Homens livres na ordem escravocrata*
Reginaldo C. Moraes**
Este livro foi escrito em 1964, como tese de doutorado, defendida na USP. Teve sua primeira edição (pelo IEB) em 1969 e as seguintes pela Ática (1976) e pela Kayrós (1983). Várias reimpressões foram feitas pelo caminho, mas já há algum tempo era impossível encontrá-lo nas livrarias, estando o acesso limitado às inevitáveis fotocópias, fartamente utilizadas em cursos de história e ciências sociais em que a tese havia conquistado o estatuto de referência obrigatória.
Abre o trabalho uma questão decisiva para quem tenta entender a formação histórica da sociedade brasileira: Qual o significado do trabalho escravo na produção colonial moderna? Entre a escravidão antiga e a moderna, Maria Sylvia aponta uma diversidade de sentido que explica os "rumos diametralmente opostos do processo histórico das sociedades em que uma e outra se constituíram". Questiona-se a tese da exterioridade capitalismo-escravidão e destaca-se o trabalho livre como constitutivo do mundo moderno pela mediação de seu contrário, o trabalho escravo. A escravidão é qualificada como uma "instituição submetida a outras determinações que lhe imprimiram seu sentido" (p. 13).
Revelam-se, desde logo, as implicações de longo alcance desta análise, na medida em que nela se contesta a possibilidade de "conceituar um modo de produção a partir da presença do escravo", um modo de produção afirmado como lógica e historicamente anterior ao capitalismo, modelo este presente nas diferentes teorias "etapistas" do desenvolvimento, sobretudo naquelas que derivavam da tradição do marxismo stalinista. E novamente cabe destacar que esta tese foi defendida em 1964, quando tal tradição pesava seriamente sobre as interpretações da "revolução brasileira". Infelizmente, custa aceitar a conjugação do verbo pesar nesse passado imperfeito, quando o presente revigora a mesma imperfeição...
Não é apenas este aspecto que chama atenção para a atualidade da abordagem exibida no livro. Se esta análise torna-se crucial com relação ao trabalho escravo, momento de um passado histórico bem demarcado, decisiva também é a caracterização de "uma formação sui generis de homens livres e expropriados, que não foram integrados à produção mercantil - destituídos de propriedade dos meios de produção, mas não de sua posse" (p. 14). São homens "a rigor dispensáveis", e a tentação é grande de aderir a alguma tese dualista das "populações marginais" ou das sobrevivências arcaicas, ora apontadas como obstáculo ao desenvolvimento capitalista "moderno", ora como espaços funcionais e complementares a este - tentação também muitas e muitas vezes reconstruída nas décadas seguintes, na sociologia brasileira. Com respeito a essa formação sui generis, contudo, a advertência é clara:
O objetivo para o qual esteve basicamente orientada a sociedade brasileira determinou, de ponta a ponta, sua organização. Embora os homens livres e pobres tenham permanecido apartados da produção para mercado, este setor localizou-os na estrutura social e definiu o seu destino. (p. 15)
Desse modo, a análise evita o facilitário tortuoso que tenta salvar a ortodoxia adotando hipóteses adicionais como aquela que imagina o latifúndio como algo "internamente feudal" e "externamente capitalista". Ou como a que postula a coexistência de formas sociais que pertencem a diferentes épocas - a coexistência dos não-coetâneos, as sobrevivências arcaicas. Nessa armadilha permaneceria presa mesmo a crítica do dualismo que concebe o "atrasado" não mais como obstáculo, mas como funcionalmente estimulador do "moderno".
Em suma, trata-se de apreender a unidade de dois princípios reguladores da atividade econômica essencialmente opostos - produção direta de meios de vida e produção de mercadorias. E apreender essas modalidades como "práticas que são constitutivas uma da outra", como unidade contraditória e não como dualidade integrada (p. 11).
Essa análise tem, ainda, conseqüências políticas, também de longo alcance. Ainda uma vez, insistente, mas não por acaso ou descuido, lembro que se trata de um livro de 1964, o que destaca a importância polêmica assumida pelas suas teses heterodoxas, a contrafluxo. Para a ortodoxia então reinante (e não apenas então reinante, repito), o escravismo (e não o capitalismo) seria um núcleo gerador de atraso e violência. A alegada incompatibilidade entre escravismo e capitalismo fazia acreditar que qualquer transformação deveria passar, necessária e "dialeticamente", pela burguesia, agente subversivo imprescindível nessa "etapa". O realismo cognitivo da análise (ou descrição) parecia tornar mais crível e legítimo o realismo normativo da política apontada como "objetivamente possível" ou "responsável".
Mas existem ainda outros aspectos a destacar neste livro. O historiador cuidadoso encontra aqui, também, instigante aula sobre uma forma de trabalho com fontes documentais que não se dobra ao empirismo. Por outro lado, note-se o modo como aparecem os quadros teóricos que inspiram a interpretação de tais fontes. Não é coisa fácil, numa tradição cultural que, com freqüência, operou uma pasteurização funcionalista de Weber (um dos autores com os quais o livro dialoga permanentemente) ou uma redução de Marx (outra das referências decisivas) a um profeta da sucessão unilinear dos famosos cinco modos de produção.
O material empírico da pesquisa - relativo, sobretudo, à velha civilização do café, no Vale do Paraíba - faz notar, desde o início do livro, a violência como algo que irrompe decisivamente em todos os momentos da vida social, mesmo naqueles onde aparentemente as relações de "comunidade" a descartariam: nas relações de vizinhança, na cooperação para o trabalho (o mutirão), no lazer, no parentesco, na constituição da moralidade.
No material consultado, "as notícias sobre a violência cometida circulam livremente", já que são testemunhos necessários ao esclarecimento dos processos-crime que constituem o ponto de partida do trabalho. Transcritos dura e cruamente, os testemunhos, reconstruindo detalhadamente situações triviais da vida social, comovem pela "naturalidade" e vigor com que essa violência aparece, inclusive lá onde menos deveria ser esperada:
Fica evidente a sua incorporação às condutas socialmente sancionadas. O fato de circularem desimpedidas de juízos restritivos indica também que a violência é incorporada não apenas como um comportamento regular, mas positivamente valorado. (p. 53)
Violência e favor são dois referentes que percorrem todo o livro. Nenhum deles aparece como "princípio organizador das relações sociais e econômicas oposto ao da racionalidade impessoal capitalista". Pelo contrário, estão "alojados na expansão do capital, no setor produtivo e financeiro, na constituição do Estado". Veja-se, por exemplo, com relação a este último aspecto, o notável (e também sempre atual) capítulo 3, procurando apontar "as bases materiais da `corrupção' no serviço público, a ideologia que suporta o `tráfico de influências', nesse setor, e as condições existentes para o exercício personalizado e autoritário do poder" (como se adianta na p. 18).
O diagnóstico é, ainda uma vez em nossos dias, muito oportuno:
A espinha dorsal na formação do Estado moderno (a separação dos fundos públicos dos recursos privados, mais o exercício despersonalizado das funções públicas e sua definição por normas gerais) não encontrava condições para se completar... A escassez de funcionários qualificados, a desnecessidade imediata de racionalização em seus procedimentos, a fidelidade aos valores próximos ao grupo retardaram a separação entre autoridade oficial e influência pessoal. (p. 166)
A conclusão delineia os limites do quadro:
A contradição que encontramos nas origens da sociedade brasileira, ao nível da economia - produção direta de meios de vida e produção mercantil -, desdobrou-se, ao nível da organização social, na síntese difícil das associações morais e das constelações de interesses, e desenvolveu-se, ao nível da organização política, na unidade da vida pública e da vida privada. (p. 240)
Como se pode ver, nestas notas de leitura bastante seletivas e pessoais, há, certamente, muitos e bons motivos para revisitar este incômodo estudo heterodoxo. Mas existe ainda uma outra razão, que me ocorre sobretudo ao reler o último capítulo, onde aparecem o fazendeiro e seu mundo, seu negócio, seu estilo de vida, sua ascensão e seu declínio.
Aqui, mais ainda do que antes, como na célebre análise do capital, não se espere encontrar retratos róseos, pelo contrário, já que os homens figuram também como portadores de categorias econômicas... E, nesse sentido, este livro pode ser lido ainda de uma outra forma, ela também heterodoxa, como um "romance" de um (ou mais de um) gênero de seres humanos, cuja trajetória - vida e destino, hábitos, pensamentos, desejos e tragédias - vai sendo reconstruída pelos documentos cuidadosamente colhidos e interpretados. Também este encanto narrativo - feliz aliança entre demonstração rigorosa e elegância da frase - faz deste estudo um clássico, isto é, um livro que deve ser lido.
** Professor do Departamento de Ciência da Unicamp e bolsista do CNPq.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 1999 -
Data do Fascículo
Abr 1998