O livro Survivorship: A Sociology of Cancer in Everyday Life de Alex Broom & Katherine Kenny 11. Broom A, Kenny K . Survivorship: a sociology of cancer in everyday life. Nova York: Routledge; 2021. (Series: Routledge Studies in the Sociology of Health and Illness)., publicado em 2021, enfatiza novos olhares para compreender os processos pelos quais passam as pessoas sobrevivendo ao câncer e os significados de ver, tratar e cuidar de pessoas na “guerra contra o câncer”. Seus sete capítulos resultam de pesquisas qualitativas realizadas durante o período de 2000 a 2020, na Austrália, com pessoas sobreviventes ao câncer, seus familiares, cuidadores e profissionais de saúde.
Na introdução, o leitor é apresentado à história centrada na doença e na indústria do tratamento da sobrevivência ao câncer nas últimas décadas. Entretanto, os capítulos subsequentes apontam que a sobrevivência ao câncer “governa corpos, identidades e relações sociais” (p. 8) e, de forma assimétrica, espelha as injustiças sociais, a invisibilidade das dimensões subjetivas, os fluxos temporais das relações, os entrecruzamentos institucionais e apelos discursivos.
O capítulo 1, Bodily Becomings, apresenta o câncer para além de um corpo adoecido e ajuda a repensar uma série de relacionamentos e interconexões dos sentimentos entre ser, estar e viver aqui, agora e para o futuro. Broom & Kenny afirmam que se voltar a esse corpus é entender que há um ator produtivo em cena e que deve estar visível nos sistemas das relações afetivas com familiares, cuidadores, profissionais e estruturas institucionais de tratamento e cuidado.
O capítulo 2, Waiting, Hauntings and Surviving, foi escrito a partir dos diários que as pessoas com câncer foram convidadas a produzir e discute a “espera no câncer”. “O que se espera, por quem esperar, com que fim se espera” (p. 49-50), “...quando a espera termina?” (p. 59). As relações e as expectativas produzem a espera como prática social, que altera a linearidade do tempo e cria “assombrações” que colocam a doença em primeiro plano - o poder disciplinar e normativo - e a pessoa adoecida como plano de fundo - vivendo sob um prognóstico e tolerando os efeitos das intervenções tensionadas pela vigilância, atribuídas sob moralidades normativas e pesadas responsabilidades.
O capítulo 3, Malignant Attitudes, aborda a “atitude” das pessoas no contexto da vida com o câncer como uma entidade complexa, “implantada culturalmente” (p. 65), em conformidade com o domínio moral e ético. Os entrevistados apontam criticamente que a “atitude tem vida própria no contexto do câncer” (p. 66) e manter a “boa atitude” remete a moralidades e ideias dominantes relacionadas ao “bom paciente” (p. 77), à “cidadania produtiva” (p. 66) e à excelência do comportamento desejável, com a firmeza e coerência do agir e reagir.
O capítulo 4, Entangled and Estrange, discute a sociabilidade do entrelaçamento e da inclusão nas relações afetivas daqueles que vivem com o câncer e sua rede de apoio. Os entrevistados destacaram, na sua vida cotidiana em survivorship (sobrevivência), as relações de des/continuidade, o evento de “estar aqui” e “ir embora”, a presença do “eu” e do “outro” e a ruminação de “rever o passado, viver o momento e garantir o futuro” (p. 96). Destacaram, ainda, a experiência de “exilados do passado, suspensos do presente e excluídos do futuro” (p. 96) estabelecendo emaranhados de corpos, de “eus”, de coisas, do tempo e das relações no espectro de uma “fenomenologia do viver com o câncer” (p. 94).
O capítulo 5, Collective Emotions, Affective Relations, mostra que o câncer não é um projeto individual e sim coletivo, ou “multiperspectivo das relações entre corpos, sujeitos, discursos e práticas” com “crenças, desejos e normas” (p. 100). É uma “economia afetiva e moral” de controle, moderação ou dominação. Por um lado, há uma dinâmica de obrigação das pessoas se manterem perseverantes e otimistas mesmo estando em estágio de “medo, pavor, desesperança e melancolia” (p. 107) diante do câncer. Por outro lado, pergunta-se: ser obediente resulta numa vida boa ou numa vida apenas mais longa?
O capítulo 6, Enchantment, Acceleration and Innovation, debate a relação entre a medicina de precisão na sobrevida de pessoas com alguns tipos de câncer e os aspectos econômicos, culturais, e profissionais no processo de survivorship. Muitas questões ficam sinalizadas e não respondidas, entre elas: o projeto de precisão valoriza o tempo de vida ou a extensão da vida sobre a finitude? Ou ainda: a cura em oncologia é um desejo humano ou uma imposição da indústria de inovação da saúde?
O capítulo 7, Participation and the Making of Possibility, complementa o capítulo anterior acerca da “ascensão da medicina de precisão em oncologia, a aceleração dos ensaios clínicos oferecidos” (p. 137) e a mercantilização ideológica e econômica. A obstinação terapêutica para manter a vida e a sobrevivência ao câncer curvam-se ao mercado e trazem novas questões sobre “valor, custo, investimentos e interesses, com distanciamento da assistência social e bem-estar” (p. 137).
O livro apoia-se em referenciais teóricos e ontológicos do câncer (fenomenologia da espera; indústria das atitudes morais; sociologia das emoções; entrelaçamentos da temporalidade; conectividades e estranhamentos; tecnologia das inovações e precisão; e ensaios clínicos) que ampliam as reflexões acerca da “socio-lógica” do câncer e das relações de poder no processo de survivorship. Ao longo de 160 páginas, Alex Broom & Katherine Kenny descrevem o câncer como um fenômeno social coletivo permeado por diferentes formas de relacionalidade e normatividade. Valorizam as experiências narrativas dos participantes, produzidas com diferentes métodos de produção de informação (diários e fotografias produzidos pelos participantes, entrevistas abertas com diferentes atores e observações em serviços de saúde) e mapeiam uma “sociologia crítica da sobrevivência” (p. 6) que governa corpos, identidades e relações sociais. Os autores expandem a compreensão sobre a sobrevivência ao câncer, avançando os debates para além dos eventos de diagnóstico, prognóstico, tratamento, remissão e desfecho. Exploram as experiências daqueles que sobrevivem com o câncer e não daqueles que estão além dele, com “uma voz sociológica mais forte” (p. 10) para responder às questões silenciadas pela indústria, cultura de tratamentos, práticas terapêuticas e modelos institucionais que, na maioria das vezes, pouco valorizam a subjetividade no processo do sobreviver com o câncer.
Produzir uma “sociologia do câncer” exige contextualizar o evento nas diferentes esferas biológicas, sociais, culturais, políticas e econômicas, das quais emergem as questões relacionadas aos marcadores sociais das diferenças com as inúmeras formas de estigma, preconceito, discriminação, segregação, medo, coerção, exploração, vulnerabilidade, encantamento, aceleração, inovação, precisão, prazeres e outros. Portanto, exige uma complexidade multidimensional que deve ser discutida, também, à luz do paradigma da interseccionalidade 22. Pereira BCJ. Sobre usos e possibilidades da interseccionalidade. Civitas: Revista de Ciências Sociais 2021; 21:445-54., da politicidade do cuidado 33. Pires MRGM. Politicidade do cuidado como referência emancipatória para a enfermagem: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar. Rev Latinoam Enferm 2005; 13:729-36. e do cuidado emancipador 44. Barros NF. Cuidado emancipador. Saúde Soc 2021; 30:e200380..
O livro Survivorship: A Sociology of Cancer in Everyday Life é um extenso exercício sociológico que deve ser explorado por pesquisadores, estudantes e profissionais da saúde interessados não apenas em compreender a construção social das relações entorno de uma doença, mas também os sentidos, significados e representações culturais que povoam as mentes e os corações daqueles que cuidam e que são cuidados.
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1Broom A, Kenny K . Survivorship: a sociology of cancer in everyday life. Nova York: Routledge; 2021. (Series: Routledge Studies in the Sociology of Health and Illness).
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2Pereira BCJ. Sobre usos e possibilidades da interseccionalidade. Civitas: Revista de Ciências Sociais 2021; 21:445-54.
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3Pires MRGM. Politicidade do cuidado como referência emancipatória para a enfermagem: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar, cuidar para emancipar. Rev Latinoam Enferm 2005; 13:729-36.
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4Barros NF. Cuidado emancipador. Saúde Soc 2021; 30:e200380.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
26 Ago 2023 -
Aceito
14 Set 2023