Resumos
A política externa brasileira durante os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva caracterizou-se pelo protagonismo internacional. Ainda que a América do Sul tenha sido sua prioridade, o exercício da diplomacia denominada "ativa e altiva" ultrapassou o nível regional, e foram empreendidas muitas ações em nível global. Neste artigo objetivamos tratar do envolvimento da diplomacia brasileira na mediação do conflito Israel-Palestina. Consideramos que esse envolvimento configura uma importante inflexão na política externa brasileira, já que pela primeira vez o Brasil participou de negociações diplomáticas fora do âmbito das Nações Unidas que abrangem um tema de segurança internacional sobre um conflito que não se localiza em seu entorno regional.
Política externa brasileira; Lula; Oriente Médio; mediação; Israel; Palestina
The Brazilian foreign policy during the two terms of President Luiz Inacio Lula da Silva was characterized by its international leadership. Although South America was its priority, the exercise of diplomacy called "active and proud" exceeded the regional level, undertaking many actions globally. This article aims to address the involvement of Brazilian diplomacy in mediating the Israeli-Palestinian conflict. We believe that this involvement constitutes an important shift for the Brazilian foreign policy, because for the first time Brazil has participated in diplomatic negotiations outside the United Nations framework, involving an issue of international security, and about a conflict that takes place outside its regional environment.
Brazilian foreign policy; Lula; Middle East; mediation; Israel; Palestine
Há mais de 30 anos, o processo de paz entre Israel e os palestinos tem sido conduzido fora do âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), embora historicamente a questão, com a aprovação do Plano de Partilha da Palestina em 1947, esteja intrinsecamente ligada à organização internacional.1
Este artigo objetiva estudar o envolvimento brasileiro no processo de paz entre Israel e os palestinos ao longo do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006, 2007-2010). Foi uma iniciativa inédita da diplomacia brasileira, que se envolveu em uma mediação desenvolvida fora do âmbito da ONU e entre as partes de um conflito localizado no Oriente Médio. O Brasil saiu de seu entorno regional e colocou à prova seu capital negociador.
Na ONU, em que a diplomacia brasileira alcançou alguns momentos de visibilidade com relação à questão, o Brasil desempenhou um papel com autonomia relativa de 1947 até a década de 70, quando passou a expor mais claramente seu apoio à causa palestina. É necessário ter em mente que a posição de Israel mudou decisivamente partir de 1967, quando passou a ser condenado por dezenas de resoluções pela ocupação de territórios palestinos. Assim, durante o governo Lula, o apoio aos palestinos continuou a ser expressado na ONU, ao mesmo tempo que o Brasil não deixou de reconhecer as preocupações de Israel com a segurança. A mediação do conflito, entretanto, há décadas se passa fora do âmbito da organização internacional.
Logo no início do governo Lula, em abril de 2003, o ministro Celso Amorim realizou a primeira das muitas viagens que faria ao longo dos anos seguintes aos países médio-orientais a fim de identificar formas de cooperação e diálogo para fazer avançar o difícil processo de distensão entre israelenses e palestinos. Denominada "ativa e altiva" pelo próprio ministro Amorim (AMORIM, 2013b, p. 11-12), a diplomacia brasileira pretendeu, a partir de 2003, um protagonismo global.
A bibliografia brasileira sobre a política externa do Brasil para o Oriente Médio é modesta. Vários desses estudos são históricos, realizados com base em pesquisa nos Arquivos Históricos do Itamaraty. (SILVA, 1988; ROSA, 1996; BREDA DOS SANTOS, 2000, 2002, 2003; LESSA, 2000; SANTANA, 2005, 2006a, 2006b; SENKMAN, 2000; VIGEVANI; KLEINAS, 2000; VIGEVANI; CINTRAS; KLEINAS, 2002; PIMENTEL, 2002; FARES, 2007; MESSARI, 2006; SILVA; PILLA, 2012, CARACIKI, 2013).2 Em particular, a produção acadêmica brasileira sobre a iniciativa diplomática do Brasil de participar do processo de paz entre Israel e os palestinos é bastante esparsa e is seldom mentioned as a distinctive feature of Brazil's new diplomatic activism. (DATZ; PETERS, 2013, p. 43-44). Entre os estudos publicados no Brasil ou realizados por brasileiros sobre o tema, destacamos os trabalhos de André L. Reis da Silva e Bruno Pilla (2012) e de Guilherme Casarões (2012). Silva e Pilla denotam uma apreciação positiva sobre as iniciativas da política externa de Lula para aumentar o diálogo político com os países médio-orientais e, em particular, sobre a participação do Brasil, no âmbito da coalizão IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), na mediação do conflito. (SILVA; PILLA, 2012, p. 126). A percepção de Casarões é bastante negativa, pois considera que el creciente y selectivo 'activismo' de Brasil - [...] la manifiesta simpatía de la diplomacia de Lula da Silva por la causa palestina - pasó a hacer parte del problema geopolítico más amplio de Israel. (CASARÕES, 2012, p. 7, nossa ênfase).
Mesmo quando não nos restringimos à bibliografia acadêmica brasileira, observamos que os estudos sobre a iniciativa do Brasil não é numerosa. Esses trabalhos têm sublinhado que os esforços do Brasil em fazer avançar o processo de paz serviram para afirmar seu maior protagonismo internacional, seja com uma percepção mais crítica, enfatizando-se que a diplomacia brasileira se aproveitou da presença de comunidades árabes no Brasil para legitimar las nuevas orientaciones diplomáticas (BRUN, 2012, p. 83), seja com uma apreciação mais elogiosa, destacando-se a diplomacia do governo Lula como a marker of a 'post-American' position, confirming Brazil's new role in the lead-pack group(DATZ; PETERS 2013, p. 45), ou sua influência e liderança junto aos países latino-americanos, que se teriam tornado mais sensíveis à questão palestina. (BAEZA, 2012, p. 124).
A opinião dos especialistas brasileiros tem sido sobretudo expressada em entrevistas e artigos publicados em jornais e sites de notícias ou de instituições especializadas em relações internacionais. Não há como não mencionar a existência de uma polarização de opiniões, que faz com que se frustem, ao menos por ora, as possibilidades de um debate menos ideológico sobre o tema. Correndo o risco da imprecisão, ousamos afirmar que parece haver certo predomínio de avaliações positivas, como a de Bernardo Sorj, diretor do Centro Edelstein de Pesquisa Social. Sorj é um crítico da política externa de Lula, porém, com relação ao conflito entre Israel e os palestinos, considera que a postura do governo Lula foi equilibrada, defendendo a criação de um Estado Palestino em convívio com o Estado de Israel. (SORJ, 2014).
Há uma grande quantidade de informações facilmente acessíveis sobre a política externa do governo Lula, como dados sobre relações comerciais com os países do Oriente Médio, viagens presidenciais, conferências e discursos de autoridades, entre outros, disponibilizados em sites governamentais e em material oficial impresso. Neste artigo, a relevante limitação a ser considerada com relação às fontes diz respeito à documentação diplomática ainda não ostensiva, especialmente as comunicações internas do Itamaraty em Brasília e entre Brasília e os postos diplomáticos no exterior. Optou-se por não realizar entrevistas nesta etapa da pesquisa. Utilizamos principalmente a coletânea Conversas com Jovens Diplomatas (AMORIM, 2011), que reúne palestras realizadas por Celso Amorim aos alunos do Instituto Rio Branco entre abril de 2005 e dezembro de 2010, assim como as anotações do ministro que cobrem dezembro de 2002 a meados de 2004, publicadas em Breves Narrativas Diplomáticas. (AMORIM, 2013b). Foram as fontes mais completas e sistemáticas da qual por ora lançamos mão.
O presente artigo está organizado em três partes. A primeira trata do histórico da diplomacia brasileira com relação ao conflito entre Israel e os palestinos; a segunda trata de aspectos gerais da política externa do governo Lula e em particular do lugar do Oriente Médio; e a terceira aborda a diplomacia brasileira empreendida entre 2003 e 2010 com relação ao conflito Israel-Palestina.
1. A diplomacia brasileira e o conflito Israel-Palestina de 1947 a 2003
Há mais de 30 anos, o processo de paz entre Israel e os palestinos tem sido conduzido fora do âmbito da ONU. O Brasil não teve até recentemente uma estratégia propriamente dita para o Oriente Médio, e sua política externa para a região pode ser caracterizada basicamente como reativa até 2003, quando começa o governo Lula. Enquanto o processo de paz entre Israel e os palestinos foi tratado na ONU, é em seu âmbito que é possível observar os posicionamentos brasileiros sobre o tema.
Logo após a Segunda Guerra Mundial, a política externa brasileira obedecia a um acentuado alinhamento com os Estados Unidos e acompanhava, de modo geral, os votos norte-americanos na ONU. Coube a um brasileiro presidir a sessão da Assembleia Geral que em 1947 aprovou a Resolução 181 (1947), sobre o Plano de Partilha da Palestina. A documentação histórica demonstra que a liderança e as habilidades pessoais de Osvaldo Aranha, principalmente ao lidar com questões de ordem procedimental, foram essenciais para que o Plano de Partilha fosse aprovado.3 A presidência de Aranha naquela sessão perdura até hoje na memória coletiva dos brasileiros como símbolo do bom relacionamento entre Brasil e Israel, o que também ocorre do lado israelense. Em Israel, ao menos três ruas - em Beer-Sheva, Ramat-Gan e Tel Aviv -, e uma praça em Jerusalém têm o nome de Osvaldo Aranha.
Até a década de 70, as posições brasileiras na ONU demonstram com clareza o prevalecimento de posições equidistantes entre Israel e os países árabes. O Brasil votou favoravelmente ao Plano de Partilha, que permitiu a criação de Israel, mas nunca negligenciou, por exemplo, questões que envolvem os avanços territoriais israelenses. Quando a Assembleia Geral aprovou a admissão de Israel na ONU (Resolução 273, 1949), o Brasil se absteve, uma vez que, poucos dias antes, apoiara uma resolução que convidava Israel a prestar esclarecimentos sobre a administração de Jerusalém e a situação dos refugiados palestinos. Subordinou, portanto, seu voto favorável à adesão de Israel à ONU ao acatamento israelense das resoluções relacionadas à internacionalização de Jerusalém e ao atendimento humanitário aos refugiados. Nas palavras de um delegado salvadorenho, entre os latino-americanos El Salvador e o Brasil mantiveram uma clara posição de condicionar a adesão de Israel à ONU à "estrita implementação por Israel das resoluções relativas à internacionalização de Jerusalém e à questão dos refugiados árabes". (BRASIL, MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 1949, p. 40; GLICK, 1958, p. 33). Tampouco o Brasil se dobraria à forte insistência do governo israelense ao longo dos anos 60 para que transferisse sua embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, o que significaria dar sustentação às tentativas de legitimar a cidade como capital exclusiva de Israel, desrespeitando-se a internacionalização da cidade. (BREDA DOS SANTOS, 2000, p. 33-35).
Além da aprovação do Plano de Partilha, até os anos 70, em duas outras questões a diplomacia brasileira ganhou visibilidade com relação ao Oriente Médio: a primeira foi a participação do Brasil na United Nations Emergency Force I (UNEF I, Força de Emergência das Nações Unidas I), a segunda foi durante as negociações da Resolução 242 (1967) pelo Conselho de Segurança. A UNEF I foi a primeira operação de manutenção da paz da ONU. Criada em consequência da Crise do Suez (outubro-novembro de 1956), a UNEF I ficou estacionada ao longo do Canal de Suez, na Península do Sinai e em Gaza - exclusivamente no lado egípcio, uma vez que o governo israelense não aceitou que a missão se instalasse no território sob seu controle. O Brasil participou da missão durante dez anos. Os contingentes brasileiros atuaram em Gaza, Al-Arich e Ras El Naqb. Dez países contribuíram com tropas, e o contingente brasileiro foi o quarto mais numeroso: enviou 3.305 militares. No mesmo período, 1957-1967, o Brasil se envolveu em outras cinco missões promovidas pela ONU das quais participaram 213 brasileiros. Assim, o número de militares brasileiros enviados ao Egito é suficientemente indicativo da singularidade daquela experiência. Além disso, dois militares brasileiros comandaram a UNEF I. O fim da operação confunde-se com o começo da Guerra dos Seis Dias. Apenas brasileiros, iugoslavos, noruegueses e indianos encontravam-se ainda no terreno e no fogo cruzado entre israelenses e egípcios; um militar brasileiro e um indiano foram atingidos mortalmente. (BREDA DOS SANTOS, 2002, p. 263-285).
A Resolução 242 (1967) do Conselho de Segurança, aprovada poucos meses depois da Guerra dos Seis Dias, "é o credo de Niceia do processo de paz no Oriente Médio": "as mais importantes resoluções aprovadas pelo [Conselho de Segurança] sobre o tema fazem referência e, por vezes, reafirmam, a decisão de 1967". (UZIEL, 2011). Além disso, a resolução também tem sido referida no processo de paz entre Israel e os palestinos fora da ONU. Quando a resolução foi aprovada, a Argentina e o Brasil faziam parte do Conselho de Segurança. Embora a historiografia não seja consensual sobre a real contribuição dos dois países para se chegar ao texto final da resolução, são muito verossímeis as narrativas, e há quem entenda que essa participação foi significativa. O projeto da Resolução 242 (1967), apresentado pelo Reino Unido, teve como base o projeto argentino-brasileiro apoiado pelo grupo latino-americano. (SELCHER, 1978, p. 176).
Em meados dos anos 70 apareciam novas tendências na política externa brasileira. Pode-se falar de uma retórica marcada por maior realismo, nacionalismo e pragmatismo. Essas mudanças tinham a ver com questões sistêmicas internacionais, em que sobressaía a crise do petróleo que seguiu a Guerra do Yom Kippur (1973). Dessa forma, influenciada por fatores de ordem sobretudo econômica que marcaram a década - as imperativas necessidades de importação de petróleo e de expansão das exportações brasileiras -, teve início nos anos 70 uma aproximação entre o Brasil e o Iraque. O Iraque passou a ser o principal fornecedor de petróleo para o Brasil, e o Brasil passou a fornecer bens e serviços para o Iraque. No setor de serviços, sobressaiu a construção civil. Posteriormente, notadamente nos anos 80, elementos estratégicos inseriram-se no relacionamento bilateral, com a exportação para o Iraque de material bélico brasileiro e a cooperação nuclear, provavelmente com objetivos militares. Havia cerca de 5.000 brasileiros vivendo no Iraque em meados da década de 80. (FARES, 2007, p. 129 e 143).
No âmbito da ONU, nesse período, os países em desenvolvimento já tinham grande peso na Assembleia Geral, em que já eram numericamente superiores aos países industrializados. O governo brasileiro passou a defender com maior vigor o direito palestino de autodeterminação e se manifestou com maior frequência contra a ocupação territorial pela força na região, afastando ambiguidades que poderiam ser interpretadas como pró-israelenses. Na imprensa brasileira começavam a aparecer mais notícias relativas à questão, ainda que se evite mencionar o terrorismo palestino. (SELCHER, 1978, p. 115).
A manifestação política por excelência do constrangimento petrolífero que o governo Geisel enfrentou foi o voto brasileiro na Assembleia Geral da ONU a favor da Resolução 3379 (1975), que qualificava o sionismo como forma de racismo e discriminação racial.4 Na Assembleia Geral, o Brasil votaria ainda a favor da Resolução 3236 (1974), que concedeu à Organização para a Libertação da Palestina (OLP) o estatuto de observador no órgão, reafirmando "os direitos inalienáveis do povo palestino à autodeterminação sem entraves, à independência e à soberania nacionais", e a favor da Resolução 32/40 (1977), que estabeleceu que o dia 29 de novembro, dia em que fora aprovado o Plano de Partilha da Palestina em 1947, seria comemorado todos os anos como o Dia Internacional de Solidariedade com o Povo Palestino. O Brasil ausentou-se, porém, durante a votação da Resolução 31/20 (1976), que aludia em seu preâmbulo ao direito de independência nacional e soberania do povo palestino, na Palestina, como uma das bases de uma paz duradoura no Oriente Médio. O Brasil justificaria sua posição pela necessidade de se aprofundarem as discussões, o que não deixou de frustrar os delegados árabes. (SELCHER, 1978, p. 116-117).
Entretanto, no mesmo ano, quando autoridades do governo do Iraque fizeram saber que desejavam que fosse instalado em Brasília um escritório da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), não havia praticamente margem decisória para o governo brasileiro senão curvar-se às pressões iraquianas. Mais da metade do petróleo consumido no Brasil era então importado do Iraque. E assim, em 1979, o Brasil foi o segundo país latino-americano, depois de Cuba, a autorizar a instalação de uma representação da OLP, o que foi feito junto ao escritório da Liga dos Estados Árabes. (FARES, 2007, p. 134; BAEZA, 2012, p. 116; SANTANA, 2006a, p. 175). Em 1993, a representação da OLP passou à categoria de "Delegação Especial Palestina" e, desde abril de 1998, figura na lista do Corpo Diplomático, no item "Países e Delegações". (MAJZOUB, 2000, p. 78).5
Em 1978, os Acordos de Camp David conduziram ao acordo de paz entre o Egito e Israel, de 1979, e, sem a presença de representantes palestinos, estabeleceram um cronograma de negociações sobre a questão palestina. Desde então, o processo de paz entre Israel e seus vizinhos passou a ser conduzido fora da ONU, em que o tema não deixou de ser objeto de numerosas resoluções e manifestações. Em seus discursos inaugurais às sessões anuais da Assembleia Geral, os representantes do Brasil continuamente afirmaram que a "sociedade brasileira [...] reconhece o direito de todos os povos do Oriente Médio, inclusive Israel, de viver em paz, dentro de fronteiras internacionalmente reconhecidas [... e deseja] ver concretizada a criação de um Estado nacional palestino". (SARNEY, 2007, p. 451). No mesmo sentido, no Conselho de Segurança, o Brasil tem "[deplorado] fortemente os ataques terroristas e a utilização de homens-bomba que visam alvos civis israelenses, bem como o excessivo uso da força pelos militares israelenses também contra alvos civis e com o objetivo de destruir a infra-estrutura dos territórios palestinos ocupados". (Cf. BRASIL, MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2002).
2. O governo Lula: aspectos gerais e o lugar do Oriente Médio
É recorrente na literatura sobre a política externa do governo Lula a discussão sobre mudanças e continuidades com relação aos governos anteriores, sobretudo o de Fernando Henrique Cardoso, ponderando-se quais as tendências que foram mantidas ou alteradas. Alguns especialistas têm considerado negativos os rumos tomados pela política externa de Lula (GUILHON DE ALBUQUERQUE, 2005; ALMEIDA, 2012; CASARÕES, 2014), assim como há avaliações positivas (HIRST; LIMA; PINHEIRO, 2010; CRUZ; MORAES, 2008; MONIZ BANDEIRA, 2005), mas grande parte dos estudos acadêmicos analisam criticamente o tema, observando-se tanto aspectos positivos como equívocos ou fragilidades.
A análise de Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni (2007, p. 282-283) tem sido utilizada com frequência pela literatura especializada para caracterizar o governo Lula e, para os fins deste artigo, aponta suficientemente tendências a serem consideradas. Segundo os autores, a política externa do governo Lula não operou rupturas, em relação ao governo de Fernando Henrique Cardoso. A política externa de Cardoso seria definida pela busca de "autonomia pela participação" no sistema internacional, enquanto que a de Lula buscaria a "autonomia pela diversificação". As alterações de ênfase no governo Lula se dariam, sinteticamente, com a cooperação Sul-Sul, a diversificação de parcerias e o maior protagonismo internacional do Brasil.
Certamente uma questão que interpela o leitor diz respeito ao processo decisório no campo da política externa brasileira, notadamente quando esta passa a se caracterizar pela busca de protagonismo internacional. Por exemplo, o Brasil tem historicamente participado de operações de paz da ONU, porém, desde 2004, assumiu funções de maior destaque nessas operações, como na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH), que foi estabelecida com base no Capítulo VII da Carta da ONU. É legítimo perguntar por que o Brasil está presente nessas operações de paz, ou, de maneira mais genérica, quem formula e quem decide sobre a política externa brasileira.
Não é nosso objetivo discutir longamente o tema, que tem recebido cada vez mais a atenção dos estudiosos da área de Relações Internacionais com a utilização de várias ferramentas teóricas e metodológicas dos Estudos de Política Externa.6 Entretanto, cabe assinalar, como o fazem Vigevani e Cepaluni (2007, p. 274), que o governo Lula sofreu críticas com relação à falta de participação da sociedade brasileira nas decisões relativas à política externa.
De toda forma, de um lado tem-se apontado recorrentemente para a notória predominância do Poder Executivo, o insulamento burocrático do Itamaraty, que seriam agravados pela falta de interesse pela agenda externa do País por parte do Congresso e, no governo Lula, pela partidarização e ideologização da política externa. De outro lado, há que se mencionar que a politização da política externa tem sido objeto de um salutar debate (LIMA, 2013b) e que se percebe maior interesse da sociedade por temas internacionais, além de uma pluralização dos atores envolvidos no processo decisório em política externa e, até mesmo, diferentemente do que afirma a sabedoria convencional, que "o Poder Legislativo, no Brasil, conta com um conjunto de instrumentos institucionalizados que lhe permitem, caso assim o deseje, intervir ex ante e ex post na produção, execução e acompanhamento da política externa brasileira". (ANASTASIA; MENDONÇA; ALMEIDA, 2012, p. 620).
Ainda que partamos do pressuposto de que na fase inicial da formulação da política externa brasileira "- percepção e definição de problemas; agenda setting [...] - encontramos vários grupos e instituições que já conseguem influir de forma mais incisiva nas questões internacionais" (MESQUITA, 2014, p. 78), quando se trata de questões relativas à paz e à segurança internacionais, o estabelecimento de agenda é muito mais restrito. Este é um aspecto particularmente importante para analisar o ineditismo do ativismo brasileiro no processo de paz Israel-Palestina, já que se trata do processo decisório relativo a um tema sensível, em uma região aparentemente remota e sem conexão com os "interesses nacionais" brasileiros.
Entendemos que para compreender a política externa do período Lula e a projeção que o Brasil buscará assumir no processo de paz entre Israel e os palestinos é essencial levar em conta o papel de algumas lideranças no processo de formulação e de decisão da política externa. Vigevani e Capeluni (2007, p. 284) afirmam que no âmbito burocrático do governo Lula destacaram-se três nomes que poderiam influenciar a política externa: Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Marco Aurélio Garcia. Não há indicações, na documentação e na bibliografia consultada, de que Garcia e Guimarães tenham tido um papel importante com relação à diplomacia para o conflito israelo-palestino. Assim, é plausível supor que o presidente e o ministro das Relações Exteriores centralizaram as decisões sobre o tema.7 Nesse sentido, entendemos que a trajetória pessoal do presidente Lula e do ministro Celso Amorim têm um significativo peso explicativo com relação às iniciativas no período analisado. Da mesma forma, as ideias desses dois líderes, suas interpretações com respeito à ordem internacional - constrangimentos e oportunidades (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 276-277) - são fundamentais para compreender como buscaram os novos rumos para a política diplomática brasileira.
Uma das características principais do presidente Lula é ter-se projetado como líder sindical desde sua juventude e ter dotado sua gestão de um caráter mais carismático do que as presidências anteriores. Além disso, Lula deixou claro seu interesse por política internacional e pela política externa do Brasil, notadamente quando defendeu a candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de segurança da ONU. Lula entendia que o Brasil deveria buscar novas formas de inserção internacional, assim como o estabelecimento de novos padrões de comportamento e relacionamento entre os Estados. Ao longo dos seus dois mandatos presidenciais, exerceu uma forte diplomacia presidencial (CASON; POWERS, 2009), que pode ser definida como a "condução pessoal de assuntos de política externa, fora da mera rotina ou das atribuições ex-officio, pelo presidente, ou, no caso de um regime parlamentarista, pelo chefe de estado e/ou pelo chefe de governo". (DANESE, 1999, p. 51).
Celso Amorim assumiu a pasta das Relações Exteriores logo no começo do governo Lula. Ao longo da década de 90 até 2003, exerceu importantes postos diplomáticos, quando suas ideias e seu desempenho assertivo foram congruentes com o que defenderia ao longo do governo Lula. Em sua primeira gestão à frente do Itamaraty (1994-1994), deu impulso à candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e defendeu a ampliação do órgão - com a experiência como chefe da Missão Permanente do Brasil em Nova York (1995-1999) e a representação do Brasil no Conselho de Segurança (1998-1999).8 Em vários trabalhos publicados antes de assumir a pasta das Relações Exteriores em 2003, sublinhou que os acontecimentos do começo da década de 90, como a guerra do Golfo, seriam um prenúncio da ampliação da hegemonia norte-americana. Insistiu sobre a importância do fortalecimento das instituições multilaterais e apontou para o risco do surgimento de um multilateralismo seletivo, que pressupunha um processo de imposição de valores, principalmente no que se referia aos novos temas globais. (CASTRO NEVES, 2012, p. 204-215).
As qualidades da parceria privilegiada que se estabeleceu entre o presidente Lula e Celso Amorim assemelha-se à "enorme sinergia" que existiu entre presidente Ernesto Geisel (1979-1974) e seu ministro das Relações Exteriores, Antonio Francisco Azeredo da Silveira. (LIMA, 2013a, p. 32). Traços do Pragmatismo Responsável, como foi definida a política externa de Geisel, encontram-se em mandatos presidenciais anteriores. Entretanto, a exemplo do governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), a política externa não assumiria a relevância e a projeção que teve no período Geisel. Uma das explicações estaria na pouca importância à política externa de seu governo; tampouco Médici estabeleceu com seu ministro das Relações Exteriores, Gibson Barboza, uma parceira especial.9 Geisel e Azeredo da Silveira foram capazes de fazer prevalecer as suas preferências (PINHEIRO, 2013), o que demonstra a relevância que algumas lideranças podem exercer no direcionamento da política externa de um país.
Dois aspectos de ordem sistêmica internacional devem ser considerados ao tratar das inovações que acontecem ao longo do governo Lula. Primeiramente, o governo Lula inicia-se em um contexto internacional que vive as consequências dos ataques de 11 de setembro de 2001 e da guerra contra o terrorismo. Na National Security Strategy de 2002 (NSS 2002), de George W. Bush, a "preempção"10 atinge o patamar de prioridade, com foco na busca por convencer os chamados rogue states - estados "bandidos" - a desistir de seus programas de armas de destruição em massa e a deixar de repassar grupos terroristas. A guerra ao Iraque de 2003 é a demonstração de uma ação preemptiva, vista como necessária para tornar crível a mensagem sobre a determinação norte-americana de punir outros rogue states, como o Irã e a Coreia do Norte, que formavam com o Iraque o "Eixo do Mal". (HAKAN TUNÇ, 2009). Desnecessário insistir sobre as graves repercussões dessa estratégia para o Oriente Médio. Os países da região conviveriam diretamente com as graves consequências da Guerra do Iraque, como a profunda desestabilização do Oriente Médio. Buscar novos aliados foi uma das opções estratégicas que se apresentavam aos países da região.
O governo Lula inicia-se em janeiro de 2003. Em março, uma coalizão militar multinacional liderada pelos Estados Unidos invade o Iraque, sem a autorização do Conselho de Segurança. O Brasil condena a invasão, o que é plenamente consistente com a posição da diplomacia brasileira até então. O que é menos óbvio é o fato de que a guerra ao Iraque foi plenamente bem sucedida em seus primeiros meses e foi aplaudida mesmo por países que não faziam parte da coalizão liderada pelos Estados Unidos. A popularidade de George W. Bush atinge patamares até então inéditos em sua administração. Meses passariam até que a invasão se mostrasse um verdadeiro desastre. Portanto, no contexto internacional que segue o 11 de setembro de 2001 e a guerra contra o terrorismo, ter denunciado a invasão ao Iraque desde o seu início foi um fator importante para que o Brasil pudesse reforçar os laços de confiança com os países árabes.11 Além disso, segundo Amorim,
[...] com a atitude que tomou sobre a crise no Iraque, a política externa do governo Lula disse a que veio. [...] A questão do Iraque foi motivo de concertação com parceiros globais e prenunciou relações estratégicas que seriam formalizadas mais tarde [com a França e a Rússia, por exemplo] [...] [A]s posições firmes e desassombradas que adotamos [...] e o esforço de articulação que empreendemos junto a líderes mundiais contribuíram para colocar o Brasil, por assim dizer, na arena global. [...] Começávamos a acumular credenciais para uma ação diplomática mais ampla no tabuleiro da política mundial, inclusive em temas aparentemente longínquos, como a Palestina e do programa nuclear iraniano. (AMORIM, 2013b, p. 15, 19 e 32).
O segundo elemento de ordem sistêmica internacional relevante no contexto do governo Lula é o começo de uma atuação mais assertiva por parte de potências emergentes, que passaram a demandar a reforma da ordem internacional e novas formas de governança mundial, em razão de sua percepção sobre a perda de legitimidade das potências tradicionais - a própria Guerra no Iraque tem muito a ver com isso - e das instituições internacionais. O Brasil e os países em desenvolvimento viam-se cada vez mais como potências que tinham um papel de liderança a exercer no sistema internacional.
A perspectiva liberal que predominou desde o fim da Segunda Guerra Mundial, baseada na premissa de que a liderança norte-americana era capaz de prover os bens públicos internacionais (OLSON, 1971),12 passa a ser profundamente questionada com a ação coletiva, na forma de coalizões, de potências emergentes, como o IBAS e os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que contesta a alegada capacidade das potências tradicionais de atender a interesses coletivos. A crise financeira internacional de 2008 e a perda de importância econômica dos Estados Unidos confirmariam o maior peso da voz dos países emergentes. As iniciativas de cooperação Sul-Sul incluiriam uma aproximação dos países da África e do Oriente Médio. Apesar da crise de 2008, a situação econômica do Brasil, relativamente confortável, dava espaço para que o País pudesse ser mais proativo internacionalmente: no primeiro mandato do governo Lula a média de crescimento do PIB brasileiro foi de 3,5%, e no segundo, de 4,62%. (CORNETET, 2014, p. 138-139).
Ao assumir seu primeiro mandato presidencial, a retórica de Lula estava simbolicamente marcada pela mudança; Lula é enfático sobre a necessidade de diferenciar-se com relação a seu antecessor. (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 273). Seu discurso inaugural fala por si só:
Mudança: esta é a palavra chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas eleições de outubro. A esperança venceu o medo e a sociedade brasileira decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos. [...] Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu Presidente da República: para mudar. (LULA DA SILVA, 2003).
A política externa de Lula está longe de ser unanimemente interpretada como positiva, como já referido. Entretanto, seu ativismo e o perfil muito mais alto de sua diplomacia quando comparada aos últimos períodos presidenciais parecem irrefutáveis. A denominação de sua diplomacia como "ativa e altiva" são marcas reconhecidas de seu governo, além da busca de protagonismo internacional. Foram ressaltadas as iniciativas no campo da paz e da segurança internacional para além do nível regional e a forte ênfase dada à diplomacia presidencial. O exercício da diplomacia de cúpulas visando à cooperação Sul-Sul foi outra marca do governo Lula.
A Cúpula América do Sul-Países Árabes (ASPA), por exemplo, é um mecanismo de coordenação política em foros multilaterais e de cooperação multissetorial. Foi proposta pelo Brasil em 2003 e formalmente criada em 2005, quando se reuniu em Brasília a I Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da América do Sul e Países Árabes. A II Cúpula ASPA ocorreu em 2009, em Doha, no Catar. Da ASPA fazem parte 34 países sul-americanos e árabes, o Secretariado-Geral da Liga dos Estados Árabes (LEA) e a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL). No âmbito dos encontros de 2005 e 2009, realizaram-se fóruns empresariais para estimular o intercâmbio comercial birregional (Brasil, MRE, ASPA: Cúpula América do Sul-Países Árabes).
É bastante visível o aumento do fluxo comercial entre o Brasil e os países árabes, em que sobressaíram saldos positivos para o Brasil resultantes de várias iniciativas, entre as quais é possível atribuir importância, ainda que sem precisá-la, às Cúpulas ASPA, às viagens presidenciais aos países do Oriente Médio, além do estabelecimento de novas representações brasileiras na região.
A retomada da aproximação do Brasil com os países árabes aconteceu no governo Cardoso, marcada por um grande seminário sobre as relações entre o Brasil e os países árabes, realizado em Brasília, em 2000. (MAJZOUB, 2000). Essa iniciativa caracterizou-se pelo prevalecimento de objetivos comerciais. Entre 1999 e 2000, o fluxo comercial entre o Brasil e os países árabes já mostrava um crescimento de 12,58%, e continuou a crescer: 21,22%, em 2000-2001. Em 1999, o Brasil exportava para a região 3,12% de suas exportações totais; em 2003 esse valor subiu para 3,86%. As importações passaram de 2,19% do total das importações brasileiras, em 1999, para 3,36% em 2003. (HAFFNER; HOLAND, 2012, p. 139).
O gráfico abaixo demonstra que entre 2003 e 2008, os fluxos comerciais entre o Brasil e o Oriente Médio passaram de US$ 4,4 bilhões para 14,4 bilhões. Em consequência da crise financeira internacional de 2008, registrou-se em 2009 a primeira queda desde 1999: US$ 10,6 bilhões. Em 2010, a corrente de comércio já apresentava recuperação. (HAFFNER; HOLAND, 2012, p. 145).13
As visitas presidenciais para todas as regiões do mundo aumentaram significativamente durante o governo Lula. O gráfico abaixo mostra esse crescimento comparado às viagens de Cardoso. Além disso, demonstra o fenômeno da globalização da política externa. Mostra ainda a priorização da América do Sul e também a atenção que os países africanos receberam. (CORNETET, 2014, p. 126). Enfim, sobressaem-se as visitas feitas a países onde foram inauguradas parcerias ausentes no governo anterior: Argélia, Arábia Saudita, Egito, Irã, Israel, Jordânia, Líbano, Palestina e Síria, além da Líbia, visitada três vezes. (BRASIL, MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2011). Lula foi o primeiro líder sul-americano a participar de uma Cúpula da Liga Árabe. (DATZ; PETERS, 2013, p. 44)
O grupo BRICS, composto pela Rússia, Índia, China, África do Sul (além do Brasil) foi considerado para fins de pesquisa, sem prejuízo de também estarem contabilizados nas respectivas regiões. Fonte: LIMA; DUARTE, 2013 , p. 11.
Finalmente, no período 2003-2010, foram criadas três novas embaixadas no Oriente Médio - Mascate (Omã), Nicósia (Chipre) e Doha, (Catar) - e três novos consulados - Istambul (Turquia), Ramalá (Palestina) e Beirute (Líbano), o que deve ser considerado em um universo de 67 novos postos diplomáticos. Até o governo Cardoso existiam 150 postos diplomáticos no exterior. Dilma Rousseff criou apenas dez novos postos. (CORNETET, 2014, p. 122-125). Portanto, em princípio, o número de novas embaixadas e consulados em países do Oriente Médio não é indicativo, por si só, da importância relativa que a região ganhará.14
3. A diplomacia com relação ao conflito Israel-Palestina: 2003 a 2010
A política externa de Lula esteve marcada pelo objetivo de fazer o Brasil exercer um papel protagonista internacional. A América do Sul foi a prioridade do governo, mas o ativismo objetivado não foi somente regional, e sim global. Assim, o protagonismo internacional e seu caráter global já conferem uma distinção à política externa de Lula. Entendemos, entretanto, que um terceiro aspecto deve ser incluído: foram inseridos na agenda global temas relativos à paz e à segurança internacionais. Com relação a essa ampliação temática, o ministro Celso Amorim comenta:
Ser pacífico não significa apenas que nós equacionamos disputas fronteiriças e que não entraremos em aventuras agressivas. O Brasil também quer ser um provedor de paz. Isso significa que o Brasil deseja contribuir ativamente para que a ordem internacional evolua em um sentido que seja conducente à paz. Política externa e política de defesa se complementam nessa tarefa, tanto em nosso entorno regional, como no sistema internacional. (AMORIM, 2013a, p. 128).
O proativismo universal, ou global, é recorrentemente apontado nas análises sobre o período Lula. Entretanto, o aspecto que dá um ineditismo muito particular a sua política externa, ou seja, o objetivo de ser "provedor de paz" em nível global, não tem sido evidenciado na literatura especializada, como mencionado anteriormente. Viu-se que o comércio brasileiro com os países árabes avançou substantivamente, ainda que, "[s]alvo melhor juízo, é invariavelmente inerente ao relacionamento com os países do Oriente Médio, em grande medida, correr riscos políticos em decorrência de aventuras militares ou distúrbios sociais [na região]". (FARES, 2007, p. 134).
Na América Latina - principalmente pela percepção, reiterada em discursos do Itamaraty, de que o Brasil tem um histórico de nação pacífica, que não tem conflitos fronteiriços -, o País se coloca como um potencial mediador de crises políticas e problemas fronteiriços. Nos anos 90, por exemplo, o Brasil foi mediador entre o Equador e o Peru em um histórico conflito de fronteiras. A mediação que teve por base o Protocolo do Rio de Janeiro de 1942, do qual o Brasil era um dos grandes, com a Argentina, o Chile e os Estados Unidos, concluiu-se com a assinatura da Declaração de Paz do Itamaraty, em 1995. O Brasil atua também, por exemplo, no Grupo de Rio.15
A evolução de alguns temas relativos aos países do Oriente Médio dá a dimensão da dinâmica complexa que é própria ao processo de paz entre israelenses e palestinos. A região é muito instável, e o conflito entre Israel e os palestinos é por excelência a manifestação dos problemas pós-coloniais que persistem no tempo, que envolvem a prática de violência sistemática contra civis e o terrorismo. Na ONU, são centenas as resoluções que tratam do conflito. Nem por isso ela deixou de ser continuamente criticada e vista como devedora por todas as partes envolvidas. Iniciativas podem ser percebidas como incentivos à cooperação para a paz ou como estímulos à retomada ou aprofundamento do conflito e repercutirão nos demais países da região.
Por exemplo, em 2010, Brasil e Turquia tentaram mediar o conflito em torno do projeto nuclear iraniano e votaram contra a resolução do Conselho de Segurança que impunha novas sanções ao Irã. Os dois países entendiam que novas sanções serviriam apenas para isolar o governo iraniano e torná-lo mais hostil ao Ocidente. Garantindo ao Irã o fornecimento de urânio com baixo enriquecimento para o funcionamento de um reator utilizado em pesquisas médicas, Brasil e Turquia entendiam que as posições iranianas se flexibilizariam. Essa iniciativa necessariamente repercutiu em Israel e, consequentemente, sobre a possibilidade de o país ver no Brasil um ator aceitável como mediador de seus conflitos com os palestinos.
Tendo em conta as dificuldades do processo de paz israelo-palestino e os parâmetros históricos da diplomacia brasileira de limitar tanto seu envolvimento político nos conflitos de seu entorno regional quanto seus posicionamentos com relação ao conflito israelo-palestino no âmbito da ONU, cabe a indagação sobre as motivações da grande inflexão que ocorreu durante o governo Lula. Nosso pressuposto, como já indicado, é que se estabeleceu entre o presidente e seu ministro das Relações Exteriores uma forte parceria e que ambos centralizaram as decisões sobre a política externa para o Oriente Médio.
A propósito da maior visibilidade brasileira no cenário médio-oriental, Celso Amorim insiste em dois pontos: primeiramente, que o Brasil não buscou protagonismo; em segundo lugar, que antes mesmo do governo Lula existia uma demanda na região para que o Brasil tivesse maior presença no contexto do conflito entre Israel e os palestinos. Amorim (2011, p. 86 e 466) insiste em salientar que o Brasil "sempre foi procurado pelos países do Oriente Médio":
Nós nos dispusemos a ir, mas os países da região vieram nos pedir. O primeiro que conversou comigo sobre uma participação mais ativa do Brasil foi Shimon Peres, em 1993, pouco depois dos Acordos de Oslo, em um encontro que tivemos à margem da Assembleia Geral da ONU. Na época [quando era ministro das Relações Exteriores, no governo Itamar Franco] ele achava que o Brasil poderia ajudar a moderar a posição dos árabes. (AMORIM, 2011, p. 466).
Essa participação mais ativa poderia ser realizada porque Peres considerava que o Brasil mantinha boas relações com os países árabes. (AMORIM, 2010).
Segundo Amorim, no governo Lula, a possibilidade da participação brasileira no processo de paz teria resultado de um processo gradual, sem uma estratégia traçada previamente e muito menos de uma forma voluntarista.
O primeiro passo desse processo teria acontecido ao longo das viagens a cinco países árabes que fez o ministro com o presidente Lula, em dezembro de 2003 - Egito, Emirados Árabes Unidos, Líbano, Líbia e Síria. Essas visitas aconteceram pouco após o fracasso nas negociações da 5ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC): "Então, nos voltarmos para o Oriente Médio era, intuitivamente, um meio de buscar novos mercados" [nossa ênfase]. A própria ideia sobre a ASPA teria surgido nessas viagens, quando Lula disse ao ministro que queria criar algum mecanismo de encontros de chefes de Estado da região, e Amorim teria acrescentado que se poderiam então promover encontros entre os países sul-americanos e os países árabes. (AMORIM, 2011, p. 416-417).
No Egito, o presidente e Amorim teriam sido procurados por Nabil Shaat, ministro das Relações Exteriores da Autoridade Nacional Palestina (ANP), que teria feito duas sugestões: a primeira era que o Brasil criasse uma representação em Ramalá;16 a segunda era que o Brasil nomeasse um enviado especial para o Oriente Médio. (AMORIM, 2011, p. 185). Poucos meses depois, em abril de 2004, o governo brasileiro decidiu designar o embaixador Affonso Celso de Ouro-Preto como Embaixador Extraordinário do Brasil para o Oriente Médio. Em setembro, foi criado o Escritório de Representação do Brasil em Ramalá (Cronologia, 2007). Assim, conforme conta Amorim, "[a]s duas sugestões de Nabil Shaat [...] já demonstraram claramente que o Brasil acolhia e retribuía esse interesse". (AMORIM, 2011, p. 186).
O segundo passo do processo que resultou no envolvimento brasileiro na mediação entre Israel e os palestinos teria sido dado antes da I Cúpula Aspa, realizada em 2005 e logo depois. Durante um ano e meio, Amorim visitou vários países árabes realizando os preparativos para a Cúpula. Foi nesse contexto que o ministro esteve pela primeira vez nos Territórios Palestinos Ocupados. "[F]omos criando uma relação mais próxima [com a região], que culminou na Cúpula realizada no Brasil em maio de 2005". Logo depois da Cúpula, esteve em Israel, quando se reuniu com o então primeiro-ministro Ariel Sharon, com o vice-primeiro-ministro Ehud Olmert, que o sucederia, com o chanceler Silvam Shalom, com Shimon Peres. Segundo o ministro: "nenhum deles manifestou reservas quanto a maior envolvimento do Brasil. Peres foi particularmente enfático na utilidade de nossa presença". (AMORIM, 2011, p. 187).
Esse seria, então, o que Celso Amorim denomina background da aproximação brasileira com relação ao conflito israelo-palestino.
Da narrativa do ministro, é possível deduzir que outro passo importante teria sido dado com a Guerra do Líbano, entre o Hezbolah e Israel, de julho a agosto de 2006. Na época, estimativas indicavam que 10 mil brasileiros viviam em Beirute e 90 mil no Vale do Bekaa. Sete morreram em consequência do conflito, e o governo brasileiro conseguiu retirar três mil cidadãos seus da região.
Durante a Guerra do Líbano, Amorim esteve na Turquia, para ver a situação dos refugiados do conflito, e em Beirute, para levar medicamentos e alimentos doados pelo Brasil. Conta que na Turquia, "[u]ma senhora, por exemplo, veio me dizer: 'É a terceira guerra da qual eu fujo, mas é a primeira vez que tenho o apoio do governo brasileiro'". No Brasil, Amorim foi à Comissão de Relações Exteriores do Senado, em que teria sido cobrado "para que o Brasil fizesse ainda mais na questão da Guerra".17 Esses eventos são mencionados pelo ministro quando insiste que "[n]o caso do Líbano, foi a política internacional que se interessou por nós. Independentemente do que achávamos [...]. É por isso que devemos estar presentes em todas as áreas". (AMORIM, 2011, p. 62, p. 77-78 e p. 188; BACOCCINA, 2006).
Amorim chama atenção para o fato de que a operação de resgate de brasileiros refugiados da Guerra do Líbano de 2006 foi a maior do gênero realizada pelo governo brasileiro. Sublinha o fato de que havia muitos brasileiros envolvidos na violência da região, que teria tornado claro o argumento de que a composição da população brasileira - em que há uma comunidade árabe de 20 milhões de pessoas, além de haver também uma forte presença da comunidade judaica - não permitiria ao governo brasileiro se distanciar do conflito entre Israel e os palestinos. O Brasil, principalmente a partir de então, teria passado a participar mais diretamente dos esforços humanitários da comunidade internacional em prol dos palestinos.18
Mais um passo na direção da mediação brasileira no conflito israelo-palestino foi certamente dado quando o Brasil, com a África do Sul e a Índia (IBAS), participa da Conferência de Annapolis, em novembro de 2007. A Conferência dava continuidade ao processo de paz no âmbito do "Mapa do Caminho para a Paz", iniciado pelo "Quarteto" - Estados Unidos, União Europeia, ONU e Rússia -, em 2003. Em discurso que pronunciou na Conferência, Amorim tratou da situação dos Territórios Ocupados e afirmou que o Brasil estava preparado para aumentar de modo significativo sua cooperação econômica e técnica para a reconstrução da Palestina.
Sobre a Conferência de Annapolis, Amorim observa que, apesar de um grande número de países ter participado da conferência, em torno de 50, o Brasil, a Índia e a África do Sul eram os únicos convidados que não faziam parte da região nem do mundo islâmico, não tinham uma relação mais direta com o conflito israelo-palestino, não eram potências coloniais, tampouco tinham grandes interesses materiais a proteger, como o petróleo. Assim, o convite para participar da conferência era "o reconhecimento de uma tese, que temos defendido há muito tempo, de que países em desenvolvimento [...] de fora da região [...] podem trazer uma contribuição nova a questões que são sempre tratadas dentro de uma ótica antiga - e sem resultados". (AMORIM, 2011, p. 145-146, 190).
Por fim, há três pontos ainda a considerar a fim de contextualizar historicamente as posições da diplomacia brasileira vis-à-vis o conflito israelo-palestino. Primeiramente: durante o governo Lula, como acontecia em governos anteriores, o Itamaraty emitiu notas sempre que os confrontos havidos entre Israel e os palestinos adquiriram maior proporção. O teor dessas notas, também como praxe diplomática já bem estabelecida anteriormente, incluía apelos tanto a Israel como aos palestinos para que cessassem as hostilidades, ainda que críticas tenham frequentemente aparecido na mídia sobre um desequilíbrio nesses apelos, ou seja, que o governo brasileiro tenha apelado mais insistentemente para que as ações hostis de Israel cessassem. De fato, as notas insistiram mais nos apelos à paz feitos ao governo israelense, que se justificariam pelo fato de ser Israel um Estado plenamente constituído, com uma das forças armadas mais bem equipadas e treinadas do mundo, lutando contra os grupos que o atacavam com armas muito menos poderosas, ainda que realmente capazes de ameaçar a segurança israelense. A questão subjacente aos apelos do governo brasileiros feitas a Israel e aos palestinos para a cessação das hostilidades seria o uso desproporcional da força por Israel, como o que aconteceu durante a Guerra de Gaza, entre julho e agosto de 2014.
Com muito menor visibilidade, também se criticou o governo brasileiro por considerar somente a ANP ou o Fatah interlocutores dos palestinos, ou seja, não incluir o Hamas como entidade palestina legítima. Amorim não se estende longamente sobre a questão, mas parece ser suficientemente claro:
Obviamente não haverá paz na região se não houver a reconciliação entre palestinos. Falei com o governo da Síria, que abriga o principal líder do Hamas, e falei com outros. Todos estão de acordo, em princípio. Mas a concordância termina aí. A maneira de fazer a reconciliação é objeto de muita divergência.
[...]
Há muitos outros países empenhados nesse diálogo interpalestino, eu não posso entrar em mais detalhes, muitas dessas coisas são sensíveis, mas esse diálogo terá que ocorrer. Há outras forças - não apenas o Fatah e o Hamas - que devem ser ouvidas nesse diálogo e, com certeza, esse é um dos elementos indispensáveis para que haja uma paz permanente.
[...]
Israel pode não perceber isso hoje, porque, na visão imediatista, quanto mais enfraquecer o Hamas e fortalecer a Autoridade Palestina, isto é, o Fatah, melhor. Mas [...] a Autoridade Palestina pode estar hoje mais forte legalmente, porque detém o poder, mas está ficando mais fraca politicamente, porque está perdendo apoio de parte da população. (AMORIM, 2011, p. 204 e 212).
O segundo ponto a considerar: em diversas ocasiões o presidente Lula se manifestou sobre a situação do Oriente Médio e defendeu a ideia de que a paz iria acontecer somente quando houvesse outros interlocutores discutindo-a em Israel. Na verdade, o presidente Lula "alimentava a idéia de [promover] uma conferência internacional", uma vez que se impacientava com os mecanismos existentes. (AMORIM, 2011, p. 195). Ou seja, as intenções de Lula eram bastante ambiciosas.
E o terceiro ponto: em março de 2010, o presidente Lula realizou a primeira visita de um chefe de Estado brasileiro a Israel, aos Territórios Palestinos Ocupados e à Jordânia. Além disso, em dezembro do mesmo ano, o governo brasileiro reconheceu o Estado palestino, nas fronteiras de 1967, por considerar que era "just[o] e coerente com os princípios defendidos pelo Brasil para a Questão Palestina". (BRASIL, MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2010).19 Nos quatro meses seguintes, também o fizeram Argentina, Bolívia, Equador, Chile, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname e Uruguai. (BAEZA, 2012, p. 124).
Considerações Finais
Buscou-se neste artigo contextualizar e problematizar o proativismo da diplomacia brasileira com relação ao processo de paz entre Israel e os palestinos durante o governo Lula. Tratar de um tema cronologicamente recente não minimiza as armadilhas do reducionismo e as chances de incorrer em anacronismo. A complexidade intrínseca ao conflito, a rapidez com que a conjuntura internacional se transforma, a variação dos limites estruturais do sistema - ou ordem - internacional, as alterações na posição dos atores notoriamente relevantes, os constantes ganhos e perdas de legitimidade desses atores, entre outros fatores, tornam mais evidente a natureza da tentativa da análise empreendida neste estudo.
Viu-se que, até 2003, o Brasil não teve uma estratégia com relação aos países do Oriente Médio. Mesmo no governo Geisel, quando se tornou imperativo manter boas relações com o mundo árabe em razão da crise mundial do petróleo, a posição brasileira não deixou de ser reativa. Particularmente na ONU, esse comportamento é observável. Se no período que vai do pós-Segunda Guerra Mundial até a década de 70 a diplomacia brasileira reage com um tratamento conciliatório e equidistante com relação a Israel, de um lado, e aos países árabes e a palestinos, de outro, a reação aos constrangimentos internacionais causados pela crise mundial do petróleo induzirá o Brasil a acompanhar as recorrentes manifestações de solidariedade ao povo palestino expressadas pelos países em desenvolvimento, cuja voz se tornou poderosa na Assembleia Geral da ONU. Cedo, em 1976, o Brasil estabeleceu relações formais com a OLP.
Nas duas décadas seguintes, não haveria muitas novidades na diplomacia brasileira com relação ao conflito israelo-palestino. A ONU passou a ter um papel muito marginal nas tentativas de mediação entre as partes, e os Estados Unidos assumiram o papel de principal ator na promoção da paz. Desde a Guerra dos Seis Dias, Israel - que contara até então com a simpatia de boa parte dos membros da ONU e da opinião pública em geral - passou a enfrentar uma situação inversa: sem recuar de praticamente nenhuma parcela dos Territórios Ocupados durante a guerra de 1967 e avançando no chamado processo de colonização desses territórios, o governo israelense deixou de contar com o apoio da comunidade internacional. Na ONU, são centenas as resoluções aprovadas pela Assembleia Geral que invocam duas resoluções do Conselho de Segurança: a Resolução 242 (1967), que determina que Israel deixe os territórios ocupados, e a Resolução 338 (1973), aprovada pouco depois do início da Guerra do Yom Kippur, que apela para a efetivação da Resolução 242 (1967) e a realização de negociações a fim de estabelecer uma paz durável no Oriente Médio.
A política externa do governo Lula foi denominada "ativa e altiva" por Celso Amorim, enquanto que os especialistas em Relações Internacionais a definem muito frequentemente pela estratégia escolhida para promover a inserção internacional do Brasil: a "autonomia pela diversificação". Do amplo leque de aspectos que marcaram a "autonomia pela diversificação", a diversificação de parcerias no eixo Sul-Sul e o protagonismo internacional são especialmente importantes para este estudo, uma vez que definem o terreno no qual acontece o primeiro ensaio feito pela diplomacia brasileira no campo da paz e da segurança internacionais, fora do quadro multilateral onusiano e fora do continente americano. Embora praticamente ignorada pelas análises sobre a política externa no governo Lula, a iniciativa brasileira de participar da mediação de um conflito localizado no Oriente Médio representa uma grande inflexão histórica na diplomacia do Brasil.
Sublinhamos dois aspectos do sistema internacional que contribuíram para que a política externa do Brasil de 2003 a 2010 pudesse exercer com desenvoltura um perfil mais alto do que a de governos anteriores. O primeiro deles relaciona-se às consequências desastrosas da invasão norte-americana ao Iraque em 2003. Ao não apoiar a invasão, quando esta tinha grande apoio popular em muitos países ocidentais, o Brasil pavimentava o caminho da aproximação com os países árabes. Por outro lado, o surgimento de coalizões de grandes países em desenvolvimento, como o IBAS e o BRICS, questionou a capacidade das grandes potências tradicionais de assegurar níveis aceitáveis de governança mundial. Enquanto os Estados Unidos e os países europeus se fragilizavam ainda mais com a crise financeira internacional de 2008, os países emergentes fortaleceram sua determinação de ampliar seu papel no processo decisório sobre as grandes questões da ordem internacional.
O presidente Lula e o ministro Celso Amorim mostraram grande sintonia para operar juntos muitas das mudanças no perfil da diplomacia brasileira, sobretudo com relação ao Oriente Médio. Ao longo dos dois mandatos de Lula, para além da intensificação das relações comerciais e da cooperação multissetorial com os países da região, pela primeira vez um chefe de Estado brasileiro visitou Israel e Palestina. Ademais, o Brasil passou a atender aos apelos para contribuir com o processo de paz israelo-palestina feitos por autoridades de ambos os lados do conflito. É possível que Lula e Amorim tenham magnificado as reais possibilidades de o Brasil avançar com qualquer contribuição - viu-se que o presidente Lula pensou até mesmo em promover uma conferência de paz, quando se sabe que, em princípio, palestinos e israelenses só aceitam iniciativas de mediação promovidas pelos Estados Unidos ou países com alguma tradição de envolvimento nesse processo; mas, principalmente, Israel dificilmente aceitaria a interferência de um país que não tivesse relações mais consistentes com os Estados Unidos.
Com o conflito entre o Hezbolah e Israel, em 2006, milhares de brasileiros precisaram deixar o sul do Líbano. O conflito foi percebido pelo governo brasileiro como uma confirmação de que os interesses brasileiros de fato haviam se globalizado. A FAB retirou três mil brasileiros da região, e a partir de então o Brasil passou a assiduamente auxiliar financeiramente as organizações de amparo aos refugiados palestinos. A Conferência de Annapolis aconteceu no ano seguinte. Portanto, não demoraria a surgir mais um evento percebido como uma forma de reconhecimento sobre o espaço que a diplomacia do Brasil, com a da Índia e da África do Sul, deveria ocupar no processo de paz.
Vale a pena lembrar que com o governo de Barack Obama, iniciado em 2009, os Estados Unidos, com muitas contradições, deixaram de prestar o apoio incondicional a Israel, histórico na política norte-americana. Todavia, a administração Obama coincidiu com a formação de um governo de direita em Israel, liderado por Benjamín Netanyahu, do partido Likud, e Avigdor Lieberman, ministro de Relações Exteriores, do partido Israel Beitenu. A partir de então não foi possível contar com praticamente nenhuma flexibilização das posições maximalistas do governo israelense, que continuou com a construção do muro que passa pela Cisjordânia e contorna Jerusalém Oriental, ocupada por Israel, isolando os palestinos. Gaza é controlada pelo Hamas desde 2007 e travou continuamente batalhas com as forças militares israelenses. Ou seja, até o término do governo Lula, no final de 2010, a situação na região esteve longe de uma estabilidade, ainda que relativa.
Enfim, é mais do que provável que a intenção do governo Lula, quanto a ter um papel proeminente no processo de paz entre israelenses e palestinos, tenha sido apenas um sinal de grande voluntarismo político. Entretanto, há indicações de que sua política externa para o Oriente Médio teve resultados positivos, notadamente na área comercial, tanto quanto há a justeza da percepção de que o Brasil tem interesses globais, não podendo se afastar de problemas geograficamente distantes, porém humanitariamente próximos, como o demonstraram os milhares de brasileiros atingidos pela violência do conflito israelo-palestino.
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1
Este trabalho foi realizado com o apoio do CNPq.
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2
Em trabalho recente, André L. Reis da Silva e Bruno Pilla (2012, p. 128) afirmam, com razão, que a "relativa escassez de pesquisa acadêmica sobre as relações históricas do Brasil com os países do Oriente Médio não condiz com o posicionamento participativo do país no que se refere à abordagem das principais questões envolvendo essa região".
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3
Para uma visão abrangente sobre a política externa brasileira com relação ao conflito Israel-Palestina na ONU, ver Breda dos Santos (2000); sobre o processo decisório no âmbito da chefia do Itamaraty no Rio de Janeiro e a representação brasileira em Nova York a propósito das posições que o Brasil assumiria durante os debates sobre o Plano de Partilha da Palestina, ver Vigevani e Kleinas (2000).
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4
A resolução antissionista foi revogada em 1991. O texto da Resolução 46/86 é um dos menores na história da ONU: "A Assembléia Geral das Nações Unidas decide revogar a determinação contida na Resolução 3379 (XXX) de 10 de novembro de 1975".
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5
Em agosto de 1990, quando o Iraque invadiu o Kuait, o Brasil acabou se envolvendo indiretamente no conflito, já que o governo iraquiano suspendeu os vistos de saída do país e havia em torno de 500 cidadãos brasileiros no Iraque. O problema só teve solução em outubro de 1990, com a ida ao Iraque do embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, que participara das negociações para a venda de produtos brasileiros ao país na década de 80, quando era Secretário-Geral do Itamaraty, no governo José Sarney. Esse foi o desfecho de um relacionamento comercial que aumentou significativamente nos anos 70, aprofundou-se durante o governo do general João Figueiredo e perdurou mesmo ao longo do governo democrático de José Sarney. (FARES, 2007, p. 139 e 143).
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6
Para compreender melhor o desenvolvimento dessa sub-área de Relações Internacionais no Brasil, ver Pinheiro e Milani (2012).
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7
Marco Aurélio Garcia, Assessor Especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, acompanhou Lula em sua visita a Israel, em março de 2010. Teria sido Garcia quem aconselhou o presidente a não visitar o túmulo de Theordor Herzl, fundador do sionismo, o que teria enfurecido o ministro das Relações Exteriores de Israel, Avigdor Lieberman. (FLEISCHER, 2010). Apesar desse episódio e do fato de Garcia ter participado do núcleo decisório de política externa do governo Lula, pelas razões expostas, não consideramos que Garcia tenha tido um papel importante com relação à mediação do conflito israelo-palestino.
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8
Com a Primeira Guerra do Golfo, o Conselho de Segurança impôs um embargo econômico ao Iraque, que só terminaria com a comprovação de que o país tivesse eliminado suas armas de destruição em massa. Em dezembro de 1998, norte-americanos e britânicos bombardearam o Iraque. Em janeiro de 1999, num contexto de crise no Conselho de Segurança, o Brasil exerceu sua presidência rotativa mensal. Foram então criados os Painéis Amorim, "under the chairmanship of the widely admired Brazilian Permanent Representative, Celso Amorim". (MALONE, 2006, p. 119). Os trabalhos dos Painéis conduziram a uma relativa mas importante diminuição de tensões entre os membros do Conselho de Segurança, o que permitiu construir um mínimo de consenso a propósito de medidas a serem tomadas com relação ao Iraque. (MALONE, 2006; PATRIOTA; PADOVAN; FERNANDES, 2008; AMORIM, 2013b, p. 22).
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9
O Pragmatismo responsável deixaria traços indeléveis nas décadas seguintes. No governo Geisel, o Brasil restabeleceu relações diplomáticas com a República Popular da China, foi o primeiro país a reconhecer o governo socialista de Angola, além de Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
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10
Na NSS 2002, a distinção entre ação preventiva e ação preemptiva é propositalmente ambígua, mas deixa entender que a preempção estaria ligada à ameaça existencial representada pelo binômio radicalismo-tecnologia: o radicalismo dos perpetradores de ataques como o de 11 de setembro tornaria os governos incapazes de exercer qualquer influência sobre o terrorismo; aliado a isso, os terroristas teriam passado a ter acesso a armas de destruição em massa, ou seja, à tecnologia que ameaçaria a própria existência dos Estados. (HAKAN TUNÇ, 2009).
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11
Celso Amorim afirma que a invasão norte-americana ao Iraque foi a primeira questão relativa ao Oriente Médio que o governo Lula, recém-inaugurado, teve que tratar: "[...] o assunto se apresentou a nós; não fomos de maneira alguma buscá-lo [...]. Tivemos uma reação muito forte, muito clara, e até certa tentativa de envolvimento. O presidente Lula manteve contatos com [...] Kofi Annan. [...] Mantive contato também com o então secretário de Estado Colin Powell". (AMORIM, 2011, p. 413).
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12
A teoria dos public goods trata de uma estratégia de liderança em que um país investe na produção de bens coletivos e na organização da ação coletiva que traz benefícios que podem ser individualmente apropriados. (OLSON, 1971).
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13
Em 2007, o Mercosul (Mercado Comum do Sul) firmou com Israel seu primeiro acordo de livre comércio extra-regional. Durante sua visita a Israel, em março de 2010, o presidente Lula informou às autoridades israelenses que o Congresso havia aprovado o acordo, que fará com que por volta de 2017 quase todas as exportações de Israel entrarão no Mercosul com tarifa zero: "As a sign of growing friendship, Israel and Brazil announced at the time of the visit that their cabinets would convene a joint meeting biannually, an arrangement that Israel currently holds with only Italy and Germany". (DATZ; PETERS, 2003, p. 53).
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14
Nos dois mandatos de Lula foram criadas 630 vagas, enquanto no primeiro mandato de Dilma foram criadas 110 vagas. (CORNETET, 2014, p. 122). Deve ser observado, a esse respeito, que o governo de Dilma tem criado vagas num ritmo que se aproxima do padrão histórico do Itamaraty. O governo Lula é que difere consideravelmente de outros governos.
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15
Grupo do Rio, ou Mecanismo Permanente de Consulta e Concertação Política da América Latina e do Caribe, foi criado em 1986, com a assinatura da Declaração do Rio de Janeiro efetuada por Argentina, Brasil, Colômbia, México, Panamá, Peru, Uruguai e Venezuela.
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16
O Chile, país latino-americano com a maior comunidade palestina, estabeleceu a primeira representação latino-americana em Ramalá, em abril de 1998. O segundo país latino-americano a fazê-lo foi o Brasil. (BAEZA, 2012, p. 119 e 121).
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17
Na Audiência Pública, poucos senadores tomaram a palavra para tratar da Guerra do Líbano. Essas poucas intervenções foram todas elogiosas aos esforços do governo para retirar os brasileiros do Líbano. Cf. BRASIL, SENADO FEDERAL, 2006.
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18
Na Conferência Internacional sobre a Situação Humanitária nos Territórios Palestinos Ocupados (Estocolmo, agosto de 2006) e na Conferência Internacional de Doadores para o Estado Palestino (Paris, dezembro de 2007), o governo brasileiro anunciou uma contribuição total de U$ 10,5 milhões. No final de dezembro de 2008, Israel realizou uma grande ofensiva militar contra Gaza na "Operação Chumbo Fundido", também conhecida como "Massacre de Gaza". Em janeiro de 2009, um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) levou à Jordânia 14 toneladas de medicamentos e alimentos que seriam imediatamente transportados à Faixa de Gaza. Pouco depois, na Conferência de Doadores em Apoio à Economia Palestina para a Reconstrução de Gaza (Sharm El Sheikh, março de 2009), Celso Amorim anunciaria uma contribuição de mais U$ 10,5 milhões.
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19
O Estado da Palestina foi proclamado em 1988 pela ANP. Desde então, 94 países o reconheceram. O Brasil não o fez formalmente, mas, como visto anteriormente, já em 1975 autorizou a OLP a designar sua representação em Brasília.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2014
Histórico
-
Recebido
08 Jul 2014 -
Aceito
05 Out 2014