Tanta coisa mudou desde que escrevi o último editorial. Em 2020, a pandemia da Covid-19 assolou o planeta e transformou nossas vidas. Neste volume, tal assunto é discutido em três pontos de vista, duas notas de pesquisa e um artigo.
Na seção ponto de vista, José Eustáquio Diniz Alves debate a sobrevivência do bônus demográfico brasileiro diante da epidemia da Covid-19. Segundo o autor, dado que a População em Idade Ativa crescerá até 2037, a janela de oportunidade demográfica pode ser aproveitada até então, desde que a população ocupada aumente em relação à população total. No entanto, “a pandemia da Covid-19 poderá ser a pá de cal no sonho de se aproveitar o restante do bônus demográfico”.
O efeito da pandemia da Covid-19 sobre a fecundidade e a saúde reprodutiva das mulheres brasileiras é o tema do ponto de vista de Raquel Zanatta Coutinho, Luciana da Conceição Lima, Victor Antunes Leocádio e Tereza Bernardes. As autoras e o autor discutem como o “novo normal”, que mudou a rotina familiar e, em muitas situações, elevou o tempo de permanência em casa, pode afetar as preferências reprodutivas dos casais. Como agenda de pesquisa futura, estão na lista não apenas as questões mais afeitas à fecundidade e à saúde sexual e reprodutiva, tais como contracepção e direitos, mas também os retrocessos no que tange à saúde pública e às interseções entre as dimensões de gênero, raça e classe.
A mortalidade é a componente demográfica mais contemplada pelos textos que relacionam demografia e Covid-19 neste volume. Gabriel Mendes Borges e Marília R. Nepomuceno tratam da importância da demografia para os estudos de mortalidade em tempos de pandemia. O ponto de vista ressalta a relevância da disponibilidade e da qualidade dos dados, o cuidado necessário para interpretar números absolutos e taxas brutas, bem como para calcular padrões e diferenciais, além de indicar diferenças entre estudos epidemiológicos e demográficos sobre a mortalidade em geral e a mortalidade por Covid-19 em particular.
Os dados de óbitos do Registro Civil nos quatro primeiros meses da pandemia foram analisados na nota de pesquisa de Claudia Cristina de Aguiar Pereira, Amanda Batista Marcelino e Carla Jorge Machado. As autoras comparam os meses de ocorrência com os meses de registro dos óbitos, em capitais, regiões metropolitanas e interior, apontando razões pelas quais as séries de óbitos por mês de ocorrência e de registro variam.
A pandemia não pode ser enfrentada apenas do ponto de vista dos mecanismos fisiopatológicos da Covid-19, mas precisa incluir também os aspectos sociais do processo saúde-doença, considerando as especificidades regionais e desigualdades sociais. É esse o ponto de partida da nota de pesquisa de Raphael Mendonça Guimarães, Tatiana de Araújo Eleuterio e José Henrique Costa Monteiro-da-Silva, que analisam o potencial de disseminação e o potencial de gravidade da doença. O risco de disseminação nas grandes cidades está ligado, entre outros fatores, ao transporte coletivo.
A questão do transporte coletivo também está presente no artigo de Guilherme de Castro Leiva, Douglas Sather dos Reis e Romulo Dante Orrico Filho, que investigam a associação da estrutura e mobilidade urbanas com a contaminação por Covid-19. Em cidades compactas, com maior densidade populacional e uso mais intensivo de transporte coletivo, a velocidade da contaminação pelo novo coronavírus é maior, enquanto naquelas espraiadas, com menor densidade populacional e maior utilização do transporte individual, o ritmo de disseminação é, a princípio, menor.
Além da Covid-19, o volume 37 da Rebep traz uma diversidade de temas. No que tange à fecundidade, dois artigos abordam esta componente em unidades geográficas muito distintas, mas fazendo uso de entrevistas. Enquanto Ignácio Pardo, Wanda Cabella e Mathias Nathan, utilizando uma abordagem que integra dados quantitativos e qualitativos, investigam mulheres que chegam ao final do período reprodutivo sem filhos no Uruguai, Andréa Branco Simão, Raquel Zanatta Coutinho e Gilvan Ramalho Guedes analisam o desejo por filhos entre mulheres de alta escolaridade em Governador Valadares, MG, a partir de dados coletados em entrevistas semiestruturadas. Foram observadas mulheres uruguaias que chegam ao final do período reprodutivo sem filhos devido a uma opção deliberada e outras cuja ausência de filhos é consequência não intencional do adiamento da maternidade. No caso de Governador Valadares, há dúvidas sobre a possibilidade de conciliar o desejo de ser mãe e a carreira profissional.
A participação das mães no mercado de trabalho é reduzida entre aquelas que têm filhos(as) com deficiência intelectual, redução essa que é maior se a limitação do(a) filho(a) é intensa. Além disso, as mulheres cujos(as) filhos(as) têm deficiência intelectual trabalham menos horas, conforme o estudo de Ricardo Brito Soares, Luciana Nunes Coutinho, Wescley de Freitas Barbosa e Leandro Rocco. Em outro artigo sobre o mercado de trabalho brasileiro, Diego Camargo Botassio e Daniela Verzola Vaz mostram que a segregação ocupacional por sexo não apenas permaneceu em patamar elevado, como também aumentou entre 2004 e 2015, apesar do hiato educacional favorável às mulheres.
O deslocamento até o trabalho é o foco do estudo de Luiz Carlos Day Gama e André Braz Golgher. Aqueles que gastam mais tempo comutando tendem a ser do sexo masculino, viver em grandes centros urbanos e ter baixo nível socioeconômico, enquanto os indivíduos de melhor nível socioeconômico tendem a viver mais perto do centro. Já Hisrael
Passareli-Araújo e Joseane de Souza analisam a integração regional do vetor leste fluminense a partir dos movimentos pendulares. Os resultados apontam que Macaé aparece em posição de destaque como município integrador do mercado de trabalho da região. No que diz respeito à expansão e estruturação de grandes metrópoles, José Marcos Pinto da Cunha, Luiz Antonio Chaves de Farias e Alberto Augusto Eichman Jakob estudam o crescimento e a expansão territorial do município paulista de Praia Grande. Os autores concluem que o município é área de expansão da Região Metropolitana da Baixada Santista e, ao mesmo tempo, recebe fluxo migratório da cidade de São Paulo, podendo ser considerado uma “periferia com dois centros”.
Três artigos abordam temas ligados a mudanças na estrutura etária e efeitos econômicos. A estrutura etária tem impacto sobre o desenvolvimento econômico das regiões brasileiras, conforme os achados de Marianne Zwilling Stampe, Fernando Pozzobon e Thais Waideman Niquito. Segundo as autoras e o autor, as razões de dependência na infância e dos idosos afetam negativamente o crescimento econômico, com destaque para a razão de dependência dos idosos. Como alternativa à razão de dependência, Bruno Guimarães de Melo e Eduardo Rios-Neto calculam a razão de suporte econômico e, por meio de simulações, concluem que o aumento do nível educacional será mais importante do que as mudanças na estrutura etária para os ganhos econômicos na última etapa do dividendo demográfico. Já Adelar Fochezatto, Guilherme Correa Petry, Jacó Braatz, Paolo Mazzontini Martinez e Mariana Ceia Ramos Mariano da Rocha mostram que o envelhecimento populacional gera um perfil de consumo que, por aumentar a demanda de setores que são alvo de programas de isenção e redução de alíquotas, reduzirá a carga de ICMS na economia do Rio Grande do Sul.
Ainda no que tange ao consumo, Ana Beatriz Pereira Sette e Alexandre Bragança Coelho analisam o padrão de consumo em diferentes arranjos domiciliares, a partir dos dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) 2008-2009, mostrando que as decisões de consumo das famílias são afetadas pelo seu tamanho e sua composição. Famílias com crianças elevam seus gastos com educação e habitação, ao passo que as despesas com saúde aumentam em famílias com idosos.
Os idosos são o foco do artigo de revisão de Guilherme Fonseca Travassos, Alexandre Bragança Coelho e Mary Arends-Kuenning. A população idosa é vista na perspectiva da transição demográfica, do seu perfil socioeconômico e das políticas voltadas para ela. Segundo os autores e a autora, a maioria dos idosos é composta por mulheres brancas, que vivem em domicílios do tipo casal sem filhos, com uma média de 6,1 anos de estudo e dependentes de algum tipo de transferência de renda governamental. Os idosos também protagonizam a nota técnica de Raphael Mendonça Guimarães e Flavia Cristina Drumond Andrade, que investigam a expectativa de vida com e sem multimorbidades desse grupo. Os resultados indicam que não somente a expectativa de vida é mais elevada entre as mulheres, como também a expectativa de vida não saudável, com importantes diferenças entre as unidades da federação.
As mudanças climáticas e as projeções populacionais entram em cena no artigo de Weslem Rodrigues Faria, Fernando Salgueiro Perobelli e Daniele Lima de Oliveira Souza. Segundo os autores e a autora, no que tange à produção agrícola e à indústria de alimentos, “Em termos conjuntos, os efeitos negativos das mudanças climáticas tenderiam a superar os efeitos positivos dos cenários populacionais e de forma mais intensiva naqueles que projetam menor crescimento populacional”.
Dois artigos tratam de questões raciais ou étnicas. Josimar Gonçalves de Jesus e Rodolfo Hoffmann investigam mudanças na identificação racial e concluem que o aumento na porcentagem de negros no Brasil, entre 2005 e 2015, deve-se quase totalmente à mudança na identificação racial. Já Sergio Odilon Nadalin faz considerações teóricas e metodológicas acerca da imigração, fronteiras étnicas e relações indivíduo-sociedade entre aqueles, a princípio, agrupados social e culturalmente ao redor do que hoje é o município de Curitiba, PR. Entre outros aspectos, o artigo sintetiza, nas palavras do autor, “a dinâmica da etnicidade”.
A nota técnica de Richard Gisser mostra a evolução dos censos de população na Áustria dos séculos XVIII ao XXI. Ao longo do tempo e após várias mudanças tecnológicas, o censo austríaco passou do modelo tradicional para o que tem por base os registros administrativos.
No final dos anos 1980, quando estava na plateia de um seminário internacional no Cedeplar, ouvi da demógrafa Mary Castro a melhor definição de Demografia. Segundo ela, os demógrafos, que antes se ocupavam somente do nascer, do mover e do morrer, passaram a se preocupar também com o viver. Nesse contexto, dois artigos estão diretamente ligados ao viver. André Golgher e Raquel Zanatta Coutinho analisam a satisfação com a vida no Brasil entre 1991 e 2014. Os resultados indicam que as pessoas casadas, saudáveis, mais religiosas, com emprego, melhores condições financeiras e maior controle sobre a própria vida se consideravam mais satisfeitas com a vida, com efeitos relacionados com idade, período e coorte. Já Melissa Luciana de Araújo, Diana Rodrigues Nascimento, Mariana Souza Lopes, Camila Mendes dos Passos e Aline Cristine Souza Lopes investigam as condições de vida das famílias brasileiras em termos de insegurança alimentar. Segundo as autoras, a insegurança alimentar está associada a problemas no domicílio e no entorno, tais como condições de moradia, acesso à educação e saúde.
Completam o volume 37 da Rebep três resenhas – Oswaldo Truzzi revisa o livro Os colonos do café, de Maria Sílvia Bassanezi; Gustavo Dias é o autor da resenha de Abdelmalek Sayad: una lectura crítica. Migraciones, saberes y luchas; e é de Marcos Roberto do Nascimento a resenha de A Europa de Gutenberg: o livro e a invenção da modernidade ocidental.
Não foi apenas o mundo que mudou em 2020. Lamentavelmente, a Demografia brasileira também não é mais a mesma. Escrevo esse editorial sob o forte impacto da morte de José Alberto Magno de Carvalho (15 de novembro de 1940 – 27 de outubro de 2020), fundador do Cedeplar e da Abep e meu primeiro professor de Demografia. Grande entusiasta da Rebep, ele não apenas me encorajou a encarar o desafio da editoria da Revista, quando fui indicada para este honroso cargo, como também aceitou, com alegria e disponibilidade, todos os convites que fiz para que ele fosse avaliador. À moda antiga, entregava a ele o artigo impresso e recebia de volta as suas anotações manuscritas. Exatamente por ser à moda antiga, ele lamentou quando a Rebep deixou de ser impressa, em 2019. Enquanto autor, esteve nas páginas da Revista desde o primeiro número do volume 2, de 1985 – com um artigo sobre estimativas indiretas e dados sobre migrações (CARVALHO, 1985CARVALHO, J. A. M. de. Estimativas indiretas e dados sobre migrações: uma avaliação conceitual e metodológica das informações censitárias recentes. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 2, n. 1, p. 31-73, 1985. Disponível em: https://rebep.org.br/revista/article/view/626.), bem como uma resenha sobre o Relatório do Banco Mundial de 1984, esta última em coautoria com Paulo Paiva (PAIVA; CARVALHO, 1985PAIVA, P.; CARVALHO, J. A. M. de. World development report, 1984. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 2, n. 1, p. 163-179, 1985. Disponível em: https://rebep.org.br/revista/article/view/630.) – até o volume 36, de 2019 – com um artigo sobre a transição da fecundidade ao longo do século XX, oriundo da tese de Guilherme Quaresma Gonçalves, primeiro autor e seu último orientando de doutorado, em coautoria com Laura Wong e Cássio Turra, co-orientadores da tese (GONÇALVES; CARVALHO; WONG; TURRA, 2019GONÇALVES, G. Q.; CARVALHO, J. A. M. de; RODRÍGUEZ WONG, L. L. R.; TURRA, C. M. A transição da fecundidade no Brasil ao longo do século XX – uma perspectiva regional. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 36, p. 1-34, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.20947/s0102-3098a0098.). Coerente com sua trajetória enquanto demógrafo, foi defensor ferrenho da Rebep enquanto o único periódico de Demografia do país, acreditando que a Revista deveria dialogar com as áreas afins sem perder a essência do debate demográfico. Por também entender que assim deve ser a Revista, foi exatamente essa a diretriz que segui no biênio 2019-2020, enquanto editora. O volume 37 da Rebep é dedicado a você, Zé.
Encerro esse editorial agradecendo às(aos) autoras(es) dos 166 textos submetidos à Rebep em 2020,1 1 Até 6 de novembro. às(aos) avaliadoras(es), ao Comitê Editorial e a quem está nos bastidores e faz a Revista acontecer – Ana Paula Pyló, a melhor assistente editorial do planeta, bem como as demais mulheres desta equipe maravilhosa: Vania Fontanesi, Susan Arick, Patrícia Antuna, Nairi Paraskevaídis, Fabiana Grassano, Flávia Fábio e Ana Cláudia Ribeiro. Me despeço do cargo de editora com a certeza de que, diante das circunstâncias adversas impostas por 2020, a Revista continuou trazendo elementos fundamentais para o debate em Demografia. Para o futuro, desejo que as demógrafas e os demógrafos que discutem questões demográficas brasileiras continuem interessadas(os) em publicar seus achados de pesquisa e suas reflexões na Rebep.
Notes
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1
Até 6 de novembro.
References
- CARVALHO, J. A. M. de. Estimativas indiretas e dados sobre migrações: uma avaliação conceitual e metodológica das informações censitárias recentes. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 2, n. 1, p. 31-73, 1985. Disponível em: https://rebep.org.br/revista/article/view/626.
- GONÇALVES, G. Q.; CARVALHO, J. A. M. de; RODRÍGUEZ WONG, L. L. R.; TURRA, C. M. A transição da fecundidade no Brasil ao longo do século XX – uma perspectiva regional. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 36, p. 1-34, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.20947/s0102-3098a0098.
- PAIVA, P.; CARVALHO, J. A. M. de. World development report, 1984. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 2, n. 1, p. 163-179, 1985. Disponível em: https://rebep.org.br/revista/article/view/630.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Nov 2020 -
Data do Fascículo
2020