Resumo
Este artigo estima a cifra oculta para os crimes de furto, roubo e agressão física (lesão corporal) no Brasil com dados da PNAD de 2009. As taxas de cifra oculta são estimadas para diversos grupos demográficos, econômicos e sociais. Posteriormente, estima-se um modelo de regressão probit a fim de identificar os principais determinantes da cifra oculta para cada crime especificado. Os resultados encontrados demonstram que em média 62,55% das ocorrências de roubo, furto e agressão física não chegam aos registros polícias e pessoas com menor grau escolaridade e faixa etária contribuem de maneira geral para o aumento da cifra oculta. Estes e os demais resultados obtidos contribuem diretamente nas políticas de segurança pública, bem como para obtenção de estatísticas do crime e contribuem para a pesquisa em análise econômica do direito.
Palavras-Chave Cifra oculta do crime; Regressão probit; Análise econômica do direito
Abstract
This article estimates the dark figure of the crime for theft, robbery and physical aggression (bodily injury) using a national representative survey from Brazil (PNAD 2009). In order to obtain a complete profile of the occurrence of this phenomenon in Brazil, several estimates are made considering demographic, economic and social aspects. Subsequently, a probit regression model is estimated in order to identify the main determinants of the dark figure of crime. The results show that, on average, 62.55% of theft, robbery and physical aggression cases do not reach police records and people with lower educational level and younger people generally contribute to increase the dark figure of crime. These and other results obtained directly contribute to public security policies as well as to obtain crime statistics.
Keywords Dark figure of crime; Probit analyses; Law and economics
1. Introdução
Este artigo estima para o Brasil, com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), edição de 2009, a taxa de cifra oculta para crimes de furto, roubo e agressão. Tais estimativas são realizadas para diferentes grupos demográficos, econômicos e sociais visando a obtenção de um completo perfil da incidência do fenômeno de cifra oculta no país. Além disso, estimam-se equações da probabilidade de indivíduos não registrarem infrações que tenham sofrido contra diversas características demográficas, econômicas e sociais, com o intuito de se identificar os principais determinantes que levam as pessoas a integrarem as estimativas da cifra oculta. Entende-se que esta pesquisa contribui diretamente ao debate de políticas públicas de segurança, podendo gerar subsídios a futuras ações baseadas em estatísticas de crime, bem como contribui para a recente e moderna linha de pesquisa em análise econômica do direito, uma vez que emprega análise quantitativa econométrica em temática sensível ao universo jurídico.
Entende-se por cifra oculta do crime a quantidade dos delitos não comunicados ao Poder Público. Segundo Penteado Filho (2017), as estatísticas criminais servem para fundamentar as políticas de segurança pública. O problema é que os dados acerca da criminalidade podem não demonstrar a realidade, justamente em função da “cifra negra do crime” ou “cifra oculta da criminalidade”. Com base nesse conceito, surgem três tipos de criminalidade. O primeiro tipo é a criminalidade real que corresponde à quantidade efetiva de crimes praticados. O segundo tipo é a criminalidade revelada que corresponde à quantidade efetiva de crimes que chega ao conhecimento do Estado. Por fim, há a cifra oculta que corresponde à quantidade de crimes não comunicada ao Estado.
Ainda de acordo com Penteado Filho (2017), as principais causas da não comunicação dos delitos às autoridades por parte das vítimas são as seguintes: medo ou vergonha (no caso de crimes sexuais); por ser mínimo o bem jurídico violado; vítima sofre coação do criminoso para que não registre (principalmente quando se trata de pessoa conhecida) e a vítima desacredita no aparato policial e judicial. Na presente pesquisa, a investigação do papel de possíveis determinantes demográficos, econômicos e sociais de forma quantitativa pode identificar novas dimensões fundamentais para o fomento da indesejável cifra oculta.
Importante mencionar que a base de dados à disposição desta pesquisa, por ser uma pesquisa do tipo “survey” populacional com representatividade nacional, com informações especiais de crime, permite a estimava e o estudo dos determinantes da cifra oculta. Nos dados mais comuns de crime, dados do tipo administrativos, isso já não é possível. De acordo com Soares (2004) são nos dados administrativos que o problema conhecido como “underreporting” se manifesta, tendo uma grande variabilidade em função de diversos aspectos de desenvolvimento econômico de diferentes países e regiões.
O termo “cifra oculta do crime”, em inglês “dark figure of crime”, é creditado a Biderman e Reiss (1967). Segundo esses autores, os estudos sobre o tema deveriam ter como objetivo não somente revelar a parte oculta desta cifra, mas principalmente investigar e debater a metodologia desta investigação, e a análise dos fatores por trás de tal fenômeno (justamente o que está sendo proposto neste artigo). Segundo Skogan (1977), o fenômeno cifra oculta afeta diretamente tanto a eficácia quanto a eficiência da política de combate ao crime, dado que a decisão de alocação de recursos pode ser redirecionada conhecendo-se esses dados. No âmbito privado, a influência recai sobre o setor de seguros e, claro, o bem-estar das vítimas. A identificação da magnitude da cifra oculta e o perfil é, portanto, imperativa.
É esperado que a cifra oculta varie para cada tipo de crime, no entanto, é enganoso acreditar que apenas aqueles menos graves são mais ocultos. Um típico exemplo de crime de grande gravidade que normalmente tem alta cifra oculta é a violência doméstica. Crimes sexuais também tendem a ser muito ocultos. Por outro lado, aqueles com contrapartida de seguros e indenizações materiais tendem a ter cifra oculta menor. Mas como levantam Bug, Kroh e Meier (2015), mesmo nos casos em que há contrapartida de seguros e claro interesse das vítimas reportarem - por exemplo, nos casos de invasão de propriedade - o valor de cifra oculta pode ser significativo.
A maneira tradicionalmente empregada para a estimativa de cifras ocultas passa por pesquisas de opinião (surveys) de larga escala. No entanto, há outros meios desde o emprego de técnicas econométricas, até o emprego de polígrafos em detentos acusados de crimes. Na linha das grandes surveys, Skogan (1977) baseou-se em painel nacional com 60.000 domicílios nos EUA. Nesse levantamento, foram coletadas informações sobre as atividades dos indivíduos e sobre vitimização, referentes ao ano de 1973. Os resultados indicaram um número de 34 milhões de incidentes relacionados a furto de carros, roubo, “burglary”, estupro, assalto e furto. De todo esse contingente, apenas 28% foram reportados à polícia.
Um dos grandes debates quando se discute cifra oculta do crime é sobre o grau de imprecisão de dados oficiais de reporte de crimes. Nos EUA, Messner (1984), por exemplo, comparou os dados oficiais do FBI coletados pelo UCR (Uniform Crime Reports) e pelo NCS (National Crime Survey), que são dados coletados com base em uma survey aplicada à população de 12 anos ou mais, pelo Law Enforcement Assistance Administration. O exercício de comparação entre essas duas bases de dados foi feito usando-se indicadores ponderados que dão pesos diferentes aos diferentes tipos de crime. Uma das críticas apontadas pelo autor é que o FBI, através do UCR, atribui pesos iguais a crimes de diferentes gravidades, o que leva a erros nas estimativas de crimes, bem como na avaliação de sua evolução. Utilizando-se diferentes índices é possível chegar a previsões melhores sobre a evolução da atividade criminal, do que aquelas efetivamente alcançadas baseando-se somente em dados oficiais. De acordo com o autor, as correlações entre o UCR e o NCS são baixas e até mesmo negativas para tipos mais graves de crime (como estupro e assalto). Por sua vez, MacDonald (2001) usou dados do British Crime Survey (BCS) entre os anos de 1994 e 1996, e constatou relação entre ciclos econômicos tendência ao reporte criminal, ou seja, a dinâmica da cifra oculta do crime não é aleatória ao longo do tempo. Também encontrou evidências de que pessoas desocupadas tendem a reportar menos.
Uma pesquisa do Departamento de Justiça dos EUA em 2012 trouxe resultados importantes sobre a cifra oculta do crime naquele país. Foram feitos diversos recortes temporais, dependendo do tipo de crime e da questão analisada. Os números gerais mostram que, entre os anos 2006 a 2010, 52% dos crimes violentos não foram reportados para a polícia. Em 18% deste total, as vítimas acreditavam que o crime não era “importante o suficiente” para ser reportado. A maior porcentagem de crimes não reportada foi relacionada a furtos em domicílios (household theft), somando 67% do total, seguido de estupro/agressões sexuais (65%), enquanto que o índice mais baixo de crimes não reportados foi de furto de veículos motores (17%).
Já Quinteros (2014) estimou em mais de 73% a cifra oculta de crimes econômicos em espaços abertos, majoritariamente roubos e furtos, que, segundo o autor, atingem cerca de 20% de toda a população do Chile por ano. O autor fez uso de uma regressão logística para avaliar como a vitimização, a insegurança, a reação ao crime, a confiança institucional e variáveis sociodemográficas afetam este fenômeno. Com base na previsão dos grupos com maior probabilidade de não reportar crimes, o autor analisou iniciativas de políticas que poderiam incentivar o reporte, prevenir as ocorrências criminais e oferecer apoio às vítimas de crimes ocultos.
Para Austrália, o Instituto de Criminologia, em um relatório de 1997, fez algumas estimativas da cifra oculta no país. No ano de 1992 a 93, a taxa de reporte, ou seja, de crimes não ocultos no caso de roubos (“robberies”) foi de 52,1%. Já os “household bulglary” não reportados alcançaram 40,6%. No caso de furtos em estabelecimentos comerciais, realizados por clientes, estima-se que 42,8% foram reportados à polícia, e somente 26% daqueles praticados pelos próprios empregados.
Estudo de Sheu e Chiu (2012) para Taiwan, usando uma survey com mais de 18 mil indivíduos com 12 anos ou mais, mostrou uma variação na cifra oculta mesmo dentre as categorias de crimes contra a propriedade, indo de mais de 80% para furto a 6,2% para roubo de automóvel. Como demais estudos de vitimização os autores investigam os determinantes para o reporte. Suas conclusões recaem sobre as características do crime, além de características da própria vítima, como gênero (mulheres tendem a reportar mais), nível educacional (mais educados tendem a reportar mais) e ocupação (ocupados profissionalmente, independentemente do tipo de ocupação, tendem a reportar mais).
Assim, com base no que foi colocado nessa introdução, inicialmente, com os dados de cifra ocultas já estimados, percebe-se que não se trata de um fenômeno pouco relevante. Segundo, a maior parte das evidências disponíveis é de países de renda média-alta. Sob prévio conhecimento, faltam estatísticas para países de renda baixa e média e alta desigualdade como o Brasil. Como consequência, a identificação de determinantes em uma região no mundo como a brasileira pode interessar a literatura internacional. O questionário suplementar da PNAD de 2009 gera uma única oportunidade para a estimação do fenômeno da cifra oculta no país.
Os resultados obtidos para o Brasil são interessantes. De maneira geral, considerando os dados da PNAD 2009, tem-se uma cifra oculta de 62,55%. Além disso, os resultados do modelo probit demonstram que variáveis como faixa etária e escolaridade são determinantes da cifra oculta. Resultados como estes devem chamar a atenção dos planejadores de segurança pública, pois estima a estatística não observada nos registros oficiais. Ao continuar a leitura, tem-se na seção dois os materiais e métodos utilizados, na seção três os principais resultados e na seção quatro as considerações finais.
2. Material e método
Os dados utilizados para essa pesquisa são provenientes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Particularmente são empregados os microdados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio do ano de 2009. Nesta edição da PNAD, além da pesquisa básica usual, há um questionário suplementar sobre temas de segurança alimentar, vitimização e justiça. Na parte 29 do questionário suplementar é possível encontrar as perguntas referentes à vitimização e justiça. Especificamente, as variáveis apresentadas no Quadro 1 permitem a estimativa da cifra oculta para os crimes de roubo, furto e agressão física (lesão corporal).
Por meio do Quadro 1, é possível entender a obtenção da cifra oculta: todos aqueles que foram vítimas de algum tipo de crime (roubo, furto, e lesão corporal) que não procuraram a polícia e não realizaram o registro policial compõem parte da cifra oculta do crime. A outra parte da cifra oculta é composta por todos aqueles que foram vítimas de algum tipo de crime, procuraram a polícia, mas por algum motivo não realizaram o registro policial.
Dessa forma, a cifra oculta do roubo, por exemplo, pode ser expressa por:
As Cifras Ocultas de Furto e Agressão são obtidas de mesma forma que a de Roubo presente na Equação (1). O questionário das pessoas da PNAD 2009 coleta ainda informações sobre o tipo de bem roubado e/ou furtado, bem como o local de ocorrência do furto e/ou do roubo. Em relação à variável agressão física (lesão corporal) permite identificar o local da agressão e o tipo de agressor.
Destaca-se também que a obtenção da cifra oculta é em relação ao último crime (roubo, furto, lesão corporal) sofrido pela vítima. Além disso, as perguntas no questionário da PNAD sobre o tema fazem referência ao período de 27 de setembro de 2008 a 26 de setembro de 2009. Portanto, é possível que a cifra oculta possa ser ainda maior.
Após a obtenção da cifra oculta para a amostra, e observando os pesos amostrais da PNAD 2009, é possível realizar a estimativa da cifra oculta para o Brasil. As estimativas da cifra oculta para o Brasil também são apresentadas considerando diversas características socioeconômicas observáveis encontradas nos dicionários de variáveis das pessoas e dos domicílios.
Em termos de estudo dos determinantes da cifra oculta, estimam-se equações que relacionam a probabilidade de os indivíduos não reportarem crimes sofridos contra uma série de variáveis demográficas, econômicas e sociais disponíveis nos questionários da PNAD. São equações não lineares estimadas pelo método probit.
Formalmente, estima-se o seguinte modelo:
em que a função G(.) é uma função normal de distribuição acumulada, o que caracteriza a distribuição do modelo probit, X é uma matriz de covariadas e β um vetor de parâmetros. Na matriz X há as seguintes covariadas para as análises: a variável Homem que é uma dummy assumindo valor 1 para o grupo de homens e 0 para o grupo de mulheres; a variável Branco assume valor 1 para brancos e amarelos e 0 para pretos, pardos ou indígenas; a variável ChefeDomicílio que assume valor 1 se a pessoa é chefe do domicilio e 0 caso contrário; a variável Empregado que assume valor 1 se a pessoa estava empregada e 0 se a pessoa não estava empregada; a variável Urbano que assume valor 1 se domicílio é urbano e 0 se o domicílio é rural; e variáveis dummies para rendimento, estrutura familiar e faixa etária. Todas as regressões foram estimadas usando o plano amostral complexo da PNAD.
3. Resultados e discussões
Como já mencionado, com base nos microdados da PNAD de 2009 é possível calcular a cifra oculta dos crimes de furto, roubo e agressão física.
Na Tabela 1 são apresentados os resultados das estimativas gerais para o Brasil, bem como a desagregação por roubo, furto e agressão física.1
A estimativa da população com 10 anos ou mais no Brasil no ano de 2009 foi de 164.640.165 habitantes, e destes, 13.861.325 foram de vítimas de pelo menos algum tipo de crime (ou roubo, ou furto ou agressão física), o que representa 8,42% da população estimada. Desse total estima-se que 8.670.918 não procuraram polícia, ou, se procuraram, não realizaram o registro policial, caracterizando assim uma cifra oculta de 62,55%. Quando observada as estimativas por tipo de crime, percebe-se que 6.416.060 de pessoas foram vítimas de furto, o que corresponde a 3,90% da população estimada e uma cifra oculta de 66,13%. A maior cifra oculta é associada ao furto (66,13%), seguida da de agressão física (61,51%) e, por último, a de roubo (56,26%).2
Destaca-se que o somatório das estimativas das vítimas por tipo de crime (roubo, furto e agressão física) é maior que a estimativa geral do Brasil, o que ocorre porque na estimativa geral considera-se o indivíduo que sofreu pelo menos um dos crimes observados, enquanto que na estimativa por tipo de crime observa-se o fato que um mesmo indivíduo pode ter sido vítima de dois ou mais crimes no período de 27 de setembro de 2008 até 26 de setembro de 2009.
Na Tabela 2 são demonstrados os resultados das estimativas por Estado, e é possível observar a população estimada de cada Estado e do Distrito Federal. São Paulo apresenta uma população no ano de 2009 de 36.545.888 habitantes, uma taxa geral de vitimização de 8,08% e uma taxa geral da cifra oculta de 54,90%. Destaca-se que a maior taxa geral de vitimização ocorre no Acre (14,27%) e a maior taxa geral da cifra oculta ocorre no Maranhão (75,70%). Já as menores taxas de vitimização e cifra oculta geral ocorrem respectivamente em Santa Catarina (6,51%) e no Distrito Federal (49,64%).
Detalhando por tipo de crime, a maior taxa da cifra oculta do roubo ocorre em Alagoas (72,22%) e a menor ocorre em Rondônia (37,80%). Para o crime de furto a maior taxa da cifra oculta de furto ocorre em Alagoas (87,33%) e a menor no Distrito Federal (50,25%). Por fim, o crime de agressão física apresenta uma maior taxa da cifra oculta na Paraíba (75,28%) e a menor no Distrito Federal (40,39%).
Na Tabela 3 são apresentados os resultados levando em consideração algumas características demográficas, educacionais e econômicas da população. Em específico, avaliam-se os dados pelas variáveis: sexo, cor, idade, escolaridade, domicílio, população economicamente ativa (PEA) e faixa de renda.
Os resultados da Tabela 3 demonstram que pessoas do sexo masculino apresentam uma maior taxa de vitimização geral e em relação à roubo, furto e agressão física, e que a cifra oculta para o sexo feminino é um pouco maior para os crimes de roubo e furto e menor para agressão física. Quando observado a variável cor percebe-se que a taxa de vitimização é bastante semelhante entre pretos/pardos e brancos/amarelos, no entanto a taxa da cifra oculta é menor para brancos/amarelos do que para pretos/pardos na forma geral e por roubo, furto e agressão física. Percebe-se também que os chefes de domicílios e as pessoas economicamente ativa apresentam uma maior taxa de vitimização e uma menor cifra oculta quando comparados com os não chefes de domicílios e os não economicamente ativos.
Ainda pela Tabela 3, constata-se que a cifra oculta é decrescente em relação à idade entre as faixas de 10 anos ou mais até a faixa de pessoas com 41 a 59 anos. Após, percebe-se um pequeno aumento da cifra para dos delitos considerados como geral, roubo e furto. Tal comportamento é apresentado no Gráfico 1.
Observando ainda a variável idade, percebe-se que a taxa de vitimização apresenta o comportamento de um “U” invertido conforme descrito no Gráfico 2.
Quando observada a ocorrência de pelos menos um delito (geral), verifica-se a maior acentuação da curva “U” invertida, pois existe um aumento da taxa de vitimização até a faixa dos 19 a 29 anos e posteriormente uma queda. Para roubo e agressão física ocorre uma maior suavização da curva. Para furto a taxa é crescente até a faixa de 30 a 40 anos, onde atinge o valor máximo e após apresenta um pequeno declínio.
Considerando os dados da Tabela 3 para a variável escolaridade do chefe de domicílio, percebe-se pelo Gráfico 3 que um aumento da escolaridade do chefe tende a diminuir a cifra oculta para os delitos classificados como gerais, roubo e furto, e que essa queda é mais significativa até o grupo de chefes de domicílios que tenham de 12 a 15 anos de estudos. Para agressão física, novamente tem-se oscilações mais suaves caracterizadas por pequenas quedas e pequenos aumentos ao redor de uma média.
Já a taxa de vitimização para a variável escolaridade do chefe de domicílio apresenta um aumento à medida que aumenta a escolaridade do chefe até a faixa de 12 a 15 anos de estudos. Tal comportamento é percebido para os delitos gerais, roubo e furto. Agressão física apresenta a menor taxa de vitimização para todas as faixas de escolaridade do chefe e apresenta um comportamento bastante estável entre as faixas analisadas.
Uma comparação interessante é percebida quando observados os Gráficos 3 e 4: quanto menor a escolaridade do chefe, maior é a cifra oculta e menor a taxa de vitimização.
Quando observado o comportamento da taxa da cifra oculta e da taxa de vitimização considerando a variável faixa de renda, percebe-se que um aumento da renda diminui a cifra oculta para todos os delitos analisados conforme demonstra o Gráfico 5.
Para os grupos de pessoas que apresentam rendimentos, percebe-se pelo Gráfico 6 que um aumento da renda gera um aumento da taxa de vitimização para os delitos gerais, roubo e furto, e uma pequena diminuição na agressão física. Destaca-se que nos Gráficos 5 e 6 não foram incluídos os grupos que não declararam rendimentos e que os rendimentos não eram aplicáveis de acordo com a Tabela 3.
Antes de comentar os resultados da Tabela 4 algumas considerações são feitas. O questionário da PNAD no que trata do local de ocorrência do delito separa apenas para a variável agressão física, de se esta ocorreu em residência própria ou de terceiros, e para as variáveis furto e roubo não apresenta esta distinção. O item não aplicável presente na variável local e agressor representa o total de pessoas que não foram vítimas de furto, roubo e agressão física. A variável bens levados considera o registro de cada tipo de bem furtado ou roubado de cada vítima.
Pela Tabela 4 e Gráfico 7, percebe-se que local de maior ocorrência do roubo é a via pública totalizando 4.263.079 ocorrências deste tipo de delito e uma taxa de cifra oculta de 59,85%. Apesar de pouco representativo no total de ocorrências de roubos, a maior cifra oculta ocorre quando o roubo é praticado em ginásios ou estádios esportivos (76,52%) e a menor ocorre nos estabelecimentos comerciais (40,03%). Para a variável furto percebe-se que o local de maior ocorrência são as residências próprias ou de terceiros com 3.055.207 vítimas seguido da via pública com 1.722.402 vítimas. A cifra oculta do furto nas residências fica em 68,96%, enquanto na via pública em 60,91%. A maior cifra oculta do furto ocorre nos estabelecimentos de ensino, 83,68%, embora o número de vítimas nesse tipo de estabelecimento não seja o mais representativo. A menor cifra oculta de furto ocorre em estabelecimentos comerciais e é de 59,30%. As maiores ocorrências de agressão física acontecem, respectivamente, em via pública, em residência própria e em estabelecimento de ensino. A menor cifra oculta ocorre quando a agressão é realizada na residência própria, de 52,02%; já a maior taxa de cifra oculta ocorre nos estabelecimentos de ensino, com uma taxa de 85,07%.
Na Tabela 4 e Gráfico 8 observa-se a variável bens levados para os crimes de roubo e furto. Percebe-se que telefone celular e dinheiro são os bens mais roubados e a maior taxa de cifra oculta ocorre para roubo de bicicleta (70,56%) e a menor para carro (6,44%). Considerando os itens especificados para a variável furto, percebe-se também uma maior ocorrência do furto de telefones celulares e dinheiro, sendo uma maior ocorrência do furto de telefones celulares e dinheiro, sendo maior cifra oculta referente ao furto de celulares (68,81%) e a menor para o furto de carros (13,49%).
Continuando pela Tabela 4 e observando o Gráfico 9 para a variável agressor, percebe-se que as maiores taxas da cifra oculta ocorrem quando o agressor é policial, ficando esta em 71,61%, e a menor ocorre quando o agressor é segurança privada, com 52,05%.
Na Tabela 5 são apresentados os resultados das estimações do modelo probit para a cifra geral, de roubo, furto e agressão física, sendo possível então identificar quais variáveis são significativas para explicar o comportamento da cifra oculta, bem como o seu efeito.
De acordo com a Tabela 5, para cifra geral, percebe-se que no caso de pessoas brancas/amarelas há uma menor probabilidade de não reportarem algum crime que tenham sofrido, pois os coeficientes estimados são negativos e estatisticamente significativos a 1%. A mesma observação pode ser feita quanto em relação às pessoas empregadas. Em relação à renda per capita, percebe-se que pessoas nas faixas de “até ¼ de salário mínimo” a “até 1 salário mínimo” tendem a ter uma maior probabilidade de colaborarem com a cifra oculta, uma vez que os coeficientes estimados são positivos e estatisticamente significativos a 1%. Em relação à escolaridade do chefe de domicílio percebe-se que as faixas de escolaridade até 11 anos de estudo apresentam um efeito positivo e estatisticamente significativo sobre a probabilidade de integrarem a cifra geral. O mesmo ocorre com os indivíduos pertencentes às diversas faixas etárias até 29 anos.
Ainda pela Tabela 5, percebe-se que os homens apresentam um efeito negativo na cifra do furto, pois os coeficientes estimados são negativos e estatisticamente significativos a 1%. As mesmas considerações são feitas em relação às pessoas de cores branca/amarela. As dummies de renda não foram significativas para explicar os determinantes da cifra do furto. As variáveis escolaridade do chefe de domicílio e faixa etária da cifra do furto apresentam os mesmos efeitos positivos e estatisticamente significativos observados na cifra geral.
Em relação à cifra de roubo percebe-se que homens apresentam um efeito negativo e estaticamente significativo na determinação desta cifra. A mesma observação é adequada para as pessoas que ocupam a posição de chefe de domicílio, ou então, em relação à variável população economicamente ativa estejam empregadas. As dummies de renda per capita as faixas de “até ¼ de salário mínimo” a “até 1 salário mínimo” tendem a colaborar positivamente com a cifra oculta, pois os coeficientes estimados são significativos a 1 %. Para os determinantes da cifra do roubo percebe-se para as variáveis escolaridade do chefe de domicílio e faixa estariam o mesmo comportamento positivo e significativo da cifra geral e da cifra do furto.
A cifra da agressão (lesão corporal) apresenta características interessantes quando se observa a variável homem, os efeitos negativos na determinação das cifras de furto e roubo são positivos na cifra da agressão física e estatisticamente significativos a 1%. Moradores urbanos também contribuem de forma positiva para o aumento da cifra, pois o coeficiente estimado também é significativo. As dummies de renda não se mostraram significativas. Assim como as dummies renda a diversas faixas de escolaridade do chefe de domicílio não se mostraram significativas na determinação dos efeitos sobre a cifra da agressão. Já na faixa etária percebe-se que até a faixa de 39 anos tem-se efeitos positivos e significativos na determinação desta cifra.
4. Considerações finais
Estatísticas de qualquer tipo para países em desenvolvimento, como o caso do Brasil, tendem a ser mais escassas em comparação ao conjunto de dados e informações disponíveis para desenvolvidos. No caso específico de dados de crime, nos quais é preciso que o arranjo institucional funcione adequadamente, este problema tende a ser ainda mais alarmante, sendo o nível de riqueza, desenvolvimento do país, altamente explicativo para o registro adequado dos crimes, segundo Soares (2004). Dentro deste contexto, dados de crime de pesquisas amostrais da população podem ser mais informativos do que estatísticas oficiais de crime. Este ponto revela a importância da pesquisa que foi conduzida.
Foi conduzida uma completa investigação das taxas de cifra oculta, para diferentes tipos de crime, por aspectos demográficos, econômicos e sociais possivelmente correlacionados com a confiança e o acesso à justiça. Houve também a exploração dos dados com o modelo probit de probabilidade linear para a investigação empírica dos determinantes do fenômeno da cifra oculta. Quantificar essas relações contribui para o debate teórico do assunto. Na verdade, contribui ainda mais: a investigação completa do mapa da cifra oculta para crimes de furto, roubo e agressão no país, bem como o estudo dos determinantes, é um subsídio importante para o monitoramento e avaliação das políticas públicas de segurança no país. Por exemplo, o indício de evidência de que as mulheres têm uma maior probabilidade de reportarem os crimes de agressão do que os homens, pode ser interpretado, obviamente, com cautela, de que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340 de 2006) possa ter sido efetiva em seu propósito de proteção à mulher.
Além disso, o fato de que os crimes de furto terem cifra oculta mais elevada do que os de roubo permite o desenho de políticas públicas de conscientização sobre a importância de se reportar a polícia o fato ocorrido, bem como o trabalho no desenvolvimento de novas tecnologias que reduzam o custo de oportunidade de se reportar crimes cujos valores envolvidos, ou os danos causados sejam de menor monta.
Os resultados impressionam, já que 66,13% das vítimas de furto não realizaram registro policial. Destaca-se também que 56,29% das vítimas não fizeram o registro policial de que foram roubadas e impressionantes 61,51% das vítimas não registram agressão física. Percebe-se também que o local de maior ocorrência para os três tipos de crime são as vias públicas e as cifras para esses delitos ultrapassam 59%. Percebe-se também em relação aos bens furtados e roubados que as taxas da cifra oculta tendem a ser menores para roubo do que para furto. No crime de agressão física (lesão corporal), em relação ao agressor, as menores taxas de cifra oculta ocorrem quando o agressor é segurança privada (51,26%) e quando o agressor é cônjuge/ex-cônjuge (52,05%).
Já os resultados do modelo probit demonstram que as variáveis mais consistentes para explicar as taxas da cifra oculta, bem como o efeito positivo daquelas nesta, são as faixas associadas à menor escolaridade do chefe de domicílio e as faixas associadas a idades de até 29 anos, principalmente para a cifra geral, de furto e roubo. As faixas de rendas associadas a até 2 salários mínimos também mostraram um efeito positivo na cifra geral e na de roubo.
Por fim, entende-se que o desenvolvimento de pesquisas na área no país depende da existência de dados. Ao mesmo tempo que a pesquisa especial de acesso à justiça e vitimização da edição de 2009 da PNAD deve ser celebrada, a ausência dessa pesquisa especial em outras edições é terrivelmente limitadora para o avanço do conhecimento. Estudos longitudinais, ainda que na modalidade de pseudo-painel de acordo com Deaton (1985), agregariam informações e conhecimento sobre crime no país de forma inimaginável. Dessa forma, fica a recomendação de que dados sobre crime em pesquisas amostrais censitárias precisam estar na agenda das agências e institutos de pesquisas do Brasil.
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JEL ClassificationK14. C13.
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1
Foram, a partir de dados da amostra, realizados testes de diferenças de proporções entre as variáveis cifra oculta roubo, cifra oculta furto e cifra oculta agressão. Os testes não indicam igualdade estatística das taxas.
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2
Os resultados principais não se alteram quando a análise é restrita à amostra com indivíduos de 18 anos ou mais.
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3
Variáveis dummies omitidas: para Renda foi omitida a categoria sem declaração; para Estado foi omitida a categoria referente ao Distrito Federal; para Tipo de Família foi omitida a categoria referente a Outros tipos de Família; para Faixa Etária foi omitida a categoria referente a 60 anos de idade ou mais; para Escolaridade foi omitida a categoria referente a 15 anos de escolaridade ou mais.
Apêndice
Apresentamos aqui um resultado que pode ser importante para as análises da cifra oculta do crime: a estimativa dos indivíduos que sequer procuram a polícia em casos de incidentes. Trata-se de resultado distinto daquele em que os indivíduos que vão à delegacia, mas não registram a ocorrência.
Referências
- Australian Institute of Criminology. 1997. “Estimates of the Costs of Crime in Australia in 1996.” Trends & Issues in crime and criminal justice, no. 72.
- Biderman, Albert D., and Albert J. Reiss Jr. 1967. “On exploring the “dark figure” of crime.” The Annals of the American Academy of Political and Social Science 374, no. 1: 1-15.
- Bug, Mathias, Martin Kroh, and Kristina Meier. 2015. “Regional crime rates and fear of crime: WISIND findings.” DIW Economic Bulletin 5, no. 12: 167-176.
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Editor responsável: Marcos Yamada Nakaguma
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Jan 2021 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2020
Histórico
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Recebido
15 Set 2019 -
Aceito
23 Ago 2020