RESUMO
O trabalho analisa aspectos de dois documentários dirigidos por Leni Riefenstahl nos anos 1930, com ênfase na presença do corpo como natureza. Triunfo da vontade, sobre o congresso do Partido Nacional-Socialista em 1934, em Nuremberg, e Olympia, que se ocupa dos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, são vistos como dispositivos pedagógicos a destacar a pureza corporal oriunda do vínculo consanguíneo, uma entre várias possibilidades de formar uma comunidade fascista. Isso se dá pela estetização da política e pela circunscrição do corpo e sua imagem à pura natureza.
Palavras-chave Esporte e política; Corpo e estética; Riefenstahl; Leni; Benjamin; Walter; Documentário
ABSTRACT
This paper analyzes aspects of two documentaries directed by Leni Riefenstahl in the 1930s, pointing the presence of the body as nature in both narratives. Triumph of the will, on the Congress of the National Socialist Party in Nuremberg, 1934, and Olympia, in charge of the 1936 Olympic Games in Berlin are seen as pedagogical devices highlighting the body purity arising from the consanguineous bond, a possibility of forming a fascist community. This is due to the aestheticization of politics and the circumscription of the body and its image as pure nature.
Keywords Sport and politics; Body and aesthetic; Riefenstahl; Leni; Benjamin; Walter; Documentary Film
Abertura
O encontro entre política e estética, em formas nem sempre harmônicas, foi uma das marcas dos anos 1930, na antessala da Segunda Guerra Mundial. Estavam postas, na Europa Central, mas também na América, as condições para isso, entre elas, uma sociedade de massas em expansão; os estados nacionais em tenso processo de consolidação; o ambiente de incerteza pós Primeira Guerra; o exemplo de uma revolução bem-sucedida, a de 1917; o jornal como meio de comunicação consolidado; a presença de uma forma de arte e divertimento ao alcance do grande público: o cinema. Adubava-se o solo para o surgimento de lideranças carismáticas a incorporar ideais abstratos e mitológicos. A eles aderiam, em escalas diversas, massas populacionais que se identificavam com aqueles líderes, cuja força se multiplicava por meio dos novos meios, alguns deles, como o rádio, já presentes em residências burguesas e proletárias.
Já se via nas primeiras décadas do século 20 o desenvolvimento exponencial do cinema como indústria, construindo fitas cada vez mais longas, em breve com banda sonora, apresentadas em salões com capacidade para centenas de espectadores. Em seus primeiros anos na Alemanha, o espetáculo não era ainda conhecido como Kino (de kinesis, movimento), mas como Lichtspiel (jogo de luz), denominação apropriada para o que de fato surge e se desenvolve como uma espécie de brinquedo público para adultos e crianças. Exotismo, paisagens, documentação de eventos e de atividades cotidianas, mas também uma dramaturgia cada vez mais apurada, possibilitada por condições técnicas progressivamente avançadas.
Assim como o rádio, o cinema foi objeto e palco de disputa entre diferentes posições políticas. Bertold Brecht fez documentários em que pontificavam na tela grandes contingentes de trabalhadores, Walter Benjamin (2012) afirmava que no cinema pela primeira vez a massa podia ver a si mesma representada, ademais de o ser humano recuperar, frente à câmera, a autonomia perdida para a maquinaria imposta pelo trabalho. As grandes referências vinham do cinema soviético, com as inovações de Dziga Vertov – em especial em Um homem com uma câmera (1929) – e a montagem dialética dos épicos de Serguei Einsenstein, com destaque para o Encouraçado de Potemkin (1925) e Outubro (1927).
A década de 1930 viu também, na esteira da ascensão do nacional-socialismo na Alemanha, e de outras modalidades de fascismo no Ocidente, a produção de obras reacionárias, que em sua construção formal expressavam um ideário e sua utopia. A grande representante desde movimento foi Leni Riefenstahl, dançarina, atriz na passagem do cinema mudo para sonoro, logo diretora de ficção e, principalmente, importante documentarista. Tendo sido ainda grande fotógrafa, Riefenstahl foi responsável, durante a década de 30 do século passado, por quatro filmes que podem ser vistos como parte de um mesmo projeto: dois curtas-metragens, Sieg des Glaubens (Vitória da crença) e Tag der Freiheit. Unsere Wehrmacht (Dia da liberdade. Nosso Exército), e por dois longas, Triunph des Willens (Triunfo da vontade) e Olympia, dividido em Fest der Vöker (Festa dos povos) e Fest der Schönenheit (Festa da beleza). Todos foram realizados por encomenda e financiados, direta ou indiretamente, pelo III Reich, em especial pelo Ministerium des Propagandas und für Volksaufklärung (Ministério da propaganda e para o esclarecimento do povo), dirigido por Joseph Goebbels.
Os filmes citados são peças de propaganda do nacional-socialismo, produzidos sob uma estética que privilegia alguns de seus cânones: o ritual, o culto à personalidade, a identificação com o que é igual a si, a hierarquia, a misoginia, o machismo, a submissão, a repressão de si, a não contradição e o racismo. São também trabalhos de documentação, mas não em seu sentido mais trivial. O que documentam não são, ao menos não exatamente, o Congresso do Partido Nazista de 1934, em Nuremberg (Triunfo da vontade), ou os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim (Olympia), mas um espírito, um imaginário materializado naqueles dois eventos. Se no filme documental a reconstrução do material bruto obedece a um roteiro que diz do olhar de sua diretora, nesses dois casos parece haver uma meta predeterminada, e, para tal, recursos dramatúrgicos, principalmente no trabalho de 1935, não são economizados.
Embora os documentários de Riefenstahl tenham já sido objeto de análise de um extenso número de trabalhos, um aspecto parece ainda carente de reflexão mais detida. Trata-se da condição de natureza do corpo que neles é defendida, mirada que lhe retira a historicidade e o caráter político, instituindo-o, ao contrário, como lugar de realização de uma ontologia da violência. Estudar um pouco esse processo é o objetivo do presente trabalho. Ele procura, portanto, deslocar a atenção do arianismo propalado nos dois documentários – que de fato existe – para algo que supõe ser central nas obras da cineasta e do fascismo em geral: o caráter de pureza e a indivisibilidade da sociedade, bem expressos, nesses filmes, no corpo humano. Isso se reforça se forem somados aos filmes documentais seus trabalhos como atriz e livros de fotografia.
No primeiro caso, são frequentes as alusões à natureza a ser dominada, de forma que várias vezes o montanhismo aparece como questão central, tanto por sua vinculação com certo amor pela natureza, como pelo fato de que sua meta é alcançar o lugar mais alto, percurso que exige determinação e coragem. No segundo, emergem os livros de fotos sobre os Nuba (RIEFENSTAHL, 1973; 1976), tribo sudanesa então com quase nenhum contato com o Ocidente, celebrizada por ela como composta por homens (mas também mulheres) à beira da perfeição: puros, sem mistura, ensimesmados culturalmente, com corpos grandes, lisos e de formas harmônicas.
A ideia de natureza não é algo que se deve exclusivamente à modernidade, mas é nela, no entanto, que ganha contornos que serão muito importantes nos documentários de Riefenstahl. Como contraponto ao acelerado processo de urbanização e industrialização, a natureza emerge como lugar e tempo utópicos para a cura dos males que teriam sido produzidos pela civilização. É nesse contexto que campo, montanha e praia alcançam o status de territórios de recuperação da saúde, física e mental, de bem-estar, tranquilidade, aventura e lazer. Expressão do Romantismo, por certo, esse movimento que tem seu lado crítico, mas pode ser também conservador, ou ainda reacionário, mitológico, anti-intelectualista, ao se colocar como rechaço à civilização e à cultura.
Nos filmes da diretora alemã, principalmente em Olympia e em Triunfo da vontade, a construção da natureza como mito é uma chave da composição narrativa. Planos e montagens criam imagens em movimento em que o corpo, reduzido à condição de natureza pura e sem máculas, emerge como uniformidade e identificação com o igual, intolerante a qualquer mescla ou dúvida. A busca é por um corpo que fosse autêntico, inquestionável porque fora do curso do tempo e da história, sem pensamento e, portanto, sem incertezas, vivendo o presente como destino manifesto. Trata-se, como dito acima, de empreendimento anticivilizatório, mas, paradoxalmente, também o seu reverso: a construção de uma outra civilização, pura, indivisível, fascinante, politizada em sua despolitização. Fascista.
A seguir examino aspectos desses dois filmes, peças educativas que ensinam, menos pelas ideias pronunciadas, que são muito poucas, e essencialmente pela forma, a grandeza que o fascismo supõe ter. Sua captura política se dá pela sedução dos sentidos. Analiso, sobretudo, a produção do corpo puro, belo porque íntegro e autêntico por sua própria natureza. Desobedeço a cronologia, nem tanto por desapego à ordem, mas em razão de que em Olympia comparecem motivos que em Triunfo da vontade se mostram menos diluídos e, talvez, mais exatos. Neste último, não há qualquer compromisso que não seja expressar a força do nacional-socialismo, compromisso assumido desde sempre ao se roteirizar o congresso do partido para que pudesse ser documentado.
Festa da Pureza
A arte fascista exibe uma estética utópica – a perfeição física
(SONTAG, 1986, p. 73).
Há nos começos do ideário olímpico um impulso aristocrático que busca restaurar o que se supõe ter sido perdido com a emergência da sociedade burguesa, vinculada à produção, ao tempo controlado e à exploração da natureza e do potencial da força de trabalho de homens e mulheres. O esporte seria uma expressão do espírito daqueles que podiam colocar o corpo sob esforço, mas sem que isso resultasse em algo produtivo, visto que o trabalho seria resquício de uma vida não livre da qual os aristocratas estariam liberados. Por isso a medida distintiva que impedia a participação de atletas profissionais nos Jogos.
As Olimpíadas iniciam cem anos depois da revolução burguesa por excelência, a Francesa. Parece ter sido necessário um século para que a reação cultural aristocrática ganhasse força, e a estratégia simbólica escolhida diz muito sobre o processo. Afirmar que os Jogos da Grécia Antiga renasceriam na Era Moderna, atualizava, em chave neoclássica, a imagem do homem exemplar, naturalmente perfeito. Trata-se de fantasia regressiva e entrópica cara a movimentos românticos reativos, frequentes nos séculos 18 e 19.
A anacrônica projeção sobre os Antigos de uma expectativa do presente encontra um ponto alto nos Jogos de Berlim, em 1936, esta obra de arte total (Gesamtkunstwerk) que encenou o projeto wagneriano, como bem interpretam Gebauer e Wulf (1996). Em nota de trabalho para o ensaio sobre a reprodutibilidade técnica, o fenômeno não escapou à observação de Benjamin (2012), segundo o qual os Jogos teriam caráter reacionário, comparáveis, como exposição de corpos, à Exposição Universal, de Paris, onde as máquinas faziam o espetáculo.
O produto esteticamente mais elaborado sobre os Jogos, correspondente à grandiosidade do Complexo Olímpico construído em área nobre da capital da Alemanha, é, no entanto, o projeto Olympia. A obra, realizada em tempos em que as transmissões televisivas davam os primeirospassos – aparelhos foram distribuídos pela cidade-sede para que se assistisse ao que se passava nas competições –, tornou-se exemplo e modelo para toda e qualquer filmagem de atletas dali por diante, inclusive as que são atualmente realizadas. Enquanto hoje as condições técnicas de produção e veiculação são muito mais amplas, as bases da estética de um corpo esportista enquadrado pela câmera devem suas formas a Dziga Vertov, mas, ainda mais, à cineasta alemã. Como relata a fotobiografia editada por Angelika Taschen (2001), Riefenstahl e sua equipe se prepararam intensamente para o trabalho nos Jogos, simulando inúmeras situações para a captação de corpos em movimento. A estrutura montada para a produção do filme contou com uma equipe de 150 profissionais.
Logo no início da primeira parte, Festa dos povos, vê-se, depois que a tocha olímpica, desde Atenas, vai de mão em mão pelo mapa da Europa até chegar à Alemanha, a conjunção e transformação do Discóbolo – escultura que representa de forma ímpar o corpo cultivado – em atleta ariano a lançar o disco, atualizando a crença do pangermanismo, segundo a qual o Ariano atualiza na Modernidade a excelência do Grego na Antiguidade. É a grandeza do Estádio Olímpico de Berlim (complexo esportivo capaz de abrigar, ao mesmo tempo, até quinhentas mil pessoas) e dos atletas em seu interior que logo assistimos. Na montagem do filme, que durou dois anos, prevaleceram menos os triunfos, e mais os corpos, estáticos ou em deslocamento, mas sempre extáticos, em exposição de si e de suas magníficas destrezas.
O segundo segmento do projeto Olympia, Festa da beleza, segue com a ode ao corpo, mas agora as imagens se dividem menos com as bandeiras e os rituais do Estádio. A abertura do filme não deixa dúvidas. Jovens correm descalços, seminus, pela floresta – há orvalho, pássaros, insetos – até encontrarem um lago. Mergulham, como que passando por um ritual de purificação, para então adentrar a sauna. São belos, másculos, iguais, entregues a vapores, essências, limpezas e mútuos afagos. São os corpos a serem admirados, desejados: higiênicos, proporcionais, fortes, viris, seriados. Como descreve Sontag, circunscrevendo o trabalho da diretora alemã no contexto mais amplo da estética nazista:
Pintores e escultores sob o regime nazista frequentemente retratavam o nu, mas estavam proibidos de mostrar quaisquer imperfeições físicas. Os seus nus parecem fotos de revistas de cultura física: imagens que são tanto hipocritamente assexuais como (num sentido técnico) pornográficas, pois têm a perfeição de uma fantasia. A promoção da beleza e da saúde feita por Riefenstahl, deve ser dito, é bem mais sofisticada que isso; e jamais tola, como em outras artes visuais nazistas. Ela aprecia uma série de tipos físicos — em questões de beleza ela não é racista — e, em Olympia, de fato revela um certo esforço na tentativa de contornar as imperfeições dos participantes, igualmente estilizados, e que realizam exercícios aparentemente sem muita dificuldade (tal como o mergulho, na sequência mais admirável do filme)
(1986, p. 72-73).
É de se destacar a relação entre esporte e pornografia, que entre si compartilham valores como desempenho, excesso, subordinação, performance (VAZ, 1999). Ou, como pontuam Adorno e Horkheimer:
Aquilo que Kant fundamentou transcendentalmente, a afinidade entre o conhecimento e o plano, que imprime o caráter de uma inescapável funcionalidade à vida burguesa integralmente racionalizada, inclusive em suas pausas para a respiração, de Sade realizou empiricamente um século antes do advento do esporte. As equipes esportivas modernas, cuja cooperação está regulada de tal sorte que nenhum membro tenha dúvidas sobre o papel e para cada um haja um suplente a postos, encontram seu modelo exato nos teams sexuais de Juliette, onde nenhum instante fica ocioso, nenhuma abertura do corpo é desdenhada, nenhuma função permanece inativa. No esporte, assim como em todos os ramos da cultura de massas, reina uma atividade intensa e funcional, de modo que só o espectador perfeitamente iniciado pode compreender a diferença das combinações, o sentido das peripécias, determinado pelas regras arbitrariamente estabelecidas (1985, p. 87).
Daniel Wildmann (1998) destaca que subjazem, em relação comparativa, os corpos que não aparecem no filme, em especial os de judeus, produzidos pela sociedade sob o nacional-socialismo como a antítese dos arianos, e em degrau claramente inferior. Afinal, “quando a dominação da natureza é o verdadeiro objetivo, a inferioridade biológica será sempre o estigma por excelência, e a fraqueza impressa pela natureza a marca incitando a violência” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 231).
Na designação da inferioridade racial pelo nacional-socialismo – judeus, ciganos, mas também homossexuais e transexuais, entre outros grupos vistos como degenerados – reside um conjunto de práticas em torno do que Adorno e Horkheimer (1985) chamaram de interesse pelo corpo. Haveria uma história paralela à oficial, secreta, obscura, e ela estaria vincada no movimento de rejeição por tudo o que é ameaçadoramente corporal, mas, simultaneamente, no de identificação e gozo sem limites do corpo. Seu ápice foram as leis raciais e a instituição dos campos de concentração e extermínio, onde o corpo é reduzido a puro organismo, número sem qualidades. Para que haja esses corpos que devem desaparecer, haverá os que são louvados, aqueles que se aproximam da perfeição perseguida pelas imagens esportivas de Riefenstahl:
O amor da propaganda totalitária pela natureza e pelo destino é apenas uma superficial formação reativa a essa servidão ao corpo, à civilização malograda. Não podemos nos livrar do corpo e nós o louvamos quando não podemos golpeá-lo. A cosmovisão trágica do fascista são vésperas ideológicas a festejar verdadeiras núpcias de sangue. Os que na Alemanha louvavam o corpo, os ginastas e os excursionistas, sempre tiveram com o homicídio a mais íntima afinidade, assim como os amantes da natureza com a caça
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 219).
Em sequência que se pretende lúdica, atletas são flagrados em exercícios, relaxamento e lazer, um deles tem sua imagem seguida pela de um canguru, cujos movimentos lhe seriam semelhantes. O tom não é o de rebaixamento ao plano dos bichos, mas o de júbilo e, portanto, de circunscrição do humano ao plano da natureza e do esporte ao da naturalidade dos movimentos. São animais para serem admirados, cultivados, cultuados, como acontecerá com algumas das raças caninas alemãs, o que não será o caso de bichos abjetos que devem ser exterminados, estes com frequência utilizados para caracterizar, naqueles anos e em nosso tempo, os corpos humanos indesejáveis: judeus comparados a ratos e piolhos, latino-americanos a baratas, homossexuais a vermes (bichas)1. Compõe este mesmo quadro uma prática comum entre a cúpula nazista, como lembram Adorno e Horkheimer (1985), o vegetarianismo.
Em Triunfo da vontade, a paz é posta como uma meta do nacional-socialismo. Ela só poderá ser alcançada, no entanto, entre iguais, e não nas diferenças – requisito da política em sua existência –, vistas, então, como inferioridade racial. A paz que o fascismo procura só é possível com a morte da política.
Triunfo da Natureza
Olympia tem um importante parentesco com Triunfo da vontade, obra tornada paradigma da propaganda política contemporânea. Filme sobre o congresso do Partido Nacional-Socialista Alemão, em Nuremberg, em 1934, ocupa-se dos três dias de ritual que transformaram a cidade, literalmente, em um set de filmagem. Sabe-se pela leitura do ensaio de Sontag (1986) que a programação das atividades teve a presença da diretora, preocupada com a instalação e movimento das câmeras. Albert Speer, o arquiteto oficial do III Reich, foi igualmente figura presente na construção do evento, sendo também personagem coadjuvante do filme. Como já apontado, o nacional-socialismo foi um programa de dominação com forte investimento na forma e na imagem, de maneira a exercer a dominação com poucas ideias – e quase todas irracionais – e muita sedução dos sentidos. Não deixa de chamar a atenção do espectador contemporâneo que a realizadora seja apresentada, nos créditos, como também acontece em Olympia, como quem deu forma à obra – Gestaltet von Leni Riefenstahl, lê-se.
A concepção de Triunfo da vontade é educativa, de reafirmação da vontade coletiva em detrimento do desejo individual. Não é, portanto, a um sujeito que o filme se dirige, mas a um delírio coletivo que encontra seu desiderato na identificação imediata com a figura do Führer e tudo o que ela representa. O nexo é construído a partir da suposição de uma natureza comum a todos, demarcada pelo sangue. Esta é uma questão que perpassa toda a narrativa que, em montagem de primeira linha, dispensa argumentos, eles dão lugar à voz, ou às vozes que anunciam o novo tempo. Há poucas falas e, especialmente, não há diálogo, tampouco espaços para que os espectadores pudessem, com sua imaginação, preencher e atuar, portanto, em relação ao que veem na tela. Ao contrário, tudo é rígido e calculado porque os espectadores são, finalmente, espectros.
O tempo nos é delimitado ainda nos créditos iniciais, e não se inicia em 5 de setembro de 1934, dia da abertura do evento, mas “a vinte anos do desencadeamento da Guerra Mundial, dezesseis anos depois do início de nosso sofrimento e dezenove meses após nosso renascimento”. (TRIUNFO..., 1935, cap. 1).As balizas são, portanto, o início e a derrota na Primeira Guerra Mundial e a ascensão de Hitler ao poder, no passado, enquanto não as há para o futuro, nem poderia haver, já que o nacional-socialismo seria eterno.
Apesar de o regime temporal ser bem definido, não é o tempo que mais importa, mas o espaço. É ele que se vê topografado para os corpos e suas expressões: femininos e infantis nas calçadas por onde passam o Führer e outros dirigentes (em um desfile ele recebe de uma criança e sua mãe, que deixam a borda da avenida, um ramo de flores); imberbes e juvenis no acampamento e no ritual do estádio; viris e masculinos quando portam as ferramentas de trabalho no campo; patriarcais e espasmódicos ao vestirem as insígnias nazistas e subirem a cada púlpito ou tribuna de honra para, a título de discursar, vociferar para as massas e serem cultuados por elas.
Os infantes e jovens ganham protagonismo na peça publicitária em dois grandes momentos. O primeiro mostra o acampamento montado nos arredores da cidade, ao alvorecer. Rapazes sem camisa, ajudando a preparar a refeição matinal, mas, principalmente, cuidando da higiene e divertindo-se, de forma ordeira, com os companheiros. Chama a atenção a similaridade entre os corpos, não há baixa estatura, tampouco cortes de cabelo individualizantes, mas mútua colaboração na limpeza, no penteado e no barbear de uns e outros, fazendo lembrar o comportamento dos atletas na sauna, em Olympia. Anos depois, em 1947, Adorno e Horkheimer escreveriam que “na coletividade fascista, com seus teams e campos de concentração, cada um é, desde a juventude, um prisioneiro em uma célula; ela cultiva a homossexualidade” (1985, p. 235). Não se referem eles à condição sexual, mas ao amor pelo corpo igual ao seu e a si mesmo, blindado dos perigos do outro que, repelido, não será capaz de contaminar a pureza ausente de dúvidas e vacilações, da contingência.
A segunda situação em que a juventude aparece em primeiro plano é no encontro com Hitler no estádio esportivo, impecavelmente perfilada para ouvir e louvar o orador. O ritmo dos tambores orienta os deslocamentos e transes, cortados no documentário – com cenas provavelmente rodadas em estúdio – pela pergunta que um dos jovens faz a outros que, alternadamente, vão dizendo sua origem: Pomerânia, Silésia, Munique etc., mas também além-mar, diz um deles. Sim, porque o que designa este povo é o sangue, não importando que o nascimento se tenha dado em país estrangeiro e mesmo distante. Não se vê moças, embora Hitler as mencione – e apenas isso – em seu discurso, assim como tampouco presenciamos deficiência ou hesitação, mas corpos atraídos por seus iguais e exortados ao sacrifício que a pátria-sangue demandar. Corpos jovens disponíveis para qualquer tipo de uso, como em Salò ou os 120 dias de Sodoma (1975), a implacável interpretação visual de Pier Paolo Pasolini sobre o fascismo.
A fascinação pelo trabalho não é exclusividade dos movimentos que veem a si mesmo como de esquerda, mas também um fetiche dos mais importantes para o fascismo e para aqueles que levam traços fascistas em suas práticas políticas e sociais. A atenção de Benito Mussolini à organização do trabalho e do lazer, bem como a de Juan Domingo Perón e a de Getúlio Vargas, são testemunhos do culto ao trabalho. Ernst Jünger foi provavelmente o mais destacado intelectual, dos vinculados ao nazismo, a glorificar o trabalho, publicando em 1932 o livro Der Arbeiter: Herrschaft und Gestalt (O trabalhador: poder e forma). O destino disso foi a redução do corpo a instrumento, e a construção da máquina de guerra, assim como os pórticos de campos de concentração e extermínio testemunhavam, neles se podia ler que o “trabalho liberta” (Arbeit macht Frei). Os trabalhadores que aparecem na tela em Triunfo da vontade são principalmente rurais, e empunham pás como se portassem fuzis. Imposta-se a admiração pela baixa complexidade como trunfo ideológico, o elogio ao homem do campo e sua pureza em relação aos males do urbano e da vida do espírito, ao que corresponde o caráter anti-intelectualista do fascismo, nada diferente no caso do nacional-socialismo.
Com direito à voz emergem as lideranças nazistas, mostradas em plano médio ou em close, dominando o enquadramento que, por sua vez, com muita frequência é feito de baixo para cima. A pouca estatura de Adolf Hitler não é empecilho para, com a câmera e com a projeção da imagem capturada, torná-lo grande a ponto de poder corresponder à expectativa de ser o Líder. Corpos rígidos, mas com movimentos espasmódicos, revezam-se com o do Führer, não para debater, mas para uma vez mais anunciar o destino germânico que o nacional-socialismo quis revelar. Ao dispensar a fala e valorizar a pura voz, eclipsa-se a política e, com ela, as diferenças, incertezas, possibilidades:
Contrastando com a castidade assexual da arte comunista oficial, a arte nazista é tanto lasciva quanto idealizante. Uma estética utópica (a perfeição física; a identidade como um dado biológico) implica um erotismo ideal: a sexualidade convertida no magnetismo dos líderes e na alegria de seus seguidores. O ideal fascista é transformar a energia sexual numa força “espiritual”, para o benefício da comunidade
(SONTAG, 1986, p. 73-74).
Se o passado é irreversível, mas conta com o perdão para tornar-se possível, e o futuro é imprevisível, ainda que contemos com a promessa, isso depende da política, da ação entre iguais na esfera pública, como nos ensina Arendt (2010). Essa igualdade não se dá, portanto, pelo sangue, pelo organismo, mas pelas múltiplas possibilidades de corpos que desejam e falam2.
O fascismo que emerge no documentário de Riefenstahl se sustenta no mito do pangermanismo racial, assim como na dinâmica da narrativa mitológica. Logo no início da película vemos que o Führer chega do céu em um pequeno avião. Não sabemos de onde ele vem, mas isso não é necessário, o mito não tem origem, uma vez imune à história. Ao longo do filme, os rituais atualizam a única verdade, expressa, por sua vez, no destino manifesto pela educação da vontade. Não há lugar para o desejo e, portanto, tampouco para o sujeito, porque não é de singularidade, diferença e falta que se está falando, mas de massificação, repetição e crença. Triunfo da vontade significa fracasso do desejo, a menos que este seja visto como a procura por não-ser-mais, pela diluição catastrófica do sujeito – em des-subjetivação – no coletivismo. Estaríamos falando, então, no entanto, na impossibilidade de renunciar, movimento sem o qual não há desejo. Estamos falando de compulsão.
Final: Contra uma Pedagogia do Fascismo
Os dois filmes foram feitos como dispositivos para educar sensibilidades e preparar espíritos e corpos para um modelo civilizatório, o nazismo. Eles ajudaram a chocar o ovo da serpente que tornaria a disputa racial algo necessário no contexto da Segunda Guerra Mundial, desencadeada pela própria Alemanha. Neles o corpo aparece profundamente adestrado, frequentemente expressando-se na natureza, que é de onde ele provém – ao domínio da natureza externa corresponde a do corpo tornado natureza, seja no esporte, seja na política. É igualmente importante, porém, observar não só como ele se mostra, mas como se educa o olhar para mirá-lo: corpo que deve ser celebrado como unidade indivisível, perfeição alcançada não apenas porque é ariano – o que finalmente é um detalhe –, mas porque não tem mistura, é pureza em exercício, sem doenças, defeitos, imprecisões, deficiência. Ao contrário, é eficiência masculina e patriarcal – que preza pela higienização dos corpos, das etnias, dos gêneros, das ideias – que afeta e deixa-se afetar apenas pelo seu igual, ou seja, por si mesmo, jamais pela indesejável diferença.
É este o corpo que se aprende a admirar, celebrar, pelos takes que engrandecem atletas em proezas, e políticos em gestualidades grandiloquentes. Se em Olympia os esportistas agem naturalmente para dominar a natureza porque dela emergem nus em corridas pela floresta e banhos em plácidos lagos, em Triunfo da vontade cada membro da alta cúpula do nacional-socialismo – assim como a juventude hitlerista em camaradagem nos jogos, refeições e desfiles, e o povo nas ruas – atua para ser filmado, representa a si mesmo, já que valeria a encenação, fosse de rituais, fosse dos mitos nos quais se alicerçava. De lá para cá todo político – e logo depois, todo atleta – torna-se ator, atua para a câmera – não para reconstituir o domínio sobre a máquina, como pontuou Benjamin (2012), mas para submeter-se à maquinaria que faz eclipsar a política. Ou, por outra, os políticos se transformam não apenas em atores, mas em atletas em meio a corridas eleitorais, com seus corpos a garantir adesão – via carisma e completa falta de ideias, mas com enorme poder de dominação dos sentidos – pelos afetos inconscientes ou inconfessáveis de todos nós.
Importante é, portanto, que a imagem em sua reprodutibilidade e despolitização careça, no caso dos filmes, de verdadeira fala, embora a trilha sonora, os gritos e o murmúrio possam ganhar protagonismo. Há discursos em Triunfo da vontade, mas não há diálogo, apenas repetição, palavras de ordem, doutrinação. Não há fala propriamente dita – portanto, não há política, mas apenas voz. Finalmente, em ambos os filmes a montagem assume importante papel, guiando a narrativa em que corpo e imagem, estetizantes, dão forma ao esporte e à política.
Há atualidade nos filmes de Riefenstahl, porque o fascismo segue vivo e à espreita, ameaça constante à democracia. Perigo que encontra nas sensibilidades contemporâneas um solo às vezes fértil, quando designa os corpos que devem ser amados e os que são para serem odiados. Sontag assim se referiu a tal atualidade, há mais de três décadas, mas hoje renovada:
Mais importante é que comumente se pensa que o nacional-socialismo representa somente a brutalidade e o terror. Mas isso não é verdade. O nacional-socialismo — e, de um modo mais geral, o fascismo — também representa um ideal, ou melhor, ideais que persistem ainda hoje, sob outras bandeiras: o ideal de vida como arte, o culto à beleza, o fetichismo da coragem, a dissolução da alienação em sentimentos extáticos de comunidade; o repúdio ao intelecto; a família do homem (sob a paternidade de líderes). Esses ideais estão vivos e comovem muitas pessoas, e é desonesto, bem como propaganda de novas formas de comunidade, como a cultura jovem do rock, a terapia primitiva, a antipsiquiatria, os seguidores de exércitos do terceiro mundo, e a crença no oculto. A exaltação da comunidade não exclui a busca da liderança absoluta; ao contrário, pode inevitavelmente levar a ela. (Não é surpreendente que uma boa quantidade de jovens que atualmente se prostra diante de gurus e se submete à mais grotesca disciplina autocrática seja composta por antigos antiautoritários e antielitistas dos anos 60)
(1986, p. 75-76).
Benjamin (2012) conclui seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte criticando a estetização da política e arguindo pela necessidade de politização da arte. A reivindicação não ia na direção do realismo socialista ou da mera propaganda, mas de uma estética que pudesse estar à altura das possibilidades revolucionárias do presente. Para tanto, elaborou um diagnóstico de época e propôs novos conceitos para ela. Benjamin estava exatamente do lado oposto ao de Riefensthal.
Coloca-se, então, uma constelação que diz sobre a educação dos sentidos, mas também sobre a política de nosso tempo: o estatuto imagético de corpo e de natureza, em tempos em que a disponibilidade de aparatos visuais parece ser infinita, entra em jogo. Resta pensar sobre como isso se molda em discursos antipolíticos que reforçam a redução do corpo à mera naturalidade que não só permite, como impele à violência e à dominação. Corpos que são vistos como não naturais e, portanto, degenerados. O principal recurso do nacional-socialismo foi o sangue, mas poderia, como na atualidade, ser a heteronormatividade. Importante é que haja uma crença una, indivisível, apresentando-se como critério de normalidade.
Adorno (1997) escreveu em sua Dialética negativa que Hitler nos impôs um novo imperativo categórico: o de que Auschwitz não se repita. As questões do nosso tempo convidam à defesa da política, da pluralidade dos corpos e das imagens. Convidam a uma política que seja capaz de fazer os filmes de Riefenstahl não mais dispositivos pedagógicos com atualidade, mas documentos anacrônicos de um tempo que não deixará saudades.
Notas
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1
Devo o desenvolvimento dessa questão à leitura de Gagnebin (2006). Ela ganhou algum desenvolvimento em Vaz (2015).
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2
Devo a Raumar Rodríguez Giménez a incorporação dessa abordagem em minha reflexão. Como ele desenvolvi algo, a exemplo de Rodríguez e Vaz (2015).
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Comitê Editorial dos Cadernos Cedes/Coordenação deste número: Alessandra Arce Hai e Ana Clara Bortoleto Nery
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Dossiê organizado por: Carmen Lucia Soares e Heloísa Helena Pimenta Rocha
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O trabalho é resultado parcial do programa de pesquisas Teoria Crítica, Racionalidades e Educação V, financiado pelo CNPq (Auxílio pesquisa, Proc. 403624/2016-9 e 423773/2018-6; Bolsa de produtividade em pesquisa, Proc. 310115/2017-5)
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Out 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020
Histórico
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Recebido
30 Ago 2019 -
Aceito
10 Fev 2020