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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ1 1 Este dossiê contou com o apoio financeiro, para a produção editorial, dos projetos “Movimentos Sociais e Confronto Político no Brasil Contemporâneo” (E-26/203.190/2017) financiado pela FAPERJ; e “Transformações do Ativismo no Brasil: Junho de 2013 em Perspectiva Comparada” financiado pelo Edital 012/2015 da CAPES; “Memórias Brasileiras/Conflitos Sociais”(n. ref. 88881.130844/2016-01) desenvolvido entre 2016 e 2019.

DOSSIER PRESENTATION2 2 This dossier had the financial support, for the editorial production, of the projects “Movimentos Sociais e Confronto Político no Brasil Contemporâneo” (E-26/203.190/2017) financed by FAPERJ; and “Transformações do Ativismo no Brasil: Junho de 2013 em Perspectiva Comparada” financed by Edital 012/2015 from CAPES; “Memórias Brasileiras/Conflitos Sociais”(n. ref. 88881.130844/2016-01) developed between 2016 and 2019.

PRESENTACIÓN DEL DOSSIER3 3 Este dossier contó con el apoyo financiero, para la producción editorial, de los proyetos “Movimentos Sociais e Confronto Político no Brasil Contemporâneo” (E-26/203.190/2017) financiado por FAPERJ; y “Transformações do Ativismo no Brasil: Junho de 2013 em Perspectiva Comparada” financiado por el Edital 012/2015 de la CAPES; “Memórias Brasileiras/Conflitos Sociais”(n. ref. 88881.130844/2016-01) desarrollado entre 2016 y 2019.

Tendências Disciplinares e Diálogos Necessários

Os movimentos sociais são atores dinâmicos, com fronteiras sempre porosas, que interpelam múltiplos aspectos da vida social e política. Por isso, a pesquisa sobre o tema não pode estar confinada a compartimentos disciplinares estritamente delimitados. A despeito da centralidade da sociologia, no Brasil e alhures, por oferecer as balizas teóricas e conceituais fundacionais na modernidade, os movimentos sociais conformam um campo de pesquisa bastante relevante há décadas para várias outras disciplinas da área de ciências humanas e das ciências sociais aplicadas. Destacam-se, principalmente, a psicologia, a história, a geografia, a ciência política, a antropologia, as ciências da religião, o serviço social e a educação, ganhando proeminência recentemente também a comunicação, o direito e as relações internacionais.

Cada uma dessas disciplinas possui contribuições próprias e mobiliza diferentes abordagens, métodos, perspectivas e temas, variando de acordo com o país e as tradições intelectuais de cada comunidade acadêmica. Apesar disso, algumas tendências gerais podem ser apontadas. Em nosso país, a psicologia social e política tende a enfatizar o nível individual, os mecanismos de engajamento, as instâncias de conscientização política e as motivações que levam os indivíduos a participar de protestos e movimentos sociais, realçando a construção do comportamento coletivo. Já os historiadores contribuem enormemente, ao realçar o nível macro, o processo e as leituras de longo prazo, mesmo quando partem do estudo de eventos de protesto específicos.

A geografia, por sua vez, durante muito tempo esquecida no mainstream internacional das teorias dos movimentos sociais, é, no Brasil, uma das disciplinas mais criativas e pulsantes, com contribuições teóricas, metodológicas e empíricas relevantes sobre os movimentos sociais e suas relações com o território, as territorialidades, as escalas e, de modo mais geral, a espacialidade da ação e do conflito social. Já a ciência política, conquanto bastante dependente das contribuições da sociologia – principalmente da sociologia política –, desloca a ênfase do debate para as relações entre movimentos sociais e Estado, as interações com as instituições, as oportunidades políticas e os impactos, políticos e mensuráveis, das ações coletivas (p. ex., nas políticas públicas). Embora o peso dos movimentos sociais tenha crescido recentemente na ciência política brasileira, em boa medida em virtude dos protestos de junho de 2013 e da crise política que se instaurou no país, seu lugar ainda é mais marginal que nas disciplinas anteriormente mencionadas ou na antropologia e no serviço social.

Nessas duas disciplinas, a discussão sobre os movimentos sociais passa, em boa medida, pelo acompanhamento dos movimentos e de suas práticas, mesmo que de maneira distinta. No primeiro caso, as perspectivas que buscam conhecer as realidades a partir de dentro e em profundidade (emic perspectives) permitem etnografar e valorizar as experiências e as culturas locais (embora não somente) e, muitas vezes, gerar, a partir da escuta ativa e de diálogos inesperados, dinâmicas de coprodução de conhecimento, valorizando os conflitos. No segundo, a dimensão de intervenção atrelada ao serviço social o leva a ressaltar mais fortemente a construção de direitos sociais, as contradições do capitalismo nos territórios e a dimensão da práxis dos movimentos, problematizando a relação objeto–sujeito e promovendo iniciativas de pesquisa sobre/com os movimentos sociais, por meio da extensão universitária, da pesquisa militante ou de outras modalidades de pesquisa engajada. Desprende-se disso uma questão importante: a consideração, em muitas pesquisas, dos movimentos sociais não precisamente como “objetos” de estudo, mas como “sujeitos”, portadores de saberes e conhecimentos relevantes sobre si mesmos e sobre a vida social e política como um todo. Isso, obviamente, possui muitas implicações políticas, epistemológicas, teóricas e metodológicas, que estão merecendo a atenção de um campo amplo de ativistas, movimentos e pesquisadores.

Já a religião, em sua interface com a sociedade e a política, embora, durante muito tempo, associada à análise dos movimentos messiânicos e pré-modernos, é fundamental para a compreensão da historicidade e a disputa de sentidos das ações coletivas, dos conflitos e dos movimentos sociais em nosso país. A produção sobre o tema está vinculada a tópicos como as identidades religiosas, as ideologias político-religiosas, as múltiplas religiosidades e a interface entre os movimentos populares e suas expressões religiosas, desde as Comunidades Eclesiais de Base (CEB) até o protestantismo, passando pela resistência cultural.

Entre as áreas com contribuições um pouco mais recentes, as relações internacionais, marcadas tradicionalmente pelo seu carácter interestatal, têm, progressivamente, considerado os movimentos sociais atores internacionais, desenvolvendo relevantes contribuições sobre o ativismo e as redes transnacionais, sobre as articulações globais e, em algumas vertentes mais próximas à economia política, também sobre os movimentos “antissistêmicos” e a dimensão geopolítica dos conflitos e das resistências. Por fim, o direito e a comunicação, embora tenham relações histórico-práticas com o debate nacional sobre os movimentos sociais, por meio da advocacia e da comunicação populares, ampliaram somente no novo milênio seus escopos de pesquisa. Para além da persistente tarefa de defender e assessorar juridicamente os movimentos ou de criar estratégias comunicativas alternativas, em ambos os casos, a agenda de pesquisa se enriqueceu enormemente com relevantes debates sobre a mobilização do direito como repertório de ação e sobre controle estatal de protestos e repressão, no primeiro caso; e sobre ciberativismo, ativismo digital, a mediação dos dispositivos tecnológicos na construção das ações coletivas e as práticas comunicativas dos movimentos, no segundo.

Poucos temas, portanto, têm a capacidade de atrair a atenção de pesquisadores de procedências disciplinares tão diversas. Isso, por um lado, torna o debate sobre movimentos sociais muito rico e variado, mas, por outro, também pode levar à dispersão e à fragmentação. Vivemos, de fato, um momento intelectual ambivalente nas últimas décadas: muito se falou de inter-/transdisciplinariedade (em geral, mas também no estudo dos movimentos sociais), mas pouco se praticou, pois as pesquisas acadêmicas tenderam a tomar rumos cada vez mais especializados e demarcados. Conhecemos insuficientemente e conversamos com pouca profundidade com as disciplinas vizinhas, gerando muitas vezes “diálogos de surdos”, que partem de premissas diferentes ou, às vezes, dos mesmos conceitos, mas atribuindo a eles sentidos muitos distintos.

Na área de educação, o estudo dos movimentos sociais atrai, há algumas décadas, o interesse de pesquisadores, ainda que não se possa afirmar que esse seja um tema dominante na pesquisa educacional. As imbricações entre os direitos educativos e a luta dos movimentos populares constituíram um primeiro eixo, que abriu importantes perspectivas para a compreensão da democratização das oportunidades de acesso aos sistemas escolares. Um pouco depois, outro vetor que decerto agregou os interesses dos investigadores foi o dos movimentos sociais no campo, em especial os processos educativos gestados nas lutas sociais e as práticas inovadoras expressas na oferta da educação escolar articulada aos movimentos, tendo como ator fundamental o MST. A ampliação mais recente do horizonte de investigações incidiu sobre a dimensão pedagógica e os processos educativos presentes no interior dos movimentos sociais, bem como a ênfase nas lutas dos movimentos negros, feministas e LGBTI, além da constituição de novos sujeitos das mobilizações, como os segmentos juvenis. Um traço marcante de grande parte dessas pesquisas reflete, de modo positivo, a formulação de novos interesses, sobretudo após a onda de protestos observados em 2013 e, mais especificamente, as ocupações das escolas públicas no biênio 2015–2016. Desde então, houve um crescimento significativo da produção dos estudos sobre as interconexões da educação com os movimentos sociais, indicando a existência tanto de um terreno fértil quanto de uma conjuntura extremamente turbulenta, porém favorável ao avanço do campo de pesquisa.

Contudo, a outra face dessa inflexão exprime, igualmente, a necessidade de superação de alguns desafios, que não necessariamente são exclusivos da área de educação, embora adquiram especificidades nessa área. O primeiro deles, de carácter mais geral, tem a ver com o peso da conjuntura imediata nas pesquisas, não sendo igualmente consolidado o interesse pelos aspectos processuais e pelas perspectivas longitudinais, além dos interesses pelos atores, as práticas e suas orientações em momentos de latência ou em redes “submersas”, (MELLUCI, 1991Melucci, A. L’invenzione del presente: movimenti sociali nelle società complesse. 2° edizione. Bologna: Il Mulino, 1991.). Para além do peso dado à cena pública, às ações e aos movimentos mais visíveis, bem como aos ciclos de protesto, ainda faltam mais análises sistemáticas sobre o que ocorre entre diferentes ciclos de protesto, indagando, assim, os antecedentes e os impactos contraditórios e múltiplos dos ciclos.

Um segundo desafio reside na ampliação dos olhares e na necessidade de investigação dos movimentos e formas associativas que agregam atores portadores de demandas e visões de mundo autoritárias, conservadoras e, inclusive, fundamentalistas. Os impactos dessas orientações nos territórios, nos sistemas educativos e nas tensões da esfera pública, embora sejam tema de conversa e preocupação constante nos últimos anos, ainda são pouco explorados de maneira mais sistemática, sobretudo se considerarmos dois atores relevantes: os professores e os jovens. No entanto, o estudo dos movimentos conservadores, dos reacionários ou dos “contra-movimentos” não pode se fechar em si mesmo, motivo pelo qual é central localizar o entendimento da configuração do ativismo social e dos sujeitos políticos de nosso tempo diante de um campo de confronto político amplo, no qual atores antagônicos, situados à esquerda e à direita, disputam (em terrenos de proximidade relativa ou de distanciamento absoluto) os sentidos da ação e os rumos societários.

Enfim, o interesse pelos estudos dos movimentos sociais na pesquisa em educação – mas também em outras áreas – ainda precisa superar certo insulamento disciplinar, estabelecendo um diálogo mais profícuo com a produção nacional e internacional no interior das ciências humanas, que percorre temas fundamentais para o entendimento dos fenômenos educativos. Esse é o caso dos estudos sobre as subjetividades, os deslocamentos de classe, as emoções e as tensões internas dos movimentos, expressas no dissenso, nas relações com a institucionalidade política e no caráter transnacional das lutas, entre outros temas.

Tendo em vista essas dinâmicas e tendências, pesquisadores e textos ora reunidos buscam justamente atualizar algumas discussões centrais para o debate sobre os movimentos sociais contemporâneos, visando ampliar e fortalecer os diálogos possíveis, sem cair, contudo, em uma cacofonia que impeça de traçar desafios comuns. Foi, portanto, intenção dos organizadores deste dossiê, por meio dos autores convidados a colaborar com este número, propiciar uma convergência de novos horizontes de reflexão propostos por cientistas sociais que praticam a interdisciplinaridade no estudo dos movimentos sociais, a partir de pontos de vista diferentes. O esforço de reunir uma reflexão plural e fronteiriça sobre os ativismos contemporâneos permite, a nosso ver, problematizar o campo da educação como um todo, mesmo quando essa não é interpelada diretamente pelos autores.

Isso se dá porque os vínculos entre educação e sociedade permeiam disciplinas, olhares e problemáticas diversas, como a própria revista Educação & Sociedade tem mostrado, em linha editorial coerente com sua vocação interdisciplinar (partindo, isso sim, da educação) e com os fundamentos que marcam os quarenta anos de existência do periódico, dedicado a examinar as complexas relações entre os fenômenos educativos e a vida social. Quatro décadas que, aliás, coincidem com o ciclo da redemocratização política no país, impulsado, em boa medida, a partir do fim da década de 1970, pelas greves, as intensas mobilizações e a atuação dos movimentos sociais no cotidiano e nos territórios. Se, naquele momento, a própria revista foi palco privilegiado de importantes debates sobre democracia, autoritarismo social, pedagogia do oprimido, educação como instrumento de luta, dimensão política da educação educativa e papel da universidade e da extensão crítica, entre outros temas, o fechamento desse ciclo político, nos últimos anos, exige, novamente, audácia e criatividade para, diante das adversidades do nosso tempo histórico, examinar criticamente – e em todas as suas contradições e dificuldades – os entraves e as alternativas possíveis.

Diante desse cenário, os movimentos sociais são atores fundamentais, porém operam de maneiras distintas a como o faziam décadas atrás, em outro contexto sociopolítico e com outras configurações societárias. Torna-se, portanto, fundamental analisar as transformações do ativismo ao longo das últimas décadas e suas características, potencialidades e limitações atuais. É preciso sair do insulamento disciplinar, mas também de outros tipos de “confinamento” intelectual, a fim de ativar diálogos urgentes e trocas necessárias para a compreensão, de maneira mais complexa, das dinâmicas e dos fenômenos presentes nos movimentos sociais, bem como para reavaliar trajetórias e tendências mais amplas.

Transformações do Ativismo Contemporâneo

As novas práticas, os atores emergentes e os ativismos e conflitos presentes na sociedade brasileira atual ampliam o espectro de orientações para além dos movimentos considerados “populares” ou “progressistas”, tal como formulado desde a redemocratização, nos anos 1970 e 1980. Aqueles atores, que Sader (1988)SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980). São Paulo: Paz e Terra, 1988. identificara em seu emblemático livro como “novos personagens”, naquele momento, hoje são classificados como “velhos” pelos atores emergentes. Alguns morreram e uns envelheceram melhor que outros, mas todos foram amplamente desafiados. As múltiplas transformações das sociedades contemporâneas ampliaram e deslocaram, por sua vez, as fronteiras das experiências dos movimentos sociais e das trajetórias de engajamento militante, influenciando-as e sendo por elas influenciadas. É assim que os movimentos sociais se associam a movimentos societários, e vice-versa.

A reconfiguração dos ativismos e movimentos sociais se dá globalmente e com algumas características semelhantes em todo o mundo: maior “descentramento” da “forma movimento” clássica; pluralização das modalidades de engajamento militante; tendência à plurimilitância e a identidades multirreferenciais; agendas mais transversais; ações e posições que combinam escalas diversas de maneira mais fluída; mudanças nas dinâmicas e instâncias de socialização política e nas visões de mudança social; entre outros elementos. Obviamente, esses elementos adquirem expressão específica e concretude histórico-empírica no bojo de cada cultura política, lugar e experiência, sendo importante também contemplar esses matizes.

No bojo dessas mudanças, um dos acontecimentos mais chamativos da última década foi o amplo ciclo de protestos, que atravessou as fronteiras nacionais, tomando as ruas de diversos países em uma onda de indignação global, a qual causou boa dose de perplexidade. A surpresa deveu-se, contudo, não somente à dimensão e à temporalidade dos protestos – seu carácter massivo, além de como e por que surgiram nesse momento –, mas principalmente à natureza dos protestos emergentes; ou seja, seus sentidos, objetivos e formas de articulação. O desenlace dessas mobilizações, contraditórias e heterogêneas, também levou a certo assombro, pois, embora tenham sido desatadas, em geral, pela indignação com o sistema político e, em muitos casos, com aspirações de democratização, o quadro atual no mundo é de acirramento da polarização, retrocesso democrático e fortalecimento de setores conservadores, racistas e xenófobos.

Além de todas essas turbulências e crises políticas, o mundo tem enfrentado, nos últimos meses, uma pandemia que paralisou boa parte do planeta, com impactos ainda imprevisíveis. Diante das dificuldades de protestar nas ruas, grande parte das análises sobre as resistências em tempos de coronavírus tende a enfatizar os panelaços nas janelas e varandas e o papel fundamental do ativismo digital, mas também a criatividade dos movimentos sociais para gerar espaços e propostas inovadoras. A grande midia, como sempre, analisou apenas a parte mais visível das ações e dos movimentos sociais cidadãos, como panelaços, flash mobs e petições eletrônicas. Todavia, embora essa tenha sido uma parte importante das ações de resposta durante a pandemia, é essencial observar também o que se move abaixo da superfície do visível, como as iniciativas de apoio mútuo, de auto-organização e de proteção dos trabalhadores que precisaram continuar trabalhando, seja por motivo de sobrevivência, seja porque suas tarefas incluem-se entre os denominados “serviços essenciais”. A defesa dos direitos, dos serviços públicos, dos espaços comunitários e dos bens comuns pode levar a um fortalecimento dos laços sociais e à reconstrução das lutas nos territórios, em confronto com subjetividades mercantis e utilitaristas, entre outras.

Todos esses elementos, lidos em conjunto, têm desafiado enormemente as teorias dos movimentos sociais. Na literatura internacional, temos hoje contribuições muito mais plurais e fragmentadas, com primazia dos planos micro e meso. Esforços de síntese teórica, como os que ocorreram nos anos 1990 e no início dos 2000, são praticamente inexistentes, dado que os objetos de reflexão, nos planos analítico e conceitual, tornaram-se mais delimitados. As teorias da mobilização dos recursos, do processo político, dos novos movimentos sociais e do confronto político, embora possam oferecer alguns subsídios relevantes, não dão conta da complexidade contemporânea e da realidade atual, motivo pelo qual não faz sentido seguir reproduzindo esses referenciais como “as teorias” dos movimentos sociais. A oxigenação do debate dos movimentos sociais, portanto, é fundamental e já está sendo produzida em diálogo com as teorias social e política, bem como com a práxis dos próprios movimentos.

Contribuições do Dossiê

Diante dessa miríade de questões, o presente dossiê não tem a pretensão de exaurir temas e análises que possam dar conta de todas as férteis possibilidades para a pesquisa. Busca-se, contudo, abrir alguns planos de análise, que contribuam ao atual momento de renovação da agenda de pesquisa sobre os movimentos sociais no país. O dossiê “Movimentos Sociais e Transformações do Ativismo Contemporâneo” reúne oito artigos e dezesseis autores(as) que, a despeito da diversidade de temáticas e enfoques, convergem em dois pontos principais.

O primeiro deles é a busca por entender a (re)configuração dos movimentos sociais atuais a partir de uma ótica processual, relacional e de médio/longo prazo. O reconhecimento das novidades não leva, assim, à sedução do discurso do “novíssimo” e de novos marcos fundacionais que desconsiderem a historicidade das lutas e as continuidades. Muito pelo contrário, é justamente na tensão entre permanências e inovações, bem como na ênfase nas tendências mais gerais e transversais, que os textos buscam assinalar as inflexões, as variações das trajetórias militantes, as disputas em curso e os deslocamentos de sentido vivenciados nos últimos anos.

O segundo ponto de convergência entre os textos é a tentativa de captar as mudanças nos movimentos sociais, levando em consideração as transformações mais amplas de nossas sociedades. Assim, antes de pensar os movimentos sociais como objetos de estudo estritamente delimitados, busca-se entendê-los em sua relação com a democratização e os retrocessos democráticos, a religiosidade e as lógicas de confronto, as dinâmicas de individualização e solidariedade, de digitalização e de militarização. Nesse processo, torna-se importante identificar também as fontes de mudanças culturais e sua incidência na alteração das formas de ação coletiva e da diversificação dos próprios sujeitos políticos. Isso compreende, inclusive, o entendimento do que é um movimento social hoje, do ativismo social/político e de suas fronteiras. Portanto, o tensionamento, a porosidade e a elasticidade dos movimentos sociais estão vinculados, também, à plasticidade das ações coletivas e das práticas sociais contemporâneas.

O artigo de Francisco Mata Tavares Machado e Matheus Hoffmann Pfrimer, “O Outono da onda global: Limites do ativismo contemporâneo no anoitecer da democracia e dos direitos sociais”, abre o dossiê com uma instigante reflexão sobre algo fundamental nas teorias dos movimentos sociais: o impacto das ações coletivas e dos ciclos de protesto. Embora esse seja um tema amplamente discutido, os autores buscam analisá-lo a partir de uma chave ainda pouco explorada: uma leitura interna aos movimentos, com ênfase nas formas de subjetividade e na moralidade, que, frequentemente, prevalecem na cultura ativista da contemporaneidade. Destarte, os desdobramentos de conflitos e protestos políticos são examinados não em seus achados mensuráveis na política institucional ou em sua relação com os respectivos contextos sociais, mas com as próprias apostas, os erros e os acertos dos ativistas. Os reveses e frustações após o ciclo de protestos vinculado à “indignação global” – advindos, em boa medida, graças à radicalização neoliberal e de governos crescentemente alheios ao princípio democrático – servem como terreno fértil para uma reflexão sobre os limites do ativismo contemporâneo.

Ainda em um plano global, o artigo seguinte, assinado por Lívia Alcântara e Breno Bringel, analisa as mudanças na geopolítica das solidariedades transnacionais. Em “Dos Zapatistas aos Indignados: Mudanças na geopolítica das solidariedades transnacionais”, os autores analisam continuidades e rupturas entre os dois últimos ciclos globais de protesto, examinando mais especificamente como operam as solidariedades transnacionais nesses dois momentos. A partir de um rico trabalho empírico sobre as conexões entre a militância de Barcelona e a realidade mexicana, os autores discutem e comparam os ciclos da “solidariedade zapatista” e da “solidariedade indignada”. Enquanto o primeiro é reconstruído pelas experiências militantes que buscaram construir alternativas à globalização neoliberal e ao livre comércio, de maneira interpessoal e permanente, tendo o neozapatismo como referência, o segundo momento é lido como um ciclo de lutas mais viral e descentrado, no qual parece primar o evento, não o processo, e que parece colocar indivíduo e solidariedade com causas e acontecimentos no lugar anteriormente ocupado pelo movimento. Para além da discussão de ambos os ciclos e de suas diferenças, a reconstrução do que ocorre entre esses dois momentos é uma contribuição importante para se pensar teoricamente o “entreciclo” de protestos.

Em seguida, o dossiê continua com o escopo latino-americano, embora com uma guinada mais geral e teórica. Na terceira contribuição, “Leer los movimientos sociales desde el individualismo: Reflexiones a partir de Latinoamérica”, Kathya Araujo e Danilo Martuccelli, propõem uma reflexão sobre como ler os movimentos sociais a partir de nossa região. Trata-se de tema central, pois, embora a discussão sobre individuo/individualismo e movimentos sociais tenha sido amplamente tratada nas ciências sociais europeias e norte-americanas (decerto com forte ranço utilitário, tendo em vista as marcas do individualismo metodológico e da escolha racional, que levaram, por exemplo, às formulações da teoria de mobilização de recursos), o mesmo não ocorreu na América Latina. Para além de um cálculo de custos e benefícios, os autores buscam assinalar as principais tendências no debate sobre o tema em nosso subcontinente, chamando a atenção para a tensão existente entre movimentos débeis e atores individuais fortes, bem como para as tendências de subordinação dos atores sociais ao sistema político, a debilidade organizacional e a heteronomia que marcaria os indivíduos como “hiper-atores”. Finalmente, os autores sugerem algumas teses que permitem abrir um debate entre teoria social e teorias dos movimentos sociais, com foco na realidade latino-americana, sobre características, potencialidades e debilidades dos movimentos sociais e o papel dos indivíduos.

Um segundo bloco, constituído por três artigos, explora o caso brasileiro e as transformações do ativismo e dos movimentos sociais no país a partir de alguns casos principais: os movimentos religiosos, feministas, negro, LGBTI e de jovens, especialmente os estudantis. Em todos esses casos, junho de 2013 é visto como uma inflexão crucial, mas, em vez de se restringirem somente a esse “acontecimento crítico” para pensar os deslocamentos de sentidos ocorridos na política e nos sujeitos, os artigos ampliam o escopo de análise para uma temporalidade ampliada de quatro décadas, o que coincide com o ciclo da redemocratização política e as lutas sociais emergentes no final dos anos 1970. Esse exercício mais amplo contribui para visualizar empiricamente a hipótese, sugerida por Bringel e Domingues (2018)Bringel, B.; Domingues, J.M. Brasil - Cambio de era: crisis, protestas y ciclos políticos. Madri: Catarata/Universidad Complutense de Madrid, 2018., em seu livro Brasil – Cambio de era: Crisis, protestas y ciclos políticos, de que junho de 2013 representou, em curto prazo, a emergência de um novo ciclo de protestos, o qual coincidiu, em médio prazo, com o fim de um ciclo político mais amplo: o ciclo da redemocratização e seus respectivos atores, práticas e imaginários.

Esse bloco tem início com o artigo “A ‘Guerra dos deuses’ no Brasil: Da Teologia da Libertação à eleição de Bolsonaro”, de Geoffrey Pleyers. De acordo com o autor, a vitória de Bolsonaro e a emergência da “nova direita” devem ser compreendidas não somente em curto prazo ou pelo cenário eleitoral, como habitualmente se faz, mas por transformações de médio e longo prazos, associadas às mudanças vividas na sociedade brasileira e à abrangência das transformações no campo religioso no Brasil durante as últimas quatro décadas. Enfatiza-se, para isso, o persistente papel da religião na política e na mobilização social, bem como seu papel-chave na disputa de territórios e subjetividades. A passagem do “cristianismo da libertação” para o crescimento do peso político e o maior protagonismo dos neopentecostais no Brasil é discutida de maneira cuidadosa e sensível aos contextos e às visões de mundo e convicções que se espraiam pela sociedade. Independentemente do lugar ideológico, enfatiza-se a ideia de que a fé não pode ser confinada à esfera privada, envolvendo-se na transformação da sociedade e na mobilização dos espaços sociais e das arenas políticas. Assim, em vez de cair na habitual secularização presente no debate dos movimentos sociais, o autor reivindica um diálogo mais profundo entre teorias dos movimentos sociais e os estudos sobre a religião, bem como algumas lições relevantes que a sociologia dos movimentos sociais pode extrair a partir da influência dos atores religiosos na sociedade e na política brasileiras.

O artigo seguinte, assinado por Regina Facchini, Íris Nery do Carmo e Stephanie Pereira Lima, também discute processos de mudanças dos movimentos sociais no Brasil com foco nos movimentos feministas, negro e LGBTI. Assim, as autoras buscam, em “Movimentos feminista, negro e lgbti no Brasil: Sujeitos, teias e enquadramentos”, tecer aproximações comparativas sobre a produção de enquadramentos e as formas de organização de cada um deles vis-à-vis suas trajetórias nas últimas quatro décadas. O olhar retrospectivo e a perspectiva longitudinal permitem identificar as convergências e os enfrentamentos, bem como as mudanças ao longo do tempo nas ênfases dos movimentos analisados. Destaca-se, principalmente, a discussão sobre a autonomia e a especificidade de cada um desses movimentos, bem como sua relação com os outros atores, sua crescente complexidade e transversalização, além da disputa e da ressignificação de gramáticas políticas com a institucionalidade e outros sujeitos. Ao inquirir essas narrativas de maneira relacional e processual, entendemos melhor não somente o passado, mas também as iniciativas mais recentes, principalmente aquelas protagonizadas por ativistas jovens e a centralidade dada à experiência e à interseccionalidade.

A identificação de tendências na atuação dos jovens como atores coletivos é justamente o foco da contribuição do último artigo deste bloco, de autoria de Marilia Pontes Sposito, Elmir de Almeida e Maria Carla Corrochano. Em “Jovens em movimento: mapas plurais, conexões e tendências na configuração das práticas”, as autoras dialogam com a literatura especializada e constroem uma série de apontamentos e hipóteses relevantes que possibilitam decifrar os diferentes olhares sobre os ativismos juvenis no Brasil durante as últimas décadas. Isso é feito pela identificação da permanência da condição estudantil como elemento aglutinador de movimentos e formas de inserção e de conflito político; pelas culturas juvenis como formas agregadoras de práticas coletivas que permitem entender a as culturas juvenis e, mais recentemente, os coletivos de jovens; e, finalmente, pelas formas organizativas de jovens, não necessariamente articuladas à condição estudantil, mas ligadas às lutas etnicorraciais e vinculadas a gênero e sexualidade, assim como às modalidades de práticas coletivas da juventude rural. Dessa maneira, a principal contribuição do artigo para a temática geral do dossiê é a discussão sobre as alterações nas formas de agregação e do agir coletivo da juventude. Essas formas plurais, os deslocamentos dos jovens no interior de suas práticas (quer para ingressar em outros grupos já existentes, quer para criar novos formatos) e, por fim, as conexões entre esses formatos são temas emergentes que abrem novas possibilidades de pesquisa.

Sem deixar de lado a temática da juventude, o artigo seguinte, firmado por Caio Ruano da Silva e Cristiana Losekann, aborda a dimensão política do slam como prática artística, que pode ser compreendida como manifestação social contestadora. Em “Slam Poetry como confronto nas ruas e nas escolas”, os autores introduzem no dossiê uma discussão mais explícita sobre movimentos sociais e educação, que também será o foco do artigo posterior. Mais especificamente, os autores enfatizam o slam poetry como um espaço de formação e/ou afirmação de identidades, atualizando uma discussão iniciada nos anos 1970 e 1980 no país sobre a democratização da arte e seu uso como forma de contestação política. Nesse caso, o caráter público dos eventos e a abordagem de temas sociais e políticos pelos poetas revelam forte crítica institucional, a despeito de uma interessante transposição do slam poetry para o espaço institucional escolar. Os autores analisam em detalhe justamente esse processo, a partir de um estudo empírico realizado em escolas do estado do Espírito Santo. A escola torna-se, assim, lócus de diversas manifestações de protesto, experimentando antagonismos e reagindo de maneiras diversas à inserção dos slams: aderindo, opondo-se e apropriando-o como ferramenta e objeto de ensino ou como crítica política.

Por fim, Sérgio Haddad, com o artigo “O Fórum Social Mundial como um espaço educador”, fecha o dossiê. Prestes a cumprir vinte anos desde sua primeira edição em Porto Alegre, em janeiro de 2001, esse emblemático espaço de convergência das lutas sociais mundiais é analisado por Haddad a partir dos processos educativos que se dão em seu cerne. Ao buscar suas raízes educativas na tradição da educação popular, o autor articula as contribuições históricas dos movimentos populares no Brasil – vinculadas, por exemplo, às metodologias coletivas – com as tendências mais amplas do ativismo no mundo contemporâneo, por exemplo a busca de consensos em espaços amplos e plurais. A diversidade de ativismos, movimentos e organizações leva também a dificuldades e tensões, que são igualmente ponderadas pelo artigo.

Com o último artigo, retornamos, de alguma maneira, aos debates iniciais do dossiê, conectando as lutas globais com a dimensão educativa e prática. Em plena crise mundial e em meio à pandemia da Covid-19, ainda é muito cedo para delinear os contornos do mundo que virá. Todavia, se estivermos diante do fim da globalização neoliberal tal como foi concebida durante as últimas décadas, abre-se também a possibilidade de um novo “momento alter-mundialista”. Para isso, é fundamental levar em consideração o carácter pedagógico das lutas sociais e aprender com as lutas sociais pretéritas e seus diversos legados, mas também com seus erros e limitações, estabelecendo diálogos disciplinares, conforme aqui proposto, mas também diálogos entre resistências de diferentes lugares, gerações e saberes.

Nesse momento crítico, além da imaginação política dos atores sociais, urge uma nova imaginação sociológica, capaz de lidar com os desafios de nosso tempo. Esperemos que o olhar ampliado no tempo e no espaço, propiciado pelos artigos do dossiê, ofereça, a partir da ótica das lutas e dos movimentos sociais, um balanço crítico sobre nosso passado. Que sirva também como problematização do presente e como impulso para identificar inflexões, tendências, trajetórias e processos. Antes de contribuições definitivas, esperemos que os textos ora reunidos possam estimular novos debates e pesquisas futuras. Se os movimentos sociais podem ser considerados “termômetros” de nossas sociedades, a partir deles, e com eles, podemos também identificar as agendas, os conflitos e os cenários para interrogar a vida social e política e, ao mesmo tempo, construir horizontes mais dignos e justos para enfrentar o medo e a barbárie.

Notas

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    Este dossiê contou com o apoio financeiro, para a produção editorial, dos projetos “Movimentos Sociais e Confronto Político no Brasil Contemporâneo” (E-26/203.190/2017) financiado pela FAPERJ; e “Transformações do Ativismo no Brasil: Junho de 2013 em Perspectiva Comparada” financiado pelo Edital 012/2015 da CAPES; “Memórias Brasileiras/Conflitos Sociais”(n. ref. 88881.130844/2016-01) desenvolvido entre 2016 e 2019.
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    This dossier had the financial support, for the editorial production, of the projects “Movimentos Sociais e Confronto Político no Brasil Contemporâneo” (E-26/203.190/2017) financed by FAPERJ; and “Transformações do Ativismo no Brasil: Junho de 2013 em Perspectiva Comparada” financed by Edital 012/2015 from CAPES; “Memórias Brasileiras/Conflitos Sociais”(n. ref. 88881.130844/2016-01) developed between 2016 and 2019.
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    Este dossier contó con el apoyo financiero, para la producción editorial, de los proyetos “Movimentos Sociais e Confronto Político no Brasil Contemporâneo” (E-26/203.190/2017) financiado por FAPERJ; y “Transformações do Ativismo no Brasil: Junho de 2013 em Perspectiva Comparada” financiado por el Edital 012/2015 de la CAPES; “Memórias Brasileiras/Conflitos Sociais”(n. ref. 88881.130844/2016-01) desarrollado entre 2016 y 2019.

Referências

  • Bringel, B.; Domingues, J.M. Brasil - Cambio de era: crisis, protestas y ciclos políticos. Madri: Catarata/Universidad Complutense de Madrid, 2018.
  • Melucci, A. L’invenzione del presente: movimenti sociali nelle società complesse. 2° edizione. Bologna: Il Mulino, 1991.
  • SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980). São Paulo: Paz e Terra, 1988.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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