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Inteligência contínua: a sétima revolução cognitiva do Sapiens

Continuous intelligence: the 7th sapiens’ cognitive revolution

Resumo:

A formação da autora deste trabalho, no campo das linguagens - musicais, visuais e verbais - foi sempre marcada pela atenção à materialidade das próprias linguagens e aos meios pelos quais elas são transmitidas, para permitir suas funções comunicativas. Desde o aparelho fonador, instalado no próprio corpo, esses meios se constituem como tecnologias que foram evoluindo, através dos séculos, trazendo consigo novas formas de linguagem, tais como as distintas formas de escrita, a galáxia de Gutenberg e, do século 19 para cá, as revoluções industrial, eletrônica e digital, cada qual introduzindo tecnologias que lhes são próprias. Quando as questões de linguagem são colocadas no foco da atenção, o que importa, desde a revolução industrial, é o advento de tecnologias cognitivas, como são a fotografia, o cinema, seguidas das tecnologias eletrônicas - rádio e televisão - e, por fim, a explosão da revolução digital com todas as suas novas formas de linguagens e consequentemente de cognição, que hoje se distribuem pelos mais distintos aplicativos e plataformas. O estudo dessa evolução levou a autora a postular, a partir da inspiração colhida em alguns autores, que a cognição humana está, desde as primeiras formas de escrita, crescendo fora da caixa craniana. Portanto, uma proposta que diz respeito à exossomatização da inteligência e da cognição humana com todas as contradições que isso traz. Este artigo está dedicado à explicitação dessa proposta, com atenção ao modo como ela foi se desenvolvendo, no seu pensamento.

Palavras-chave:
Linguagens; Tecnologias; Cognição; Exossomatização; Contradições

Abstract:

My training in the field of languages - musical, visual, and verbal - was always marked by attention to the materiality of languages themselves and to the means how they are transmitted to allow their communicative functions. Since the phonatory system, installed in the body itself, these means constitute technologies that have evolved over the centuries, bringing with them new forms of languages, such as the different forms of writing, the Gutenberg galaxy and, from the 19th century onwards, the industrial, electronic, and digital revolutions, each introducing technologies of their own. When language issues are placed in the focus of attention, what matters, since the industrial revolution, is the advent of cognitive technologies, such as photography, cinema, followed by electronic technologies - radio and television -, and, finally, the explosion of the digital revolution with all its new language forms and consequently of cognition, which today are distributed across the most different applications and platforms. The study of this evolution led me to postulate, based on the inspiration gathered from some authors, that human cognition is, since the first forms of writing, growing outside the human skull. Therefore, this is a proposal that concerns the exosomatization of human intelligence and cognition with all the contradictions that this brings. This article is dedicated to explaining this proposal with attention to the way it was developed in my work along the years.

Keywords:
Languages; Technologies; Cognition; Exosomatization; Contradictions

Introdução

Tem havido recentemente uma verdadeira explosão de publicações, demarcando ciclos evolutivos que foram gradativamente engendrando as condições tecnológicas, consideradas revolucionárias, que ora atravessamos, com grandes repercussões na economia, política, cultura e também na cognição e psiquismo humanos. Esses ciclos são hoje denominados quarta revolução industrial, segunda revolução das máquinas, Web 4.0, Vida 3.0 etc. Trata-se de um contexto que vem dar respaldo a uma hipótese de trabalho que venho desenvolvendo, há muitos anos, na companhia de muitos autores com os quais tenho dialogado, em várias áreas de conhecimento. A hipótese é a seguinte: a inteligência humana, desde o advento da escrita, vem crescendo fora da caixa craniana. Da escrita, passando por Gutenberg, então, pela era da reprodutibilidade, da eletrônica, viemos dar na revolução digital, em desenvolvimento exponencial. Nesse contexto, conduzida pela hipótese do crescimento da inteligência, proponho a entrada do sapiens, sob o nome de “neo-humano”, em sua sétima revolução comunicacional-cognitiva, sob a égide da inteligência artificial, da internet das coisas, do gigantismo dos dados e da mudança de paradigma da computação. Essa hipótese se encontra ampla e detalhadamente desenvolvida, no livro Do pós-humano ao neo-humano: a sétima revolução cognitiva do sapiens, já publicado, de que o artigo a seguir é uma brevíssima síntese.

1 O tema das revoluções

É fato que a palavra “revolução”, em quaisquer contextos, está sujeita a muitas discussões. Contudo, é tal sua presença atual, nos escritos de especialistas das mais diversas áreas de conhecimento e atuação, que é possível constatar que se trata hoje de um consenso que poucos se dispõem a discutir, limitando-se a propor uma numeração relativa a ciclos evolutivos marcados dentro do campo com que o autor está familiarizado, como se segue.

Ficou bastante conhecido pela repercussão internacional, na área da economia, o livro de Klaus Schwab sobre a quarta revolução industrial (2016), traduzido para várias línguas, inclusive o português, e seguido por um volume voltado para a modelagem do futuro (2018). No Brasil, especificamente, esse livro estimulou a corrida das empresas para o que passou a ser chamado de “transformação digital”. O autor justifica a entrada de uma quarta revolução com o argumento de mudanças profundas e sistêmicas baseadas nas megatendências da física, do digital e do biológico, as quais estão colocando em questão não apenas os modos de produção, mas, nas palavras do próprio autor, a nossa concepção mesma do humano.

Bem antes da onda atual de marcação de ciclos evolutivos, veio a público o magnífico livro de Merlin Donald, Origens do pensamento moderno (Origins of the modern mind: three stages in the evolution of culture and cognition) (1991DONALD, Merlin. Origins of the modern mind. Three stages in the evolution of culture and cognition. Harvard University Press, 1991.), no qual o pesquisador propõe que, a partir da invenção da escrita, seguida por extensões tecnológicas cada vez mais sofisticadas, o sapiens deu início ao terceiro ciclo evolutivo da espécie. Essa publicação foi seguida pelo livro A mind so rare: the evolution of human consciousness (Uma mente tão rara. A evolução da consciência humana) (2001DONALD, Merlin. A mind so rare. The evolution of human consciousness. New York: W. W. Norton & Company, 2001.), no qual o mesmo autor sintetiza e complementa suas ideias.

Pouco tempo depois, no volume A quarta descontinuidade. A coevolução dos humanos e máquinas (1993), Bruce MazlishMAZLISH, Bruce. The fourth discontinuity. The co-evolution of humans and machines. New Haven, CN: Yale University Press, 1993. discutiu as transformações simultâneas ocorridas nos humanos - cada vez mais plugados a dispositivos maquínicos - e nos robôs, crescentemente buscando a semelhança com os humanos.

Essas publicações pioneiras em suas propostas foram seguidas recentemente por uma verdadeira explosão de publicações, demarcando ciclos evolutivos que foram gradativamente engendrando as condições, consideradas revolucionárias, que ora atravessamos. Senão, vejamos.

Para Floridi (2014FLORIDI, Luciano. The fourth revolution. How the infosphere is reshaping human reality. Oxford: Oxford University Press, 2014.), entramos em uma quarta revolução devido à remodelagem da realidade humana provocada pela infosfera. Embora o número coincida com o de Schwab, os ciclos diferem em sua magnitude. A base de Schwab encontra-se na industrialização e nos negócios, agora na fase 4.0 (1ª revolução: água e vapor para mecanizar a produção; 2ª: eletricidade e produção em massa; 3ª: eletrônica e tec-info para automatizar a produção; e 4ª: de fusão e sem fronteiras, de tecnologias físicas, digitais e biológicas graças aos dispositivos móveis, sensores, IoT - internet das coisas - e IA - inteligência artificial).

Floridi, por seu lado, vai bem mais longe e divide as eras de desenvolvimento humano em três (pré-história, história e hiper-história), que se originam de quatro revoluções do desenvolvimento humano (1. agricultura, 2. escrita, 3. tecnologias energéticas e informacionais separadas e 4. tecnologias da comunicação e informação, como forças ambientais que criam e transformam a nossa realidade). Nessa divisão, Floridi segue um critério bem mais próximo da área de comunicação, baseado no registro, acumulação e transmissão de informação para o consumo futuro, regulado, portanto, pela produção e preservação de conhecimento. Por isso, a passagem da pré- para a história é marcada pela invenção da escrita.

Brynjolfsson e McAfee (2016BRYNJOLFSSON, Erik; McAFEE, Andrew. The second machine age. Work, progress, and prosperity in a time of brilliant technologies. New York: W. W. Norton & Company, 2016.) defendem que estamos atravessando uma segunda idade das máquinas, a partir da mudança indiscutível de paradigma das máquinas mecânicas e mesmo eletrônicas da primeira idade para a digitalização, a qual não cessa de colocar no mundo novidades inquietantes, como carros autônomos, novas gerações de robôs, impressoras 3D, logística quase instantânea para o e-comércio, vigilância onipresente, superpoderes computacionais disponíveis em brinquedos, drones capazes de orquestrar coreografias coletivas sem intervenção humana, similares aos voos coordenados de pássaros, na mudança de estação, e por aí vai. O que mais seria preciso para justificar a proposta dos autores de uma segunda era das máquinas? Mais do que isso, uma era que perturbadoramente progride para um destino que nos é desconhecido e que parece escapar, entre os dedos, ao poder de previsibilidade da ciência.

Leonhard (2016LEONHARD, Gerd. Technology vs. humanity. The coming clash between man and machine. Fast Future, 2016.), de sua parte, bate na tecla da megavirada da nossa era, em função de exponenciação das transformações. No passado, afirma o autor, cada virada radical na sociedade humana era provocada por um fator decisivo, como a madeira, a pedra, o bronze, o ferro, então, pelo vapor, a eletricidade, a automação industrial e, por fim, a internet na sua primeira era. Agora, no entanto, um conjunto de megaviradas na ciência e tecnologia atuando em conjunto estão redesenhando não apenas o comércio, a cultura e a sociedade como um todo, mas, sobretudo, a própria biologia humana com seus consequentes dilemas éticos.

Tegmark (2017TEGMARK, Max. Life 3.0. Being human in the age of artifitial intelligence. New York: Penguin, 2017.), um dos maiores especialistas em IA do MIT, propõe que, nesta era da IA, o ser humano saltou para outro tipo de vida, marcado como “Vida 3.0”. Quais são os atributos dessa numeração comparativamente à Vida 1.0 e, então, à 2.0? A 1.0, estritamente biológica e determinada que é pelo DNA, só evolui ao longo de muitas gerações. A 2.0, por seu lado, biocultural, “[...] pode redesenhar muito do seu software: os humanos podem aprender novas habilidades complexas - por exemplo, linguagens, esportes e profissões - e podem fundamentalmente atualizar sua visão de mundo e seus alvos.” A Vida 3.0, que está a caminho, poderá “[...] redesenhar dramaticamente não apenas seu software, mas também seu hardware, ao invés de ter que esperar por sua evolução através de gerações.” (TEGMARK, 2017TEGMARK, Max. Life 3.0. Being human in the age of artifitial intelligence. New York: Penguin, 2017., p. 26).

Bostrom (2014BOSTROM, Nick. Superintelligence. Paths, dangers, strategies. Oxford: Oxford University Press, 2016.), no seu livro bastante citado sobre os passos, os perigos e as estratégias envolvendo a superinteligência, discorre sobre a explosão da inteligência prognosticada pela esperada evolução da IA. O argumento defendido na obra se desenvolve na direção de que é nula a hipótese de que poderemos, daqui para frente, ignorar com segurança o prospecto da superinteligência, também chamada de “explosão da inteligência”. Para entender essa explosão, é preciso considerar um novo ciclo evolutivo, interior ao desenvolvimento da própria IA, pois, entre os especialistas, já se tornou voz corrente nomear a IA por níveis que vão da IA fraca à forte, levando às perspectivas da superinteligência.

Uma das características da bibliografia citada encontra-se no equilíbrio da postura dos autores, os quais não acionam sua balança nem para o lado tecnofóbico, nem para o lado ingenuamente eufórico, embora todos eles mantenham a constatação crítica de que estamos penetrando em uma era profundamente inédita, na história da nossa espécie. Evidentemente, essa bibliografia é muito mais seletiva do que exaustiva. O que me interessou na sua coleta e estudo foi encontrar vozes que pudessem dar respaldo à hipótese que tem norteado minhas pesquisas, a qual se apoia na evidência de que a onipresença da digitalização e sua expansão, por todos os meandros da pesquisa científica, da cultura e do holístico da sociedade, nos fornecem, do ponto em que se encontra hoje, o crescimento extrabiológico da inteligência humana.

2 A onipresença da digitalização

De fato, a obesidade digital está tomando conta de tudo e a velocidade exponencial de suas transformações está levando muitos especialistas à denominação de um verdadeiro “tsunami digital”. A rigor, o termo “digitalização”, hoje transfigurado em “datificação”, transcende, e muito, o frenesi provocado pela internet e seus aplicativos de redes sociais, os quais podem ser vistos agora como mera ponta de um iceberg invisível e profundo, cujos efeitos chegam até nós, sorrateiramente. Motores de busca, mineração de dados, reconhecimento de voz e de face, traduções exímias automatizadas e muitas outras aplicações são regidas por algoritmos de IA no comando de nossas vidas. Não há dúvida de que a IA está transformando os computadores e seus aplicativos em alguma outra coisa que ainda não somos capazes de definir. Diante disso, não há como evitar o temor das interrogações sobre o momento em que as máquinas irão nos ajudar ou, então, assumir de vez o controle decisório de nossas ações, momento em que, como quer Leonhard (2016LEONHARD, Gerd. Technology vs. humanity. The coming clash between man and machine. Fast Future, 2016.), os algoritmos estarão convertidos em “androrritmos”.

É indiscutível que não se trata mais de uma diferença de grau ou de espécie, mas de ordem de magnitude. O que, por enquanto, não passa de pressentimento inquietante para cada um de nós, os prognósticos afirmam que os assistentes pessoais se tornarão superinteligentes, onipresentes, vergonhosamente baratos, invisíveis e embarcados em tudo, inclusive em nós mesmos. E não saberemos viver sem eles, do mesmo modo que, para os jovens de hoje, quando o digital se mescla e se enreda em tudo, não vale mais qualquer passagem diferencial entre on e off.

Quando se sabe que o número de dispositivos conectados já era de 6.58 por pessoa, em 2020, quando se sabe que sensores embarcados em todas as coisas, via IoT, conectarão tudo e todos (conforme já se instalou, na Coreia do Sul), quando se pressentem as perspectivas futuras do Blockchain, a comunicação na Terra aparecerá como eminentemente não humana, muito mais do que pós-humana, pois o cérebro artificial, na nuvem de dispositivos, sensores, hardwares e processos interconectados se constituirá como uma rede do tamanho do mundo e para além de suas fronteiras. Esse é o resultado de estarmos cada vez mais mergulhados, nós e as coisas, na era dos zetabytes, um nome melhor do que big data, para nos dar a dimensão do gigantismo desse mergulho que se define como um conjunto de dados amplos, diversos, complexos, longitudinais e distribuídos, gerados por sensores, internet, transações, redes sociais, vídeos, sons, stream de cliques etc. (FLORIDI, 2014FLORIDI, Luciano. The fourth revolution. How the infosphere is reshaping human reality. Oxford: Oxford University Press, 2014., p. 14).

A digitalização de tudo - documentos, notícias, música, fotos, vídeos, mapas, atualizações pessoais, redes sociais, buscas de informações e respostas a essas buscas, sensores de todos os tipos e assim por diante - é o fenômeno mais atordoante dos últimos tempos, o qual só será ainda mais atordoante frente às perspectivas prometidas pela IA forte. Diante das estripulias que as aplicações da IA fraca já estão promovendo, a única certeza que podemos ter é a de que a vida humana não será mais o que é hoje. Não vem do acaso, portanto, a hipótese do neo-humano que está orientando minhas pesquisas atuais.

3 A hipótese do neo-humano

Não estou só na hipótese que estou desenvolvendo sobre o neo-humano, ou seja, de uma radical transformação da própria ontologia do humano, que, de minha parte, tomo como fruto de um processo evolutivo das formas comunicacionais e cognitivas sustentadas pelas linguagens que o ser humano não cessa de inventar e que crescem na medida mesma em que crescem os meios de produção, registro, armazenamento, memória e transmissão dessas linguagens. Vejamos algumas passagens extraídas da literatura em circulação, as quais realçam a necessidade de revisão urgente da ontologia do humano.

Barrat (2013BARRAT, James. Our final invention. Artificial intelligence and the end of the human era- New York: Thomas Dunne Books, 2013., p. 21) pergunta: de que se constitui um robô, quando os humanos estendem seus corpos e mentes com próteses inteligentes e implantes? Nessa mescla entre ser robô sem deixar de ser humano, o que então poderá definir o humano?

A perplexidade de Leonhard segue em direção similar, ao constatar que a transformação humana será maior nos próximos vinte anos do que foi nos prévios 300 anos. Quando certas coisas, como um nanobot na nossa corrente sanguínea ou implantes comunicacionais no nosso cérebro, se tornarem possíveis, quem decidirá sobre qual é a natureza do humano? O autor nos adverte quanto ao fato de que devemos imaginar um amanhã diferente, em um futuro cuja complexidade pode muito bem ir bastante além da compreensão humana corrente. Em função disso, dedica-se, em seu livro, a desenhar um mapa mental e uma filosofia para a era digital por ele chamada de “humanismo exponencial” (LEONHARD, 2016LEONHARD, Gerd. Technology vs. humanity. The coming clash between man and machine. Fast Future, 2016., p. 1, 10, 14).

O que define o humano? Leonhard também se pergunta. A filosofia vem lutando há séculos com essa questão, mas agora chegamos a um ponto no qual a tecnobio está se engrenando, de sorte a nos permitir aumentar, alterar, reprogramar ou mesmo redesenhar o humano. Portanto, a pergunta se transformou agora em uma questão candente e inadiável. Diante disso, como ficará o embate entre STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática) e aquilo que o autor chama de CORE (criatividade, compaixão, originalidade, reciprocidade, responsabilidade e empatia)? Tudo isso para evitar que a tecnologia repentinamente se torne o propósito de nossas vidas, em vez de ser uma ferramenta para descobrir o propósito (LEONHARD, 2016LEONHARD, Gerd. Technology vs. humanity. The coming clash between man and machine. Fast Future, 2016., p. 16, 24, 46).

Vivendo na infosfera e já transformados de ciborgues para “inforgs”, segundo Floridi (2014FLORIDI, Luciano. The fourth revolution. How the infosphere is reshaping human reality. Oxford: Oxford University Press, 2014.), não há como escapar da necessidade de se repensar quais são os novos atributos capazes de definir o humano. Para Tegmark (2017TEGMARK, Max. Life 3.0. Being human in the age of artifitial intelligence. New York: Penguin, 2017., p. 92), não restam dúvidas acerca do fato de que os avanços iminentes da IA irão transformar o que significa ser humano. Cada vez se torna mais difícil afirmar que faltam propósitos, criatividade ou linguagem na IA, traços que muitos pensam ser privilégios do humano. Ao contrário, daqui para frente, a IA irá cada vez mais impactar como o ser humano vê a si mesmo, não importa o quanto isso pode ferir o orgulho de si que nossa espécie cultivou até hoje. A tecnologia da informação já provocou um grande impacto em todos os setores das atividades humanas, da ciência às finanças, à manufatura, transporte, saúde, energia e, sobretudo, à comunicação, esta que, a meu ver, se constitui em uma espécie de carro-chefe. A intimidade que mantém com as pesquisas em IA autoriza Tegmark (2017TEGMARK, Max. Life 3.0. Being human in the age of artifitial intelligence. New York: Penguin, 2017., p. 93) a concluir que esses impactos anteriores irão empalidecer, em comparação com os avanços que a IA tem o potencial de incrementar.

Diante dessas tecnoevidências crescentes e sub-repticiamente introjetando-se nos aspectos mais insuspeitados de nossa existência, a hipótese do neo-humano aqui postulada deve parecer bastante plausível. Basta observar, com mente aberta, a destreza cognitiva precoce de um bebê entre 18 e 24 meses, quando manipula um celular, e o choro desesperado, quando lhe tiram o “bichinho” das mãos (SANTAELLA, no preloSANTAELLA, Lucia. A precoce cognição por imagem em crianças. Ponta Grossa: UEPG: no prelo.).

4 A hipótese da extrassomatização do cérebro

Desde muito cedo, o ser humano buscou superar tanto a fragilidade do seu cérebro mortal como depositário da memória quanto a contingência da fala evanescente e fugaz: começou a gravar imagens nas grutas, para driblar a dissipação da memória no tempo. Do mesmo modo, inventou formas de escrita pictográficas, ideográficas, hieroglíficas, como meios de preservação externa, socializada, dos seus modos de conhecimento do mundo. Tais fatos têm me levado a afirmar (SANTAELLA, 2003SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.) que, por meio das linguagens, aí se deu o início do crescimento do cérebro humano, de sua capacidade cognitiva e, consequentemente, de sua inteligência fora do corpo biológico, mas devidamente a ele integrado pelos próprios fios do pensamento e da inteligência suportados pelas linguagens.

Tanto é assim que grandes saltos em tal direção foram se dando no Ocidente, a partir da implantação, no mundo grego, da escrita alfabética e seus suportes de inscrição que vieram se exponenciar com a invenção de Gutenberg. Embora a propagação dos livros tenha impulsionado consideravelmente a exossomatização da inteligência, seu ponto de expansão e aceleração viria com as tecnologias de linguagem trazidas pela revolução industrial: máquina fotográfica, fonógrafo, cinematógrafo, seguida pela revolução eletroeletrônica, de que resultaram o rádio e a TV. O que é importante notar é que, nessas máquinas, que chamo de sensórias (amplificadoras dos sentidos da visão e audição), transitam linguagens e, nestas, constituem-se novas formas de cognição que diversificam e ampliam as formas externalizadas da inteligência humana. Entretanto, essa ampliação só viria alcançar seu cume evolutivo com as máquinas cerebrais, a saber, os computadores.

Se, por limitações físico-biológicas, o crescimento do cérebro não podia se dar dentro da caixa craniana, a inteligência humana tratou de se desenvolver fora do corpo humano, extrassomatizada sub specie de linguagens que foram se sofisticando cada vez mais, nas máquinas replicadoras das funções sensório-motoras próprias da revolução eletromecânica, passando pela eletroeletrônica, até atingir as tecnologias da inteligência da revolução teleinformática.

Enquanto as linguagens geradas em suportes eletromecânicos, especialmente a foto e o cinema, e as linguagens geradas em suportes eletroeletrônicos, especialmente as radiofônicas e televisivas, são linguagens voltadas prioritariamente para a ampliação de um tipo de específico de inteligência, aquela do infotenimento comunicacional; enquanto a própria internet e suas redes sociais estão ainda direcionadas para o infotenimento, agora incrementado pela interatividade e compartilhamento, com a inteligência artificial, as máquinas cerebrais estão atingindo um ponto de magnitude de tal ordem que são simulados e emulados os próprios atributos constitutivos da inteligência em si. No estado da arte em que hoje estamos, seria difícil encontrar prova maior do que essa do vetor para o crescimento da inteligência humana.

É diante disso que podemos afirmar, sem muitos titubeios, que a inteligência artificial (IA) veio para ficar, crescer e se multiplicar, o que, por outro caminho, acaba por coincidir com os prognósticos dos especialistas de laboratórios, ou seja, aqueles que estão com a mão na massa, que estão construindo a IA e que conhecem por dentro os benefícios e riscos, os efeitos colaterais que apresentam, longe do sensacionalismo de filmes distópicos e de temores mal-informados. É o que pode ser atestado no livro organizado por Martin Ford (2018FORD, Martin (org.). Architects of Intelligence. The truth about AI from the people building it. Birmingham: Packt, 2018.), Architects of Intelligence, um compêndio de entrevistas com especialistas de formação interdisciplinar que estão na linha de frente das pesquisas e em condições de avaliar suas condições presentes e prognósticos para o futuro.

5 O crescimento da inteligência

Desde muito tempo, cuja localização exata se perdeu nas brumas da minha memória, provavelmente na época juvenil, quando li O acaso e a necessidade, de Jacques Monod (1976), e, então, depois de assistir repetidamente ao filme Blade Runner 1 (1982), começou a brotar em meu pensamento essa hipótese de que a inteligência humana está crescendo para fora do corpo biológico, processo que já teve início nas imagens das cavernas.

O livro de Monod obteve na época uma grande repercussão, não apenas pelo fato de o autor ter recebido o prêmio Nobel. O livro lançava por terra qualquer hipótese determinística sobre a vida no planeta, com suas consequências na vida humana. Conforme está expresso no título, O acaso e a necessidade, existe um balanço indissociável entre o determinado e o indeterminado, o possível e o atual, a previsibilidade e a incerteza. De fato, o destino se inscreve na medida em que se cumpre, e não antes. Além disso, a obra já colocava em questão dicotomias que tenderiam a se dissipar daí para frente, especialmente entre natureza e artifício. Afinal, desde meados do século XX, a biologia já havia se dado conta da natureza química do código genético: a vida é informação.

De fato, de meados dos anos 1950 a 1980, a biologia entrou em alvoroço com a grande pergunta: o que é a vida? Aquilo que se conhecia de sua fisicalidade foi questionado. A descoberta do código genético evidenciou que vida é código, informação, portanto, algo que pode ser decifrado, destituído de quaisquer suposições de sacralidade. Aquilo que é decifrado pode ser manipulado. Não deu outra: a primeira intervenção no código genético se deu em 1969. Os problemas éticos que decorrem disso são imensuráveis. A primeira sequencialização do genoma se deu em 1999. Qualquer cientista pode hoje ter acesso a bancos de genes.

As ideias do livro de Monod encontraram, poucos anos mais tarde, sua versão imaginativa impactante no filme Blade Runner. O caçador de androides (RIDLEY SCOTT, 1982). Alguns o consideram como uma expressão ficcional da metafísica. Penso que ele trata especificamente de questões ontológicas. É a natureza humana e o que costumávamos pensar sobre o que é ser humano que são colocadas em questão. Em que se transforma a mente humana, quando ela se estende em aparelhos e dispositivos? O que é o corpo, quando sua clonagem se torna possível? Mais ainda, o que é hoje o corpo, quando as tecnologias começam a penetrar em seu âmago mais profundo e se alargar, por meio de sensores, GPSs, hiperconexões que captam nossas localizações onde quer que estejamos?

Tendo isso em vista, Blade Runner não é um filme futurista. Ele estava com os olhos postos no seu presente. Parecia futurista, porque levou os avanços da engenharia genética às últimas consequências, o que, de resto, já se anunciava naquele momento. Pareceu futurista, porque as pessoas tendem a olhar o presente com os olhos no retrovisor, conforme foi diagnosticado por M. McLuhan. Repito: não é futurista, embora tenha antecipado as incertezas cruciais que o contemporâneo está colocando na face de nosso ser: o que é o ser humano? Afinal, o que somos nós, humanos, ou o que sobrou de nós, melhor, o que sobrou do que pensávamos que éramos, agora que nos tornamos literalmente híbridos entre o carbono e o silício?

Creio que esse emaranhado de questões se constituiu em um fio subterrâneo que vem, explícita ou implicitamente, acompanhando muitos dos meus trabalhos desde então, alimentados também por uma curiosidade intelectual difícil de dar conta. Para tornar essa longa história mais curta e chegarmos mais cedo ao que aqui interessa, no final dos anos 1990, impulsionada pelas novas tendências da arte, estava imersa na pesquisa sobre o corpo, que passei a chamar de biotecnológico, e o seu conceito irmão, o pós-humano. Os temas eram praticamente obrigatórios, na época.

Imersa em uma rosácea de ideias e atenta às exposições internacionais de arte sobre o pós-humano (ver HARAWAY, 1991HARAWAY, Donna. A cyborg manifesto: Science, technology, and socialist feminism in the late twentieth century. In: HARAWAY, Donna. Simians, cyborgs, and women: The reinvention of nature. New York: Routledge, 1991.; HAYLES, 1999HAYLES, Katherine. How we became posthuman. Virtual Bodies in Cybernetics, Literature, and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.), decidi dar ao livro em que expunha as pesquisas recentes (também em débito na época com as obras pioneiras de Lemos, publicadas um pouco antes, 2002aLEMOS, André. Cibercultura. Tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulinas, 2002a. e 2002bLEMOS, André. Ciberensaios para o século XXI. Salvador: EDUFBA, 2002b.) o título de Culturas e artes do pós-humano. Da cultura de massas à cibercultura (SANTAELLA, 2003SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.). A penetração desse livro no Brasil deu-se de maneira lenta, mas gradativamente foi ganhando reimpressões, até ser homenageado em 17 de agosto de 2019, na Bienal Nacional do Livro, em Fortaleza, justo no momento em que estava passando meu pensamento do pós-humano para o neo-humano.

De fato, muitas águas rolaram desde 2003. Minha pesquisa, levada a cabo a partir de 2015, que já foi finalizada e que envolveu a OOO, Ontologia Orientada aos Objetos, proposta pelos realistas especulativos, conduziu-me para a passagem do pós-humano ao não humano, tema discutido com veemência pelos realistas, conforme apresentei em uma publicação (SANTAELLA, 2017SANTAELLA, Lucia. Ignições das artes contemporâneas na virada especulativa. In: ROCHA, Cleomar; SANTAELLA, Lucia (ed.). Ignições. Goiânia: UFG, 2017. p. 69-87.). A virada do não humano (nonhuman turn) engloba estudos interdisciplinares das mais diversas ordens, todos eles endereçados para o descentramento do humano, no seio da biosfera.

A rigor, as teorias do não humano representam um prolongamento crítico dos movimentos teóricos e artísticos que, durante algum tempo, ocuparam o cenário das ideias com o nome de pós-humano (ver FELINTO; SANTAELLA, 2012FELINTO, Erick; SANTAELLA, Lucia. O explorador de abismos. Vilém Flusser e o pós-humanismo. São Paulo: Paulus, 2012.). De um lado, para evitar o mal-entendimento de uma teleologia implícita no prefixo “pós”, quer dizer, a interpretação simplista de um antes e um depois do humano, a qual, por mais que se queira evitar, acaba por se impor, de outro lado, para estender o descentramento do humano até uma dimensão eco e cosmológica, o termo “não humano” passou a ser usado, sem que isso signifique o abandono das ricas discussões travadas sob o título de pós-humano. Segundo Grusin (2015GRUSIN, Richard. Introduction. In: GRUSIN, Richard (org.). The nonhuman turn. Minneapolis: The University of Minnesota Press, 2015. p. vii-xxix., p. vii-xxix), as filosofias e teorias que têm demonstrado seu engajamento no amplo espectro das questões do não humano são:

  1. A teoria ator-rede de Bruno Latour e outros, que versa sobre os objetos sociotécnicos a partir de uma ontologia plana entre humanos e não humanos, dos agenciamentos não humanos e do parlamento das coisas.

  2. A teoria dos afetos, tal como foi mobilizada pelas discussões sobre diversidade sexual.

  3. Os estudos sobre os animais e seus direitos.

  4. A teoria da assemblage, de Deleuze e DeLanda.

  5. As teorias do cérebro, neurociências, ciências cognitivas, inteligência, consciência e vida artificiais.

  6. O novo materialismo, especialmente nas teorias feministas.

  7. As teorias midiáticas, com atenção para as redes, interfaces e análise computacional.

  8. Todas as variedades do realismo especulativo ou filosofia orientada a objetos, neovitalismo e pampsiquismo.

Tudo isso resulta do fato de que, hoje, entramos decididamente em uma segunda era do digital, a qual, além de digitalmente sincronizar biotecnologias, engenharia genética com outros avanços tecnológicos que interferem inclusive no mundo físico, conforme Schwab (2016), é uma era que deverá ficar conhecida como a mescla da cognição humana com a inteligência artificial e os incrementos biotecnológicos.

Seja o que for que vier pela frente, o que está me interessando no estado da arte no qual a digitalização se encontra é marcar o quanto a IA, especialmente de uns anos para cá, está dando força à hipótese do crescimento da inteligência fora do corpo biológico humano, o que ajuda a justificar a hipótese do neo-humano. Isso é uma constatação crítica, sem nenhum resvalo por quaisquer euforias ou disforias, extremos que costumam ser sempre mais fáceis e confortáveis do que o enfrentamento dos desafios que a complexidade do presente está nos colocando.

Considerações finais: inteligência, uma questão a discutir

Neste ponto, é preciso esclarecer o que está aqui sendo entendido por inteligência. Não existe um consenso quanto à definição de inteligência. Aquela que está mais próxima do sentido que está sendo tomado neste projeto foi formulada por Nilsson (2010NILSSON, Nils J. The quest for artificial Intelligence. A history of ideas and achievements. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.). Para ele, a inteligência é uma qualidade ou atributo que habilita uma entidade a funcionar apropriadamente e com alguma previsão, no seu ambiente. A partir disso, são muitas as entidades que podem possuir a qualidade da inteligência: humanos, animais e algumas máquinas. Não é por acaso, portanto, que nossos celulares são chamados de telefones inteligentes, o que, de fato, são. Seria difícil negar.

É fundamental esclarecer que pensar o crescimento da inteligência da espécie humana e, com ela, o neo-humano não implica, de modo algum, a consideração acrítica e apologética desse crescimento. Ao contrário, a inteligência cresce e com ela crescem juntos suas ambivalências, suas contradições e seus paradoxos. Afinal, conforme Edgar Morin (1975MORIN, Edgar. O enigma do homem: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.) já nos alertou, há muitos anos, somos Homo faber, loquens, ludicus, sapiens, digitalis e, sobretudo, não há como negar, somos também demens. Trata-se de uma espécie efetivamente paradoxal, que ganha, ao nascer, a consciência da morte - um ser para a morte, como afirmou Heidegger. O que se tem aí é um descarnamento radical, irrevogável, irremediável, uma promessa de dor pela efemeridade, pelas perdas e pelo desaparecimento inexorável, em contradição cabal com o sonho de eternidade que ronda a fragilidade da vida fadada à morte.

Trazendo a questão para mais perto da realidade atual, Bostrom (2016BOSTROM, Nick. Superintelligence. Paths, dangers, strategies. Oxford: Oxford University Press, 2016., p. 67) esclarece que somos levados a constatar que as sociedades modernas não parecem inteligentes. Em condições políticas bastante negativas, presentes em alguns países, aquilo que vem se evidenciando como a ascensão de uma direita radical comparece como um sinal evidente de falta de sabedoria e incapacidade mental, na era moderna. Além disso, são também evidentes a idolatria do consumo, a poluição, a destruição do meio ambiente e a dizimação de muitas espécies, as falhas em se remediar injustiças globais e a negligência em relação a valores humanos e espiritualidade. Tais condições apenas comprovam que o crescimento da inteligência coletiva não implica maior sabedoria. Que sistemas inteligentes não são inerentemente bons e confiavelmente mais sábios funciona como índice inegável dos paradoxos e contradições de uma espécie que, por ser sapiens, carrega a demência também dentro de si.

Tais condições, entretanto, não devem servir de impedimento para a constatação crítica de que somos uma espécie em processo ininterrupto de evolução, um tipo de evolução que é hoje bastante precipitada, pelo crescimento das linguagens e, com elas, da cognição humana, o que, de modo algum, pode ser tomado como sinônimo de progresso - esta palavra, de resto, uma invenção alimentadora dos ideais capitalistas. Vem daí a importância de se levantar os perigos que nos rondam e de se engajar no pensamento de estratégias, como o faz Bostron (2016), em sua obra.

Esse é o novo limiar em que nossa humanidade está penetrando, um limiar cuja extrema complexidade e desafios ontológicos e especialmente éticos, segundo Tegmark (2017TEGMARK, Max. Life 3.0. Being human in the age of artifitial intelligence. New York: Penguin, 2017.), deveriam nos instigar para uma conversação em que todos, de uma forma ou de outra, poderiam se engajar. É nesse diálogo em que me encontro hoje engajada, com a modéstia que me cabe, mas com o rigor necessário e na continuidade de ideias que foram brotando e amadurecendo, ao longo do tempo, as quais me fizeram chegar às condições atuais do meu pensamento.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2022
  • Aceito
    29 Nov 2022
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