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Ainda precisamos falar sobre morbidade materna e near miss?

Em 2006, CSP publicou uma revisão sistemática sobre morbidade materna near miss11. Souza JP, Cecatti JG, Parpinelli MA, Sousa MH, Serruya SJ. Revisão sistemática sobre morbidade materna near miss. Cad Saúde Pública 2006; 22:255-64.. Esse tipo de evento já vinha sendo discutido na literatura internacional, mas, no Brasil, a produção científica ainda era incipiente. Agora, em 2023, CSP revisita o tema em um artigo 22. Ferreira MES, Coutinho RZ, Queiroz BL. Morbimortalidade materna no Brasil e a urgência de um sistema nacional de vigilância do near miss materno. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00013923. e em uma troca de cartas às editoras 33. Domingues RMSM, Dias MAB, Saraceni V, Pinheiro RS, Paiva NS, Coeli CM. Vigilância da morbidade materna no Brasil: contribuições para o debate. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00151123.,44. Ferreira MES, Coutinho RZ, Queiroz BL. Resposta à Carta às Editoras de Domingues et al. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00165123..

Não há dúvidas sobre a relevância de estudar todo o continuum de eventos do ciclo gravídico-puerperal e seus diferentes níveis de gravidade - desde gestações não complicadas até o óbito materno 55. Say L, Souza JP, Pattinson R; WHO Working Group on Maternal Mortality and Morbidity Classifications. Maternal near miss: towards a standard tool for monitoring the quality of maternal health care. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol 2009; 23:287-96.. Em 2011, a Organização Mundial da Saúde (OMS) solidificou conceitos de morbidade materna e propôs abordagens específicas 66. World Health Organization. Evaluating the quality of care for severe pregnancy complications: the who near-miss approach for maternal health. Geneva: World Health Organization; 2011.. Outras revisões sistemáticas sobre o tema - nacionais e internacionais - foram publicadas e o conhecimento foi expandido 77. Silva JMP, Fonseca SC, Dias MAB, Izzo AS, Teixeira GP, Belfort PP. Conceitos, prevalência e características da morbidade materna grave, near miss, no Brasil: revisão sistemática. Rev Bras Saúde Mater Infant 2018; 18:7-35.,88. Hernández-Vásquez A, Bendezu-Quispe G, Comandé D, Gonzales-Carillo O. Worldwide original research production on maternal near-miss: a 10-year bibliometric study. Rev Bras Ginecol Obstet 2020; 42:614-20.,99. England N, Madill J, Metcalfe A, Magee L, Cooper S, Salmon C, et al. Monitoring maternal near miss/severe maternal morbidity: a systematic review of global practices. PLoS One 2020; 15:e0233697.. Revistas da área de obstetrícia e de saúde pública têm sido as grandes fontes da produção científica sobre o tema.

No entanto, além dos avanços na pesquisa, como estão os serviços de saúde em relação ao monitoramento da morbidade materna grave e do near miss materno?

O artigo de Ferreira et al. 22. Ferreira MES, Coutinho RZ, Queiroz BL. Morbimortalidade materna no Brasil e a urgência de um sistema nacional de vigilância do near miss materno. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00013923. apresentou uma proposta concreta de tornar obrigatória a vigilância do near miss materno no Brasil. Esses autores sugerem um modelo baseado no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) ou o uso dos dados do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS). Duas cartas às editoras em resposta ao artigo argumentaram fortalezas e fragilidades da proposta e promoveram novas contribuições para o monitoramento, ampliando-o para morbidade materna grave 33. Domingues RMSM, Dias MAB, Saraceni V, Pinheiro RS, Paiva NS, Coeli CM. Vigilância da morbidade materna no Brasil: contribuições para o debate. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00151123.,44. Ferreira MES, Coutinho RZ, Queiroz BL. Resposta à Carta às Editoras de Domingues et al. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00165123.. A adoção de um sistema semelhante ao latino-americano Sistema de Informação Perinatal (SIP; http://www.sipplus.org/), vinculado ao Centro Latino-Americano de Perinatologia, Saúde da Mulher e Reprodutiva (CLAP/SMR; https://www.paho.org/es/clap), talvez seja a proposta mais adequada à realidade brasileira, levando em conta a expertise nacional em sistemas de informação 1010. Coelho Neto GC, Chioro A. Afinal, quantos Sistemas de Informação em Saúde de base nacional existem no Brasil? Cad Saúde Pública 2021; 37:e00182119., as especificidades dos eventos obstétricos e as possibilidades de análise conjunta dos dados dos países da região 1111. Sosa C, de Mucio B, Colomar M, Mainero L, Costa ML, Guida JP, et al. The impact of maternal morbidity on cesarean section rates: exploring a Latin American network of sentinel facilities using the Robson's Ten Group Classification System. BMC Pregnancy Childbirth 2023; 23:605.,1212. Serruya SJ, de Mucio B, Martinez G, Mainero L, de Francisco A, Say L, et al. Exploring the concept of degrees of maternal morbidity as a tool for surveillance of maternal health in Latin American and Caribbean settings. Biomed Res Int 2017; 2017:8271042.,1313. Aleman A, Colomar M, Colistro V, Tomaso G, Sosa C, Serruya S, et al. Predicting severe maternal outcomes in a network of sentinel sites in Latin-American countries. Int J Gynaecol Obstet 2023; 160:939-46.. Algumas instituições brasileiras já estabeleceram parcerias em vigilância e pesquisas utilizando o SIP 1414. Serruya SJ, Gómez Ponce de León R, Bahamondes MV, De Mucio B, Costa ML, Durán P, et al. EviSIP: using evidence to change practice through mentorship - an innovative experience for reproductive health in the Latin American and Caribbean regions. Glob Health Action 2020; 13:1811482.,1515. Gomez Ponce de Leon R, Baccaro LF, Rubio Schweizer G, Bahamondes V, Messina A, de Francisco LA, et al. Building a network of sentinel centres for the care of women in an abortion situation: advances in Latin America and the Caribbean. BMJ Glob Health 2022; 7:e010059.. O sistema poderia ser implementado inicialmente no formato de vigilância sentinela, em outras maternidades do país, até ser incorporado de forma universal.

No entanto, outras perguntas se tornam necessárias nesse debate. A primeira diz respeito à atribuição das tarefas de monitoramento. A vigilância do óbito materno, obrigatória no país e regulamentada desde 2008, previa comitês hospitalares, em nível municipal, estadual e federal 1616. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Manual dos comitês de mortalidade materna. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2009.. Serão esses comitês os responsáveis pela vigilância da morbidade materna grave e near miss materno? Na atualidade, há poucos estudos sobre o trabalho dos comitês, mas, indubitavelmente, houve contribuições importantes para o aprimoramento das informações 1717. Carvalho PI, Vidal AS, Figueirôa BQ, Vanderlei LCM, Oliveira CM, Pereira CCB, et al. Comitê de mortalidade materna e a vigilância do óbito em Recife no aprimoramento das informações: avaliação ex-ante e ex-post. Rev Bras Saúde Mater Infant 2023; 23:e20220254. onde estão adequadamente implantados. Mas temos comitês suficientes? E os comitês terão como abarcar mais essa tarefa?

A segunda pergunta é decorrente da primeira. Dentro da composição dos comitês e/ou das unidades de saúde, que profissionais preencherão os formulários e/ou fichas de investigação necessários a qualquer sistema de monitoramento? Nossos profissionais de saúde conhecem bem o tema? Morbidade materna grave e near miss materno são tópicos abordados nos cursos de Medicina, Enfermagem e residências de Obstetrícia?

Em geral, o ensino da mortalidade materna, dos sistemas de informação e da vigilância epidemiológica está contido em disciplinas da área de Saúde Coletiva. E não parece suficiente, pois são muitos os problemas de subnotificação e preenchimento inadequado, mesmo do evento mais grave, que é o óbito materno 1818. Ribeiro CM, Costa AJ, Cascão AM, Cavalcanti ML, Kale PL. Strategy for the selection and investigation of deaths of women of reproductive age. Rev Bras Epidemiol 2012; 15:725-36.,1919. Estima NM, Alves SV. Maternal deaths and deaths of women of childbearing age in the indigenous population, Pernambuco, Brazil, 2006-2012. Epidemiol Serv Saúde 2019; 28:e2018003.,2020. Feitosa-Assis AI, Santana VS. Occupation and maternal mortality in Brazil. Rev Saúde Pública 2020; 54:64..

Fortalecer quantitativa e qualitativamente os comitês parece uma resposta, seja qual for a escolha para o monitoramento da morbidade materna grave e do near miss materno. Incluir a temática nos currículos da área da saúde e capacitar os profissionais no preenchimento de fichas de investigação e declaração de óbito pode ser outra vertente na qualificação do enfrentamento da morbidade materna grave e do near miss materno.

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  • 1
    Souza JP, Cecatti JG, Parpinelli MA, Sousa MH, Serruya SJ. Revisão sistemática sobre morbidade materna near miss. Cad Saúde Pública 2006; 22:255-64.
  • 2
    Ferreira MES, Coutinho RZ, Queiroz BL. Morbimortalidade materna no Brasil e a urgência de um sistema nacional de vigilância do near miss materno. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00013923.
  • 3
    Domingues RMSM, Dias MAB, Saraceni V, Pinheiro RS, Paiva NS, Coeli CM. Vigilância da morbidade materna no Brasil: contribuições para o debate. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00151123.
  • 4
    Ferreira MES, Coutinho RZ, Queiroz BL. Resposta à Carta às Editoras de Domingues et al. Cad Saúde Pública 2023; 39:e00165123.
  • 5
    Say L, Souza JP, Pattinson R; WHO Working Group on Maternal Mortality and Morbidity Classifications. Maternal near miss: towards a standard tool for monitoring the quality of maternal health care. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol 2009; 23:287-96.
  • 6
    World Health Organization. Evaluating the quality of care for severe pregnancy complications: the who near-miss approach for maternal health. Geneva: World Health Organization; 2011.
  • 7
    Silva JMP, Fonseca SC, Dias MAB, Izzo AS, Teixeira GP, Belfort PP. Conceitos, prevalência e características da morbidade materna grave, near miss, no Brasil: revisão sistemática. Rev Bras Saúde Mater Infant 2018; 18:7-35.
  • 8
    Hernández-Vásquez A, Bendezu-Quispe G, Comandé D, Gonzales-Carillo O. Worldwide original research production on maternal near-miss: a 10-year bibliometric study. Rev Bras Ginecol Obstet 2020; 42:614-20.
  • 9
    England N, Madill J, Metcalfe A, Magee L, Cooper S, Salmon C, et al. Monitoring maternal near miss/severe maternal morbidity: a systematic review of global practices. PLoS One 2020; 15:e0233697.
  • 10
    Coelho Neto GC, Chioro A. Afinal, quantos Sistemas de Informação em Saúde de base nacional existem no Brasil? Cad Saúde Pública 2021; 37:e00182119.
  • 11
    Sosa C, de Mucio B, Colomar M, Mainero L, Costa ML, Guida JP, et al. The impact of maternal morbidity on cesarean section rates: exploring a Latin American network of sentinel facilities using the Robson's Ten Group Classification System. BMC Pregnancy Childbirth 2023; 23:605.
  • 12
    Serruya SJ, de Mucio B, Martinez G, Mainero L, de Francisco A, Say L, et al. Exploring the concept of degrees of maternal morbidity as a tool for surveillance of maternal health in Latin American and Caribbean settings. Biomed Res Int 2017; 2017:8271042.
  • 13
    Aleman A, Colomar M, Colistro V, Tomaso G, Sosa C, Serruya S, et al. Predicting severe maternal outcomes in a network of sentinel sites in Latin-American countries. Int J Gynaecol Obstet 2023; 160:939-46.
  • 14
    Serruya SJ, Gómez Ponce de León R, Bahamondes MV, De Mucio B, Costa ML, Durán P, et al. EviSIP: using evidence to change practice through mentorship - an innovative experience for reproductive health in the Latin American and Caribbean regions. Glob Health Action 2020; 13:1811482.
  • 15
    Gomez Ponce de Leon R, Baccaro LF, Rubio Schweizer G, Bahamondes V, Messina A, de Francisco LA, et al. Building a network of sentinel centres for the care of women in an abortion situation: advances in Latin America and the Caribbean. BMJ Glob Health 2022; 7:e010059.
  • 16
    Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Manual dos comitês de mortalidade materna. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2009.
  • 17
    Carvalho PI, Vidal AS, Figueirôa BQ, Vanderlei LCM, Oliveira CM, Pereira CCB, et al. Comitê de mortalidade materna e a vigilância do óbito em Recife no aprimoramento das informações: avaliação ex-ante e ex-post. Rev Bras Saúde Mater Infant 2023; 23:e20220254.
  • 18
    Ribeiro CM, Costa AJ, Cascão AM, Cavalcanti ML, Kale PL. Strategy for the selection and investigation of deaths of women of reproductive age. Rev Bras Epidemiol 2012; 15:725-36.
  • 19
    Estima NM, Alves SV. Maternal deaths and deaths of women of childbearing age in the indigenous population, Pernambuco, Brazil, 2006-2012. Epidemiol Serv Saúde 2019; 28:e2018003.
  • 20
    Feitosa-Assis AI, Santana VS. Occupation and maternal mortality in Brazil. Rev Saúde Pública 2020; 54:64.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2023
  • Aceito
    05 Out 2023
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