ARTIGO DA CAPA
Plantas úteis nativas do Brasil na obra dos naturalistas
Plantas medicinais são muito usadas pela população rural e urbana brasileira hoje. Entretanto, a maior parte das espécies utilizadas é nativa de outros continentes, introduzidas aqui desde os primeiros tempos da colonização portuguesa. Além disto, a contínua destruição dos ecossistemas nativos, processo em curso ainda nos dias atuais, tem levado a uma intensa erosão genética e cultural sobre as plantas úteis nativas do Brasil. Como consequência, raras são as pessoas que de fato usam as plantas nativas do Brasil, especialmente aquelas de origem Ameríndia, segundo as tradições do passado.
Minas Gerais, por exemplo, já foi um estado muito rico em plantas medicinais. As florestas cobriam 45% do seu território e os cerrados e a caatinga permaneceram inexplorados até o final do século XVII, pois a colonização portuguesa se concentrava no litoral. Muitos povos nativos viviam aqui, até serem deslocados ou mesmo dizimados pelos colonizadores e, posteriomente, pelos próprios brasileiros. O século XVIII foi marcado por intensa atividade mineradora e, com o esgotamento do ouro no século XIX, houve uma intensificação das práticas agropecuárias, especialmente em áreas anteriormente cobertas pela Mata Atlântica. No século XX iniciou-se a industrialização e a urbanização do estado, com a construção das ferrovias e dos projetos siderúrgicos, seguido do reflorestamento com a monocultura do eucalipto. Atualmente, outros projetos, como a expansão da produção de álcool, biodiesel e soja vêm ameaçando o que restou da vegetação nativa.
Muitas informações sobre a utilidade das plantas nativas foram registradas por naturalistas que viveram nos séculos XVIII e XIX. Entre os mais importantes estão os brasileiros Alexandre R. Ferreira, que percorreu a Amazônia e o Pantanal; Frei Mariano Vellozo, que descreveu a flora do Rio de Janeiro e; o português Bernadino A. Gomes. Com a transferência da Família Real para o Brasil em 1808 e a abertura dos portos às nações amigas, dezenas de outros naturalistas estrangeiros chegaram ao país, percorreram extensas regiões e registraram observações minuciosas sobre vários aspectos da vida dos brasileiros, inclusive o aproveitamento que faziam da biodiversidade. A contribuição de todos estes naturalistas para o conhecimento da flora brasileira é incalculável: centenas de novas plantas foram descobertas e descritas. Destaque deve ser dado aos registros do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que redigiu a obra específica Plantas Usuais dos Brasileiros (1824; traduzido e publicado pelo DATAPLAMT em 2009) e Histoire des plantes les plus remarcables du Brésil et Paraguay (em tradução) e Karl F.P. von Martius com seu Sistema de Matéria Médica Vegetal Brazileira (1824). Outros naturalistas que descreveram detalhes minuciosos sobre o uso de plantas foram o austríaco E. Pohl, o alemão G. Langsdorff e o inglês R. Burton.
Desde 2003 a equipe do Banco de Dados e Amostras de Plantas Aromáticas, Medicinais e Tóxicas da Universidade Federal de Minas Gerais (DATAPLAMT) vem estudando, com o contínuo apoio do CNPq e da FAPEMIG, os acervos bibliográficos e botânicos dos naturalistas, depositados em Instituições nacionais e estrangeiras. Até o momento foram recuperados dados e imagens, antigas e atuais, sobre mais de 300 espécies úteis nativas de Minas Gerais, a partir dos registros deixados por 18 naturalistas que percorreram o estado. A ocorrência das espécies é verificada a partir de levantamento em herbários e localização posterior. Os empregos do alcaçuz (Periandra mediterranea (Vell.) Mart.), azedinha (Oxalis cordata A. de St.Hil) e chá de pedestre (Lippia pseudo-thea A. St-Hil.) em culinária; índigo (Indigofera suffruticosa Mill.) em tinturaria; carqueja (Baccharis trimera (Less.) DC) em veterinária e; malva-do-campo (Pavonia diuretica A. St-Hil.), gentiana (Irlbachia spp.), salsaparrilha (Herreria salsaparrilha Mart.) e verbasco (Buddleja srachyoides Cham & Schltdl.) no tratamento de diferentes doenças, por exemplo, foram recuperados. Informações sobre estas e outras espécies encontram-se disponibilizadas no endereço www.dataplamt.org.br, construído especificamente para este fim.
No momento, o grupo está empenhado em recuperar informações sobre plantas úteis descritas nas demais regiões do país. Esperamos que este trabalho contribua efetivamente para se manter vivo o conhecimento tradicional sobre as plantas, estimule sua conservação e melhor aproveitamento como assinalou Saint-Hilaire: Seja como for, sente-se que a matéria médica dos brasileiros, baseada unicamente no empirismo, deve ser muito imperfeita. Todavia entre tantas plantas às quais se atribuem falsamente propriedades maravilhosas, algumas existem que realmente fornecem remédios eficacíssimos. Se existisse no Brasil maior número de homens instruídos, o governo desse país faria obra de grande utilidade, nomeando em cada província uma comissão que se encarregasse de submeter a exame minucioso todas as plantas de que se utilizam os colonos para aliviar seus males. Por esse meio, poder-se-ia chegar a constituir, para os vegetais, uma matéria médica brasileira, que elucidaria os colonos a respeito de remédios ineficazes ou perigosos e, ao mesmo tempo, daria a conhecer aos nacionais e estrangeiros grande número de plantas benéficas. Trabalho de tal envergadura não se poderá fazer, sem dúvida, senão daqui a longos anos. Possa ao esperar a que vier, a obra que publiquei sobre as Plantas Usuais do Brasil tomar o lugar, tanto quanto possível, de uma matéria médica mais aprofundada e provar aos brasileiros o desejo que tenho de lhes demonstrar meu profundo reconhecimento mediante um trabalho que lhes seja útil!, em Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (1824).
Maria das Graças Lins Brandão (Faculdade de Farmácia e Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG, Av. Gustavo da Silveira 1035, 30180-010 Belo Horizonte-MG; mbrandao@ufmg.br )
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Out 2010 -
Data do Fascículo
Jun 2010