cf. G. Junne, “Biotechnology and Consequences for Changing Relations Between EEC-USA, EEC-Japan, and USA-Japan”, European Parliament Biotechnology Hearing Outline, nov. 1985.
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5
Junne, 1985, indica que a produção de ácido cítrico tem sido praticamente eliminada nos países da Comunidade Europeia por causa dos altos preços internos de amido. Este é exportado subsidiado e é industrializado nos países escandinavos.
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6
Cf. Wilkinson, J., op. cit.
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7
Cf., D. Dembo, E. Moohouse, C. Dias, “Privatization and Culture Tissue Technology”, Advance Technology Alert Bulletin (ATAS), n. 1, 1984.
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8
A bibliografia sobre as biotecnologias no Brasil ainda é escassa. Ver, entre outros, G. Martine, C. M. Castro, Biotecnologias e Sociedade: O Caso Brasileiro, Editora da UNICAMP, Campinas, 1985; Sorj, B., Wilkinson, J., Coradini O. L., “As Biotecnologias no Brasil- Relatório ao CNPq”, 1984, mimeo; J. E. Cassiolato, W. Anciães, Biotecnologias, seus Impactos no Setor Industrial, CNPq, Brasília, 1985; W. Chagas, “Biotecnologias Aplicadas à Saúde: Passado, Presente e Perspectivas de Desenvolvimento”, FINEP, 1986, mimeo; R. Jabace, “Biotecnologia Vegetal - Uma Proposta de Atuação”, FINEP, 1986, mimeo.
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9
Pesquisadores em biotecnologia no Brasil (1983)
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10
A EMBRAPA tem um orçamento anual de aproximadamente USS 150 milhões, 12000 funcionários e 800 pesquisadores de alto nível.
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11
Embora, apesar da infinidade de relatórios, ainda não tenha sido foi escrita uma obra acadêmica mais definitiva sobre o tema.
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12
Cf. Stuckey, D., Juma, D., “Power Alcohol in Kenya and Zimbabwe: A Case Study in the Transfer of a Renewable Energy Technology”, UNCTAD, 1985.
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13
O financiamento para a compra de destilarias recebeu mais de 50% dos recursos de financiamento do PROÁLCOOL.
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14
De acordo com a revista Senhor (1.4.1986), o presidente da EMBRAPA empossado pela Nova República foi finalmente trocado, entre outras razões pela sua linha para a empresa, enfatizando a pesquisa orientada a diminuir a dependência dos agrotóxicos e fortalecer a presença da EMBRAPA no campo das novas biotecnologias.
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15
A proposta de prioridades da Secretaria de Biotecnologias para um programa nacional são: 1) o apoio para a pesquisa agrícola orientada à produção de alimentos básicos; 2) reformular a legislação sobre a produção de uso de agrotóxicos; 3) desenvolver um programa de desenvolvimento de fármacos; 4) criação de um centro de biotecnologias para saneamento.
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16
JEL Classification: Q16; Q17.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Fev 2024 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 1988