Resumo:
Escrito sob a forma de um ensaio teórico, o artigo levanta reflexões sobre o modo de gestão do orçamento público no Brasil e sua articulação com dois eixos temáticos: tratamento da dívida pública e promoção de políticas sociais. As considerações finais apontam para a possibilidade de associar as práticas na gestão do orçamento federal brasileiro e um estado de exceção econômica perpetuado ao longo do tempo e, como desdobramento, limitante da promoção de direitos de proteção social.
Palavras-chave: Exceção econômica; Gestão orçamentária; Finanças públicas; Políticas públicas
Abstract:
Written in the form of a theoretical essay, the article raises reflections on the way the public budget is managed in Brazil and its articulation with two thematic axes: austerity, treatment of public debt and promotion of social policies. Final considerations point to the possibility of associating practices in the management of the Brazilian federal budget and a state of economic exception perpetuated over time and, as a result, limiting the promotion of social protection rights.
Keywords: Economic exception; Budget management; Public finances; Public policies
Introdução
A presente pesquisa, escrita sob a forma de ensaio teórico, articula duas variáveis - tratamento da dívida pública e políticas sociais -, objetivando refletir sobre como mecanismos de emergência econômica podem ser incorporados à gestão do orçamento público federal e quais são as consequências desse processo para a promoção dos direitos sociais.
Considerando que o contingenciamento de despesas primárias afeta múltiplas áreas de interesse social, seria possível adentrar em cada uma para analisar como as políticas fiscais brasileiras, ao longo dos anos, intesificaram ou cercearam o desmonte de políticas públicas, aprofundando ou atenuando o abismo entre o crescimento populacional e os recursos financeiros per capita para promover bens e serviços públicos. No entanto, a literatura destaca que as políticas sociais, em geral, são mais ilustrativas para evidenciar os “corte[s] na carne” para mitigar as crises econômicas1 com os diferentes pacotes de austeridade, originando, por conseguinte, um direito financeiro de crise permanente no Brasil.
Para dar conta desse objetivo, aciona-se a categoria exceção econômica como fio condutor das discussões. Aditivamente, dados estatísticos secundários sobre a execução orçamentária de políticas sociais são apresentados, mas como meros expedientes para exemplificar os argumentos trabalhados, uma vez que a chave de leitura proposta neste trabalho neles encontra significativo grau de materialidade. Nesse sentido, trata-se de uma pesquisa exploratória quanto aos objetivos, de natureza aplicada, que emprega uma abordagem essencialmente qualitativa. Os procedimentos metodológicos, por sua vez, incluem pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e procedimentos próprios de um estudo de caso.
Para isso, após esta breve introdução, a próxima seção pondera sobre o conceito de exceção econômica e sua articulação com o telos constitucional, apresentando, para isso, resultados orçamentários do período instado para o recorte do artigo. Na sequência, discutem-se os mecanismos que efetivamente viabilizam que os objetivos sociais, propostos pela Constituição, sejam preteridos frente às métricas desejáveis de meta fiscal e sustentabilidade da dívida pública. As considerações finais, por fim, retomam os principais argumentos trabalhados, bem como sinalizam contribuições, limitações e oportunidades para pesquisas futuras.
1. O empirismo da exceção econômica contra o telos constitucional
Estudos, a exemplo daqueles promovidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apontam que, no decorrer dos 20 anos de vigência da Emenda Constitucional (EC) n. 95, sem mudanças nos termos assinados, chegar-se-ia a uma “regressão da participação dos gastos com políticas assistenciais em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) a patamares inferiores aos de 2006” (Paiva et al., 2016, p. 14-15). Desse modo, no contexto de insulamento das decisões fiscais das pressões democráticas por maior sociabilização do orçamento através de políticas públicas sociais, vislumbrou-se desde 2016 o recrudescimento autoritário em que governantes incidentais, conforme destaca Abranches (2020), lograram fragilizar as instituições democráticas, alijando de seu bojo uma miríade de direitos característicos. Ver, por exemplo, a Tabela 1, referente à execução orçamentária (valores empenhados) para as funções orçamentárias em destaque:
As setas pretas para cima indicam que as despesas empenhadas foram superiores às do ano anterior e as setas vermelhas para baixo representam a situação inversa (redução de despesas).
As funções de alocação orçamentária mencionadas na Tabela 1 abrangem setores que, conforme indicado por Draibe (1997), tradicionalmente englobam questões relacionadas à proteção social, como saúde, educação, habitação, esporte e lazer, saneamento e cultura. Além disso, também foram consideradas áreas de investimento, como ciência e tecnologia, transporte, gestão ambiental, indústria, entre outras, devido aos benefícios de longo prazo que tais investimentos podem proporcionar, bem como ao impacto imediato na economia quando há alocamentos substanciais de recursos, como destacado por Chang (2004), ao analisar como a restrição dos gastos públicos afeta setores historicamente ligados ao desenvolvimento de uma nação.
Note que as áreas que recebem maior atenção da mídia e demandam proteção social, como saúde e educação, continuam a mostrar predominantemente setas apontando para cima ano após ano, indicando um aumento nas alocações orçamentárias. No entanto, a situação durante a pandemia de 2020 a 2022 revela que o aumento de recursos, da forma como ocorria, não era suficiente para evitar o agravamento do déficit de investimentos e a fragilização de áreas tão cruciais que têm sofrido ao longo das décadas.
Como agravante, ressalte-se que, dentro de cada função, há múltiplas subfunções nas quais o orçamento da área é diluído, como se pode observar no caso da área de educação, ilustrado a seguir:
Apesar de a EC n. 95 ter proposto a atualização do teto das despesas de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) ou outro indicador da inflação que o substituísse (Brasil, 2016), a racionalidade subjacente ao uso das subfunções fez com que o aumento relativo do orçamento de áreas como educação e saúde, evidenciado na Tabela 2, não significasse efetivos investimentos para a promoção ou a continuidade de políticas públicas afetadas. Conforme é possível analisar a partir da tabela em pauta, na execução orçamentária da educação, por exemplo, concorrem despesas finalísticas (para ações em educação propriamente ditas), despesas meio (que operacionalizam as ações necessárias) e outras despesas aleatórias, como Serviços Financeiros, Assistência Hospitalar e Ambulatorial, e Suporte Profilático e Terapêutico.
Isso ocorre porque, desde a Portaria n. 42, de 14 de abril de 1999, é possível combinar subfunções e funções diferentes daquelas a elas diretamente relacionadas (Brasil, 1999). Corrompendo-se, desse modo, o critério de matricialidade entre funções e subfunções, pela lógica que lhe é própria, viabiliza-se a possibilidade de captura de dotações que deveriam provir das áreas a que se referem teleologicamente para, em contrapartida, otimizar a combinação de qualquer função com qualquer subfunção.
Ainda ilustrando a área de educação, os dados elencados na Tabela 2 evidenciam a redução de investimentos em Educação Básica, Educação de Jovens e Adultos, desenvolvimento científico e formação continuada para os profissionais que atuam na área. Em associação, as despesas empenhadas em prol da Educação Superior, que, apesar da competência residual, foi assumida, desde 1988, pela União em relação aos estados, voltaram em 2021 ao patamar de recursos de 2017. Paralelamente e, voltando aos dados da Tabela 1, a função Cultura, complementar à da Educação, dispôs em 2021 pouco mais de 50% dos recursos de que dispunha em 2013. O mesmo ocorreu com Ciência e Tecnologia.
Pires (2021) e Costa (2022) chamam atenção para o fato de que estados de exceção, em geral, direcionam seus ataques - nesse caso, orçamentários, mas não somente - contra educação e cultura. São campos de pretensa balbúrdia, tratados como inimigos, pois, em geral, trabalham contra a premissa de que é “[...] preciso entorpecer a capacidade de análise política da sociedade para normalizarem-se os estados de exceção” (Pires, 2021, p. 152, grifo do original).
Outras áreas, como aquelas de investimentos infraestruturais - transporte, energia, indústria, comunicações -, historicamente associadas à geração de empregos e ao aquecimento da economia no universo de teorias keynesianas, são preteridas. Vislumbra-se, pois, na gestão orçamentária, o desmonte da capacidade estatal de investir e inovar com novas tecnologias por meio da defesa de um posicionamento doutrinário específico a uma plutocracia que se apresenta como tecnocrática, mas que torna “a-históricas as discussões contemporâneas sobre a política de desenvolvimento econômico” (Chang, 2004, p. 21). Por conseguinte, tomam-se como verdadeiras proposições tautologicamente fundamentadas e/ou apoiadas nas experiências contemporâneas dos países desenvolvidos que, atualmente, desmontam sua rede de direitos fundamentais (Lanzara; Costa, 2021).
Para isso, opta-se pela omissão, em alguns casos, ou explícita negação, em outros menos sofisticados, de todo um passado de empreendedorismo estatal, conforme salienta Mazzucato (2014), com políticas industriais, comerciais e tecnológicas intervencionistas para promoção das indústrias nascentes, bem como por forte protecionismo para produtores e produtos nacionais, somados ainda a inúmeras violações aos direitos à propriedade intelectual com espionagem e pirataria, e também políticas sociais ativistas, como aquelas de promoção educacional. Em um movimento de “chutar a escada” pela qual subiram, os países centrais do capitalismo defendem a adoção de pacotes de políticas e uma série de medidas que eles não empregaram quando eram economias em catching-up (desenvolvimento) para associar rentismo especulativo e generalizada greve de investimentos em atividades produtivas - tanto pelo lado do Estado quanto pela iniciativa privada -, para que as políticas orçamentárias, tributárias e fiscais beneficiem majoritariamente o establishment internacional, mas não aos países em desenvolvimento” (Chang, 2004, p. 209).
Tal perspectiva se alinha àquela apresentada por Florestan Fernandes (1987), que se debruça sobre como a burguesia brasileira se desenvolveu, compondo um capitalismo, cuja capacidade de acumulação foi cingida pelos países hegemônicos. Sob essa frustração de trajetória, a burguesia brasileira se consolidou através de práticas patrimonialistas e escravocratas e, assim como outras burguesias de países de capitalismo periférico, apresenta características singulares e um modus operandi que a distancia da trajetória seguida pelas burguesias europeias.
Em distintos momentos de história, diferentes burguesias, dentre as quais a brasileira, tornaram não apenas possíveis, mas também desejáveis regimes de exceção instalados somente de maneira oficial, ou seja, quando a suspensão de direitos é formal, material e explícita, prática que consolidou, por exemplo, a burguesia francesa, freando os ânimos populares nas ruelas da Paris revolucionária (Agamben, 2004). Em outros, lograram formatar tipologias de exceção sem a derrogação formal de direitos que, entre outras questões passíveis de análise, diz respeito, sobretudo, ao modo como essas burguesias interagem com as outras classes.
Pensando o caso brasileiro mais recente, o modo de lidar com o avanço das políticas sociais que culminaram na EC n. 95 ilustra esse argumento: mesmo que não haja classes que não sinalizem pretensões de iniciar processos revolucionários desestabilizadores do status quo, a repressão é legitimada com o embargo a direitos, seja pela efetiva captura do fundo público com o negligenciamento de certas agendas na construção das leis orçamentárias; seja via desmantelamento do núcleo de múltiplas políticas sociais, a exemplo da extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) em 2019. Em geral, trata-se de estratégias que repousam em fundamentos epistêmicos que associam políticas sociais a “discurso[s] populista[s]”,2 legitimando no plano das ideias uma visível deslegitimação e/ou descrença na ação política.
É nesse ponto que o conceito de contrarrevolução permanente, desenvolvido por Fernandes (1987), faz-se atual e relevante para a discussão. Para o autor, a formação histórica brasileira, sedimentada na expressiva desigualdade e sujeição social, aponta para um sistema alicerçado em mecanismos de bloqueios preventivos de formas mais amplas de erradicação da pobreza e promoção da igualdade de oportunidades, o que propicia a perpetuação da pobreza estrutural em que frações de classe não conseguem participar do mercado, seja como trabalhadores, em função da baixa qualificação, gerando desemprego ou baixas remunerações, seja como compradores, por falta de renda ou insuficiente poder de compra, fortalecendo a hostilidade contra os defensores e os beneficiários.
Tal possibilidade analítica permite a intelecção de por que o subdesenvolvimento não deve ser considerado um estado produzido e mantido a partir da pobreza, mas gerado, condicionado e regulado a partir de fora, por fatores estruturais e de conjuntura do mercado mundial, através da condensação de forças globalistas (Slobodian, 2018), as quais permitem o gerenciamento dos processos decisórios que regulam a vida social. Desse modo, transforma-se estado de exceção em regra, em que são frustrados movimentos pretensamente libertários do fatalismo da crise econômica permanente em que grupos já capitalizados capturam orçamento público.
Mesmo as vinculações orçamentárias que buscam afiançar gastos mínimos em áreas essenciais - e, assim, cumprir as promessas constitucionais de garantias de direitos fundamentais - não impedem que os recursos sejam capturados por metodologias obscuras de cálculo dentro das próprias áreas, conforme será discutido na próxima seção.
2. Dos objetivos sociais à supremacia da meta fiscal e sustentabilidade da dívida pública
Nesta seção, analisa-se como mesmo aqueles recursos vinculados à dada finalidade podem não ser convertidos em pagamentos dentro do exercício para não afetarem o resultado primário. Ao serem empenhados, mas não pagos, convertem-se em restos a pagar, o que, do ponto de vista da saúde das finanças públicas, significa a corrosão da disponibilidade de recursos no exercício seguinte.
Conforme salienta Silveira (2019), tal argumento não justifica, contudo, a progressiva desvinculação de receitas de políticas sociais no período estudado. Gera-se um trade-off, dada a impossibilidade de aferir se os malefícios superam os benefícios da vinculação, pois, “de um lado, perde-se em flexibilidade na gestão do orçamento e, de outro, ganha-se em controle na alocação de recursos segundo os diversos interesses políticos envolvidos” (Silveira, 2019, p. 123).
Frise-se que, em uma situação de emergência econômica permanente, a questão dos interesses políticos assume uma posição crítica. Ao longo das décadas, especialmente com a imposição do teto de gastos pela Emenda Constitucional n. 95, uma série de transformações no arcabouço constitucional foi firmada, operando como uma espiral de mutações legislativas, cujo resultado foi o declínio da relevância no sistema constitucional das despesas com direitos sociais e obrigações mínimas compulsórias, migradas para o vazio da inexecução orçamentária.
Uma questão paralela, mas crucial para a discussão, tangencia a inexecução de despesas nas programações mensais visando ao entesouramento de parcelas consideráveis de recursos federais carimbados, isto é, vinculados a áreas específicas, mas que não são efetivamente utilizados. Segundo levantamento de Afonso e Pinto (2014), cerca de 85% dos recursos do Tesouro Nacional não podem ser discricionariamente utilizados para quaisquer pagamentos, demonstrando uma contradição em relação aos objetivos sociais, mas consistente com o argumento da supremacia da meta fiscal, revelando “[...] uma espécie de dominância financeira sobre o orçamentário, o fiscal e o tributário” (Afonso; Pinto, 2014, p. 9-10).
Novamente, a escolha pelo entesouramento de recursos em detrimento do pagamento das despesas vinculadas a esses recursos resulta na criação de um orçamento paralelo de restos a pagar, desviando a finalidade constitucional para a qual os tributos são arrecadados. A gestão financeira do orçamento público federal passa a priorizar a redução da dívida pública, sobretudo a líquida, gerando assim o ilusório superávit primário. A título de exemplificação, a Tabela 3 ilustra a composição da subconta do Tesouro Nacional por recursos vinculados nos anos de 2019 e 2020:
Analisando os dados anteriores, é possível verificar que os recursos de múltiplas áreas com despesas vinculadas são aplicados na conta única do Tesouro Nacional. Segundo a Tabela 1, nos anos de 2019 e 2020, foram empenhados para a função Educação, em nível federal, R$ 114,09 bilhões e R$ 105,39 bilhões, respectivamente. Nos referidos anos, a subconta do Tesouro Nacional com valores vinculados à educação detinha R$ 17,31 bilhões (em dezembro de 2019) e R$ 13,12 bilhões (em dezembro de 2020). Em contrapartida, as despesas que foram empenhadas nesses anos, mas não pagas, geraram restos a pagar para o exercício seguinte, totalizando uma pendência de R$ 17,32 bilhões e 16,45 bilhões, respectivamente. Esses dados são sintetizados na Tabela a seguir:
Ainda que a vinculação de receitas pareça atender aos interesses dos investidores, acirrando a disputa pelo orçamento público, mas frustrando ainda mais sua capacidade redistributiva, a Emenda Constitucional n. 109, de 15 de maio de 2021, ressignificou um conjunto de entendimentos referentes ao Direito Financeiro vigente, a exemplo da propositura de decretação do estado de calamidade pública de âmbito nacional, aplicação de mecanismos compensatórios de ajuste fiscal para viabilizar o Auxílio Emergencial, bem como a inclusão de inativos e pensionistas no cálculo de gasto com pessoal (Brasil, 2021), dentre outras medidas para a constrição de gastos.
Além disso, a EC n. 109 dispõe sobre a imperiosidade de que a elaboração e a execução de planos e orçamentos traduzam a compatibilidade entre indicadores fiscais e a sustentabilidade da dívida pública, cabendo, entre outras medidas, o planejamento para alienação de ativos com vista à redução do montante da dívida (Brasil, 2021). Em um processo desconstituinte do Estado social, constitucionaliza-se, assim, a cosmovisão neoliberal de que a privatização massiva de estatais traz dupla solução: de um lado, aplaca parte do déficit fiscal do Estado, de outro, suprime o ônus de prestações finalísticas para com a entidade alienada.
O art. 165, § 2º, dessa Emenda trouxe também nova função para a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Antes a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) deveria compreender as metas e as prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício subsequente. Após, criou-se a obrigatoriedade de que a LDO estabeleça as diretrizes de política fiscal e respectivas metas em consonância com uma trajetória sustentável da dívida pública.
Paralelamente, operando como mais um apêndice da supremacia dos serviços da dívida sobre todas as demais demandas a que o Estado deveria dar conta para observar as determinações da Assembleia Constituinte de 1988, a EC n. 109 prevê, no art. 167, § 4º, a vinculação de receitas de impostos para pagamento de débitos com a União e para lhe prestar garantia ou contragarantia em relação a um rol taxativo de impostos (Brasil, 2021). Excetuando o princípio da não afetação da receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, o referido dispositivo transforma em mera retórica qualquer defesa de que a tributação atende a fins sociais.
Outro dispositivo que ratifica essa inferência é o art. 167-F, II. Ele dispõe sobre a possibilidade de superávit financeiro apurado em 31 de dezembro do ano imediatamente anterior ser destinado à cobertura de despesas oriundas das medidas de combate às calamidades públicas de âmbito nacional e ao pagamento da dívida pública (Brasil, 2021). Tal determinação evidencia que, pela letra fria da lei e de seus executores, uma emergência pandêmica, como a de covid-19, e uma emergência econômica, como a baixa liquidez dos bancos durante a crise financeira de 2008-2009, não detêm o mesmo peso, tendo esta última maior mérito para iniciativas interventoras pelo Estado. É na execução orçamentária que tal disposição é evidenciada, revelando aditivamente o papel secundário a que ficaram submetidas a defesa e a promoção de direitos fundamentais.
3. Considerações finais
Foi discutido no artigo como, no Brasil, ao longo das décadas, tem ocorrido a programação mensal, bem como o contingenciamento, o descontingenciamento e a efetiva liberação de recursos orçamentários em nível federal. Considerando a emergência nos últimos anos, tanto no cenário acadêmico global quanto nacional, de uma preocupação acerca da possibilidade de ressurgimento de regimes de exceção política e, como tal, autoritários, o artigo parte da premissa de que pouca visibilidade foi destinada, contudo, a uma aprofundada discussão sobre formas autoritárias de gestão do orçamento público e suas implicações sobre os objetivos sociais instituídos democraticamente.
Nesse ponto, faz-se mister não esquecer os argumentos de Hermann Heller (2015) sobre como o liberalismo autoritário torna a exceção, regra, sobretudo por meio da assimilação de mecanismos democráticos para pretensamente garantir legalidade e legitimidade para dinâmicas de excepcionalidade em que é atribuído papel secundário à implementação dos direitos fundamentais. Dessa forma, a inexecução de políticas públicas tem sido normalizada como resultado do persistente cenário de anormalidade econômica que exige sacrifícios e suspensão, ainda que não oficial, das leis que garantem direitos e proteções ao tecido social.
Surge, entretanto, que, de acordo com a lógica intrínseca às operações capitalizadas no mercado, esse sacrifício não se aplica a todos, da mesma forma que o acesso a bens e produtos também não é universal. Contrariando a generalização dessa afirmação, encontram-se os bens e os serviços públicos, ainda considerados fundamentais para a satisfação dos mínimos existenciais e, portanto, continuamente providenciados pelo Estado, tais como a educação e a saúde públicas.
Dessa maneira, a simples transferência da responsabilidade do Estado em fornecer bens e serviços que concretizam direitos fundamentais, os quais de outra forma não seriam disponibilizados, revela-se extremamente danosa e indicativa de uma racionalidade contrária à sociedade. Isso porque, como a história demonstra, o mercado não está interessado em gerar resultados positivos para aqueles que mais dependem do Estado, como os pobres, os sub ou não cidadãos.
Por tal razão, não se trata simplesmente de uma crença sem fundamento de que é justificável defender o Estado devido à falta de substitutos. Ao analisar a paralisação de investimentos por parte do setor privado, que intencionalmente opta por gerar capital improdutivo, seguindo a lógica da austeridade que nega, por sua vez, a necessidade de restabelecimento da capacidade de investimento do Estado em setores como infraestrutura, novas tecnologias, ciência, educação, entre outros, torna-se inviável promover efetivamente um crescimento econômico sustentável e uma distribuição mais equitativa de seus benefícios.
Nesse sentido, e cumprindo o objetivo de refletir sobre como mecanismos de emergência econômica podem ser incorporados à gestão do orçamento público federal e quais são as consequências desse processo para a promoção dos direitos sociais, salienta-se a necessidade de aprofundamento sobre as análises que formatam o dorso desta pesquisa, com destaque para o reconhecimento da institucionalização da exceção econômica que, mesmo sem a derrogação formal da democracia, promove um duplo processo de deformação institucional no Estado, naturalizando, de um lado, a inação estatal e, de outro, criando uma ambiência mais favorável à concentração de capital e, portanto, ao crescimento das desigualdades sociais.
Após a introdução, o artigo destaca a relação entre a Emenda Constitucional n. 95 e as políticas fiscais no Brasil, ressaltando a falência do projeto político ao não estabilizar o crescimento do PIB nem favorecer o desenvolvimento socioeconômico. A análise destaca a insuficiência dos investimentos em setores essenciais, como saúde e educação, agravada pela flexibilidade na distribuição orçamentária e a desvinculação de recursos de áreas prioritárias. Articulam-se ainda reflexões que sugerem que a gestão orçamentária, alinhada a uma visão tecnocrática e autoritária, contribui para a desindustrialização, a fragilização de políticas sociais e a perpetuação da desigualdade estrutural no Brasil.
Por fim, o artigo aborda a ineficácia da vinculação de recursos a políticas sociais devido à prática de empenho sem pagamento, resultando em restos a pagar que corroem a disponibilidade de recursos no exercício seguinte, e consolidam um trade-off entre a flexibilidade na gestão do orçamento e o controle na alocação de recursos. Analisa ainda a questão do entesouramento de recursos federais carimbados, evidenciando a criação de um orçamento paralelo de restos a pagar, que compromete a finalidade constitucional dos tributos para priorizar a política fiscal e a sustentabilidade da dívida pública.
Essas discussões contribuem para o fortalecimento do campo de estudo sobre a gestão do orçamento público e sobre as possibilidades de exceção econômica decorrentes. Soma-se ainda aos frutos da pesquisa a resistência epistêmica que atribui valor à política, ao Estado e à existência de múltiplos atores políticos com projetos políticos igualmente diversos, içando-se como questionamento quais e por que alguns desses projetos devem ser sacrificados para que outros prosperem.
Dentre as limitações do artigo, destacam-se os escassos dados compilados e analisados, que, apesar de consubstanciarem os principais argumentos, comprometem a possibilidade de generealizações da exceção econômica permanente no tempo, bem como nas funções e nas subfunções orçamentárias, o que, em contrapartida, cria oportunidades para futuros estudos que se debrucem sobre a observância teleológica aos objetivos instados democraticamente pela Constituição Federal.
Referências
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Em matéria ao Jornal do Comércio, em 22 de junho de 2016, quando ainda era o presidente interino, Michel Temer afirmou: “[...] a proposta que limita os gastos públicos é uma demonstração de que antes de qualquer ônus que a população possa ter com a crise econômica ‘é preciso que se corte na carne primeiro e nós estamos fazendo isso’”. Ver Temer... (2016).
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Indagado por repórteres do El País sobre o aumento da pobreza e desnutrição no Brasil, o presidente Jair Messias Bolsonaro, além de afirmar que falar de fome é um “discurso populista”, respondeu que: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não” (JIMÉNEZ, 2019).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
10 Jan 2024 -
Aceito
02 Fev 2024