Open-access Pela Primeira Vez, e suas Complicações Sintático-Semânticas

Pela primeira vez, and its Syntactic-semantic.complications

Resumos

Reflete-se neste texto sobre a expressão "pela primeira vez" e as ambigüidades que sua ocorrência gera em sentenças como "Ana e Juliana tocaram juntas pela primeira vez em Campinas no concerto de Natal de 1955". Atribui-se à expressão o papel de discutir prioridade cronológica a um evento entre outros de um mesmo tipo, e especula-se sobre as condições em que os diferentes adjuntos podem ser tomados como um dos elementos que definem o tipo de evento em questão. A reflexão que constitui o artigo é um pequeno fragmento de uma gramática de eventos, que por sua vez é parte da aspectologia, área de investigação que o Professor Ataliba T. de Castilho trilhou... pela primeira vez no Brasil há cerca de três décadas.

Eventos; Semântica dos Eventos; Escopo; Adjuntos; Aircunstanciais; Numerais


In this paper I concern myself with the Portuguese expression "pela primeira vez"(= Engl. "for the first time") and with the ambiguities that its occurrence entails in sentences as "Ana e Juliana tocaram juntas pela primeira vez em Campinas no concerto de Natal de 1955" (=Ana and Juliana performed together for the first time in Campinas during the 1955 Christmas Concerto") Claming that "pela primeira vez" assigns precedence in time to a particular event among others of the same type, I speculate on the conditions in which different PPs belonging to the same sentence are taken as defining the relevant type of events. The reflections in this paper are intended to be a tiny fragment of the semantics of events, which is itself a part of aspectology.- an area of linguistic research that Professor De Castilho investigated...for the first time in Brazil three decades ago.

Events; Event Semantics; Scope; Adjuncts; Circumstances; Numerals


Pela Primeira Vez, e suas Complicações Sintático-Semânticas

(Pela primeira vez, and its Syntactic-semantic.complications)

Rodolfo ILARI (Universidade de Campinas)

ABSTRACT: In this paper I concern myself with the Portuguese expression "pela primeira vez"(= Engl. "for the first time") and with the ambiguities that its occurrence entails in sentences as "Ana e Juliana tocaram juntas pela primeira vez em Campinas no concerto de Natal de 1955" (=Ana and Juliana performed together for the first time in Campinas during the 1955 Christmas Concerto") Claming that "pela primeira vez" assigns precedence in time to a particular event among others of the same type, I speculate on the conditions in which different PPs belonging to the same sentence are taken as defining the relevant type of events. The reflections in this paper are intended to be a tiny fragment of the semantics of events, which is itself a part of aspectology.- an area of linguistic research that Professor De Castilho investigated...for the first time in Brazil three decades ago.

RESUMO: Reflete-se neste texto sobre a expressão "pela primeira vez" e as ambigüidades que sua ocorrência gera em sentenças como "Ana e Juliana tocaram juntas pela primeira vez em Campinas no concerto de Natal de 1955". Atribui-se à expressão o papel de discutir prioridade cronológica a um evento entre outros de um mesmo tipo, e especula-se sobre as condições em que os diferentes adjuntos podem ser tomados como um dos elementos que definem o tipo de evento em questão. A reflexão que constitui o artigo é um pequeno fragmento de uma gramática de eventos, que por sua vez é parte da aspectologia, área de investigação que o Professor Ataliba T. de Castilho trilhou... pela primeira vez no Brasil há cerca de três décadas.

PALAVRAS-CHAVE: Eventos; Semântica dos Eventos; Escopo; Adjuntos; Aircunstanciais; Numerais.

KEY WORDS: Events; Event Semantics; Scope; Adjuncts; Circumstances; Numerals.

O estudo do aspecto, um dos tantos temas cujo estudo científico, entre nós, começa com o Prof. Ataliba Castilho, centra-se na análise de algumas construções gramaticais, como os "tempos do verbo" e os auxiliares, e prolonga-se naturalmente na análise dos adjuntos. Destes, os mais freqüentemente estudados numa perspectiva aspectual são aqueles cuja ocorrência sofre restrições quanto ao tipo de processo expresso pelo predicado e que, portanto, servem para enquadrar o próprio predicado numa ou noutra classe aspectual. Assim, em sentenças como (1) e (2), os adjuntos "de tempo" às três da manhã e das três às sete da manhã levam a classificar o predicado dormiu, respectivamente, como um ingressivo ou um durativo:

(1) Devido ao calor intenso, Maria só dormiu às três da manhã (dormiu = adormeceu, caiu no sono)

(2) Voltando da festa, Maria dormiu das três às sete / por quatro horas (dormiu = passou dormindo)

Neste texto, pretendo apresentar uma reflexão informal e inconclusiva sobre um outro tipo de "adjunto de tempo" que, num sentido lato do termo, é também aspectual mas que, pelo que sei, nunca recebeu maior atenção.

O que me chamou a atenção para esse tipo de adjunto foi inicialmente uma questão de língua de uma prova de vestibular em que se explorava o seguinte trecho de uma notícia publicada num jornal de Campinas:

(3) Que flagra! O Jornal do Automóvel flagrou os primeiros veículos importados da Ford em Campinas!

Como tinham percebido os elaboradores da questão de vestibular, esse trecho presta-se a duas leituras distintas: um leitor mais bairrista, ou mais sintonizado com a prática adotada por algumas multinacionais, que consiste em fazer sempre em Campinas e Curitiba seus pré-lançamentos)seria facilmente levado a crer que a Ford havia escolhido Campinas para lançar, em primeira mão e para todo o Brasil, os veículos procedentes de suas montadoras norte-americanas; um leitor mais céptico contentar-se-ia em acreditar que a Ford havia programado vários lançamentos simultâneos em diferentes locais do Brasil, e que Campinas seria apenas um desses locais. As duas interpretações do trecho em questão são captadas pelas paráfrases (4) e (5), cuja diferença se reduz, no essencial, a dizer que estão em Campinas os primeiros "veículos importados pela Ford", ou os primeiros "veículos importados pela (agência da) Ford (existente) em Campinas".

(4) O J.A. viu na agência de Campinas os primeiros veículos Ford importados para o Brasil.

(5) O J.A. viu os primeiros veículos importados Ford recebidos na agência de Campinas.

Posta nesses termos, a ambigüidade reduz-se a duas maneiras diferentes de construir o núcleo do sintagma nominal a que pertence o superlativo primeiro (ou, por outra, a duas maneiras diferentes de delimitar o conjunto de onde se extraem o(s) objeto(s) a ser(em) qualificado(s) como "o(s) primeiro(s)"), uma dupla possibilidade que reaparece, intuitivamente, na sentença de que trata a presente "reflexão":

(6) Ana e Juliana tocaram juntas pela primeira vez em Campinas no concerto de Natal de 95.

A sentença (6) é ambígua porque duas coisas diferentes poderiam estar acontecendo pela primeira vez: ou "que Ana e Juliana tocam juntas" ou "que Ana e Juliana tocam juntas em Campinas". É evidente tratar-se de duas leituras distintas: na primeira, (6) é falsa se as duas musicistas já realizaram antes do Natal de 95 alguma performance conjunta, não importando onde; na outra leitura (6) só é falsa se, antes do Natal de 95, já houve pelo menos uma performance conjunta das duas musicistas, e essa performance foi em Campinas.

*

A função da semântica não é apenas levantar ambigüidades mas sobretudo tentar explicá-las, relacionando-as a processos mais gerais de construção do sentido, e representando-as, sempre que possível, como resultados da aplicação de mecanismos conhecidos. Seguindo essa via, procurarei apontar, um a um, os mecanismos semânticos que são acionados em (6) e que, composicionalmente, respondem pelo sentido (literal) que ela assume.

1. Preliminarmente, chamo a atenção para o papel semântico do predicativo juntas. Qualquer que seja a leitura escolhida, esse adjetivo indica uma performance simultânea, e isso determina que busquemos um único evento, em que tenham estado envolvidas simultaneamente as duas instrumentistas, e não eventos separados envolvendo cada uma. Fica assim descartada uma ambigüidade que afeta a maioria dos plurais, e que foi estudada por Link (1983) a propósito de sentenças como:

(7) João e André carregaram o piano para o primeiro andar.

(poderia tratar-se de uma operação que os dois levam a cabo em colaboração, de modo que a sentença é verdadeira no caso em que o piano sobe uma única vez - ou de uma operação que cada um executa por sua vez, caso em que o piano sobe, no mínimo duas vezes).

Essa ambigüidade, note-se, fica excluída precisamente pelo fato de ter sido usado o modificador juntas; ela não seria afastada simplesmente pelo uso de um adjunto de tempo indicando um evento localizado: por exemplo, os músicos de (8) poderiam não ter tocado juntos.

(8) Todos os atuais integrantes da Orquestra Municipal tocaram no concerto de Natal de 95.

2. A ambigüidade de (6) tem a ver, como eu já disse, com a presença do ordinal primeiro. Os conceitos de "complemento do superlativo", e de "complemento partitivo", úteis na análise de (3) não têm aplicação imediata em (6), pois nessa sentença não se escolhe o primeiro objeto (ou o primeiro lote) de uma série de objetos, mas o primeiro evento de uma série de eventos; ao invés disso, (6) diz que algo acontece pela primeira vez. Pragmaticamente, falar em "primeira vez" dispara inferências convidadas como "o fato aconteceu outras vezes", "não foi essa a única vez que o fato ocorreu", etc. Do ponto de vista semântico, levanta-se, ao contrário, o problema de delimitar, pelas indicações presentes na sentença, "o que acontece", isto é, o conjunto de eventos do mesmo tipo, dentre os quais será singularizado "o mais antigo", "o primeiro por ordem de tempo". A singularidade de (6) é que não se chega a delimitar esse conjunto de forma unívoca: nossa intuição nos diz que os "fatos do mesmo tipo" podem ser tanto as performances conjuntas de Ana e Juliana, como as performances conjuntas de Ana e Juliana em Campinas, como fica claro se recorrermos a duas paráfrases construídas como orações clivadas:

(9) O concerto de Natal de 95, em Campinas, foi a primeira ocasião em que Ana e Juliana tocaram juntas.

(10) O concerto de Natal de 95 foi a primeira ocasião em que Ana e Juliana tocaram juntas em Campinas.

O que há em (6) que leva a delimitar de duas maneiras diferentes o conjunto de eventos sobre o qual opera a singularização expressa por pela primeira vez?

3. Fica descartado, de cara, que a ambigüidade de (6) seja de natureza lexical: é claro que poderíamos ter dúvidas sobre algumas palavras daquela frase, por exemplo, poderíamos ficar indecisos quanto ao fato de as duas instrumentistas terem tocado juntas na execução de uma determinada peça, na hipótese de a primeira ter atuado como solista, enquanto a outra ocupava a última estante de um dos naipes da orquestra. Dúvidas como essa mostram que "tocar juntos" é uma expressão menos exata do que pensaríamos à primeira vista, mas essas dúvidas não têm nada a ver com as duas interpretações propostas.

Também é imediato reconhecer que a ambigüidade de (6) não resulta de tomar duas ou mais expressões como antecedentes de um mesmo anafórico. A única razão plausível para evocar os anafóricos no presente contexto seria o fato de que um mesmo anafórico pode remeter a (sub-)eventos diferentes conforme a sentença em que se insere, como se pode ver por (11):

(11) João foi visto rondando a farmácia às 9 da manhã;

... o mesmo aconteceu às 3 da tarde. (o mesmo = João rondar a farmácia)

... o mesmo aconteceu às 3 da tarde com Pedro (o mesmo = rondar a farmácia)

Essa analogia lembra-nos que uma mesma expressão pode aplicar-se a uma sentença completa analisando-a de maneiras diferentes ou destacando partes diferentes da mesma, mas isso é de certo modo o que já sabíamos.

4. Recusadas para a ambigüidade de (6) uma explicação anafórica e uma explicação lexical, e descartadas outras explicações ainda menos prováveis (por exemplo a que opõe uma leitura formulaica e uma leitura composicional para sentenças como "João abotoou o paletó"), resta considerar as explicações que apelam para diferentes configurações sintáticas - quer se trate da própria sintaxe superficial, quer da sintaxe da metalinguagem em que se exibem os processos de composição semântica, quer ainda de alguma sintaxe intermediária.

Os casos paradigmáticos de ambigüidade sintática são aqueles em que um sintagma aparece em diferentes posições, ou com diferentes relações, na configuração que representa a sintaxe da sentença como um todo. É o que acontece com (13), (14) e (15)

(13 )Eles combinaram encontrar-se mais tarde perto do carrinho de lanches;

(14 )Ele mandou à namorada um cartão postal de Munique;

(15) O menino subiu no elevador sujo de barro

(perto do carrinho de lanches poderia modificar combinaram ou encontrar-se; de Munique é adjunto adnominal de cartão ou adjunto adverbial de mandou; sujo de barro pode ser predicativo de menino ou de elevador).

Em (6), a expressão que se apresenta como candidata natural a uma dupla função sintática é em Campinas. Mas podemos, realmente, atribuir a esse sintagma nominal uma dupla função sintática num sentido configuracional? Qual é, para começar, a sintaxe superficial que gostaríamos de atribuir a (6)? Olhemos novamente para aquela sentença:

(6) Ana e Juliana tocaram juntas pela primeira vez em Campinas no concerto de Natal de 95.

Numa primeira análise bastante superficial, os constituintes que ocorrem à direita do verbo tocaram aparecem como modificadores desse mesmo verbo: pela primeira vez, em Campinas e no concerto de Natal de 95 na função de adjuntos adverbiais; juntas na de predicativo do sujeito (mas podendo também assumir uma forma típica de adjunto adverbial, junto). Tento expressar essa análise por meio de (16) onde todos os constituintes citados são representados como acréscimos feitos sucessivamente à "oração nuclear" Ana e Juliana tocaram.

(16) [ [ [ [ [ Ana e Juliana tocaram ] juntas ] pela primeira vez ] em Campinas] no concerto de Natal de 95]

Essa análise é pouco atraente para o semanticista porque não dá respaldo à hipótese de que existem duas maneiras diferentes de associar a informação expressa por em Campinas às demais informações dadas pela sentença, e, portanto, não ajuda a explicar a ambigüidade que atribui a (6).

A esta altura da exposição, convém considerar a possibilidade de se superpor à representação propriamente sintática duas ou mais representações em termos de Articulação Tema/Rema (ATR). Em termos de ATR, (6) é tipicamente uma sentença não-marcada, isto é, uma sentença com várias leituras possíveis, a partir do princípio de que, em português, o rema inclui obrigatoriamente o último constituinte da oração e, facultativamente, um número variável de constituintes que o precedem sem solução de continuidade. A representação (16) poderia então ser suplementada de várias maneiras, resultando entre outras, as duas representações que seguem (em que foi sublinhado o rema):

(16a) [ [ [ [ [ Ana e Juliana tocaram ] juntas ] pela primeira vez ] em Campinas] no concerto de Natal de 95]

(resposta natural para "Quando foi que A. e J. tocaram juntas pela primeira vez em Campinas?")

(16b) [ [ [ [ [ Ana e Ju. tocaram ] juntas ] pela primeira vez ] em Campinas] no concerto de Natal de 95]

(resposta natural para "Quando foi que A. e J. tocaram juntas pela primeira vez?")

Disporíamos com isso de duas análises que se distinguem precisamente por incluir ou não no rema o segmento crucial em Campinas e poderíamos supor que esse segmento deve ser computado com juntas pela primeira vez em (16a), onde é temático, e com no concerto de Natal em (16b) onde é remático. Essa análise me parece correta apenas circunstancialmente, pois seria um equívoco acreditar que a separação do tema e do rema leva sempre a duas interpretações distintas das sentenças em que ocorre a expressão pela primeira vez, ou admitir como princípio de que os constituintes remáticos não fornecem informações criteriais para decidir o que acontece pela primeira vez, e vice-versa: com em Campinas e demais adjuntos no rema (ou no tema, pouco importa) a ambigüidade se mantém, como se pode ver em (17):

(17) [ [ [ [ [No concerto de Natal de 95,] Ana e Juliana tocaram ] juntas ] pela primeira vez ] em Campinas]

(com a articulação tema/rema que a torna resposta natural para "O que aconteceu no Natal de 95, para A. e J. ficarem tão ligadas?").

5. É preferível, pois, tentar refinar a análise propriamente sintática de (6), e uma das maneiras de fazê-lo consiste em perguntar quais seriam as conseqüências de deslocar seus vários constituintes. Aqui, apenas alguns deslocamentos mais "instrutivos" serão considerados, pois a preocupação de exaustividade obrigaria a considerar um número proibitivamente alto de ordens matematicamente possíveis (720?). Consideremos, assim, apenas as sentenças abaixo, em que um dos constituintes foi deslocado para a esquerda:

(18) no concerto de Natal de 95, Ana e Juliana tocaram juntas pela primeira vez em Campinas

(19) em Campinas, Ana e Juliana tocaram juntas pela primeira vez no concerto de Natal de 95

(20) Pela primeira vez, Ana e Juliana tocaram juntas em Campinas no concerto de Natal de 95

(21) Juntas, Ana e Juliana tocaram pela primeira vez em Campinas no concerto de Natal de 95

Salvo engano, a ambigüidade de (6) se mantém em todos esses casos, exceto o de (21), que pode querer dizer uma de duas coisas: "Circunstancialmente juntas, A. e J. estréiam como instrumentistas em Campinas, no concerto de Natal de 95" ou "Em se tratando de performances conjuntas, A. e J. estréiam em Campinas, no concerto de Natal de 95". Há entre essas duas interpretações uma diferença importante, provavelmente relacionada a duas diferentes funções da topicalização que vêm sendo estudadas pela lingüista portuguesa Manuela Ambar; para meus propósitos, essa diferença não é relevante; conta somente que, nas duas interpretações propostas para (21), Campinas deixou de ser critério para decidir o que acontece pela primeira vez.1 Tomo isso como sintoma de que, em (6), na interpretação em que Campinas é critério para decidir o que aconteceu pela primeira vez, alguma conexão mais forte do que um mero acréscimo recursivo de adjuntos ligava juntas, pela primeira vez e em Campinas; essa ligação é rompida quando juntas ocorre topicalizado; pela primeira vez e em Campinas recebem então uma interpretação independente, que coloca em Campinas em pé de igualdade com no concerto de Natal de 95.

Aceita a idéia de que há uma interação a ser esclarecida entre os adjuntos, a representação proposta em (16) pode ser trocada, por exemplo, por estas duas outras:

(22) [Ana e Ju. [tocaram[juntas [pela primeira vez] [em Campinas]Adj(1)] [no concerto de Natal de 95 Adj(2) ] ]

(23) [Ana e Ju. [[tocaram[juntas pela primeira vez Adj(1)]] [[em Campinas] [no conc. de Natal de 95] Adj(2)] ] ]

aplicáveis, respectivamente, quando Campinas é critério / não é critério para decidir o que aconteceu pela primeira vez. As duas representações procuram expressar o fato de que os "adjuntos" encontrados em (6) não se acrescentam ao predicado por mera acumulação. Reconhecem ao contrário que os adjuntos adverbiais precisam ser separados pelo menos em dois grupos, o primeiro deles, no nosso exemplo, organizado em torno de juntas e mantendo com tocaram uma relação "mais íntima", o outro ligado de maneira mais distante ao predicado como um todo. É espontâneo, a esta altura, lembrar que juntas se origina de um antigo particípio passado, ou seja, que por ser historicamente uma forma verbal, é capaz de sofrer modificações adverbiais; essa formulação torna mais fácil a tarefa de representar juntas como o núcleo de uma "small clause", mas não é indispensável. O essencial é que as representações (22) e (23) relacionam em Campinas ao resto da sentença de duas maneiras diferentes - como se espera nos casos típicos de ambigüidade como sintática. Lembremo-nos, porém, que apresentar diferentes configurações sintáticas é apenas parte do trabalho que explica as diferenças de interpretação: para chegar mais perto de uma explicação, será preciso, ainda, referir as diferenças sintáticas a processos semânticos mais gerais.

6. O princípio geral que explica a interpretação das sentenças em que aparece pela primeira vez já foi citado, e consiste no fato de que essa expressão obriga a circunscrever um conjunto de eventos que são caracterizados como sendo do mesmo tipo, dentre os quais será singularizado o mais antigo em ordem cronológica. Nesse sentido, pela primeira vez mantém o caráter de superlativo que caracterizava o ordinal latino primus, exigindo uma espécie de "complemento". Como, neste caso, o conjunto sobre o qual se faz a seleção é feito de eventos, e não de objetos, a forma da sentença precisaria distinguir as circunstâncias que se aplicam aos eventos de maneira apenas ocasional, daquelas que são tomadas como criteriais para a definição da série relevante. Segundo já sugeri acima, isso se faz pela separação de dois tipos de adjuntos adverbiais, a que apliquei os diacríticos Adj(1) e Adj(2) indicando, respectivamente, ligação forte e ligação lábil ao predicado. Essa distinção sintática é explorada pela semântica, que a leva em conta ao realizar o seu procedimento de tradução.

Por hipótese, a semântica trata das sentenças em que aparece o operador pela primeira vez, reconhecendo nelas três componentes significativos:

a) A própria expressão pela primeira vez;

b) as informações correspondentes aos termos integrantes + as informações correspondentes aos adjuntos que mantêm coesão forte com o verbo (na notação proposta nas árvores acima Adj(1))

c) as informações correspondentes aos adjuntos que mantêm coesão fraca com o verbo (na notação acima, Adj(2))

Formulando o procedimento de tradução em termos altamente provisórios, eu diria que:

a) A pela primeira vez a semântica deve fazer corresponder uma fórmula2 como a que segue:

Definição semântica de pela primeira vez

$e [ [ [ Y(x1...xn, e) & K´ (e) ] & K´´(e)] & "f [ [ Y(x1...xn, f) & K´(f) ] ® A(e,f)]]

Onde fica convencionado que e ¹ f e onde, além do mais:

x1...xn são variáveis para indivíduos

e e f são variáveis para eventos

Y é uma variável para predicados de ação

K´ e K´´ são variáveis para circunstâncias aplicáveis a eventos

A(m,n) é um predicado sobre eventos que afirma a anterioridade de m em relação a n

(a fórmula diz, em síntese, que existe um evento que consiste numa ação de tipo Y, cujos participantes são x1..xn, e que se realiza em circunstâncias K´ e K´´; diz também que esse evento é anterior a qualquer outro evento que consista numa ação do mesmo tipo Y, envolvendo os mesmos participantes e ocorrendo nas circunstâncias K')

b) Na definição semântica de pela primeira vez, o procedimento de tradução preenche Y com as informações associadas ao verbo; preenche x1...xn com os nomes dos participantes; e preenche K´ com as circunstâncias que mantêm ligação estreita com o verbo;

c) Por fim, o procedimento de tradução preenche K´´ com a tradução dos circunstanciais que mantêm ligação lábil com o verbo.

Aplicado às duas estruturas que atribui a (6), esse procedimento de tradução produz as duas fórmulas seguintes:

(24) $e[ [ [ [T(u, e) & T(a, e) ] & C(e)] & N(e) ] & "f [ [T(u, f) & T(a, f) ] & C(f) ] ® A(e,f) ]]

(25) $e [ [ [T(u, e) & T(a, e)] & [C (e) & N(e)] ] & "f [ [T(u, f) & T(a, f) ] ® A(e,f) ] ]

Onde, além do que já ficou estipulado,

u = Juliana

a = Ana

T = tocar

N = ocorre no concerto de Natal de 95

C = ocorre em Campinas

A diferença entre (24) e (25) reside no fato de que a fórmula "C(f)" ocorre apenas em (24), onde indica que o conjunto de eventos dentre os quais se escolhe o primeiro, além de envolver ao mesmo tempo Ana e Juliana, se passa em Campinas. Essa última exigência precisa, obviamente, estar ausente na segunda fórmula.

Imitando o uso que os lógicos fazem da noção ao tratar de operadores e quantificadores, tenho chamado de "ambigüidades de escopo" àqueles casos de dupla interpretação em que, lançando mão das mesmas unidades lexicais, e mobilizando as mesmas operações (eventualmente em ordens diferentes), se chega a efeitos semânticos também diferentes. Como exemplo privilegiado de ambigüidade de escopo, tenho apresentado sentenças como

(26) O João não pagou todas as prestações atrasadas do IPTU

que recebe duas interpretações diferentes conforme se generaliza sobre uma negação ("Aplica-se a todas as prestações que João deixou de pagar") ou se nega uma generalização ("Não se aplica a todas as prestações que João pagou"). O caso de que tratei neste trabalho é um pouco diferente mas, considerando que (24) e (25) se constroem com as mesmas operações semânticas e com o mesmo vocabulário, e considerando além disso que toda a diferença se reduz à presença da expressão "C(f)" na sub-fórmula universalmente quantificada que constitui a segunda parte de (24), penso que podemos ainda falar, com algum ganho de compreensão (embora com alguma imprecisão), em "ambiguidade de escopo".

7. Minha "reflexão informal e inconclusiva" termina aqui, e deveria ter dado uma idéia de como sintaxe e semântica podem conjugar seus esforços diante de estruturas lingüísticas problemáticas. Ela também levanta a necessidade de separar os adjuntos, superando a idéia de uma adjunção recursiva que se realizaria mecanicamente, em favor de uma análise em que os adjuntos são objeto de uma organização específica. A reflexão foi altamente esquemática e precisaria ser retomada e justificada ponto a ponto.

Essa justificação ponto a ponto não pode ser feita aqui, mas antes de encerrar quero retomar pelo menos uma afirmação que pode ter ficado obscura para o leitor: a de que a reflexão aqui realizada teria algum interesse para o estudo do aspecto. Essa afirmação prende-se ao fato de que o aspecto, é, em alguns casos cruciais, uma questão de quantificação sobre eventos. O caso mais óbvio em português é o do passado composto, que afirma, entre outras coisas, que um determinado evento se repete. Para interpretar sentenças no passado composto, assim como para interpretar sentenças com o operador pela primeira vez, é indispensável descobrir, esquadrinhando a sintaxe da sentença, de que evento falamos; por isso, um estudo sobre o passado composto como forma iterativa esbarraria em alguns dos problemas levantados aqui, e vice-versa3.

2 As fórmulas usadas daqui em diante são inspiradas nas representações que D. Davidson aplica às sentenças de ação. Nessas representações, o evento é tratado como mais um argumento do predicado. A apresentação de todo o procedimento de tradução é, reconhecidamente, pouco rigorosa, dispensando recursos que a tornariam mais elegante, como o enquadramento numa linguagem de tipos e o uso do operador-lambda.

3 Sobre a semântica do passado composto, veja-se Ilari, "Notas para uma semântica do passado composto, em português", a ser publicado nas Atas do Encontro Comemorativo dos 20 anos de estudo do Português no Ensino Superior Húngaro" (Budapeste, outubro de 1997).

Referências bibliográficas

  • LINK, G (1983) The logical analysis of plurals and mass terms. In T. Bauerle et al. Meaning, Use and Interpretation of Language Berlin: deGruyter.
  • 1
    Quero dizer com isso que (21) situa a primeira performance conjunta de A. e J.
    no tempo
    e
    no espaço; a interpretação alternativa pela qual se situaria apenas no tempo uma performance conjunta em Campinas fica descartada. Como as duas personagens estreiam juntas em Campinas no concerto de Natal de 95 essa é ao mesmo tempo a primeira ocasião em que tocaram juntas, e a primeira ocasião em que tocaram juntas em Campinas; mas a questão é saber de que "primeira vez" se fala na sentença.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Dez 2001
    • Data do Fascículo
      1998
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