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O nó da terra: a renda da terra como base para análise das questões urbana e agrária

The land knot: land income as basis for analyzing urban and agrarian issues

Resumo:

O objetivo deste artigo é discutir a renda da terra como base para análise das questões urbana e agrária. Para isso, realizamos um estudo temático cuja análise seguiu o método materialista histórico-dialético. Debruçamo-nos sobre os estudos desenvolvidos por Marx e Engels, além de elaborarmos uma pesquisa bibliográfica complementar. Buscou-se desvelar o laço que unifica a essência de duas expressões da questão social: a propriedade privada da terra e o processo de sua valorização a partir do trabalho incorporado à terra.

Palavras-chave:
Formação social do espaço; Questão agrária; Questão urbana

Abstract:

This article aims to discuss land rent as a basis for analyzing urban and agrarian issues. To this end, we carried out a thematic study whose analysis followed the historical-dialectic materialist method. We focused on the studies developed by Marx, Engels, as well as complementary bibliographical research. We sought to unveil the bond that unifies the essence of these expressions of the “social issue”: private ownership of land and the process of its valorization based on the work incorporated into the land.

Keywords:
Social formation of space; Agrarian issue; Urban issue

1. Introdução

Este artigo objetiva discutir a renda da terra como base para análise das questões urbana e agrária. A partir da realização de um estudo temático, cuja análise seguiu o método materialista histórico-dialético, debruçamo-nos sobre os estudos desenvolvidos por Marx, no livro três de “O Capital - Crítica da Economia Política”, por Engels, em “Sobre a Questão da Habitação”, além de pesquisa bibliográfica complementar. Buscou-se desvelar o laço que unifica a essência de duas expressões da “questão social”: a propriedade privada da terra e o processo de sua valorização a partir do trabalho incorporado à terra.

Nesse modo de produzir e viver, baseado na exploração da força de trabalho, são extraídos valores, distribuídos sob diferentes formas. O valor é a cristalização do trabalho humano (trabalho vivo) nos produtos, que se realiza no processo de troca, portanto tem, nas relações sociais de produção e em sua reprodução, determinação, bem como na própria dinâmica da luta de classes. Uma das formas assumidas no processo de distribuição do valor é a renda da terra, cujo fundamento é a materialização do trabalho: a terra em seu estado natural1 1 Entendida aqui como a terra sem a intervenção direta ou indireta da atividade humana. não gera nenhum processo de valorização de capital. É no processo social de produção do espaço, de produção da existência sob o modo de produção capitalista, a partir do trabalho, que a terra assume essa função social.

A terra, meio de produção universal, complexificou-se como mercadoria ao longo do processo de desenvolvimento do modo de produção capitalista e sua regulação como propriedade privada foi historicamente constituída com a mediação da luta pela terra, expressão da luta de classes no espaço. Assim, é imprescindível o estudo da renda da terra, sua constituição e determinantes, sua análise e compreensão.

As terras urbanas e agrárias passam por processos de valorização, uma vez que apresentam particularidades próprias, mas que participam da totalidade do modo de produção capitalista e suas relações sociais de produção (que regem a própria dinâmica de produção do espaço social, do uso da terra), permeadas de contradições e cuja desigualdade - a partir da exploração do trabalho livre - entre a socialização da produção de riqueza e sua apropriação privada toma centralidade.

A primeira parte do artigo apontará elementos que contribuem para a compreensão da categoria renda da terra. Abordaremos o processo de formação da renda da terra, suas principais determinações, assim como sua composição em renda diferencial e renda absoluta. Em seguida, apontaremos os elementos que compõem a essência das questões agrária e urbana, pensando o conceito de expropriação, buscando indicar o nó que as unifica, com base na teorização anteriormente apresentada.

2. O nó da terra: apresentando a categoria renda da terra

O passado colonial configura-se como uma das determinações para a formação social do espaço brasileiro, em que nosso vocacionamento como nação agroexportadora se subordina à lógica imperialista historicamente. Nosso processo de industrialização se deu de forma tardia, seguindo um projeto desenvolvimentista que dependida diretamente do investimento do Estado e do capital agrário. As relações no campo passavam por processos de tensionamento, em que antes, centros de decisão, se viam subjugados ao poder centralizador no pós-Revolução de 1930, que consolidou a hegemonia burguesa do capital industrial e seu projeto político-econômico para o país.

A classe trabalhadora no campo e na cidade se organizava de forma a reivindicar mais direitos, o que acirrava as disputas e o cenário da luta de classes. Cabe aqui enfatizarmos as particularidades, que diferenciavam as lutas da cidade daquelas do campo. É importante, porém, destacarmos a relação entre ambas, em que a produção de alimentos pelos trabalhadores do campo a baixo preço servia como forma de barateamento dos salários dos trabalhadores urbanos (Oliveira, 2013OLIVEIRA, F. de. O Estado e o Urbano no Brasil. In: BARROS, J.; SILVA, E. B.; DUARTE, L. Caderno de Debates 2. Cidades e conflito: o urbano na produção do Brasil contemporâneo. p. 47-68. Rio de Janeiro: FASE, 2013.). Além disso, a própria produção de habitação da classe trabalhadora, na maioria das vezes realizada no formato de autoconstrução (devido à ausência de políticas sociais de habitação), contribuiu com o processo de valorização da terra no campo e nas cidades.

Ao produzir o espaço, seja urbano ou agrário, a classe trabalhadora participa do processo de valorização da terra. Na análise do processo de formação da renda da terra, convém adotar como ponto de partida a produção do espaço, compreendendo a tríade capital-trabalho-terra, esse meio de produção universal em que ocorre toda existência humana.

De partida, afirmamos que não são a especulação imobiliária, a definição de preços dos mercados nem o momento da distribuição, que ganham centralidade nas análises de alguns estudiosos do espaço, os principais determinantes da renda da terra, mas sim a produção do espaço, momento determinante para a obtenção de valor (Martins, 2014MARTINS, R. M. de. “Entre o pensar e o viver”: um estudo sobre a cidade como espaço estratégico da luta de classes. 2014. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Rio de Janeiro: Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.). O trabalho incorporado à terra, por meio não só de intervenções específicas a um terreno, mas, e principalmente, das infraestruturas urbana e rural (rodovias, iluminação pública, esgotamento sanitário etc.), é um dos fatores fundamentais para a valorização do solo, seja ele no ambiente urbano ou agrário. Isso justifica o fato de que, em algumas cidades, localidades, bairros ou mesmo regiões do país o preço da terra é muito superior, quando submetido a comparações.

Para entendermos o preço pago pela classe trabalhadora em um aluguel ou na compra de uma terra para produção, devemos observar suas condições reais. Além das relações mercantis diretas, das variações inflacionárias, dos impostos estatais, das transações comerciais e institucionais, é essencial observar o papel da renda da terra para a formação do valor de troca e do preço que envolve a terra e o habitar.

A segregação socioespacial, diametralmente oposta ao direito à cidade (Lefebvre, 2008LEFEBVRE, H. O direito à cidade [1968]. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008.), constitui-se na principal fonte dos males propriamente urbanos. Tal segregação social do espaço é fruto da produção do espaço sob determinadas relações sociais de produção. Milhões de pessoas se veem compelidas a morar em grandes centros urbanos. Contudo, entre suas necessidades de habitação (valor de uso) e a realização de tal necessidade, existem determinadas relações sociais imperativas que precisam ser atendidas. Tais relações é que possibilitam lucros aviltantes aos proprietários, os quais se atribuem o privilégio de exigir de cada família trabalhadora “um tributo pelo direito de habitar a Terra” (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., p. 237). O monopólio da propriedade fundiária urbana constitui-se como fonte da “exploração desavergonhada da miséria” (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., p. 237).

A combinação do aumento populacional (resultando, em consequência, no aumento crescente da necessidade de moradias) com o crescimento do capital incorporado à terra resulta necessariamente na elevação da renda da terra, a qual se constitui, tanto para Marx (1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985.) como para Engels (1976ENGELS, F. Contribuição ao problema da Habitação. In: MARX, K.; ENGELS, F. Textos, v. II. São Paulo: Sociais, 1976.), no elemento fundamental do preço do aluguel e do próprio imóvel.

A renda da terra é uma parcela da mais-valia que cabe ao proprietário da terra. Assim, a renda da terra se situa no momento da distribuição, mas se origina na mais-valia formada no processo de produção, correspondendo à parcela do produto do trabalho excedente, da exploração do trabalho vivo, sua fonte (Martins, 2014MARTINS, R. M. de. “Entre o pensar e o viver”: um estudo sobre a cidade como espaço estratégico da luta de classes. 2014. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Rio de Janeiro: Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.).

Toda renda fundiária é mais-valia, produto do trabalho excedente. Na forma menos desenvolvida, é diretamente produto excedente, a renda natural. Mas, no modo capitalista de produção, a renda fundiária é sempre sobra acima do lucro, acima da fração do valor das mercadorias, a qual por sua vez consiste em mais-valia (trabalho excedente) (Marx, 2008MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro III, v. VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 846).

Contudo, a valorização da terra ocorre, em geral, não em virtude do trabalho incorporado nela própria, mas resulta principalmente da totalidade do trabalho social. A peculiaridade da renda da terra, por conseguinte, deve-se não ao fato de o proprietário dela se beneficiar, mas sim de ter sua propriedade valorizada, mesmo que nela não realize nenhuma atividade, independentemente de sua vontade.

Exatamente no caso da valorização econômica da propriedade fundiária, do desenvolvimento da renda fundiária, aparece como característica peculiar o fato de o montante dessa renda não ser, de modo algum, determinado pela intervenção de seu receptor, mas pelo desenvolvimento do trabalho social, que não depende dele e do qual ele não participa (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., 139).

O desenvolvimento do trabalho social na área, na qual se situa o imóvel, ou a simples indicação de que sua terra é propícia ao desenvolvimento de atividade lucrativa, o beneficia: não lhe atribui nenhuma renda efetiva, mas valoriza sua propriedade, aumenta sua renda em potência. É por isso que os terrenos não cultivados têm nos cultivados um referencial para o cálculo de seus preços. Não sem motivo, tantos vazios urbanos são preservados para a especulação imobiliária. Mesmo a terra próxima a uma paisagem natural (cachoeiras, encontros de rio com mar etc.), por exemplo, só passa por processo de valorização a partir da incorporação de trabalho, nela mesma ou na região.

A renda da terra não é uma peculiaridade do capitalismo, ela o antecede. Os pressupostos para sua existência são a propriedade fundiária e o trabalho social. Sua origem é tão remota quanto a divisão da sociedade em proprietários e não proprietários (Marx, 2008MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro III, v. VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.). Tal reconhecimento da longa história da renda da terra (não circunscrita à do capitalismo) não pode levar ao equívoco da identificação entre as diversas formas de renda fundiária que se manifestaram nos diversos modos de produção:

Esse caráter comum das diferentes formas da renda fundiária - de ser a realização econômica da propriedade fundiária, da ficção jurídica em virtude da qual diferentes indivíduos detêm com exclusividade determinadas parcelas do globo terrestre - faz que se esqueçam as diferenças (Marx, 2008MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro III, v. VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 845).

No modo capitalista de produção, a renda fundiária constitui-se em parte da mais-valia interceptada pela propriedade fundiária da terra. No lugar de ser apropriada pelo capitalista, que investe em determinada atividade produtiva naquela terra (desse modo compondo a taxa geral de lucro), a renda fundiária é captada pela propriedade da terra. Em relação ao quantum de mais-valia que se apropria o proprietário da terra, seu montante dependerá da diferença de composição do capital, mais precisamente da menor ou maior quantidade de capital fixo em tal composição (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985.). A propriedade fundiária somente habilita aqueles que detêm “determinadas porções do globo terrestre” a captarem “parte do mais-trabalho da sociedade” (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., p. 239).

Essa relação que se estabelece acaba sendo velada, em seu movimento, “pela circunstância de a renda capitalizada, portanto exatamente esse tributo capitalizado, aparecer como preço do solo, por isso ele pode ser vendido como qualquer outro artigo comercial” (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., p. 239). Contudo, esse título jurídico não resulta da venda, que o transfere de uma mão para outra.

O conceito econômico de relações sociais de produção capitalistas não deve ser confundido com o de relações de propriedade, um conceito jurídico. Como evidencia Marx, o objeto principal da especulação imobiliária “não é o imóvel, mas a renda fundiária” (1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., p. 238). A negociação em torno da venda ou do aluguel de um imóvel tem em seu valor de uso (ou seja, o quantum de lucro ou sobrelucro que pode propiciar) o centro da contenda.

A renda fundiária, contudo, não é a mesma, “ela se diferencia segundo as condições do terreno” (Ramos, 2013RAMOS, M. H. R. Renda fundiária urbana: sua lógica explicativa. Anchieta: [mimeo], 2013., p. 20). A renda fundiária diferencial não tem como pressuposto a propriedade fundiária, mas sim o monopólio da propriedade fundiária: “O monopólio da propriedade fundiária, erigida em barreira ao capital, é condição da renda diferencial, pois, sem esse monopólio, o lucro suplementar não se converteria em renda e caberia ao arrendatário e não ao proprietário da terra” (Marx, 2008MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro III, v. VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 998).

O lucro adicional, característico da renda fundiária diferencial, resulta da exploração de uma força monopolizável que promove “maior produtividade do capital aplicado” (Marx, 2008MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro III, v. VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 861). Tal lucro adicional, portanto, não advém do próprio capital nem de inovações no processo de trabalho, mas sim provém das excepcionais condições de um terreno. Tal força não pode ser produzida pelo arrendatário, não constitui parte das condições gerais de determinado ramo de produção, nem se separa do solo, daí ser monopolizável (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., p. 144). Contudo, como a propriedade em si não pode gerar nenhum lucro, somente a conjunção de capital e trabalho com essas condições excepcionais pode gerar lucro suplementar (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., p. 145).

A renda diferencial é subdivida, por Marx, em renda diferencial I e renda diferencial II. A renda diferencial I está relacionada ao sobrelucro advindo de melhores condições de fertilidade e/ou de localização. Já a renda diferencial II, de sucessivos investimentos de capital, ou seja, de trabalho materializado.

Marx não se estende na apresentação da renda diferencial advinda de melhores condições de localização, no entanto oferece-nos ricas indicações: as terras mais bem situadas são aquelas que gozam de melhor acesso a mercados, meios de comunicação e de transportes (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., p. 148).

Já na renda diferencial II, há uma elevação artificial da fertilidade do solo devido a investimentos sucessivos de capital no decorrer de um período de tempo, ou seja, o proprietário de terra é beneficiado por melhorias continuadas de sua terra pelo arrendatário. Não se deve, porém, confundir com aumento de capital fixo no processo de produção. Nesse caso, não haveria aumento da renda fundiária, mas sim do lucro do arrendatário. O proprietário de terra somente é beneficiado por essas melhorias promovidas pelo arrendatário na ocasião da assinatura de um novo contrato, isto é, quando negocia ceder novamente a posse, o uso de sua propriedade.

É a renda diferencial II, tendo como base a I, que leva ao investimento constante no solo. Tal investimento deriva na concentração de capital na mesma superfície de terra, resultando na diferenciação cada vez maior da produtividade do solo, portanto do preço da terra, de sua capacidade em gerar sobrelucro. Num país de capitalismo desenvolvido, seus preços serão completamente diferenciados, ainda que apenas em frações, não em números absolutos (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., p. 177).

Quanto mais se desenvolve o capitalismo num país tanto mais aumentam, relativamente, a renda por fração de terra e a massa global das rendas. Contudo, esse processo não é linear, pois as rendas não aumentam eternamente. Elas gozam, em longo prazo, da mesma sorte dos investimentos em suas terras: se elas deixarem de dar lucros, tornar-se-ão igualmente não rentáveis para seus proprietários.

Não obstante, até mesmo o pior solo pode gerar renda. O fato de o preço de produção de uma cultura específica se elevar ao quantum, que permite o desenvolvimento de um processo de produção nesse solo que anteriormente não era rentável (portanto, estava inutilizado para essa cultura agrícola), torna-o apto a produzir valor de uso para o arrendatário (ou seja, mais-valia).

O proprietário não cederá gratuitamente sua propriedade. Se a demanda exigir um aumento de produção, o preço geral de produção vai ascender, para que seja paga a renda do proprietário. Não se trata de renda diferencial, muito menos de sua negação, mas sim de renda fundiária absoluta, ou seja, da renda que se constitui como condição para que o solo de menor fertilidade seja utilizado, do contrário seu proprietário não o cederia e o solo imediatamente acima seria o regulador, mas desde que seja paga sua renda.

Nos terrenos “destinados à construção nas grandes cidades” (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., p. 237), a renda diferencial é, em primeiro lugar, influenciada preponderantemente pela localização. Em segundo, a renda diferencial está profundamente relacionada ao “progresso do desenvolvimento social”, ou seja, o proprietário de terra adota uma postura de “total passividade”, busca se beneficiar ao máximo do desenvolvimento “para o qual em nada contribui e no qual nada arrisca” (Marx, 1985MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985., p. 237). Em terceiro lugar, há, no cálculo da renda diferencial, predomínio do preço de monopólio.

Para se analisar a renda da terra, portanto, é preciso relacioná-la ao modo de produção capitalista. A distribuição apenas se torna compreensível se se analisa o momento determinante, ou seja, a produção. A propriedade fundiária moderna é uma relação social somente inteligível se a inserirmos na análise das relações sociais de produção capitalistas. Para analisar as causas determinantes das desigualdades socioespaciais no campo e na cidade, é necessário desvelar a própria produção do espaço. A apropriação de trabalho pelo capital explica também a desigualdade socioespacial. Como vimos, seu fundamento primeiro é a materialização do trabalho: a terra em si mesma não gera nenhum valor. É tão somente o trabalho que atribui valor à terra.

3. Trabalho e reprodução do capital no espaço: os processos de expropriação como condição geral de valorização do capital

Outra categoria fundamental para a análise das questões urbana e agrária e sua relação é a expropriação. As expropriações, em Marx, como veremos, estão relacionadas aos processos que resultam na separação entre os produtores e seus meios de produção. Essa é uma situação necessária para que os produtores sejam submetidos ao assalariamento.

Marx busca mostrar a lógica do capital. Não se trata de uma intencionalidade, mas de uma lógica do movimento real do capital que assim se estabeleceu. As relações de produção são produzidas, ou seja, resultam da própria ação humana. Atividade esta que é social (e não natural) e histórica (tem um devir, está em movimento). Sendo assim, as relações de produção também estão em movimento no próprio capitalismo, mas também são permanentemente reproduzidas.

A força de trabalho almeja, no processo de produção, sua conservação, tal como nele entrou. O capital, ao contrário, busca valorizar a si mesmo. Assim, a mais-valia “serve para a formação de novo capital ou de capital acrescentado” (Marx, 2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 134). Esse processo de acumulação “implica uma nova criação de assalariados”, isto porque “são meios para a realização e o incremento de capital existente” (Marx, 2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 134). Nosso autor destaca que “o produto da produção capitalista não é apenas mais-valia: é também capital” (Marx, 2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 133).

Para Marx, somente é capital aquela quantia que busca sua valorização: “O capital é, como vimos, D-M-D’, valor que se valoriza a si próprio, valor que gera valor” (2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 133). Quando transformada em fatores do processo de produção (meios de produção e capacidade de trabalho), “só potencialmente é capital”. Marx destaca a relação capital - trabalho. Demonstra como trabalho assalariado e capital são sociais, ou seja, só aparecem assim sob determinadas relações de produção. Para Marx, a compra e venda da capacidade de trabalho (que ocorre no momento da circulação) constitui “um elemento” do “conjunto do processo capitalista de produção” (2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 85).

Marx faz referência tanto ao ato histórico de separação dos produtores de seus meios de produção (“assim chamada acumulação primitiva”) como especialmente ao fato de esses meios de produção e dos meios de subsistência entrarem no processo como mercadoria, ou seja, chama atenção para a separação entre as “condições objetivas do trabalho” e a “própria capacidade viva do trabalho” (Marx, 2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 85). Tal separação se constitui em pressuposto permanente para que a força de trabalho seja ela mesma posta à venda por um preço que possibilite sua própria reprodução social (salário). Os meios de produção e de subsistência estarão, portanto, sob controle do capitalista. A única propriedade à disposição do operário é sua “própria capacidade viva de trabalho”, é a “única mercadoria que tem para vender” (Marx, 2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 85). Vejamos como Marx (2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 85) sintetiza essa contraditória relação entre a capacidade de trabalho viva e suas condições de trabalho, sob as relações de produção capitalistas:

[...] Sem troca do capital variável por capacidade de trabalho não se efetuaria a autovalorização do capital total nem, portanto, a formação do capital, nem a transformação de meios de produção e de subsistência em capital. O segundo elemento é o processo real de formação, isto é, o processo real em que se consome a capacidade de trabalho adquirida pelo possuidor de dinheiro ou de mercadorias.

Como a acumulação crescente de capital é uma necessidade e um resultado permanente do capital, cada vez mais pessoas são incorporadas no processo de reprodução do capital, ou seja, há aumento da massa trabalhadora, da quantidade de pessoas incorporadas ao assalariamento e às relações de produção capitalistas:

O processo de acumulação em si mesmo não é mais do que um momento imanente do processo capitalista da produção. Implica uma nova criação de assalariados, que são meios para a realização e o incremento do capital existente, já porque subsume nele partes da população ainda não abrangida pela produção capitalista, tais como as crianças e as mulheres, já porque, graças ao crescimento natural da população, se lhe submete uma massa acrescida de operários (Marx, 2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 134).

Marx afirma que o capital “regula” a produção da força de trabalho, “da massa humana que há de explorar” (2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 134). Desse modo, revela-nos a dialética da relação capital/trabalho. O trabalho produz as condições de trabalho como capital. O capital produz cada vez mais a massa de despossuídos de suas condições de trabalho. Assim, a reprodução das relações de produção se encontra com os ensinamentos da Lei Geral de Acumulação Capitalista e com a Assim chamada acumulação primitiva:

A produção capitalista não é apenas reprodução da relação; na sua reprodução a uma escala cada vez maior e na mesma medida em que, com o modo de produção capitalista, se desenvolve a força produtiva social do trabalho, cresce também perante o operário a riqueza acumulada, como riqueza que o domina, como capital; perante ele expande-se o mundo da riqueza como um mundo alheio e que o domina; e na mesma proporção se desenvolve a pobreza, a sua indigência e a sua sujeição subjetivas (Marx, 2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 135).

Tais relações são expandidas também para ramos produtivos ainda não explorados, para massas ainda não introduzidas no assalariamento; em escala cada vez mais massiva e em condições cada vez mais favoráveis ao capital (em detrimento daqueles que vendem sua força de trabalho).

Marx (2004MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004., p. 135) destaca o caráter expansivo do capital em novos ramos (serviços, bens naturais) e seu alcance crescente sobre parcelas das massas. Daí as várias iniciativas de expropriações. Expropriações, entendidas por Marx (apud Fontes, 2018, p. 21), como “processos históricos que resultaram na decomposição da unidade originária existente entre o homem trabalhador e seus instrumentos de trabalho”. Contudo, a expropriação, em Marx, não se restringe ao momento de acumulação prévia, pois se perpetua2 2 “Tão logo a produção capitalista se apoie sobre seus próprios pés, não apenas conserva aquela separação, mas a reproduz em escala sempre crescente” (Marx apud Fontes, 2018, p. 23). e assegura uma condição básica para a reprodução do capital. Por meio dela, transformam-se “os meios sociais de subsistência e de produção em capital” (Marx apud Fontes, 2018, p. 31).

Os processos de valorização relacionados à terra podem ser bem apreendidos por meio do uso dessa chave analítica, uma vez que permite maior superação de unilateralidades. Entender tais processos como combinações multicausais pode revelar-se mais preciso. A função apresentada por Fontes (2018, p. 33) dos processos de expropriações nos parece de grande valor, “retiram dos seres sociais suas condições de existência e as convertem em capital”, uma vez que a “distribuição dos agentes de produção” constitui “um momento da produção” (Marx, 2012, p. 253).

De modo semelhante, a categoria acumulação por despossessão,3 3 A professora Elaine Behring destaca que uma tradução mais próxima do termo utilizado originalmente por David Harvey é “acumulação por despossessão” (informação verbal). Escolha esta feita pela tradutora de Os limites do capital, de Harvey, contudo, na tradução de outro livro do autor, O novo imperialismo, optou-se por “acumulação por espoliação”. em Harvey, remete à de “acumulação primitiva” (2013, p. 121), mas deve ser entendida como um conjunto de mecanismos que permite a continuidade do processo de reprodução do capital e a “restauração” do poder hegemônico da burguesia. A categoria acumulação por despossessão é compreendida como uma saída burguesa diante da crise de sobreacumulação de capital, sobrevinda do processo de reprodução expandida num determinado tempo histórico (Harvey, 2013IANNI, O. Estado e capitalismo no Brasil: estrutura social e industrialização no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004., p. 148). O autor atribui como constitutiva dessa saída burguesa não somente o que denomina de “ordenações espaço-temporais”, mas também outras formas de espoliação impostas por meio dos chamados ajustes fiscais:

Conclui-se, pois, que o capitalismo sobrevive não apenas por meio de uma série de ordenações espaço-temporais que absorvem os excedentes de capital de maneiras produtivas e construtivas, mas também por meio da desvalorização e da destruição administrativas como remédio corretivo daquilo que é em geral descrito como o descontrole fiscal dos países que contraem empréstimos (Harvey, 2013IANNI, O. Estado e capitalismo no Brasil: estrutura social e industrialização no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004., p. 113).

Por meio desse conjunto de iniciativas, retomaram-se as taxas de lucros dos capitais, mas não o crescimento econômico. Assim, os processos de expropriação estão diretamente relacionados aos processos de reprodução do capital no espaço, tanto em sua forma originária quanto nas formas inscritas na dinâmica atual do capitalismo.

Ainda assim, foi Marx quem elaborou os fundamentos teóricos que permitem compreender a reprodução do capital nos processos de produção do espaço. Os processos de valorização do espaço e de seus produtos podem ser apreendidos por meio da teoria da renda da terra, exposta no Livro III, de O Capital. As particulares expressões da “questão da terra” têm em tais processos suas causas fundantes. Em nosso entendimento, trata-se de novas formas e manifestações de antigas particularidades da “questão social”.

4. A renda da terra como fundamento sócio-histórico para as questões urbana e agrária

A propriedade privada da terra no Brasil é constituída por particularidades históricas que compõem a sua formação social, das quais destacamos: a herança da plantation, como modelo produtivo em grande escala de produtos agrícolas voltados à exportação, e o racismo, que interferiu não somente nas relações de trabalho, mas também nas relações de propriedade, como no controle da propriedade privada da terra por poucos homens brancos. É preciso compreender, porém, a constituição da forma-propriedade a partir dos elementos que a compõem nos ambientes agrário e urbano, cujas determinações foram citadas nos elementos anteriormente vistos.

No processo sócio-histórico de nossa formação, nos meados do século XIX, a terra: 1) substituiu o escravo como fonte de riqueza; 2) assumiu o papel de novo patrimônio com a extração de renda da terra; 3) participou de forma significativa do processo capitalista de produção (Cardoso, 2018CARDOSO, I. C. C. Terra e propriedade como fundamentos da análise das questões agrária, urbana e ambiental. In: Santana, J. V. (org.). Habitação e Serviço Social. Dimensões teóricas, históricas e metodológicas. Campinas: Papel Social, 2018. p. 43-69.). Ocorre, assim, um movimento no qual a propriedade privada da terra se torna fundamental para a produção de riqueza, em que a luta pela terra se transforma constantemente com base na dinâmica da produção capitalista e da luta de classes (Cardoso, 2018CARDOSO, I. C. C. Terra e propriedade como fundamentos da análise das questões agrária, urbana e ambiental. In: Santana, J. V. (org.). Habitação e Serviço Social. Dimensões teóricas, históricas e metodológicas. Campinas: Papel Social, 2018. p. 43-69.).

Desde o início do século XXI, as lutas pela terra no campo têm como resposta, por um lado, a repressão do Estado e a criminalização dos movimentos sociais, e, por outro, uma política de assentamentos implementada de maneira pulverizada, ainda sob a lógica de colonização - herdada do século XX -, que não garante, de fato, a socialização do acesso às terras mais bem localizadas e com mais fertilidade, apesar da histórica luta pela reforma agrária. Tal política se dá de forma dispersa e reforça a lógica do capital: endividamento das famílias assentadas e reforço à propriedade privada da terra, o que enfraquece a pequena propriedade produtora e a produção coletiva de assentados (Sant’Ana, 2014SANT’ANA, R. S. A realidade agrária e o trabalho do assistente social na interface com os assentamentos rurais. In: ABRAMIDES, M. B.; DURIGUETTO, M. L. (orgs.). Movimentos Sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014. p. 263-277.). Dessa forma, tal política não opera aquilo que seria central para uma política de Estado que efetive uma Reforma Agrária: socialização da terra; garantia de moradia; condições de produção e, consequentemente, geração de trabalho e renda, e produção alimentar de qualidade, o que contribui para a soberania alimentar de nosso país (Sant’Ana, 2014SANT’ANA, R. S. A realidade agrária e o trabalho do assistente social na interface com os assentamentos rurais. In: ABRAMIDES, M. B.; DURIGUETTO, M. L. (orgs.). Movimentos Sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014. p. 263-277.).

A questão agrária se reflete no cotidiano da classe trabalhadora do campo e traz em sua essência as heranças do passado colonial e do racismo. A limitação da posse e, posteriormente, da propriedade privada da terra à população branca perpetua-se até hoje, uma vez que o grande latifúndio é branco (Fonseca; Pina, 2019FONSECA, B.; PINA, R. O agro é branco. Jornal CNN Brasil. 2019. Disponível em: Disponível em: https://apublica.org/2019/11/o-agro-e-branco . Acesso em: 30 abr. 2023.
https://apublica.org/2019/11/o-agro-e-br...
). Segundo o Censo Agrário do IBGE:

No país todo há mais produtores negros que brancos - são 2,6 milhões de negros produtores para 2,2 milhões de brancos somando-se todos os tipos de propriedades, independentemente do tipo de cultivo ou do tamanho da terra. Contudo, os negros são maioria apenas nas terras que ocupam menos de 5 hectares. Dessa área para cima, os brancos ultrapassam os negros em todas as categorias. A partir de 20 hectares a desigualdade é nítida: quanto mais se aumenta o tamanho da propriedade de terra, menos negros são produtores rurais (Fonseca; Pina, 2019FONSECA, B.; PINA, R. O agro é branco. Jornal CNN Brasil. 2019. Disponível em: Disponível em: https://apublica.org/2019/11/o-agro-e-branco . Acesso em: 30 abr. 2023.
https://apublica.org/2019/11/o-agro-e-br...
).

Nas cidades, a luta pela terra se expressa nos movimentos urbanos de luta por moradia, nos movimentos de bairro, nas associações de moradores, nos grupos de educação ambiental, nos pontos de cultura, em todos aqueles diversos movimentos que cultivam no cotidiano sementes de luta pelo direito à cidade.4 4 Na concepção de Harvey, adotada em nossos subsídios para a atuação de assistentes sociais junto à questão urbana, “[...] o direito à cidade significa o direito de todos nós a criarmos cidades que satisfaçam as necessidades humanas, as nossas necessidades [...]. O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente. Quando eu olho para a história, vejo que as cidades foram regidas pelo capital, mais que pelas pessoas. Assim, nessa luta pelo direito à cidade haverá também uma luta contra o capital” (2009 apudCFESS, 2016, p. 16).

As cidades, cujo espaço (socialmente produzido e valorizado pelo trabalho da classe trabalhadora assalariada e seu exército industrial de reserva) é capturado e expropriado pelo capitalista, são o palco da questão urbana e suas diversas expressões, em que atuarão assistentes sociais. A questão urbana traz em sua raiz cada elemento histórico de nossa formação, como afirma a professora Ermínia Maricato (2011, p. 131 apudCFESS, 2016CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Atuação de assistentes sociais na Política Urbana, subsídios para reflexão. Brasília, DF: CFESS, 2016., p. 10).

[...] a herança escravocrata e o desprestígio do trabalho, o patriarcalismo e a privatização da esfera pública, o personalismo e a rejeição às relações impessoais e profissionais, o clientelismo e a universalização da política do favor contrariamente ao reconhecimento dos direitos, a tradição autoritária negando a cidadania, estão presentes em cada m² da cidade periférica.

A Lei de Terras (1850) impôs a compra e venda como único meio de acesso à terra no Brasil, criando condições para o surgimento não só do mercado de terras, mas também do mercado de trabalho livre. Tal previsão legal resultou na limitação do acesso à terra aos trabalhadores recém-libertos (1888), na passagem do século XIX para o século XX. Essa herança perversa deixou marcas violentas no processo de formação da República brasileira. Legou sobrevivências históricas sob a marca do racismo, que se reproduz na questão urbana, no fato de que 67% dos que residem em favelas nos centros urbanos brasileiros são pessoas pretas e pardas.5 5 Fonte: www.cnnbrasil.com.br/nacional/cerca-de-8-da-populacao-brasileira-mora-em-favelas-diz-instituto-locomotiva/#:~:text=A%20pesquisa%20aponta%20que%20a,m%C3%A9dia%20nacional%2C%20de%2055%25.

Isso se reflete no racismo cotidianamente vivenciado por ampla maioria da população, na violência urbana, no medo social, na desigual distribuição da propriedade da terra, na questão da habitação e da população em situação de rua, além de impactar diretamente a realização do direito à cidade. A questão urbana, assim, é compreendida como “[...] expressão da distribuição desigual das atividades humanas na organização socioespacial do processo de produção e reprodução do capital e é também forma de resistência e de luta entre as classes sociais que compõem a estrutura social no contexto das cidades” (Burnett, 2012; Silva, 1989 apudCFESS, 2016CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Atuação de assistentes sociais na Política Urbana, subsídios para reflexão. Brasília, DF: CFESS, 2016., p. 12).

Os espaços urbano e agrário terão suas formas estabelecidas pelas relações sociais, pela forma como os seres humanos interagem com a natureza e entre si, daí concordamos com Cardoso (2018CARDOSO, I. C. C. Terra e propriedade como fundamentos da análise das questões agrária, urbana e ambiental. In: Santana, J. V. (org.). Habitação e Serviço Social. Dimensões teóricas, históricas e metodológicas. Campinas: Papel Social, 2018. p. 43-69.) quando aponta como elementos determinantes: a divisão territorial do trabalho, que se dá também regionalmente; as mudanças no uso e na ocupação do solo e a subordinação de modos de vida na cidade e no campo à lógica do capital; o aprofundamento de práticas rentistas e patrimoniais na utilização da terra urbana e agrária, como reserva de valor ou de patrimônio; a grilagem crescente - que ganhou apoio no governo Bolsonaro - com a usurpação de terras devolutas públicas, terras de nossos povos originários e de populações tradicionais, elemento estrutural da história social da propriedade e do acesso à terra no Brasil; além da produção e transformação de espaços fixos e de espaços de fluxos, em ambientes construídos desigualmente (Cardoso, 2018CARDOSO, I. C. C. Terra e propriedade como fundamentos da análise das questões agrária, urbana e ambiental. In: Santana, J. V. (org.). Habitação e Serviço Social. Dimensões teóricas, históricas e metodológicas. Campinas: Papel Social, 2018. p. 43-69.), reproduzindo a lei do desenvolvimento desigual e combinado em escala espacial.

Outro elemento determinante é a articulação de capitais que tomam a forma de capital fundiário/imobiliário com o capital financeiro, transformando a terra em ativo no mercado de valores, nos fundos de investimentos etc. Também convém considerar o aprofundamento do processo de dominação e apropriação predatória da natureza e do ambiente produzido, que acirrará as expressões da questão agrária e da questão urbana, no espaço socialmente produzido.

Vimos, então, que a questão agrária e a questão urbana apresentam particularidades que encontram no nó da terra sua essência. Ambas possuem especificidades que atravessam a “questão social” no capitalismo, encontram na luta de classes elementos de acirramento e requisitam intervenções do Estado por meio de políticas públicas. Nessa dimensão, assistentes sociais são chamadas/os a intervir profissionalmente, como aponta Cardoso (2018CARDOSO, I. C. C. Terra e propriedade como fundamentos da análise das questões agrária, urbana e ambiental. In: Santana, J. V. (org.). Habitação e Serviço Social. Dimensões teóricas, históricas e metodológicas. Campinas: Papel Social, 2018. p. 43-69., p. 58):

As contradições e os conflitos decorrentes dessa dinâmica capitalista da relação terra/propriedade incidem historicamente no tempo presente sobre a produção e reprodução desigual dos espaços urbano, agrário e ambiental - tornando mais complexas as refrações da questão social. Da mesma forma, tal incidência estende-se ao campo das políticas sociais e também conforma os horizontes das lutas sociais pela reforma urbana, a reforma agrária, e por novos padrões ecológicos civilizatórios e de justiça socioambiental.

5. Considerações finais

O capitalismo não superou certa cunha uma divisão entre tais espaços, que compõem um todo: o espaço social. Ao contrário, ele ampliou tais divisões de forma a acirrar as diferenças e desigualdades entre campo e cidade, reforçando as particularidades da questão agrária e da questão urbana, agudizando as contradições. Uma das determinações para a manutenção e o aprofundamento dessa cunha, construída no processo de formação do espaço social, está na expropriação da terra e na forma de relação que funda e perpetua a propriedade privada da terra.

A contradição é uma categoria inerente ao modo de produção capitalista, à nossa realidade, fundante da luta de classes. Uma contradição se impõe aos movimentos, coletivos e comunidades organizadas na luta pela terra: a questão da propriedade privada. Muitas(as/os) usuárias(os) das políticas sociais relacionadas à terra têm na expectativa da propriedade privada da terra, da moradia, sua motivação maior para a organização coletiva.

O exercício de estudo e reflexão que resultou neste artigo foi importante no sentido de expor essa contradição, uma vez que é justamente a propriedade da terra que permite que dela seja extraída a renda, pela mediação do processo de trabalho social. A renda da terra é categoria-chave para a compreensão dos fenômenos sociais e de expressões da “questão social”, objeto da intervenção profissional que perpassa a discussão da terra, seu acesso e permanência.

É preciso buscar romper com a divisão que fragmenta, nos planos teórico e programático, as análises das expressões da “questão social” que perpassam a luta pela terra, particularizadas na forma da “questão da moradia”, da “questão urbana”, da “questão agrária”, entre outras. Tal compreensão fragmentada do real repercute, por consequência, na própria formulação tática dos movimentos sociais (com os quais atuam assistentes sociais e suas entidades representativas) no Brasil e em toda a América Latina.

Referências

  • CARDOSO, I. C. C. Terra e propriedade como fundamentos da análise das questões agrária, urbana e ambiental. In: Santana, J. V. (org.). Habitação e Serviço Social Dimensões teóricas, históricas e metodológicas. Campinas: Papel Social, 2018. p. 43-69.
  • CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Atuação de assistentes sociais na Política Urbana, subsídios para reflexão Brasília, DF: CFESS, 2016.
  • ENGELS, F. Contribuição ao problema da Habitação. In: MARX, K.; ENGELS, F. Textos, v. II. São Paulo: Sociais, 1976.
  • FONSECA, B.; PINA, R. O agro é branco Jornal CNN Brasil. 2019. Disponível em: Disponível em: https://apublica.org/2019/11/o-agro-e-branco Acesso em: 30 abr. 2023.
    » https://apublica.org/2019/11/o-agro-e-branco
  • IANNI, O. Estado e capitalismo no Brasil: estrutura social e industrialização no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
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  • MARTINS, R. M. de. “Entre o pensar e o viver”: um estudo sobre a cidade como espaço estratégico da luta de classes. 2014. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Rio de Janeiro: Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.
  • MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro Terceiro: O Processo Global da Produção Capitalista, v. III, Tomo II [1894]. São Paulo: A. Cultural. (Coleção Os Economistas), 1985.
  • MARX, K. Capítulo VI: inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Centauro, 2004.
  • MARX, K. O Capital Crítica da Economia Política. Livro III, v. VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
  • OLIVEIRA, F. de. O Estado e o Urbano no Brasil. In: BARROS, J.; SILVA, E. B.; DUARTE, L. Caderno de Debates 2. Cidades e conflito: o urbano na produção do Brasil contemporâneo. p. 47-68. Rio de Janeiro: FASE, 2013.
  • RAMOS, M. H. R. Renda fundiária urbana: sua lógica explicativa. Anchieta: [mimeo], 2013.
  • SANT’ANA, R. S. A realidade agrária e o trabalho do assistente social na interface com os assentamentos rurais. In: ABRAMIDES, M. B.; DURIGUETTO, M. L. (orgs.). Movimentos Sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014. p. 263-277.
  • 1
    Entendida aqui como a terra sem a intervenção direta ou indireta da atividade humana.
  • 2
    “Tão logo a produção capitalista se apoie sobre seus próprios pés, não apenas conserva aquela separação, mas a reproduz em escala sempre crescente” (Marx apud Fontes, 2018, p. 23).
  • 3
    A professora Elaine Behring destaca que uma tradução mais próxima do termo utilizado originalmente por David Harvey é “acumulação por despossessão” (informação verbal). Escolha esta feita pela tradutora de Os limites do capital, de Harvey, contudo, na tradução de outro livro do autor, O novo imperialismo, optou-se por “acumulação por espoliação”.
  • 4
    Na concepção de Harvey, adotada em nossos subsídios para a atuação de assistentes sociais junto à questão urbana, “[...] o direito à cidade significa o direito de todos nós a criarmos cidades que satisfaçam as necessidades humanas, as nossas necessidades [...]. O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente. Quando eu olho para a história, vejo que as cidades foram regidas pelo capital, mais que pelas pessoas. Assim, nessa luta pelo direito à cidade haverá também uma luta contra o capital” (2009 apudCFESS, 2016CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Atuação de assistentes sociais na Política Urbana, subsídios para reflexão. Brasília, DF: CFESS, 2016., p. 16).
  • 5
    Fonte: www.cnnbrasil.com.br/nacional/cerca-de-8-da-populacao-brasileira-mora-em-favelas-diz-instituto-locomotiva/#:~:text=A%20pesquisa%20aponta%20que%20a,m%C3%A9dia%20nacional%2C%20de%2055%25.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2023
  • Aceito
    17 Nov 2023
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