Resumos
Este artigo focaliza o Brasil "indianizado" do século XVI no qual predominava a pluralidade lingüística, destacando-se o tupi e o português. O primeiro era a língua "geral" (nheengatu), falada por todos e de aprendizado obrigatório para os jesuítas; o segundo estava restrito às casas de bê-á-bá mantidas pela Companhia de Jesus. Neste contexto surgiu o teatro anchietano, encenado preferencialmente em português e tupi, com o objetivo de catequizar. Nosso estudo nos permitiu concluir que, tanto na forma como no conteúdo, o teatro serviu à aculturação, pois "cristianizou" a cultura indígena ridicularizando os seus mitos, que eram protagonizados pelos próprios índios, além de expandir o uso do português, principal idioma das peças. Começou aí a substituição da pluralidade lingüística pelo português, hegemônico a partir do século XVIII.
Educação jesuítica; Pluralidade lingüística; Teatro anchietano; Catequese; Aculturação
This paper explores the XVIth century "Indianized" Brazil. At that time, many languages were used, although Tupi and Portuguese prevailed. The first one was a general language (nheengatu) everybody spoke and the Jesuits had to learn. The second one was taught by the "Society of Jesus", in ABCs houses. In this context, Anchieta and others began to write plays mainly staged in Portuguese and Tupi. They aimed at converting Indians to Christianity. This study led us to the conclusion that this theater "civilized" the Indians, who became Christians. These plays expanded the use of the Portuguese language while ridiculing the Indian myths. At this moment, Indians began to change their languages to Portuguese, which began to prevail from the XVIIIth century onward.
Jesuitical education; Linguistic plurality; Anchieta's theater; Catechism; Acculturation
ARTIGOS
Pluralidade lingüística, escola de bê-á-bá e teatro jesuítico no Brasil do século XVI
Linguistic plurality, ABC's schools and the jesuitical theater in the XVIth century Brazil
Amarilio Ferreira Jr.I; Marisa BittarII
IProfessor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). E-mail: ferreira@power.ufscar.br
IIProfessora do Departamento de Educação da Universidade Federal da UFSCAR. E-mail: bittar@power.ufscar.br
RESUMO
Este artigo focaliza o Brasil "indianizado" do século XVI no qual predominava a pluralidade lingüística, destacando-se o tupi e o português. O primeiro era a língua "geral" (nheengatu), falada por todos e de aprendizado obrigatório para os jesuítas; o segundo estava restrito às casas de bê-á-bá mantidas pela Companhia de Jesus. Neste contexto surgiu o teatro anchietano, encenado preferencialmente em português e tupi, com o objetivo de catequizar. Nosso estudo nos permitiu concluir que, tanto na forma como no conteúdo, o teatro serviu à aculturação, pois "cristianizou" a cultura indígena ridicularizando os seus mitos, que eram protagonizados pelos próprios índios, além de expandir o uso do português, principal idioma das peças. Começou aí a substituição da pluralidade lingüística pelo português, hegemônico a partir do século XVIII.
Palavras-chave: Educação jesuítica. Pluralidade lingüística. Teatro anchietano. Catequese. Aculturação.
ABSTRACT
This paper explores the XVIth century "Indianized" Brazil. At that time, many languages were used, although Tupi and Portuguese prevailed. The first one was a general language (nheengatu) everybody spoke and the Jesuits had to learn. The second one was taught by the "Society of Jesus", in ABCs houses. In this context, Anchieta and others began to write plays mainly staged in Portuguese and Tupi. They aimed at converting Indians to Christianity. This study led us to the conclusion that this theater "civilized" the Indians, who became Christians. These plays expanded the use of the Portuguese language while ridiculing the Indian myths. At this moment, Indians began to change their languages to Portuguese, which began to prevail from the XVIIIth century onward.
Key words: Jesuitical education. Linguistic plurality. Anchieta's theater. Catechism. Acculturation.
Introdução
A nossa prática docente nos cursos de História da Educação na Universidade Federal de São Carlos nos tem possibilitado perceber a carência de estudos sobre os primeiros séculos da educação brasileira, o que nos motivou a elaborar o projeto de pesquisa Educação, História e Cultura no Brasil (1549-1759), do qual este artigo é um resultado parcial.
Esta temática, além de se constituir num dos elementos estruturais da progênie societária brasileira, leva em conta o fato de que determinados assuntos da nossa historiografia têm permanecido na sombra.1 Tal como assinalou Ciro Flamarion Cardoso, o período colonial foi praticamente esquecido das pesquisas, passando a predominar uma preferência maciça pelo "passado extremamente recente ou o presente imediato" (Cardoso, 1995, p. 5). Ele chama a atenção para o que classificou de "modismos", enfatizando a necessidade de se retomar assuntos cujos estudos foram interrompidos sem que chegássemos a uma compreensão satisfatória sobre a sua importância na formação social brasileira. O abandono de temas explicativos sobre a gênese da nossa constituição societária e a preferência pelo presente e pelos objetos emergentes, tendência prevalecente na historiografia atual, traz-nos à mente a análise de Bourdieu sobre a "hierarquia social dos objetos", assinalando que "a redundância observada nos domínios mais consagrados" é "o preço do silêncio que paira sobre outros objetos" (Bourdieu, 2001, p. 36).
Metodologicamente, ao enfocarmos a catequese e o teatro jesuítico como formas de educação no século XVI estamos buscando entender a manifestação do geral, ou seja, a formação da Nação e do Estado, com base na materialização do particular. Neste sentido, o processo de aculturação dos povos indígenas desencadeado pela Companhia de Jesus ainda deve ser objeto de investigação no campo educacional porque se constitui num elemento fundamental da construção histórica da Nação e do Estado brasileiros.
Com base em fontes primárias, principalmente as cartas escritas pelos primeiros jesuítas no Brasil, neste artigo consideramos educação as práticas de catequese em geral, uma vez que não se pode falar ainda de uma escola institucionalizada no século XVI, nos moldes que conhecemos hoje. Para ser catequizado, porém, era necessário que o índio soubesse o bê-á-bá.
As casas de bê-á-bá foram instituídas pelos jesuítas em 1549, no mesmo ano da chegada do padre Manuel da Nóbrega e dos seus cinco companheiros. Entre eles, desembarcou aquele que seria considerado o "primeiro mestre-escola do Brasil": Vicente Rijo [Rodrigues]. Na "escola" organizada pelo padre Vicente, em Salvador, os primeiros "alunos" foram as crianças mamelucas. Elas eram bilíngües, pois falavam o tupi da mãe e entendiam o português do pai. Nóbrega, na primeira carta ao Provincial de Portugal, afirmava que: "Ho Irmão Vicente Rijo insina ha doctrina aos meninos cada dia, e tambem tem escola de ler e escrever". Mas Rijo não ensinava apenas às crianças: a sua "escola de ler e escrever" também era freqüentada pelos índios adultos. Nóbrega, na mesma missiva de abril de 1549, noticiava que "hum dos principaes [caciques] delles aprende a ler e toma lição cada dia com grande cuidado, e em dous dias soube ho ABC todo" (Nóbrega, 1956, p. 110-111).
Tratar de educação no período quinhentista implica assinalar que o Ratio Studiorum (Companhia de Jesus, 1952, p. 119 passim), que definiu currículos e regras de todas as escolas jesuíticas da época, só foi aprovado pela Companhia em 1599, portanto, no final do século. Assim, toda a ação educacional do período que analisamos é anterior ao Ratio, o que nos leva a afirmar que ela foi uma espécie de "invenção" de Anchieta e seus companheiros, uma vez que transcorreu sem qualquer normalização a priori. Pelo contrário, a sua particularidade consiste em ter sido muito mais uma experiência nascida do ambiente e das condições históricas dadas do que de uma fidelidade absoluta aos preceitos emanados da Contra-Reforma, especialmente se levarmos em conta um fator extremamente importante que foi o isolamento quase total em que viveram os jesuítas do primeiro século no Brasil.
A propósito, como Anchieta chegou ao Brasil em 1553, com apenas 19 anos de idade, antes da própria promulgação das Constituições da Companhia de Jesus (1559), durante os quase 50 anos em que aqui viveu sem retornar à Europa, mostrou-se pouco conhecedor delas. Mas, segundo Serafim Leite, os seus dotes pessoais anulavam e supriam essas deficiências, o que confirma nossa interpretação sobre a "marca" peculiar da educação no século XVI. Ela se fez anteriormente à aprovação do Ratio Studiorum, com pouca ou nenhuma observância às Constituições da Companhia de Jesus e, simbolicamente, poderíamos dizer que esse primeiro século da sua história termina em 1597, com a morte de Anchieta.
Quanto ao teatro como forma de aculturação e de educação, nós o analisamos como elemento de imposição do padrão lingüístico português sobre os demais idiomas, numa época em que se verifica a ausência de Nação e de Estado propriamente ditos e a coexistência de etnias, culturas e interesses sociais conflitantes. Em outras palavras, ele é um recurso para a catequese - portanto, para a educação - e parte integrante do projeto colonizador lusitano.
Já no final do século XVI, os jesuítas passam a preferir as "letras" e a privilegiar a pregação para os portugueses, conforme os documentos consultados. A catequese, embora não abandonada, deixou de ser prioridade. Sobre essa mudança de rumo na ação educativa jesuítica, as cartas registram razões sempre recorrentes. As queixas e frustrações pelos resultados insatisfatórios obtidos com os índios, que logo retornavam aos seus antigos costumes, são as principais. Mas, na verdade, a catequese acaba secundarizada porque é o próprio extermínio imposto pelo padrão colonizador português que se sobrepõe à tarefa de conversão.
Colonização e aculturação
A Europa do século XVI caracterizava-se pela dualidade temporária assentada em dois modos de produção antagônicos: o feudal como estrutura externa e o capitalista como elemento interno. A luta entre o feudalismo, mais atrasado, e o capitalismo, mais dinâmico, teria o seu desfecho favorável ao último com o advento das revoluções burguesas a partir do século XVIII. Essa dualidade econômica - fundada nos pólos interno e externo -, que marcava a vida européia, refletiu-se no processo de colonização portuguesa nas terras brasílicas. Parte constitutiva do pólo externo, por exemplo, foi o Tratado de Tordesilhas (1494), que dividiu o mundo entre as Coroas Portuguesa e Espanhola. Pelo referido acordo internacional, era concedida ao rei de Portugal a propriedade de todas as terras localizadas ao leste do meridiano, situado 370 léguas ao oeste do arquipélago de Cabo Verde, que cortava a Terra do Ártico à Antártica. Um dos itens do Tratado de Tordesilhas estipulava que:
(...) se acontesse que caminhando assim aquém da dita raia os ditos navios dos ditos senhores rei e rainha de Castela, de Leão, etc., achassem quaisqués ilhas ou terras dentro do que assim fica para o dito senhor rei de Portugal e dos Algarves (...) e para seus herdeiros para todo o sempre, que suas Altezas o hajam de mandar dar e entregar. (Portugal/Espanha, 1945, p. 168)
Desse modo, as terras ainda por serem descobertas na América do Sul, antes mesmo de 1500, já pertenciam ao soberano português com base no primado jurídico consagrado pelo direito feudal, ou seja: "all land is king's land". Assim, tal como ocorria na Europa Ocidental, o processo colonizador português em terras ameríndias também assumiu um caráter dual. O lado externo da dualidade colonial brasileira era de caráter feudal e o lado interno estava determinado por relações pré-feudais de produção. A duplicidade colonial brasileira, entre 1500 e 1808, foi definida por Rangel da seguinte forma:
Em suma, entre os donatários (e não apenas os titulares das capitanias hereditárias) e o rei, estabeleciam-se relações de caráter insofismavelmente feudal: relações de suserania e vassalagem, ao passo que entre o donatário-vassalo e a população do feudo, a ele subordinada, estabeleciam-se relações típicas de outros modos - mais primitivos - de produção, refletindo o estágio aí alcançado de desenvolvimento das forças produtivas. (...) O Brasil nascia, pois, como uma formação feudal, que associava, em união dialética, um lado feudal com outro pré-feudal. (...) Este lado interno distava muito de ser homogêneo, visto como comportava elementos importantes de várias formações sociais pré-feudais: desde a comunidade primitiva (dos índios, dos quilombos negros) até a escravidão, para a qual tendia todo o sistema, passando, como na história clássica, por formas transientes de patriarcalismo e de teocracia (dos Ramalhos e dos jesuítas, respectivamente). O período colonial comportaria a evolução e a convergência de todas essas formas, para a escravidão desenvolvida ou greco-romana, como formação dominante do lado interno da formação dual. As outras formações (...) não comprometiam o caráter inequivocamente escravista do sistema, visto pelo lado interno. (...) Nessas condições, a fazenda de escravos, assente na coerção direta do trabalhador, era a forma mais dinâmica e progressista de organização do trabalho social. (Rangel, 1981, p. 7 passim)
Contudo, tanto o lado interno como o externo da dualidade colonial portuguesa americana situada abaixo da linha do Equador estavam subordinados ao pólo mais dinâmico da dualidade européia: o capitalismo mercantil em ascensão. A partir da segunda metade do século XVI, o Brasil passava a ser uma área econômica subsidiária da metrópole portuguesa. Ou, como afirmou Caio Prado Jr.:
No seu conjunto, e visto no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução dos trópicos americanos. (Prado Jr., 1961, p. 25)
Esse sentido mais geral da colonização portuguesa no Brasil terá como corolário um processo de conformação superestrutural que procurará reproduzir os traços mais distintivos do padrão cultural europeu ocidental cristão. O processo de expansão ultramarina patrocinada pelos reis da dinastia de Avis (1383-1580) tinha como escopo dois propósitos interligados num mesmo movimento: a conquista de novas feitorias produtoras de mercadorias, as regiões genericamente denominadas de Índias, e a propagação da fé cristã.
A Europa do século XVI, entretanto, foi marcada profundamente pela cisão que se processou no seio da cristandade. A Reforma Protestante (1517) operou um ponto de inflexão ideológico no processo de transição entre o mundo feudal e a formatação societária européia que se desenhava com o advento das relações mercantis de produção. Na Península Ibérica, o confronto entre o velho e o novo teve o seu desfecho na reafirmação do cristianismo católico apostólico romano. O padroado português, fusão entre o Estado e a Igreja que remontava ao início do século XII,2 conferia à Coroa Lusitana a prerrogativa de organizar tanto a colonização quanto a missão evangelizadora cristã nas terras banhadas "por mares nunca dantes navegados" (Camões, 1997, p. 71). Ou seja: "Por onde chegam os portugueses eles plantam o famoso 'padrão' que traz as armas reais e a cruz intrinsecamente ligadas entre si. Portugal goza dos favores da Cúria romana em negócios de além-mar". (Hoornaert, 1977, p. 35)
A simbiose entre o brasão da Coroa Portuguesa e a cruz do catolicismo romano vincou profundamente a gênese do Brasil colonial. O marco orgânico do padroado português no Brasil foi a chegada da primeira leva de padres da Companhia de Jesus, Manuel da Nóbrega e os seus cinco companheiros, na esquadra do primeiro governador-geral Tomé de Sousa (1549).3 A missão evangelizadora perpetrada pelos padres inacianos concomitantemente ao estabelecimento da empresa comercial lusitana ocupava um papel de destaque, pois "a religião deitava raízes profundas na Península Ibérica e se associara ao trono na defesa da estabilidade social, política e religiosa. Sua influência estendera-se à vida cotidiana do indivíduo, ao pensamento do século" (Costa, 1956, p. 13) Coube à Companhia de Jesus a organização das instituições irradiadoras dos dois veios fundamentais de sustentação da cultura européia nas terras americanas mais ocidentais demarcadas pelo Tratado de Tordesilhas: a Igreja Católica e a escola. Contudo, o estabelecimento do padrão cultural europeu enfrentou resistência por parte das sociedades indígenas encontradas pelos portugueses. Conforme mostra Paiva, o modelo cultural português foi obtido por meio da imposição:
A sociedade portuguesa tinha uma estrutura rígida, centrada na hierarquia, fundada na religião. Hierarquia e religião eram princípios inadiáveis em qualquer situação. O serviço de Deus e o serviço d'El-Rei eram os parâmetros das ações sociais e obrigavam a manutenção das letras, como eram entendidas à época. Por isso, não há do que se espantar com o colégio jesuítico em terras brasílicas: baluarte erguido como campo de batalha cultural, cumpria com a missão de preservar a cultura portuguesa. (Paiva, 2000, p. 44-45)
Igreja Católica, casa de bê-á-bá, catequese, colégio, aldeamento indígena, escravidão africana, fazendas de cana-de-açúcar e gado, câmaras municipais, homens bons (principais), padres jesuítas e colonos: eis os elementos econômicos, sociais e culturais que definiram as colunas arquitetônicas do edifício colonial português no Brasil do século XVI. Já no século seguinte, um projetista signatário e emblemático desse empreendimento colonial lusitano foi o padre Antonio Vieira. Ele pode ser considerado um dos mais importantes intelectuais orgânicos dos desígnios metropolitanos nas terras brasílicas, pois representou vários papéis ao longo da sua vida: estadista real, político consumado, padre enérgico, orador de verve ferina e missionário engajado em causas contraditórias, tal como escreveu Alfredo Bosi: "(...) do cabedal da memória saca o grande advogado armas para o escravo ou para o capital" (Bosi, 1992, p. 35). No sermão intitulado Primeira dominga do advento, o célebre rétor definiu um dos princípios explicativos da lógica que deveria presidir o império colonial lusitano: "Costumam ás Letras seguir-se as Armas, porque tudo leva após si o maior poder; e assim floresceram variamente, e em diversas partes no tempo d'estes imperios, todas as sciencias e artes" (Vieira, 1945a, p. 113-114).
As armas seguiam as letras: as primeiras exercidas pelos colonizadores portugueses e as últimas, pelos padres da Companhia de Jesus. A conjugação dos dois elementos na colonização e aculturação pode ser compreendida, por exemplo, quando se tem em conta que a conquista do planalto de Piratininga e a sua expansão para o interior teria sido impedida se não tivesse havido a providencial atuação dos jesuítas a colaborarem com os colonos na esfera religiosa, solapando, pelo trabalho de catequese, a autoridade e a resistência dos chefes religiosos aborígines, de extraordinário relevo na vida tribal, conforme analisou Egon Schaden (1954, p. 385-403). No âmbito dessa moldura está inserido o teatro do padre José de Anchieta, que contribuiu fortemente na conversão da gentilidade, conforme a biografia escrita por Simão de Vasconcelos, publicada em 1672. Para ele, o "apóstolo do Brasil":
Traduziu a doutrina cristã e mistérios da fé, dispostos a modo de diálogo, em benefício dos índios catecúmenos, e fez tratado e interrogatórios e avisos necessários, para os que houvessem de confessar e confessar-se, e para instruir principalmente no tempo da morte aos já batizados, deixando alívio com seus trabalhos aos vindouros que se houvessem de ocupar no trato da salvação das almas. (Vasconcellos, 1943, p. 33-34)
José de Anchieta, ao produzir uma arte letrada a serviço de Deus e d'El-Rei, foi um intelectual orgânico do projeto colonizador europeu ocidental. Isso porque a prioridade e o sentido do seu teatro eram a formação de um ambiente cultural português e cristão no processo de edificação da "grande nação brasileira" (Leite, 1938, p. 613). Quirício Caxa, autor da primeira biografia (1598) de Anchieta, afirmou que a sua arte bilíngüe (tupi e português) "abriu caminho para ajudar uma nação tão grande e que tem algumas cousas que facilitam sua conversão [índios]: 'scilicet', não comer carne humana, não ter mais que uma mulher e serem muito amigos dos Portugueses e muito mais dos Padres que têm cuidado deles" (Caxa, 1965, p. 51).
O teatro como veículo de aculturação
De acordo com fontes primárias, como as cartas dos primeiros jesuítas, viajantes e cronistas do Brasil colonial, o teatro foi introduzido concomitantemente à ocupação territorial patrocinada pela Coroa Portuguesa. Portanto, tal como na atividade educacional, os jesuítas foram pioneiros e exerceram o monopólio no âmbito das artes cênicas representadas nas terras brasílicas, pois somente na segunda metade do século XVII surgiu um cultor de teatro fora da Companhia.
Segundo Serafim Leite, as encenações transcorriam em duas instâncias: nas aldeias e nos colégios, sendo que nestes com estilo "mais escolástico e grave" (Leite, 1938, p. 599). Nas aldeias, representavam-se autos, termo originado do latim "actus" porque, possivelmente, a representação durava apenas um ato. Já nos colégios, além de autos, havia comédias e tragédias. Apesar dessa distinção, o objetivo era sempre moral. Quanto aos cenários, variavam entre a sala grande dos colégios, a praça pública e as aldeias; sendo estas últimas as preferidas dos jesuítas.
Realizado em ambiente português e cristão, o que nos chama a atenção é que esse teatro se constituiu num dos veículos propagadores da língua portuguesa, mas, ao mesmo tempo, manifestava-se nele a convivência das várias línguas faladas no Brasil. Português, tupi e castelhano eram as principais, predominando a primeira. Quando havia hóspedes espanhóis, intervinha o castelhano. O latim veio mais tarde.4 Empregado nos colégios para observar as regras do falar, não era bem-aceito nem mesmo pela Ordem no Brasil, que requisitava das autoridades eclesiásticas romanas a permissão para usar o português. Exibidas ao povo, as encenações não tinham caráter estritamente escolástico, portanto seria um desconsolo se não as entendessem, argumentavam os padres! Por isso, em 1584, foi solicitado pelo Padre Visitador Cristóvão de Gouveia que "se adoçasse a regra do latim e se fizessem as representações, ao menos em parte, na língua portuguesa" (idem, ibid., p. 601). O Padre-Geral da Ordem, padre Cláudio Acquaviva (1581-1615), consentiu em parte no uso da língua vernácula, não nas tragédias e comédias, portanto continuava proibido o uso do português nas encenações dos colégios. Mas a intenção maior dos jesuítas consistia em serem compreendidos pelos índios e esta era a razão pela qual o idioma tupi se tornava condição sine qua non para o êxito da catequese. E sendo o teatro uma das formas dessa conversão, o uso do português e da língua brasílica nas encenações era mais que justificado.
É preciso estabelecer, porém, os traços gerais da sociedade colonial da época para que seja possível captar o movimento das idéias, não em si mesmas, como analisa Alfredo Bosi, mas na sua conexão com os horizontes de vida de seus emissores, pois a luta era "material e cultural ao mesmo tempo" (Bosi, 1992, p. 33). Portanto, não se pode perder de vista as características distintivas da formação socioeconômica do Brasil-Colônia que, com base no mesmo autor, podem ser assim sumariadas: 1) predomínio de uma camada de latifundiários com interesses vinculados a grupos mercantis europeus; 2) a força de trabalho escrava; 3) estrutura de poder político dominada por interesses da Coroa (o raio de poder dos homens bons, isto é, proprietários, era curto e local; no final do século XVI até as câmaras municipais passaram a sofrer a interferência da metrópole); 4) o empenho dos jesuítas no estabelecimento de uma Igreja supranacional que privilegiava, em princípio (século XVI), o projeto das missões junto aos índios, ou seja, quando predominava a idéia do papel cristianizador da expansão portuguesa; depois a catequese cedeu lugar à educação humanística ministrada aos jovens de famílias abastadas; 5) a cultura letrada, reservada a poucos, servia "como divisor de águas entre a cultura oficial e a vida popular" (idem, ibid., p. 25).
O Brasil do século XVI era caracterizado por uma sociedade "indianizada", no dizer de Darcy Ribeiro, isto é, uma maioria composta por índios e uma minoria de europeus. Ele estima para 1600 cerca de 50 mil brancos, 30 mil escravos, 120 mil índios "integrados" e 4 milhões de índios isolados. Na mesma linha, no artigo intitulado Que somos? Celso Furtado afirmou que "durante todo o período colonial os portugueses foram no Brasil uma minoria em face da presença indígena e também da presença da população de origem africana, que logo começou a afluir como força de trabalho" (Furtado, 1984, p. 16). Atendo-nos ao século XVI, os números citados por Darcy Ribeiro dão-nos a idéia de uma população rarefeita que compartilhava a imensidão e a exuberância do território.
Nessa sociedade, o idioma tupi foi mais praticado que o português, e em toda a costa brasileira predominou o nheengatu, ou língua geral, quer dizer "o esforço de falar o tupi com boca de português" (Ribeiro, 1995, p. 122). Até a substituição da língua geral pela portuguesa, processo que só se completaria no curso do século XVIII, o tupi rivalizava com o idioma do conquistador na proporção de três por um. Era o mais usado nas relações comuns e, conforme registrado nas cartas jesuíticas, falava-se o tupi na família e nas relações privadas; ao passo que o português, aprendido nos colégios inacianos, era praticado nas relações oficiais e mercantis. Conforme testemunhou Vieira, a língua falada nas famílias paulistas, formadas por índios e portugueses, era a dos índios, ao passo que a portuguesa era aprendida pelos meninos na escola. Tal situação perduraria, embora atenuada, até a segunda metade do século XVIII, quando em São Paulo a língua tupi continuava sendo a da amizade e intimidade doméstica. Quanto ao latim, a língua culta por excelência no período colonial, era empregado nos estudos de lógica, retórica, aritmética etc., imperando também "nos templos, espaço público vital no cotidiano, ambiente de sociabilidades religiosas e mundanas" (Villalta, 1997, p. 345-346).
Mas o que nos interessa mais de perto neste estudo é o idioma tupi e a sua derivação em "língua geral", uma criação e imposição dos jesuítas, segundo Gilberto Freyre. O que explica a necessidade de aprendê-la? A resposta pode ser encontrada nas cartas dos primeiros inacianos no Brasil, nas Constituições da Companhia de Jesus5 e nos sermões do padre Antonio Vieira, pois em todos esses documentos fica nítida a obrigatoriedade dos catequistas de aprender a língua do dominado para melhor catequizar.
De fato, como escreveu Serafim Leite, uma das regras da Companhia era que todos aprendessem a língua da terra onde residiam. Decorrentes desse preceito inscrito nas Constituições, eram freqüentes as determinações superiores sobre a obrigatoriedade para os jesuítas do aprendizado do tupi. Inspecionando as obras missionárias no Brasil, na década de 60 do século XVI, o Padre Visitador Inácio de Azevedo, por exemplo, confirmou e decretou que todos a aprendessem "pelo menos para a doutrina e orações" (Leite, 1938, p. 561). A proeminência do tupi chegou a provocar alterações no rígido currículo dos colégios. Por exemplo: o curso de humanidades, na Europa, compreendia aulas de grego, mas, no Brasil, não se ensinou no século XVI: foi substituído pelo tupi. Por isso, os estudantes, segundo Serafim Leite, "com uma pontinha de bom humor, chamavam grego à língua brasílica" (idem, ibid.).
Nos documentos que analisamos fica bastante clara a necessidade de se aprender o tupi para o fim de catequese. Essa necessidade era tão imperiosa que suscitou uma situação sui generis: a tentativa de inversão de requisitos exigidos para a formação de padres, ou seja, em vez da teologia como prioridade, o aprendizado da língua brasílica. Caso essa solicitação dos jesuítas fosse aceita pelos superiores da Ordem, o estudo da língua supriria a teologia para os que não tivessem tanto talento para especulações e, assim, mesmo fracos no latim, a ordenação seria feita. Essa polêmica, registrada nas cartas jesuíticas de 1584, é um dado importante que nos permite, mais uma vez, perceber a dialética do processo colonizador: a particularidade da ordenação de padres em solo brasílico confrontava as próprias Constituições das Companhias, ou seja, a dogmática jesuítica era subvertida pelo ambiente colonial. A lógica era simples: a catequese, sendo mais importante que a própria formação dos quadros jesuíticos, requeria a ordenação de padres que já soubessem o essencial para catequizar mesmo sem a preparação teológica completa. E o essencial era a língua do dominado.
Na tarefa de conversão, por razões óbvias, o tupi era preferido ao latim, tanto que muitos padres se descuidavam do seu uso, como atesta uma carta de 1553 do irmão Pero Correia a um padre português, pedindo que lhe enviasse livros de doutrina e, caso não fossem encontrados em Lisboa, que os procurasse em Sevilha, pois ele pregava na língua tupi e não entendia o latim: "Eu sempre lhes falei assim a eles como à mais gente, que se ajunta na igreja, em sua língua, e lhes prego as coisas da fé; mas faltam-me livros em linguagem para estudar, porque não sou latino e não me posso ajudar dos de latim" (Correia, 1949, p. 380).
Apesar da sua importância estratégica, o estudo da língua brasílica, com as dificuldades naturais do aprendizado, era empreendido por muito poucos. Em 1585, uma carta do padre Manuel Viegas ao Padre-Geral Cláudio Acquaviva trata desse problema:
Ele [o Padre Visitador Cristóvão de Gouveia] foi muito bem recebido nesta Capitania por todos os seculares (...) Ele provê e deseja prover essas Casas, e tem grande zelo da conversão do gentio do Brasil, e manda que todos, que são para isso, aprendam e saibam a língua da terra, e a nenhum consente (conforme ao que V. P. lhe mandou) que se ordene de ordens sacras, ainda que sejam muito para isso, sem que primeiro saibam e aprendam a língua da terra. O que foi bem ordenado por V. P., porque saiba V. P. que muito poucos a queriam aprender e saber e dar-se a ela: tudo era darem-se às letras e serem pregadores dos portugueses, e subir ao púlpito a pregar aos brancos e não se lembrava desta pobre gente de lhe pregar em sua língua. (Viegas, 1949, p. 384)
Já no século XVII, na Exhortação primeira em vespera do Espirito Santo, pronunciada aos noviços e estudantes da Companhia de Jesus na capela interior do Colégio da Bahia, Vieira assevera que a língua portuguesa não era "mais geral" que a brasílica, mas nota um declínio no uso desta porque declinava a própria população indígena. Discorrendo longamente sobre a importância do seu aprendizado para a conversão dos gentios e preocupado com o fato de se haver limitado o "estudo da lingua da terra", em dado momento enfatizou:
E para ajudar essas almas, que meios ou que instrumentos nos deu e nos ensinou a providencia do mesmo Santo [Ignacio] e sapientissimo Patriarcha? A sua Regra o diz. Para maior ajuda dos naturaes da terra em que residem, todos aprendam a lingua d'ella. Reparemos bem n'aquelas duas clausulas universaes: todos e em qualquer parte, ou partes do mundo. (...). Pudéra dizer que aprendessem a lingua alguns, ou a maior parte, mas não diz senão, todos os estudantes e os professos, os irmãos e os padres, os discipulos e os mestres, os moços e os velhos, subditos e os superiores, sem que haja officio ou occupação alguma tão importante, que os exceptue d'esta, porque ella é a maior, a mais importante, e a de que depende o fim de toda a Companhia. (Vieira, 1945b, p. 385-386).
Mas uma vez aprendido o tupi, ensinavam aos índios o português, o castelhano e até o latim. Portanto, podemos dizer que, ao mesmo tempo em que se aprendia o tupi, a intenção era tornar hegemônico o português. Por isso, tal como assegurou Darcy Ribeiro, a indianidade daquele primeiro século era mais aparente do que real, porque todo o modo de vida indígena, a sua cultura, o próprio uso da sua língua, "estavam postos, agora, a serviço de uma entidade nova, muito mais capaz de crescer e expandir-se" (Ribeiro, 1995, p. 121). Outros estudos antropológicos, porém, assinalam que, apesar da aculturação, a diversidade lingüística só existiu enquanto aqui permaneceram os padres jesuítas, pois "a fim de garantir a hegemonia do idioma lusitano, o governo português, após a expulsão dos jesuítas, proibira o uso da língua geral e impunha o da portuguesa" (Schaden, 1954, p. 394).
Para "crescer e expandir-se", os valores ocidentais precisavam ser transmitidos de forma que pudessem ser aceitos e, para tal, os jesuítas recorreram às práticas mais condizentes com a cultura daqueles que eram o seu objeto de conversão. Observando seus costumes, logo perceberam o forte traço lúdico da sua cultura e talvez por essa razão começaram a investir em atividades centradas principalmente na música, na dança, na "teatralidade" da vida tribal repleta de rituais, movimentos, cores, sons para que, por meio delas, o cristianismo fosse assimilado com o recurso dos próprios valores dos índios, ou seja, todo o empenho dos jesuítas nessa forma de catequese consistia em "cristianizar" os valores indígenas. Em Casa-grande & senzala, discorrendo sobre a vida cotidiana das crianças índias, Gilberto Freyre afirma que música, dança, jogos e brincadeiras eram utilizados pelos jesuítas, que os depuravam do seu real significado, transmudando a sua simbologia para um sentido cristão. Assim escreveu ele:
Os jesuítas conservaram danças indígenas de meninos, fazendo entrar nelas uma figura cômica de diabo, evidentemente com o fim de desprestigiar pelo ridículo o complexo Jurupari [de quem as crianças tinham medo]. Desprestigiados o Jurupari, as máscaras e os maracás sagrados, estava destruído entre os índios um dos seus meios mais fortes de controle social: e vitorioso, até certo modo, o Cristianismo. (Freyre, 1995, p. 129)
Nessa mesma época, as festas populares na Europa católica não eram bem-vistas. Estudo de Peter Burke mostra que no século XVI as pessoas "cultas", principalmente o clero, mas os reformadores em geral - tanto católicos quanto protestantes -, empenhavam-se em modificar as atitudes e os valores do restante da população. Objetavam contra certas formas de religião popular, como sermões e, acima de tudo, festas religiosas como os dias de santos e as peregrinações. Viam na cultura popular reminiscências do paganismo, manifestações pré-cristãs, como, por exemplo, o Carnaval de Siena (Itália), em 1509. Em suma, "empenhavam-se em destruir a tradicional familiaridade com o sagrado, pois acreditavam que a familiaridade alimenta a irreverência" (Burke, 1989, p. 235), e foi assim, nesse ambiente de controle e vigilância dos dogmas católicos, que as peças religiosas foram proibidas em 1539 pelo bispo de Évora (Portugal).
Provenientes de uma ordem religiosa que nascera no âmago dessa crise reformista e empenhada na contenção dos ímpetos reformadores, os jesuítas sabiam que dificilmente obteriam permissão para realizar festas populares religiosas no Brasil. Por isso mesmo, temendo uma resposta negativa, preferiam não pedi-la. Pregando o cristianismo num quadro cultural estranho ao seu, tal como sucedia com a obrigatoriedade do latim, eles adotavam a tática de não pedir autorização para usar, em seu lugar, o tupi ou o português: simplesmente usavam. Ou como escreveu Serafim Leite sobre a resistência passiva dos jesuítas ao latim, "a influência do meio era superior a todas as determinações legais" (Leite, 1938, p 599).
Como a desobediência dificilmente poderia ser constatada, uma vez que o oceano protegia as suas transgressões, continuaram aproveitando o gosto dos colonos e dos índios por espetáculos, enquanto Roma os restringia. Um fato ilustra a questão: em 1596, o Padre-Geral Cláudio Acquaviva chamou a atenção do Provincial do Brasil, padre Pero Rodrigues (1594-1603), por ter consentido comédias e tragédias sem o avisar. Em sua defesa, alegaram os ditos padres que nas encenações se concentrava grande número de gente e, com isso, poderiam angariar grande número de confissões e comunhões. Mas Acquaviva replicou que se queriam muitas confissões e comunhões, que preparassem um bom sermão (idem, ibid., p. 602). Com certeza a sua idéia de sermão contrastava inteiramente com o chamado sermão popular, atacado na Europa como coisa ridícula, blasfema, ofensiva, como vaticinava Erasmo sobre o bom pregador, ou seja, aquele que devia saber jogar com as emoções da sua audiência por meio exclusivo de palavras, e não contorcendo o rosto ou gesticulando como um bufão. "Não é adequado, conveniente ou louvável que os homens promovam ocasião de risos nos sermões" (Burke, 1989, p. 235), dizia um puritano inglês citado por Peter Burke.
No que diz respeito às peças teatrais do período quinhentista, interessa-nos não apenas o seu conteúdo em si mas também a sua forma de expressão, ou seja, em que língua foram escritas e encenadas, uma vez que ambos os aspectos atuaram no processo de aculturação.
Como já mencionamos, os autos escritos por Anchieta valeram-se do bilingüismo como forma de aculturação. Sempre que era possível ignorar as regras da Companhia no tocante ao uso do latim, os padres faziam-no utilizando o português e o tupi. Já o castelhano, foi usado por Anchieta tanto parcialmente como em peças inteiras. Aliás, era comum o uso das três línguas num mesmo auto. Durante o domínio espanhol sobre Portugal (1580-1640), por exemplo, o uso do português e do castelhano na mesma peça revela uma preocupação política do autor.
Ao mesmo tempo, quando tratamos de teatro jesuítico, referimo-nos basicamente às peças do padre Anchieta, que constituem, segundo Joel Pontes, um pequeno bloco de medievalismo, único pelos temas, caracteres, pensamentos e emprego do tupi. "Sua obra - diz ele - permanece isolada na dramaturgia brasileira sem antecedentes nem conseqüentes imediatos" (Pontes, 1978, p. 86). É um elemento auxiliar na catequização dos índios, ação encantatória e didática ao mesmo tempo, efetivada sobre um público novo, ignorante de teologia, completa o autor. De fato, a função de aculturação exercida pelo teatro foi assim descrita por Nóbrega: "Com música e harmonia eu me atrevo a trazer a mim todos os indígenas da América" (Nóbrega, 1956, p. 384).
De 1564 até a sua morte, Anchieta escreveu aproximadamente 20 autos, o que corresponde à quase totalidade das peças jesuíticas do período, e escrevendo para os nativos ou para os colonos que já entendiam a língua geral da costa, o missionário adotava quase sempre o idioma tupi, afirma Alfredo Bosi, para quem Anchieta teria sido "o nosso primeiro intelectual militante" (Bosi, 1992, p. 93). Segundo ele, o projeto de transpor para a fala do índio a mensagem católica demandava um esforço de penetrar no imaginário do outro, e este foi o seu empenho. Ora, como dizer aos tupis a palavra "pecado" se eles sequer tinham noção dele? Anchieta vai então adaptando as figuras mitológicas dos índios às representações cristãs, vai criando um imaginário estranho, sincrético, no qual, por exemplo, bispo é pai-guaçu, pajé maior; igreja é tupãoka, casa de Tupã; demônio é anhangá, espírito errante; para anjo, Anchieta cunhou o vocábulo karaibebê, profeta voador. Por isso, conclui Bosi, "a nova representação do sagrado assim reproduzida já não era nem a teologia cristã nem a crença tupi, mas uma terceira esfera simbólica, uma espécie de mitologia paralela que só a situação colonial tornara possível" (idem, ibid., p. 65).
Mais preocupado com a catequização e menos com o estilo literário, Anchieta "não escrevia pensando na eternidade de sua arte, mas na Eternidade a ser conquistada pelo índio através da conversão" (Pontes, 1978, p. 53). Na mesma linha, Décio de Almeida Prado (1993, p. 22) afirma que Anchieta era um autor "impregnado pela vertente pessimista do cristianismo". Tal espírito anti-reformista manifestava-se no propósito de ministrar a noção de pecado, o valor da confissão, entre outros preceitos, tudo isso presente no esquematismo recorrente de seus textos, pois os jesuítas tinham em mira dois fins precisos: substituir uma religião (ou mitologia) por outra e um código moral por outro. Segundo o mesmo autor, quanto ao primeiro ponto não enfrentavam obstáculos maiores. Na galeria de seres sobrenaturais oferecida pelo politeísmo tupi, segundo a interpretação da época, Anhangá ajustava-se ao papel de Satanás, ao passo que Tupã, deus do trovão, assumia a posição de Deus único e Todo-Poderoso, figura conhecida entre os índios.
As soluções verbais, pelo menos, estavam dadas. Diálogo de Guaraparin (1585) (Anchieta, 1977, p. 204 passim), por exemplo, um auto-escrito todo em tupi porque seria endereçado diretamente ao índio, está estruturado com a extrema simplicidade de sempre. Começa pela ameaça latente em um concílio de diabos, continua com a presa da alma de um índio que, no auge da aflição, chama por Nossa Senhora e termina com a salvação. O final aponta para a comparação entre índios que se recusam a aceitar o catolicismo e os aldeados à sombra do Colégio, uns erradios até serem atirados ao fogo, os outros sedentários e felizes sob proteção de Nossa Senhora. O princípio moral é sempre o mesmo e está expresso na oposição cristã entre o bem e o mal.
Uma testemunha ocular dessas encenações foi o padre Fernão Cardim que, na obra Tratado da terra e gente do Brasil, relata:
Os curumins, sc. Meninos [crianças índias], com muitos mólhos de frechas levantadas para cima, faziam seu motim de guerra e davam sua grita, e pintados de várias cores, nusinhos, vinham com as mãos levantadas receber a benção do padre, dizendo em portuguez "louvado seja Jesus Cristo". Outros sairam com uma dança d'escudos á portugueza, fazendo muitos trocados e dançando ao som da viola, pandeiro e tamborim e frauta, e juntamente representavam um breve diálogo, cantando algumas cantigas pastoris. (Cardim, 1939, p. 258)
Observamos, ainda, que para ridicularizar símbolos da mitologia tupi, os jesuítas utilizavam os próprios índios para interpretá-los, como ocorreu, por exemplo, quando o Padre Visitador Cristóvão de Gouveia, no ano de sua chegada, em 1583, foi saudado na aldeia do Espírito Santo onde se encenou o Auto Pastoril, de Anchieta, causando-lhe enorme devoção, por não esperar "tais festas de gente tão bárbara" (Leite, 1938, p. 607-608). Não faltara nem um Anhangá (diabo), que saiu do mato, interpretado por um índio, relata Serafim Leite. Já no Auto de São Lourenço (1587) (Anchieta, op. cit., p. 141 passim), o anjo amarra o inimigo Saravaia (criado do diabo Guaixará), apresenta uma fala aos índios, incita-os a aprender a doutrina cristã, e a honrar o padroeiro da Aldeia de São Lourenço. Diz o Anjo:
Daí-lhe tôda a atenção,
Acabe-se o antigo rito,
Não haja aqui mortandade,
Acabem-se os feitiços,
E o augúrio que vós tínheis
Nas aves e feras do mato,
Não adoreis a palmeira.
Não faças mal a ninguém,
Amai-vos entre vós-mesmos,
Não sejas enredadores,
Lembrai-vos dos vossos mortos,
Não vos lembreis das ofensas,
E não sejais invejosos,
Não tireis frechas às gentes, etc. (Anchieta apud Leite, 1938, p. 613)
Enquanto o padre Serafim Leite vê nesses versos "uma das mais nobres aspirações e conquistas da civilização, a abolição das superstições e da antropofagia" (Leite, 1938, p. 613), não podemos enxergar senão o embate de valores existentes entre duas concepções societárias distintas, a ocidental e a ameríndia, e a lenta e eficaz destruição de uma cultura.
Conclusão
No século XVI ainda não havia um povo no Brasil, mas sim povos, cada qual com sua língua, costumes, tradições, história e interesses próprios. "Na pressa de transformar povos em povo, a Companhia de Jesus tornou-se cabeça de um movimento ideológico" (Pontes, 1978, p. 86). Nesse movimento, a imposição de uma única língua, no início minoritária, mas com pretensão de hegemonia, viria a ser um dos elementos da nacionalidade.
O teatro de Anchieta, inseparável da catequese, foi um dos instrumentos culturais utilizados pela Companhia de Jesus para viabilizar o seu ideário civilizador nas terras dos "gentios" pré-colombianos, cujo corolário mais evidente foi a gestação de uma nacionalidade plasmada pelo português em detrimento de outras expressões lingüísticas. A língua portuguesa, reduzida às escolas de bê-á-bá jesuíticas durante o século XVI, começou a se tornar hegemônica no século XVIII. Porém, como processo que resultou do cruzamento de culturas, também ela vai se distinguir de sua matriz lusitana. Sobre isso escreveu Gilberto Freyre:
Foi a língua, essa que se formou da colaboração do culumim [criança índia] com o padre, das primeiras relações sociais e de comércio entre as duas raças, podendo-se afirmar do povo invasor que adotou para o gasto ou uso corrente a fala do povo conquistado, reservando a sua para uso restrito e oficial. Quando mais tarde o idioma português - sempre o oficial - predominou sobre o tupi, tornando-se, ao lado deste, língua popular, já o colonizador estava impregnado de agreste influência indígena; já o seu português perdera o ranço ou a dureza do reinol; amolecera-se num português sem rr nem ss; infantilizara-se quase, em fala de menino, sob a influência do ensino jesuítico de colaboração com os culumins. (Freyre, 1995, p. 149)
A unidade lingüística da sociedade brasileira contemporânea é resultado, em parte, do tronco comum fundado na língua tupi praticada em todo o litoral do Brasil do século XVI. Como mencionamos, a "simbiose" do tupi com o português havia gerado a "língua geral", que nem era o tupi puro nem o português original. A partir do século XVIII, com a crescente hegemonia do português, foi sendo extinta tanto a pluralidade falada por outros povos indígenas não-tupis como também o bilingüismo forjado pelo cruzamento do português com o tupi. Após fazer deste último uma espécie de hospedeiro do idioma português, a colonização agiu no sentido de torná-lo único.
O nheengatu, embora tenha contribuído para dar uma "cara" ao Brasil, é quase um fenômeno cultural desconhecido da nossa história. Sobre o seu uso, o padre Lemos Barbosa - autor de obras referenciais sobre tupi nos anos de 1950 - dizia: "Falada na catequese e nas bandeiras, instrumento das conquistas espirituais e territoriais da nossa história, o seu conhecimento, sequer superficial, fez parte da cultura nacional".6 Proibido desde 1759 pelo Marquês de Pombal, que impôs o português, mesmo assim ele não está morto, embora praticado apenas por ribeirinhos, índios e caboclos da Amazônia. A velha língua brasílica, falada por índios de diferentes tribos em quase toda a costa brasileira, pelos portugueses, religiosos, escravos e bandeirantes na época do Descobrimento, acaba de ser declarada como uma das oficiais em São Gabriel da Cachoeira (AM), que será o primeiro município brasileiro a ter quatro idiomas oficiais: além do português, os habitantes passam a se comunicar oficialmente também em nheengatu, tucano e baniua. Como explicar isso? Segundo Eduardo de Almeida Navarro, mesmo após a sua proibição por Pombal, longe dos ouvidos do Estado, a língua geral sobreviveu bem na floresta até 1877, quando uma grande seca no Nordeste levou 500 mil pessoas para a Amazônia, mudando o perfil lingüístico da região. Ele classifica a sua elevação a idioma oficial como terceira fase do tupi e conclui: "É uma forma simbólica de reagir a uma proibição do Estado de 250 anos atrás".7
Enfim, em razão dos traços típicos da nossa formação histórica, no tocante à configuração lingüística, aqui resultou o inverso do sucedido com o vizinho país guarani, por exemplo, que conseguiu manter o seu bilingüismo, praticando o guarani como uma espécie de língua afetiva do Paraguai.
Concluímos, portanto, que a imposição da língua portuguesa, com exclusão da pluralidade cultural e lingüística do século XVI, atesta um dos aspectos da constituição do Estado-Nação brasileiro, nascido da violência, da exploração econômica e da intolerância religiosa e cultural, marcas de um passado que, como escreveu Caio Prado Jr., a todo instante está diante dos nossos olhos.
Notas
Recebido em abril de 2003 e aprovado em dezembro de 2003.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Jun 2004 -
Data do Fascículo
Abr 2004
Histórico
-
Aceito
Dez 2003 -
Recebido
Abr 2003