Open-access Crescimento das desigualdades e guerra cultural: desafios atuais

Growing inequalities and culture war: current challenges

A temática da edição 145 da revista Serviço Social & Sociedade invoca o cenário no qual nos encontramos no Brasil, o da crise capitalista, da crise social, política e sanitária, marcadas por uma inaudita regressividade social que vem ocorrendo, pelo menos, desde 2015/2016 e é aprofundada pelo cenário geopolítico mundial. Nesse contexto, engendram-se velhas e novas contradições do metabolismo do capital.

No momento de fechamento desta edição, registram-se no mundo mais de 6.200.000 óbitos vinculados à covid-19. No Brasil, o Ministério da Saúde registra 666.391 óbitos confirmados, dentre esses a morte de assistentes sociais no exercício profissional, registradas no Memorial “Nosso luto, nossa luta”, organizado pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS).1

A pandemia da covid-19, a guerra imperialista entre a Rússia e a Ucrânia e a ampliação planetária da pobreza, mediadas por retrocessos políticos nacionais e internacionais, determinaram o recrudescimento das desigualdades sociais, como revela o Relatório da Oxfam-Brasil,2 divulgado em 23 de maio de 2022, por ocasião do conclave capitalista de Davos, quando os bilionários mundiais se reuniram e, certamente, comemoraram a obtenção de estratosféricos lucros. O documento informa que a combinação entre a pandemia do coronavirus, o crescimento das desigualdades e o aumento dos preços dos alimentos em 2022 levará 263 milhões de pessoas à extrema pobreza em todo o mundo, aumentando a fome e a falta de condições materiais e sociais de existência da população trabalhadora e empobrecida.

Segundo relatório da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN)3 publicado em 2021, houve um agravamento da insegurança alimentar da ordem de 19% nos domicílios onde o desemprego e o endividamento familiar estiveram presentes na vigência da pandemia. Igualmente, constatou uma abrupta queda na segurança alimentar nos últimos dois anos, que chegou a atingir patamares semelhantes aos que vigoravam em 2004. Esse contexto impactou de forma negativa e relevante o direito humano à alimentação adequada e saudável do povo brasileiro. Note-se que a fome atingiu 11,1% dos lares chefiados por mulheres, enquanto nos lares em que os homens são os chefes esse índice chega a 7,7%. O estudo identificou ainda que o fator raça/cor influencia o quadro da fome, com taxa de 10,7% das casas com mulheres negras e 7,5% das casas com mulheres brancas. A realidade evidencia que o racismo é elemento estrutural do capitalismo em níveis mundiais e, na particularidade da vida brasileira, tem engendrado a intensificação da exploração, dominação e opressão.

Outrossim, no mesmo período, no Brasil, enquanto o desemprego atingiu mais de 13,5 milhões de trabalhadores, com cerca de 5,9 milhões de desalentados,4 surgiam novos bilionários, conforme apontou a revista Forbes, em 10 de abril de 2021,5 entre donos de bancos digitais, empresas de investimento e de pagamentos eletrônicos.

Esse contexto, revelador de contradições e desmontes de conquistas civilizatórias, todavia, não nasceu com a pandemia. Ele remonta ao agravamento da crise capitalista que se arrasta desde 2008, mediada por anos de políticas econômicas neoliberais que transformaram os serviços públicos em mercadorias e incentivaram a concentração da riqueza, barbarizando a vida social, criando condições objetivas e subjetivas para a ascensão da direita mundial e da extrema-direita, nacional e internacional.

Também revelou o fato de que após 30 anos de ofensiva neoliberal, especialmente nas regiões periféricas, houve desmonte de programas e políticas sociais, subtração de direitos trabalhistas e sociais, além de precariedade e insuficiência das medidas de proteção social pública (MOTA, 2021).

Ao suprimir direitos, desmontar políticas públicas e moralizar as conquistas libertárias, civis e sociais, ampliaram-se as desigualdades e as discriminações de todo tipo. Seus rebatimentos imediatos são o aumento da desigualdade de renda, de gênero, racial e as restrições ao acesso de bens e serviços públicos.

Ao expor as mazelas e as contradições do capitalismo contemporâneo - cuja avidez pela acumulação da riqueza se dá à custa da superexploração e da pauperização absoluta das classes trabalhadoras -, as classes dominantes voluntarizam e emergencializam o enfrentamento da questão social por fora das políticas sociais estruturadoras à base de ações pontuais, fragmentárias, de fácil uso populista e eleitoral.

Nessa processualidade, as estratégias ideopolíticas das classes dominantes adquirem fôlego, seja através das ações do Estado, sob a direção de um governo protofascista e militarizado, seja pela atuação dos aparelhos privados de hegemonia, revelando enfrentamentos políticos de classes. Ora acionam mecanismos coercitivos (de criminalização da pobreza e acirramento das discriminações raciais, de gênero, geração, dentre outras) por meio de meios repressivos; ora investem na obtenção de consensos (esfera ideocultural), manejando mídias sociais e tecnologias de comunicação robotizadas sob a forma de fake news ou de apelos publicitários, por intermédio da ação de influenciadores digitais, afetando todos os aspectos da vida cotidiana (MOTA; RODRIGUES, 2020).

Assim, no Brasil (e no mundo) presenciamos uma verdadeira guerra cultural (LEHER, 2021), portadora de neoconservadorismos incivis e reacionários, respaldados nas ideologias dos governos e, particularmente, do atual governo brasileiro, endossada pelo parlamento, majoritariamente subsumido aos interesses privatistas que rondam o país.

Soma-se a isso a combinação de uma política negacionista e de desvalorização da ciência, atingindo as humanidades e particularmente as ciências sociais, com a desqualificação do pensamento crítico, impulsionado pela já referida “guerra cultural” que fomenta “a fúria frenética das posições políticas antimarxistas e anticomunistas, associadas à crença de uma suposta doutrinação político-ideológica impregnada nos espaços educacionais e culturais” (SIMIONATTO, 2019, p. 118). Dessa maneira, a manipulação da vida social alcança todas as dimensões da estrutura econômica, política, social e ideológica da sociedade brasileira.

Essa guerra cultural é permeável às classes subalternas, transformando-se em ideologias constitutivas do real (DIAS; BRANDÃO, 2012), dada a sua aderência ao senso comum (IASI, 2019), e encontra lastro no histórico conservadorismo da nossa formação social, com evidente conteúdo racista, misógino, machista e homofóbico. Por isso mesmo, as classes dominantes investem no fato de os segmentos das classes subalternas assimilarem como seus/suas os costumes e as ideias propagandeadas pelos aparelhos privados de hegemonia da direita e, no nosso caso, da extrema-direita (MOTA, 2021).

No caso brasileiro, cuja formação social tem raízes no sistema colonial, no trabalho escravo e no latifúndio, a modernização capitalista assentou-se historicamente na dependência e na subordinação ao capital imperialista, sob a dominação da autocracia burguesa, caracterizada pela exclusão política das classes trabalhadoras e subalternas (FERNANDES, 1987; FONTES, 2010), cujos modos de ser e de viver carregam marcas de relações sociais de classe, generificadas, racializadas, superexploradas e socialmente desprotegidas.

Nessa contextualidade, os artigos que integram este número da revista Serviço Social & Sociedade têm organicidade com o atual cenário brasileiro, tratando de temáticas e questões que afetam a sociabilidade dos(as) trabalhadores(as) e, no limite, têm implicações mediatas e imediatas no Serviço Social brasileiro e no internacional.

Partindo da análise da crise social, sanitária e do ultraneoliberalismo, os ensaios e artigos publicados abordam o mercado de trabalho; o racismo estrutural e a política de cotas; o aumento da pobreza e transferências monetárias; as migrações; os direitos e a diversidade sexual; a gestão da política de assistência social; a alta complexidade na saúde; e o trabalho em rede, cuja direção prevalecente é a de reafirmar o tratamento de fenômenos com os quais o Serviço Social brasileiro lida cotidianamente, através de estudos e pesquisas que incidem sobre a formação e o trabalho profissional dos e das assistentes sociais. Assim, questões como a defesa de direitos da classe trabalhadora, particularmente os da população negra, migrante, mulheres, LGBTQIA+, crianças e adolescentes, são abordadas e problematizados pelos diversos autores e autoras.

Com a crítica consequente do sistema do capital, expresso nas contradições do desemprego estrutural e na concentração/centralização da riqueza socialmente produzida, os artigos tratam das contrarreformas (BEHRING, 2003) e da regressão de direitos, expondo o cenário em que o capital lucra com a pandemia, os desastres ambientais e sociais, e a miséria.

Assim, investem na produção do conhecimento a partir das experiências profissionais, implementando estudos de situações concretas, exercitando atribuições e competências profissionais articuladas às estratégias de enfrentamento das expressões da questão social e racial no tempo presente.

Por meio da pesquisa e de sistematizações de experiências, o conjunto de autoras e autores realiza o objetivo de desvendar as relações entre as macrodimensões da realidade e as problemáticas que atravessam as demandas profissionais. Nessa direção, os temas abordados neste número da revista têm significativa pertinência às questões contemporâneas que perpassam a realidade brasileira. Ao tempo em que analisam aspectos da realidade, aprofundam as reflexões que contribuem para o desvelamento das determinações, conjunturais e estruturais, dessa ofensiva ideocultural que é mediadora da regressão por que passam as políticas no país, expondo, também, os desafios da atualidade ao Serviço Social.

Referências

  • BEHRING, Elaine R. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003.
  • DIAS, Edmundo; BRANDÃO, Nágela Aparecida. A questão da ideologia em Antonio Gramsci. Trabalho e Educação, Belo Horizonte, v. 16, n. 2, p. 81- 98, 2012. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/trabedu/article/view/8770/6275 Acesso em: 1o jun. 2022.
    » https://periodicos.ufmg.br/index.php/trabedu/article/view/8770/6275
  • FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaios de interpretação sociológica. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
  • FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. 2. ed. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010.
  • IASI, Mauro. Cinco teses sobre a formação social brasileira (notas de estudo guiadas pelo pessimismo da razão e uma conclusão animada pelo otimismo da prática). Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez , n. 136, p. 417-438, set./dez. 2019.
  • LEHER, R. Universidade pública federal brasileira: future-se e “guerra cultural” como expressões da autocracia burguesa. Educação & Sociedade, Campinas, v. 42, e241425, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/TSQSX7dwJVVGyYW8bVFmWYm/?lang=pt&format=pdf Acesso em: 30 maio 2022.
    » https://www.scielo.br/j/es/a/TSQSX7dwJVVGyYW8bVFmWYm/?lang=pt&format=pdf
  • MOTA, Ana Elizabete. Crise sanitária, políticas públicas e sociabilidade: desafios ao Serviço Social brasileiro. Diálogos do Cotidiano: assistente social: reflexões sobre o cotidiano profissional, Caderno 1, Brasília: CFESS, 2021. Disponível em Disponível em http://www.cfess.org.br/arquivos/12021Cfess-DialogosDoCotidianoVol1-Site.pdf Acesso em: 27 maio 2022.
    » http://www.cfess.org.br/arquivos/12021Cfess-DialogosDoCotidianoVol1-Site.pdf
  • MOTA, Ana Elizabete da; RODRIGUES Mavi. Legado do Congresso da Virada em tempos de conservadorismo reacionário. Katálysis, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 199-212, maio/ago. 2020. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/view/1982-02592020v23n2p199/43246 Acesso em: 20 maio 2022.
    » https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/view/1982-02592020v23n2p199/43246
  • SIMIONATTO, Ivete. Serviço Social, reação conservadora e o ataque ao maxismo. In: SILVA, Maria Liduina de Oliveira e (org.). Congresso da Virada e o Serviço Social hoje: reação conservadora, novas tensões e resistências. São Paulo: Cortez, 2019.
  • 1
    Dados disponíveis em: https://www.cfess.org.br/visualizar/menu/local/memorial. Acesso em: 27 maio 2022.
  • 2
    Ver Relatório Lucrando com a dor, lançado pela Oxfam. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/lucrando-com-a-dor/. Acesso em: 27 maio 2022.
  • 3
    Insegurança alimentar e covid-19 no Brasil. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf. Acesso em: 27 maio 2022.
  • 4
    Segundo dados do site do IBGE. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/30391-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-14-2-e-taxa-de-subutilizacao-e-de-29-0-no-trimestre-encerrado-em-janeiro-de-2021. Acesso em: 30 maio 2022.
  • 5
    Ver mais em: https://forbes.com.br/forbes-money/2021/04/brasil-tem-10-novos-bilionarios-no-ranking-de-2021/#foto1. Acesso em: 30 maio 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2022
  • Aceito
    15 Jun 2022
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