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Parâmetros morfológicos e sintáticos na língua Bakairi (Karib): um enfoque da ergatividade

Morphological and syntactic parameters in the Bakairi language (Karib): A focus on ergativity

RESUMO

Nossa análise com a língua Bakairi vem se sedimentando num corpus significativo resultante de sete pesquisas de campo, realizadas no período de 1984 a 1992, e quatro pesquisas mais recentes, realizadas entre 2019 a 2023. Todas as pesquisas tomam como foco a variedade de Bakairi falada na terra indígena Pakuenra. Dentro do enfoque da Teoria Gerativa, nosso trabalho busca investir na discussão em torno dos parâmetros de uma língua sintaticamente ergativa, perseguindo os seguintes objetivos (i) descrever o funcionamento dos verbos em Bakairi, a partir da distribuição dos paradigmas -aki e -tai, colocando em pauta a diátese verbal e a seleção de argumentos internos ao VP ou alocados em vP e (ii) reafirmar o status dos argumentos internos ao VP como argumentos canônicos versus o status derivados dos argumentos com papel de agente. Os principais resultados que temos alcançado vão ao encontro da definição de uma língua sintaticamente ergativa, uma vez que não estamos lidando com marcas nominais de caso, fato que vem contribuir para elucidar formalmente os tipos de alinhamento nas línguas naturais, âmbito onde se dão os debates sobre a noção de Caso (lexical/inerente e estrutural).

Palavras-chave:
língua Bakairi; ergatividade; hipótese inacusativa; ergatividade e atribuição de Caso

ABSTRACT

The objective of this paper is threefold: (i) to contribute to the discussion around the parameters of a syntactically ergative language, using the Generative Theory framework, (ii) to describe how verbs work in Bakairi, based on the distribution of the -aki and -tai paradigms, focusing on verbal diathesis and the selection of arguments internal to VP or allocated in vP, and (iii) to reaffirm the status of arguments internal to VP as canonical arguments versus the derived status of arguments with agent role. To this end, our analysis of the Bakairi language is based on a significant corpus resulting from seven field surveys carried out from 1984 to 1992, from three more recent surveys conducted from 2013 to 2018, and four most recent surveys, carried out between 2019 and 2023. All of these studies focus on the Bakairi variety spoken in the Pakuenra indigenous land. The main results are in line with the definition of a syntactically ergative language, as we are not dealing with nominal case marks, a fact that contributes to formally elucidating the types of alignment in natural languages, where the discussions on the notion of Case (lexical/inherent and structural) take place.

Keywords:
Bakairi language; ergativity; unnacusative hypothesis; ergativity and Case assignment

1. Introdução

A língua Bakairi, filiada á família Karib Sul, é falada por um grupo aproximado de 1042 indivíduos, assentados em terras Bakairi, que se localizam no estado do Mato Grosso (Brasil Central), divididos entre duas terras indígenas Bakairi, a terra indígena Pakuenra e a terra indígena Santana. Nossa análise com a língua Bakairi vem se sedimentando num corpus significativo resultante de sete pesquisas de campo, realizadas no período de 1984 a 1992, e de quatro pesquisas mais recentes, realizadas entre 2019 e 2023. Todas as pesquisas tomam como foco a variedade de Bakairi falada na terra indígena Pakuenra. A análise desse material tem sido divulgada em vários trabalhos abrangendo desde o enfoque da fonologia ao enfoque do discurso2 2 Trabalhos arrolados nas referências bibliográficas. .

De pertinente venho observando que a estruturação sintático-discursiva da língua esbarra em uma série de restrições, sobretudo no âmbito da correferencialidade e das construções de controle, para atender ao princípio básico da ergatividade: o sujeito de verbos transitivos em oposição ao sujeito de verbos intransitivos, igualado morfologica e sintaticamente ao objeto direto. Desse fato, decorre, por exemplo, a oferta dos dois paradigmas verbais, que parametrizam os verbos em Bakairi em seu todo.

Por fim, dentro do universo de línguas Karib, atestamos um comportamento diferenciado dessas línguas com relação ao Bakairi, sobretudo, no que se refere ao estatuto das marcas de pessoa, presas ao verbo, analisadas por nós como marcas de Caso estrutural e com uma distribuição bastante específica, atendendo a três quadros de distribuição (confere a seguir).

O objetivo geral que logramos alcançar é dar abrangência à discussão em torno dos parâmetros de uma língua sintaticamente ergativa, uma vez que não lidamos com marcas nominais de caso. Quanto aos específicos, buscamos: (i) descrever o funcionamento dos verbos em Bakairi, a partir da distribuição dos paradigmas -aki e -tai, colocando em pauta a diátese verbal e a seleção de argumentos internos ao VP ou alocados em vP e (ii) reafirmar o status dos argumentos internos ao VP como argumentos canônicos versus o status derivados dos argumentos com papel de agente.

Em termos de organização, além da introdução e conlusão, temos duas seções: (2) Aspectos gerais da língua Bakairi, em que, logo de início, trazemos argumentos a favor de analisar o Bakairi como língua ergativa, a partir dos quadros de marcas de pessoa distribuídos pelo eixo transitivo/intransitivo e (3) Paradigmas verbais, caso e eragtividade, quando defendemos serem os verbos intransitivos primitivos na língua e os transitivos derivados; decorre daí a afirmação de ser o caso absolutivo estrutural e ergativo lexical/inerente.

2. Aspectos da língua Bakairi

Embora a morfologia Bakairi não apresente marcas de caso no nome, classifico-a como língua sintaticamente ergativa em função de um enfoque gerativista3 3 Conferir, entre outros, Heider (2000), Wiltschko (2000), Wollford (2006). . Costumo dizer que “a sintaxe se diz na sintaxe”, afirmativa sustentada, é claro, por um funcionamento morfológico; um funcionamento, porém, que vem responder a que consequências o padrão4 4 A = agente; S = sujeito e O = objeto. A ≠ S = O traz à textualidade da língua como um todo. A proposta aventada para a conclusão de tese de doutorado (Souza, 1994Souza, T.C.C. de (1994). Discurso e oralidade: um estudo em língua indígena [Tese de Doutorado]. UNICAMP. https://www.cpei.ifch.unicamp.br/biblioteca/discurso-e-oralidade-um-estudo-em-l%C3%ADngua-ind%C3%ADgena (acessado 30 de outubro, 2023).
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) foi a de proceder à análise de discurso (escola francesa) em Bakairi, e não em sua tradução paralela para o português. O que me obrigou a analisar a língua em sua dimensão discursivo-textual.

Descartada a proposição de que o Bakairi não seria uma língua ergativa, pela ausência de marcas nominais de caso, outras evidências concorrem não só para classificar o Bakairi como língua ergativa, como também para sustentar o funcionamento sintático da ergatividade. Ao não se lidar com uma diferença de marcas de caso no nome - o caso ergativo e o caso absolutivo -, outras marcas concorrem para a expressão da ergatividade, tais como o sistema de referência de pessoa que se distribui em função do eixo transitividade/intransitividade, evidência primeira de um funcionamento ergativo. Nossos argumentos em favor da ergatividade, porém, não se limitam a descrever a distribuição das marcas de pessoa; nem nos contentamos em falar da ergatividade a partir de uma meia dúzia de frases absolutas (ou independentes), frases que, no caso, não espelham a complexidade da correferencialidade, da vinculação, do controle, etc. Fatos dessa ordem, desde já, anunciam nosso direcionamento analítico: pensar a sintaxe nos moldes da Teoria Gerativa. Passemos à descrição do fenômeno na língua, com base no que até então aventamos em torno do fenômeno da ergatividade.

Um sistema de referência pessoal ergativo-absolutivo

Em nossos trabalhos, temos sustentado que o complexo sistema de marcas de pessoa tem sua distribuição em função do eixo transitividade/intransivitidade. No que se refere ao uso dessas marcas, observa-se que o prefixo correspondente ao objeto é idêntico à marca do sujeito dos verbos intransitivos. Por outro lado, nos verbos transitivos, dependendo do tempo e do aspecto verbal, pode-se registrar ou somente a marca do objeto, ou ambas as marcas - a do objeto e a do sujeito do verbo transitivo. Pode ocorrer, ainda, tanto com verbos transitivos quanto com verbos intransitivos a ausência de ambas as marcas em construções impessoalizadas e generalizadas. (Souza, 1994Souza, T.C.C. de (1994). Discurso e oralidade: um estudo em língua indígena [Tese de Doutorado]. UNICAMP. https://www.cpei.ifch.unicamp.br/biblioteca/discurso-e-oralidade-um-estudo-em-l%C3%ADngua-ind%C3%ADgena (acessado 30 de outubro, 2023).
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e outros).

No Quadro 1, de marcadores de pessoa, apresentam-se as marcas dos verbos intransitivos, que são as mesmas usadas na marcação de posse. Esses marcadores atendem a verbos de um argumento, sendo estes de qualquer natureza: movimento, mudança de estado etc.

Quadro 1
Verbos intransitivos

O Quadro 2, também de marcadores de pessoas, se refere aos verbos transitivos, quando entram em cena dois argumentos - sujeito e objeto -, dos quais apenas o objeto é marcado, excetuando-se a 2a. pessoa e a 1a. inclusiva, ambas podendo exibir uma marcação cindida. Ainda com relação ao Quadro 2, a marcação do objeto como uma constante não prevê para o Bakairi o fenômeno da hierarquia referencial, uma vez que obrigatoriamente os índices de caso/pessoa são sempre marcados, fato indiferente a um nível hierárquico entre pessoas.

Quadro 2
Verbos transitivos

Além dos Quadros 1 e 2, no Quadro 3, relativo ainda a verbos transitivos, se faz a previsão de concordância dupla, isto é, o objeto de 3a. pessoa vem sempre marcado por uma nasal morfológica. A marca do objeto de 3a.pessoa vem expressa pela nasalidade. O traço nasal se explica por um traço histórico: em Capistrano de Abreu (1895), encontram-se construções como [kxa -n- egatúli ‘eu o narro’], [ma -n- egatúli ‘tu o narras’], [i -n- egatúli] ‘ele o narra’, etc, em que se constata que junto à raiz verbal vinham marcas expressas do sujeito e do objeto [n- marca de objeto]. Comparando-se essas formas com as construções de hoje em dia têm-se respectivamente: kãegatule, mãegatule, ỹegatule. Atentando-se para o fato de que no Bakairi registra-se uma regra de queda de nasal intervocálica, com nasalização da vogal precedente, as formas do Quadro 3 correspondem, na verdade, a dois marcadores: os segmentos ka-; ma-; y- se referem ao sujeito de verbo transitivo, enquanto que a forma não segmental - a nasalização - se refere ao objeto. O processo morfofonênimo em causa recupera como ambiente à distribuição dessas marcas a consoante nasal [n] subjacente6 6 A variedade de Bakairi falada em Santana mantem até hoje a nasal como segmento pleno. .

Quadro 3
verbos transitivos

A distribuição nos quadros acima atende, ainda, a uma outra previsão. Além do eixo transitivo/intransitivo, a presença dos marcadores de pessoa ocorre conjugada às marcas de tempo-aspecto. Caso este condicionamento fosse a única previsão para a distribuição das marcas de pessoa, o traço nasal histórico, aludido acima, poderia vir a ser reinterpretado como inerente às próprias marcas de pessoa (que seriam segmentos nasalizados); nessa direção, ficaria descartado o eixo transitivo/intransitivo e o sistema de pessoa em Bakairi atenderia ao padrão nominativo-acusativo e não se estaria prevendo a concordância dupla. Essa possibilidade de reinterpretação não se sustenta, porém, se a análise da língua se configurar a partir de um exame acurado dos dados, e de evidências sustentadas teoricamente, como buscamos discutir no decorrer deste trabalho.

Diferente das marcas de aspecto perfectivo, as marcas não perfectivas podem selecionar concordância dupla, como nos Exemplos (1) e (2) abaixo. São duas as marcas de aspecto em Bakairi - -(t)(y)le ~ (-(d)(y)le)) e -ze -; ambas assinalam o aspecto contínuo e, por vezes, são empregadas expressando modalizações de infinitivo ou futuro, além de presente e passado. Somente o contexto enunciativo pode definir a relação temporal dessas marcas, mas a distinção fundamental entre ambas é o recorte de sentido que podem imprimir às formas verbais.

(1) tania kã-utu-dyle ura iwerâ

tania 1erg/3ab-conhecer-aspecto eu hoje

‘Eu estou conhecendo a Tania hoje.

(2) maria ỹ -utu-le tania iwera

3ª.erg/3ª.abs-conhecer hoje

‘Maria está conhecendo a Tania hoje.’

O emprego de -ze, a outra marca de aspecto, é comumente associado a processos generalizados que possibilitam indefinir, no plano morfológico, as diferenças sintáticas entre sujeito transitivo e sujeito intransitivo. Assinala processos e ações durativos, ocorrendo tanto com verbo transitivo e intransitivo (em construções de controle, discutidas mais adiante), mas não seleciona marcadores de pessoa. Quando a referência é o sujeito, presente no verbo está o prefixo t-, que, marcado pelo traço [-flexão], generaliza a referência ao apontar o agente (sujeito transitivo). Nas formas com -ze não se assinala o objeto direto, nem o sujeito de verbos intransitivos em frases simples. Confiram-se, respectivamente, os Exemplos 3, 4 e 5.

(3) âtâ t-igoke- ze paru -gue ura7 7 Dados transcritos em ortografia Bakairi. O símbolo [r] corresponde a um flap nasal ou oral; o símbolo [â] corresponde ao schuá [∂]; [g] representa a fricativa velar sonora. A vogal média posterior [o] é sempre aberta, e a vogal média anterior [e] é sempre fechada. [y] corresponde a [i]. Como a nasal antes da queda, nasaliza a vogal anterior, em ortografia Bakairi a marcação [ĩ-] corresponde a [inh-]. O padrão acentual em Bakairi é fixo, assinalando como proeminente a penúltima sílaba da palavra, exceto em palavras terminadas por ditongo (oral ou nasal), quando a última sílaba passa a ser a proeminente.

roupa lavar rio-instrumental eu

‘Eu lavo roupa no rio.’

(4) megu kura t -yta -ze

macaco gente medo

‘Macaco tem medo de gente.’

(5) iamundo igatu-ze inepa

correr rápido

‘A criança corre rápido.’

O emprego de -(t)yle é diferente do de -ze no que se refere ao uso dos marcadores de pessoa. Com verbos transitivos, há a obrigatoriedade de se marcarem ao mesmo tempo sujeito e objeto direto, quando estão em causa sintagmas nominais plenos numa mesma oração. O sistema de marcadores de pessoa aponta a concordância dupla, como se verifica no Exemplo 6.

(6) maria âtâ ỹ -igoke -yle

roupa 3erg/ab-lavar-aspecto

‘Maria está lavando roupa.’

Mas este sistema não é o único atestado com as formas verbais com -(t)yle. No enunciado do Exemplo 7

(7) mariai âtâ [Pro]i s-akâj -yle tutuze

roupa 3ª ab.costurar-aspecto saber

‘Maria sabe costurar roupa.’

o verbo ‘costurar’ só concorda com o paciente, assinalado com o marcador s- ‘paciente’. Observa-se, aí, um período complexo, quando o verbo (t)utu(ze) ‘saber’ funciona como auxiliar. O SN Maria está correferenciado a [Pro], dois SNs-sujeitos ergativos. Sempre que se têm construções como essas, o verbo auxiliar vem sem marcas de pessoa. Observa-se, porém, que essa marcação se diferencia num núcleo complexo com verbo inergativo (exemplo (8) abaixo), quando entra em jogo o prefixo t-. Este prefixo comum a várias línguas Karib, é em geral tratado como um intransitivizador ordinário. Em Bakairi, preso aos nomes, tem o sentido de ‘próprio’; preso ao verbo tematiza um argumento-agente e ocorre junto a outro intransitivizador8 8 O inversor tem uma larga expressão - -at-; -ad-; -as-; -az-; -ax-; -aj-, decorrente do processo de harmonia consonantal (por isso a alternância surdo/sonoro) e de processos morfofonêmicos. , que pela nossa análise é definido como um inversor de diátese9 9 Em nossos trabalhos temos classificado como inversor de diátese o formativo analisado em língua Karib como intransitivizador. O alcance deste formativo não é o mesmo de um intransitivizador ordinário, e sim o de atender as restrições à correferencialidade de argumentos sintaticamente diferenciados. O mesmo pode ocorrer, inclusive, preso a verbos intransitivos, como ocorre com o exemplo (8). (Exemplo 8).

(8) yamundo tutuze t-âj-igatu-dyle inepa

saber agente-inversor-correr rápido

‘A criança sabe correr rápido.’

Ainda sobre o prefixo t-, observamos que em construções de controle sua função é de uma anáfora, funcionando como um índice referencial, cujo papel é o de impedir ambiguidade numa sentença como no Exemplo 9a.

(9a) Maria pediu ao marido (Pro) para fazer a esteira.

na qual não está claro quem vai fazer a esteira. Em Bakairi, com o emprego do prefixo t-, não teríamos um enunciado ambíguo, mas sim dois enunciados diferenciados (Exemplos 9b e 9c):

(9b) maria s-eka-dai t-usoi-rã (Pro i) koga ỹ-ega-tõi

abs-pedir-passado reflex.marido-para steira 3erg.3ab.fazer-finalidade

‘Maria pediu ao maridoi (Pro i) para [ele] fazer a esteira’.

(9c) mariai s-eka-dai t-uso-rã (Pro i) koga t i-ỹ-ega-tõi

‘Mariai pediu ao marido (Pro i) para [ela própria] fazer a esteira’.

Pelo que vimos nos exemplos acima o prefixo t- ora preso a nomes, ora preso a verbos e em estruturas sintáticas de controle desempenha funções diferentes: preso ao nome significa ‘próprio’; preso ao verbo impessoaliza o verbo auxiliar para que tenha lugar a correferencialidade em construções de controle quando entra em cena apenas um argumento; numa construção de controle quando estão em cena dois argumentos (exs. (9b) e (9c)) funciona como anáfora bloqueando ambiguidade de enunciados complexos como nos exemplos acima. Este tipo de funcionamento contribui, a nosso ver, para por em xeque a hipótese lexicalista forte, proposta em Chomsky (1981), já que os processos de derivação do prefixo em jogo estão, de fato, afetados pelas estruturas sintáticas, não estando processados a priori no léxico.

Como se pode ver, a seleção das marcas que se ligam aos argumentos na sentença não se insere num processo de flexão verbal stricto sensu. A função primeira e imediata dos marcadores de pessoa é atender à correferencialidade. A combinação dos marcadores com as formas aspectuais não é nem aleatória, nem mecânica. Não se esgota enquanto processo de flexão, tanto assim que uma mesma marca (-ze ou -tile) funciona diferente segundo a natureza da raiz verbal transitiva ou intransitiva; e/ou segundo o tipo de estrutura em que ocorre: ambas - -ze ou -tyle - indicam uma ação durativa, mas com -ze, a ação é durativa e generalizada, enquanto com -tyle a ação é durativa e momentânea, pontual.

A importância de dados como os até aqui arrolados levam à confirmação do eixo transitivo/intransitivo e atestam também não se estar lidando aí com um sistema de flexão nominativo-acusativo. Confirma-se também a nasal como morfema de 3a. pessoa (objeto ou paciente). Vale assinalar, ainda, a pertinência da distribuição dos marcadores de verbos transitivos que se revelam com total falta de autonomia, pois os mesmos só são selecionados em construções que permitem a concordância dupla.

São essas mesmas construções determinadas pelas marcas de tempo-aspecto e pela negação que franqueiam casos de correferencialidade e outros movimentos. E que põem por terra a possibilidade de reinterpretar os marcadores de pessoa fora do eixo transitivo/intransitivo e, ao mesmo tempo, reafirmar o sistema ergativo para o Bakairi, segundo o qual se diferencia o sujeito transitivo do objeto e do sujeito intransitivo, estes igualados com as mesmas marcas. A marcação de pessoa em Bakairi espelha um padrão ergativo-absolutivo e outras evidências no bojo da sintaxe favorecem também falar de um padrão ergativo-absolutivo.

Uma última observação sobre a restrição de marcação de pessoa entre transitivos e intansitivos foi discutida em tabalho anterioir (Souza, 1994Souza, T.C.C. de (1994). Discurso e oralidade: um estudo em língua indígena [Tese de Doutorado]. UNICAMP. https://www.cpei.ifch.unicamp.br/biblioteca/discurso-e-oralidade-um-estudo-em-l%C3%ADngua-ind%C3%ADgena (acessado 30 de outubro, 2023).
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), no que se refere à categorização do argumento externo versus a categorização dos argumentos internos. Dada a função nuclear dos argumentos internos (caso absolutivo) na estrutura sintática (e textual) da língua como um todo, consideramos o sujeito do verbo transitivo como um “não-argumento”, gerado na base pelo movimento de adjunção. Nesse caso, seguindo Rizzi (1991Rizzi, L. (1991). Relativized Minimality. The MIT Press. https://www.biblio.com/book/relativized-minimality-volume-16-linguistic-Inquiry/d/1456823737 (acessado 30 de outubro, 2023).
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), as marcas correpondentes ao sujeito de verbo de transitivo são tratadas por nós como índices referenciais previstos “em termos do tipo de conexão que se estabelece antre as variávies vinculadas a argumentos e as vinculadas a adjunto.” (Souza, 1994Souza, T.C.C. de (1994). Discurso e oralidade: um estudo em língua indígena [Tese de Doutorado]. UNICAMP. https://www.cpei.ifch.unicamp.br/biblioteca/discurso-e-oralidade-um-estudo-em-l%C3%ADngua-ind%C3%ADgena (acessado 30 de outubro, 2023).
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).

Assim, a diferença de marcação de pessoa aqui discutida significaria a vinculação de uma categoria vazia a um elemento movido de uma posição argumental, por oposição à vinculação a um elemento em posição não argumental (adjunção). Esses fatos requerem uma longa discussão não prevista no escopo do trabalho atual, mas podemos concluir que o status dos marcadores dos verbos transitivos são índices referenciais (licenciados por um papel temático referencial segundo Rizzi (1993)), enquanto o status dos marcadores dos verbos monoargumentais seriam a expressão do caso absolutivo, atribuído pelo verbo. O caso ergativo seria inerente, ou lexical.

3. Paradigmas verbais, caso e ergatividade

Os verbos em Bakairi estão distribuídos em dois paradigmas10 10 Estes paradigmas foram discutidos anteriormente por Von den Steinen (1892) e Capistrano de Abreu (1885). A posição de ambos é divergente: o pesquisador alemão atribui uma diferença de sentido à diferença de paradigmas, quando compara por exemplo, um verbo transitivo modificado por um transitivizador, cada um pertencendo a paradigmas distintos; já o pesquisador brasileiro, atribui aos dois paradigmas a diferença entre verbos transitivos e intransitvos. : verbos que na forma perfectiva fazem o passado em -tai (dai) e em -aki (agui). Nossa análise (Souza, 2014Souza, T.C.C. de (2014). Ergatividade e funcionamento dos verbos em Bakairi (Karib). Revista FSA (Faculdade Santo Agostinho), 11(2), 263-287. https://scholar.archive.org/work/go2lberb2vdcrm57iwvvnsbfze (acessado 30 de outubro, 2023).
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, retomado em parte e rediscutido aqui) busca primeiramente verificar se essa diferença de paradigmas pode ser, em Bakairi, distribuída no viés inacusativo/inergativo (cf: Perlmutter, 1978Perlmutter, D. (1978). Impersonal passives and unaccusative hypothesis. Proceedings of the Annual Meeting of the Berkeley Linguistics Society, 4, p. 157-189. https://escholarship.org/uc/item/73h0s91v (acessado 30 de outubro, 2023).
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e Burzio, 1986Burzio, L. (1986). Intransitive Verbs and Auxiliaries, Italian Syntax A Government-Biding Approach. Reidel Publishing Company.) e levantar um conjunto de diagnósticos que comprovem esta subdivisão. A sistematização desses verbos, porém, parece atrelada a diferentes fatores, que atendem a critérios de ordem morfológica e sintática, dadas as restrições e implicações advindas da estrutura sintático-ergativa da língua.

Como já demonstrado acima, no que se refere às marcas de pessoa dos verbos monoargumentais, definidas por mim como marcas de Caso, constata-se que o caso absolutivo funciona como default. Por ser default, é sempre assinalado na língua, independente das marcas de tempo-aspecto que selecionam marcas de um dos três sistemas de marcação de pessoa disponíveis. Já as marcas que correspondem ao sujeito dos verbos transitivos (caso ergativo) só estão presentes em construções complexas e com aspecto imperfectivo (cf: Exemplos 1, 2, 6, 9b, e 9c). Esses fatos decorrem das restrições à correferencialidade em Bakairi, que podem ser assim generalizadas: dois argumentos de natureza sintática diferente não se correferenciam livremente na língua em frases complexas. Logo, há restrições na correferencialidade entre o sujeito transitivo com o sujeito de verbos intransitivos e com o objeto direto. Isso expressa a natureza sintática distinta entre o sujeito de verbo transitivo, que se diferencia do sujeito do verbo intransitivo e do objeto direto - padrão ergativo-absolutivo.

Assim, por ser o Bakairi uma língua ergativa, sua estrutura sintática vai apontar diferenças de funcionamento nos verbos inacusativos e inergativos, se afastando, em termos configuracionais, da generalização de Burzio, particularizando, então, a subcategorização dos verbos intransitivos em Bakairi, no que se refere à marcação de Caso e à configuração que sustenta essa marcação, como será discutido a seguir.

A hipótese

Perlmutter (1978Perlmutter, D. (1978). Impersonal passives and unaccusative hypothesis. Proceedings of the Annual Meeting of the Berkeley Linguistics Society, 4, p. 157-189. https://escholarship.org/uc/item/73h0s91v (acessado 30 de outubro, 2023).
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) e Burzio (1986Burzio, L. (1986). Intransitive Verbs and Auxiliaries, Italian Syntax A Government-Biding Approach. Reidel Publishing Company.), dentre outros, alimentam a discussão sobre a bipartição dos verbos monoargumentais, aventando:

  • (1) A distinção dos verbos intransitivos em inergativos e inacusativos, tendo em comum entre estes o fato de requererem apenas um argumento que, sintaticamente, ocupa a posição de Spec de IP. (Perlmutter)

  • (2) A questão da inacusatividade gira em torno do fato de, se verbos atribuem caso acusativo a seus objetos, por que um DP dentro de um VP em construções não acusativas não tem caso acusativo? A saída para esse impasse estaria na argumentação de que “Todos e somente verbos que atribuem um θ-role a sujeito podem atribuir caso acusativo ao objeto”. (Burzio)

Observa-se, ainda, que a subdivisão dos verbos monoargumentais é tematicamente motivada, visto que, em geral, o inergativo seleciona um agente e o inacusativo seleciona um tema/paciente. Entretanto, as duas subclasses de verbos ficam apagadas pelo fato de que, na maioria das vezes, o único argumento dos verbos inergativos e dos inacusativos ocupa a posição sintática de sujeito da sentença, i.e., Spec de IP, muito embora possam ser gerados em posições de base distintas.

Essas colocações abrangem, em geral, dados de línguas nominativo-acusativas, como o português, ou o inglês. Nas línguas ergativas, como no caso do Bakairi, a estrutura sintática tem como previsão o sujeito intransitivo interno ao VP, preenchendo a mesma posição do objeto e, aí, recebendo o caso absolutivo. Nesse caso, não se prevê também um argumento externo para os verbos inergativos: ambos os argumentos dos verbos inergativos e inacusativos seriam gerados dentro do VP, em posição pré-verbal; a mesma posição do objeto de verbos transitivos. A posição pré-verbal é, em Bakairi, uma estrutura canônica de atribuição do caso absolutivo. Mas haveria diferença em termos de papéis temáticos entre esses dois argumentos internos numa língua ergativa?

As estratégias para diferenciar esses dois verbos visam demonstrar a agentividade do sujeito inergativo face à característica de tema/paciente do sujeito inacusativo. No caso de uma língua ergativa, essas estratégias estariam para a diferenciação temática entre os dois argumentos internos, ambos marcados com o caso absolutivo, mas não preveriam diferença na seleção dos argumentos sintáticos. Dispomos de algumas evidências, em Bakairi, para sustentar tal diferença, como se verá a seguir.

Movimento para foco e papéis temáticos

Em Bakairi, há dois mecanismos básicos de focalização: uma marca morfológica de tempo (presente), usada apenas em construção de foco - erã -11 11 Provavelmente esta forma se origina de iwerã ‘agora’. e extração. A inversão da ordem dos constituintes, recurso eficaz em diversas línguas, não se realiza em Bakairi, já que na posição pré-verbal - SV e OV - se define o caso absolutivo, não podendo, portanto, ser alterada12 12 As ordens VS e VO marcam as sentenças como perguntas. A ordem SOV se realiza quando S é preenchido por nomes ou elementos de referência que funcionam como os nomes. Com pronomes de 1ª. e 2ª. pessoa do singular/plural, a ordem é OVS. . O movimento para foco, por sua vez, permite que o alinhamento dos constituintes se altere, mas a forma verbal também se altera. Os Exemplos 10 a 15 com verbos transitivos, ilustram esse movimento e

(10) ugondo aroi n-emagaze-dai

homem arroz 3abs-roubar-passado (hoje)

‘O homem roubou o arroz.’

(11) ugondo aroi n-emagaze-ne (ontem)

homem arroz 3ab. roubar-agente (= o ladrão do arroz)

‘Foi o homem que roubou o arroz.’

(12) ugondo erã aroi n-emagaze-dyle (hoje)

Homem foco/tempo arroz 3ab. roubar-agente (= o ladrão do arroz)

‘Foi o homem que robou o arroz.’

(13) aroi erã ugondo ỹ -emagaze- tybe (= o roubado)

arroz foco/tempo homem 3erg-3ab-roubar-objeto

‘Foi o arroz que o homem roubou’ (hoje).

(14) põrã erã maria ỹ -ãye-tybe

colar foco/tempo maria 3erg-3ab-fazer-objeto (= o feito dela)

‘Foi o colar, o que a Maria fez’

(15) maria keãnkâ potxi x-ukaga-ne

passado pote objeto-quebrar-agente

‘Foi a Maria que quebrou o pote’ (ontem).

permitem inferir que, nos verbos biargumentais, a extração do agente acarreta a presença de -ne13 13 Nas pesquisas realizadas entre 1984 e 1992, trabalhando com quatro consultores, registramos a forma -ne. Hoje em dia e, dada a escrita da língua, registramos a forma -ni com outros consultores, sobretudo mais jovens. Por ora, vamos manter a -ne. afixado à raiz verbal (Exemplos 11 e 15). Esta marca (de agente) agrega, ainda, o traço de tempo verbal, no caso, passado recente. Quando da extração do objeto, é o formativo -tybe que é afixado (Exemplos 13 e 14), também agregado à marca de tempo verbal do passado. Esses dois formativos entram, também, na formação de substantivos como tigasene ‘cantor’, egatune ‘contador de história’, e de adjetivos, como iladybe ‘molhado’, epaladybe ‘machucado.’ Já o formativo -dyle assinala o foco do agente no tempo passado imediato (erã), como no Exemplo (12). Esta marca -tyle assinala o aspecto contínuo, sem expressão de tempo, por isso o uso de erã.

Funcionamento dos verbos monoargumentais em Bakairi

Se, de fato, em Bakairi, a extração de argumentos acaba por resultar numa configuração que explicita o papel temático do elemento extraído, a extração que venha se realizar com verbos monoargumentais pode também contribuir à distinção entre os argumentos dos verbos inacusativos e inergativos e dos transitivos. Vimos acima, na descrição dos verbos biargumentais, que os sufixos -ne e -tybe, agregados aos nomes, diferenciam a extração do sujeito de verbo transitivo da extração do objeto. Pela análise dos Exemplos (16b), (17b) e (17c), extrações de (16a) e (17a), a seguir, verificamos que a extração de argumento de verbo inacusativo vem marcada pelo sufixo -in/-ẽi, e, não, pelo sufixo -ne. Esse movimento daria lugar à diferenciação de papeis quando da extração de argumento de verbos transitivos - o agente - e de argumento de verbos inacusativos e inergativos.

(16a) iamundo n-õnhake-agui

criança 3ab-vomitar-passado

‘A criança vomitou’

(16b) iamundo-erã õnhake-in

criança-foco vomitar- tema

‘Foi o criança que vomitou.’ (hoje)

(17a) iamundo n-irrugue-agui

criança 3abs.cair-passado

‘A criança caiu’

(17b) yamundo erã se-wâgâ irruge- in

hoje árvore-em cima cair-tema

‘Foi a criança que caiu da árvore. (hoje).

(17c) yamundo se-wâgâ irrugue-ybe

criança-foco árvore-em cima cair-tema

‘Foi a criança que caiu da árvore.’ (ontem)

Quanto à diferença entre a extração de argumento dos verbos inacusativos e dos verbos inergativos, esta não é morfológica, mas há uma distinção entre o traço [+humano; -humano] que faz com que os Exemplos 18 e 19 possam vir marcados como gramaticais, mas não aceitáveis.

(18) poti x-ukaga-dybiẽi (??)

pote abs.quebrar-paciente

‘Foi o pote que quebrou’.

(19) maria s-âe-tybe kahu-odai

abs-chegar-tema carro-dentro

‘Foi Maria que chegou de carro.

Sobre o exemplo (18), a não aceitação se deve ao fato de que o argumento em evidência “não se quebra sozinho” - dizem os consultores - “A frase não está errada, mas os Bakairi não falam assim.” O certo é a frase do Exemplo 20.

(20) poti maria x-ukaga-dibiẽi

pote abs.quebrar-paciente

‘Foi o pote, o que Maria quebrou’.

Pelo Exemplo (20), embora ‘pote’ seja afetado pela ação, há uma diferença semântica entre ‘cair’ e ‘quebrar’, a ação de quebrar necessita de um agente; a de cair, não.

Verbos monoargumentais e expansão de diátese

A principal diferença morfológica entre inacusativos e inergativos é que estes se alinham pelo paradigma em -tai, e os inacusativos, em -aki14 14 Esses dois paradigmas têm uma alternância interna a cada um, abrangendo, sempre, uma contraparte sonora, no que se refere, às consoantes (ex: -aki ~ -agui; -tai ~ -dai) para dar conta do processo de harmonia consonantal que abrange toda a distribuição dos segmentos consonantais na língua (Souza, 1995). . O ponto de partida sobre a distinção dos verbos em Bakairi em dois paradigmas _ -aki e -tai _ se deu com base na hipótese sobre a subdivisão dos verbos monoargumentais, e vimos, até então, que esta subdivisão se explica, pela distribuição dos verbos por essas marcas, como nos Exemplos de inacusativos, paradigma -aki, 21 a 28 e inergativos, paradigma -tai, 29 a 36.

(21) iamundo nekozeagui ‘A criança desmaiou’

(22) xíxi nãepanigueagui kawâgâ ‘O sol apareceu no céu’

(23) oroji nakozeagi inepa ‘O caju amadureceu rápido’

(24) iamundo nirrugueagui ‘A criança caiu’

(25) paru nabeaki ‘O rio secou’

(26) iamundo negaseagui kopailâgâ ‘A criança nasceu ontem’

(27) Maria nigueagui ‘Maria morreu’

(28) Patricia nõjakeagui. ‘Patrícia vomitou.’

(29) Tania nekadai peto iwague ‘Tania sentou perto do fogo’

(30) Tania neguetudai peto iwague ‘Tania deitou perto do fogo’

(31) iamundo negojigudai ‘A criança espirrou’

(32) iamundo negatudai ‘A criança correu’

(33) João nâitai iwerâ ‘João dançou hoje’

(34) konopio naugutai ‘O passarinho voou’

(35) iamundo inepa nautai. ‘A criança levantou rápido’.

(36) João nâetai ‘João chegou’

A bipartição dos verbos em Bakairi, porém, também se estende aos verbos transitivos, que se alinham pelos mesmos dois paradigmas sob discussão. Assim, a descrição do funcionamento dos verbos como um todo não se esgota com a solução encontrada para os verbos monoargumentais

Como é expandida a diátese verbal em Bakairi? Pela colocação dessa questão, aventamos, de imediato, que a intransitividade é um processo primitivo, como já se discute no bojo da teoria gerativa15 15 Mais adiante retomaremos Chomsky (1995) e outros para sustentar melhor a afirmativa de que a transitividade é uma questão de derivação. . Partimos, então, para a expansão dos verbos monoargumentais.

Verbos inacusativos e expansão de diátese

A hipótese da inacusatividade advém do fato de o único argumento do verbo ser uma projeção deste, ou seja, de V, mas, apesar dessa condição, não receber aí o caso acusativo. Em línguas ergativas, como o Bakairi, esta projeção atribui o caso absolutivo ao argumento interno do verbo, fato que não só iguala o sujeito de verbo intransitivo ao objeto direto, como também não distingue em termos configuracionais os inacusativos dos inergativos. O traço de inacusatividade se reforça com os verbos em Bakairi, quando se constata que num processo derivacional, a inserção de um transitivizador, obrigatoriamente, muda o paradigma verbal. Os verbos inacusativos, de paradigma aki/agui, uma vez transitivizados com a afixação do transitivizador (-nã ~ -ã), obrigatoriamente, passam a funcionar pelo paradigma -tai/dai. Observem-se os Exemplos 37a a 38b.

(37a) pepi n-eti-agui

canoa 3abs-afundar-passado

‘A canoa afundou.’

(37b) yamundo pepi n-eti-ã-dai

criança canoa 3a.abs.afundar-transitivizador-passado

‘A criança afundou a canoa.’

(38a) âtâ n-abe-aki

roupa 3abs-secar-passado

‘A roupa secou.’

(38b) maria âtâ n-abe-ã-tai

maria roupa 3abs.secar-transitivizador-passado

‘Maria secou a roupa.’

O que de relevante se observa nos exemplos acima é que os mesmos podem ter uma contraparte transitiva16 16 Em muitas línguas Karib, como o Kuikuro, por exemplo, o processo é outro: o verbo transitivo é intransitivizado (ou reflexivizado, como se diz) para dar conta da expressão verbal intransitiva. , mas há também verbos inacusativos que não permitem a expansão da diátese como, por exemplo, em

(39a) patricia n-õjake-agui.

3abs.-vomitar-passado

‘Patrícia vomitou.’

(*39b) patrícia karne n-õjake--dai.

carne 3abs.-vomitar-tr.passado

‘Patrícia vomitou a carne.’

A expressão que traduz a frase em português é

(39c) patrícia n-õjake-agui karne-gue.

3ab-vomitar-passado carne-instrumental

‘Patrícia vomitou a carne.’ / ‘Patrícia vomitou por causa da carne.’

Se os argumentos dos verbos inacusativos são, em termos temáticos, argumentos afetados pela ação, ou seja, tema ou paciente, eles não permitem a transitivização, a não ser através de um transitivizador, o que licenciaria um argumento externo, marcado pela agentividade (Exemplos 37b e 38b). E aí se instituiria, de fato, a relação agente/paciente. No caso do exemplo (*39b), agramatical, a transitivização não se dá, porque o processo que aí se institui não é o de licenciar um argumento-externo-agente e, sim, introduzir um argumento-tema [‘carne’]. O que se tem em Bakairi é que o padrão transitivo é sempre derivado, o que significa que o argumento externo (caso ergativo) é também derivado. O recurso do transitivizador, por sua vez, acarreta não só o licenciamento de um argumento-externo, como faz com que se verifique a mudança de paradigma [-aki → -tai], com a transitivização. Sobre o exemplo (*39b) ainda se observa que, caso fosse possível a transitivização, esta acarretaria a mudança de função do argumento afetado do verbo ‘vomitar’, passando este de sujeito absolutivo/tema para sujeito ergativo/agente: tal processo não é acusado no Bakairi. Os argumentos internos são em si argumentos primitivos, não passíveis de mudança de status; isto é, não são alçados à posição de sujeito/ergativo. Isso garante e reforça, em termos sintáticos o padrão ergativo-absolutivo. Observe-se, ainda, que a transitivização do verbo não faz com que o papel temático de ‘canoa/roupa’ (Exemplos 37b e 38b) se altere, permanecendo como paciente da ação de afundar/secar. A questão que envolve a expansão da diátese em Bakairi é bem mais complexa do que se viu até aqui.

Os exemplos acima funcionam como evidência sobre a impossibilidade de os argumentos internos ao VP mudarem de status sintático, caso em que a transitivização de inacusativos é barrada. Entretanto, estes mesmos verbos podem ocorrer em construções com transitivizador, desde que este formativo coocorra com um causativizador. Não é raro, em muitas análises, se aventar que o causativizador, por si só, transitiviza o verbo. Em Bakairi, esses dois formativos não se confundem, tendo cada um uma função própria, como se evidencia nos Exemplos 40a e b.

(40a) potxi n-irrugue-agui

pote 3bs-cair-passado

‘O pote caiu’

(40b) iamundo potxi n-irrugue-ã-nerru-agui

criança pote 3abs.-cair-trans-causativo-passado

‘A criança derrubou o pote’. / ‘A criança fez o pote cair.’

No exemplo (40b), observa-se que a afixação de dois formativos à raiz de um verbo inacusativo não só é permitida, como também o verbo não muda de paradigma, como acontece com a presença somente do transitivizador. Em termos teóricos, podemos analisar ‘nerru’ como um causativo lexical, como proposto em Harley (2006), que se comporta como uma só palavra sintática, semântica e morfofonologicamente: um só verbo, cabeça de um só VP. Sintaticamente, potxi ‘pote’ desempenha, no exemplo acima (40b), a função de argumento afetado de irrugue ‘cair’, marcado no verbo com o caso absolutivo [n-]. Assim, a causativização de verbos inacusativos corresponde a dois eventos conjugados numa só cláusula, essa conjunção, porém, se dá a partir da coocorrência dos dois formativos em causa: o transitivizador [ã] tendo como função licenciar um argumento externo (causador) ‘a criança’, e o causativizador [nerru] introduzindo o evento causa. Segundo Harley, construções monooracionais, além de serem uma palavra morfofonológica, como cláusula produtiva, esta está claramente no domínio de marcação de caso, licenciando somente um argumento marcado como nominativo/absolutivo. No exemplo em questão, o argumento interno ‘pote’ é marcado como absolutivo [n-]17 17 Em trabalho em andamento, retomamos dados como o expresso em (40b) colocando em discussão a proposta de Pylkkänem (1997) de dissociar transitivização de causativização. .

Processos de reflexivização/detransitivização

Em Bakairi, para se chegar à diátese reflexiva, entra no processo o recurso ao inversor de diátese (Exemplos 41 a 48)

(41) peto âmugâ n-ixigo-gue-agui

fogo panela 3abs.-derreter-verbalizador-passado

‘O fogo derreteu a panela.’

(42) komiti n- a j -ixigo-gue-agui

3abs.-inversor- derreter-verbalizador-passado

‘A cera derreteu.’

(43) maria potxi n -ukaga - dai

3abs.-quebrar-passado

‘Maria quebrou o pote.’

(44) potxi n -ad-ukaga - dai

3abs-inversor-quebrar-passado

‘O pote quebrou.’

(45) maria iamundo n-enoku-dai

criança 3abs-enganar-passado

‘Maria enganou a criança.’

(46) maria n -as -enoku -dai

3abs-inversor-enganar-passado

‘Maria se enganou.’

(47) maria iamundo n-ati-agui

criança 3abs.-machucar - passado

‘Maria machucou a criança.’

(48) maria n- ad- ati-agui urruru-gue

3ªabs.inversor-machucar-pass. pé-instrumental

‘Maria se machucou no pé.’

Os Exemplos (41) a (48) vêm demonstrar que o inversor de diátese se agrega tanto aos verbos em -aki quanto aos em -tai, não resultando em mudança de paradigma. Há, porém, um outro mecanismo de reflexivização em Bakairi, muito pouco frequente, onde o recurso em causa é o jogo com a harmonia consonantal (Exemplos 49 e 50).

(49) maria t-âma-ri n-igoke-agui

próprio-mão-posse 3ab.-lavar-passado

‘Maria lavou as mãos.’

(50) maria n -ikogue -agui

3ªsu-lavar-passado

‘Maria se lavou.’

Nos Exemplos 49 e 50, não há necessidade de uma marca morfológica para expressar o processo, bastando a mudança na combinação dos segmentos surdos: -igokeagui → SOSUSO/ -ikogueagui SUSOSO18 18 Conferir notas 8 e 14. . Fato que nos faz aventar que a reflexividade, em Bakairi, não é estritamente uma questão de se expressar que uma mesma ação reflete sobre quem pratica, fazendo com que dois papéis - agente e paciente - sejam desempenhados por um só argumento. Exemplos como os que envolvem seres inanimados, caso dos Exemplos 44 - ‘O pote [se] quebrou.’ - e 42 - ‘A cera [se] derreteu.’ (e inúmeros outros semelhantes) acarretam a conclusão de que os chamados processos de reflexivização/detransitivização, em verdade, espelham uma forma de marcar a afecção, tornando os verbos intransitivos: (i) os verbos transitivos-denominais (via verbalizador, Exemplos 41 e 42), com paradigma -agui, quando reflexivizados passam a funcionar como os inacusativos; (ii) os transitivos paradigma -dai previstos no léxico (transitivizador ø) passam a funcionar como os inergativos (Exemplos 43, 44, 45, 46), uma vez reflexivizados. Quanto aos transitivos com paradigma -agui, Exemplos 47 e 48, além de um número reduzido na língua, estes parecem fugir ao funcionamento dos verbos em geral em Bakairi, pois espelham o padrão encontrado em muitas línguas da família Karib, em que se registra a reflexivização e não a transitivização.

O conjunto das considerações que trouxemos até aqui apontam fundamentalmente que qualquer movimento em torno do processo de mudança de diátese verbal resulta em seu todo na reafirmação do padrão absolutivo da língua. Logo é preciso que se afirme para línguas como o Bakairi que os mecanismos de reflexivização ou de passivização, atestados em línguas nominativo-acusativas, não podem lhes ser transferidos automaticamente, como se tivessem o mesmo lastro sintático e semântico. Um mesmo afixo, chamado em geral como intransitivizador, nos leva a reconsiderá-lo em termos teóricos como inversor de diátese, cujas funções vão bem além dos processos até então explorados. Uma dessas funções, por exemplo, é expressar as frases que, em português, corresponderiam à voz passiva (Exemplos 51 e 52).

(51) iamundo ugondo -ã n- ad- apiogu -agui

criança homem-dativo 3abs-inversor-bater-passado

‘A criança foi surrada pelo homem.’

(52) potxi n- ad -ukaga -dai iamundo -ã

3abs.-inversor-quebrar-passado criança-dativo

‘O pote foi quebrado pela criança.’

O exame de enunciados como os dos Exemplos 51 e 52, acima, como também o enunciado do Exemplo *39b [patrícia karne n-õjake--dai./patrícia-carne 3abs.-vomitar-tr.passado/‘Patrícia vomitou a carne.’ e (39c) patrícia n-õjake-agui karne-gue / 3ab-vomitar-passado/carne-instrumental/‘Patrícia vomitou por causa da carne.’] evidenciam que o que obrigatoriamente é mantido é o estatuto sintático do argumento interno ao VP em qualquer expressão de diátese verbal. O que sempre vem a ser derivado é o argumento externo - sempre derivado por morfemas funcionais - que vem a exercer o papel de agente. Para nós a integridade do VP é nuclear na língua, tomada como estrutura de base com relação aos argumentos-absolutivos, posição defendida desde Souza (1994Souza, T.C.C. de (1994). Discurso e oralidade: um estudo em língua indígena [Tese de Doutorado]. UNICAMP. https://www.cpei.ifch.unicamp.br/biblioteca/discurso-e-oralidade-um-estudo-em-l%C3%ADngua-ind%C3%ADgena (acessado 30 de outubro, 2023).
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). As demais configurações sintáticas serão determinadas por adjunções, caso, por exemplo, do sujeito-ergativo configurado pela expansão vP, ou por by frase, caso dos demais adjuntos.

O que se procurou descrever até aqui foi parte da complexidade que envolve o funcionamento dos verbos em Bakairi. Tal complexidade não se encerra enquanto processos meramente morfológicos, mas sim, fica evidente que todos os aspectos em torno da diátese verbal reafirmam o funcionamento sintático da ergatividade que, no caso, do Bakairi, não vem expressa por marcas de caso no nome, mas que se reflete na configuracionalidade que sustenta a estrutura argumentativa. O Quadro 4 resume a distribuição dos verbos em Bakairi.

Quadro 4
Distribuição dos verbos por paradigmas

Voltemos à proposta de Burzio, colocando em foco a questão de atribuição de caso e determinação de papéis.

Ergatividade e a hipótese inacusativa

Em Bakairi, como já ficou evidenciado anteriormente, os marcadores de pessoa não compartilham a mesma natureza da flexão verbal em línguas nominativo-acusativas. Enquanto nestas, a flexão verbal atribui o caso nominativo ao sujeito, em Bakairi, o sitema descrito nos três quadros acima apresenta as marcas compartilhadas pelo sujeito de verbo intransitivo e do objeto direto. Em termos morfológicos, o status dessas marcas é de prefixos e temos analisado as mesmas como marcas de Caso. Entra em discussão, agora, ergatividade e inacusatividade. Comecemos por Burzio: “A questão da inacusatividade gira em torno do fato de, se verbos atribuem caso acusativo a seus objetos, por que um DP dentro de um VP em construções não acusativas não tem caso acusativo?” (Burzio, 1986Burzio, L. (1986). Intransitive Verbs and Auxiliaries, Italian Syntax A Government-Biding Approach. Reidel Publishing Company., p. 178)

Notando que verbos inacusativos não selecionam um argumento externo como papel, Burzio associa a propriedade de um verbo atribuir caso acusativo à sua propriedade de atribuir um papel de agente externo. Woolford (2003Woolford, E. (2003). Burzio’s generalization, markedness, and locality on nominative objects. In E. Brandner, & H. Zinsmeister (Eds.), New Perspectives on Case Theory (pp. 299-326). vol. 156. CSLI. https://citeseerx.ist.psu.edu/document?repid=rep1&type=pdf&doi=11aa5944b0a3976d7f492fefc0c870ee78bf01ed (acessado 30 de outubro, 2023).
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, dentre outros autores) propõe uma reformulação radical na generalização de Burzio. A partir da análise em base empírica de trabalhos de vários autores, surge o consenso de que o problema nada tem a ver com theta-role, nem com a possibilidade de o verbo licenciar o caso acusativo. A generalização de Woolford busca explicitar que o argumento interno toma o caso nominativo quando não há sujeito (nominativo/absolutivo). Tal reformulação se baseia, sobretudo, na análise de línguas ergativas (confere Mahajan (2000Mahajan, A. (2000). Oblique subjects and Burzio’s generalization. In E.J. Reuland (Ed.), Argument and Case: Explaning Bruzio’s Generalization (pp. 79-102). John Benjamins. https://doi.org/10.1075/la.34
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), com a análise do Hindi, apudWoolford, 2003Woolford, E. (2003). Burzio’s generalization, markedness, and locality on nominative objects. In E. Brandner, & H. Zinsmeister (Eds.), New Perspectives on Case Theory (pp. 299-326). vol. 156. CSLI. https://citeseerx.ist.psu.edu/document?repid=rep1&type=pdf&doi=11aa5944b0a3976d7f492fefc0c870ee78bf01ed (acessado 30 de outubro, 2023).
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), quando se constata que a presença de um sujeito/agente externo não é garantia para um objeto no caso acusativo, desde que sujeitos ergativos agentivos podem ocorrer com objeto no caso nominativo ou absolutivo.

Como em Bakairi, o argumento interno engatilha a concordância de pessoa, expressando o caso absolutivo, tem-se aí mais um fato ao encontro das evidências a favor da reformulação da generalização de Burzio, citadas no parágrafo acima. Ou seja, o objeto toma o caso absolutivo (= nominativo) quando não há um sujeito marcado com caso nominativo, como nas línguas ergativas. Ainda sobre o funcionamento desse tipo de língua, tem-se o fato de que a presença de um termo sujeito/agente externo não é suficiente para atribuição de Caso acusativo, estando em jogo um objeto no Caso nominativo/absolutivo.

Assim, Woolford busca formular um princípio mais acurado empiricamente para bloquear a checagem do Caso acusativo, arrolando exemplos de várias línguas para ilustrar como funciona o jogo de checagem e o princípio de marcação. Um desses princípios (como ocorre em Islandês) reflete o mesmo funcionamento da marcação em Bakairi: os objetos são marcados com o Caso nominativo (= absolutivo), quando o sujeito externo se define como caso lexical.

Várias outras abordagens evitam a previsão forte de que toda sentença precisa de nominativo. Destacamos, aqui, a proposta de Haider (1985, apudWoolford, 2003Woolford, E. (2003). Burzio’s generalization, markedness, and locality on nominative objects. In E. Brandner, & H. Zinsmeister (Eds.), New Perspectives on Case Theory (pp. 299-326). vol. 156. CSLI. https://citeseerx.ist.psu.edu/document?repid=rep1&type=pdf&doi=11aa5944b0a3976d7f492fefc0c870ee78bf01ed (acessado 30 de outubro, 2023).
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) e referendada por Woolford. Ambos trabalham com uma regra de atribuição de Caso de modo que se um traço/caso é checado estruturalmente numa sentença, o mesmo se realiza como nominativo/absolutivo. Ou seja, tomar o nominativo/absolutivo como prioritário é atender ao princípio de marcação: nominativo (= absolutivo) é, pelo menos, o único caso marcado.

Dado o padrão sintático do Bakairi - onde o caso absolutivo, não só é sempre marcado, como é nuclear para toda e qualquer projeção sintática na língua (como as restrições à correferencialidade, por exemplo) -, optamos pela solução de Haider e Woolford, porque a mesma permite sustentar teoricamente nossa análise, presente em trabalhos anteriores (cf: Souza 1994Souza, T.C.C. de (1994). Discurso e oralidade: um estudo em língua indígena [Tese de Doutorado]. UNICAMP. https://www.cpei.ifch.unicamp.br/biblioteca/discurso-e-oralidade-um-estudo-em-l%C3%ADngua-ind%C3%ADgena (acessado 30 de outubro, 2023).
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, 2006Souza, T.C.C. de (2006). Questões sobre ergatividade na língua Bakairi (Carib). XIV Congresso ALFAL: Monterrey, México. e outros), de ser o caso absolutivo, em Bakairi, de natureza estrutural, enquanto o caso ergativo seria inerente (ou lexical), segundo a proposta de que o caso inerente está atrelado a algum mecanismo morfossintático para ter expressão na língua. (Conferir Marantz (1997), McGinins (1998) e Woolford (2006Woolford, E. (2006). Lexical case, inherent case, and argument structure. Linguistic Inquiry, 37(1), 111-130. https://doi.org/10.1162/002438906775321175 1162/002438906775321175 https://people.umass.edu/ellenw/Woolford%20Lexical%20Case,%20Inherent%20Case,%20and%20Argument%20Structure.pdf (acessado 30 de outubro, 2023).
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)). No caso do Bakairi, os verbos inacusativos podem ser transitivizados, através de um morfema específico (-nã ~ -ã), para que o sujeito ergativo seja licenciado. Tal previsão vem sustentada com a hipótese do verbo leve, quando pode-se analisar a marca de transitivização como um predicado secundário e seria a cabeça de seu próprio vP, como propõe Chomsky (1995Chomsky, N. (1995). A minimalist program for linguistic theory. In N. Chomsky (Org.), The Minimalist Program (pp. 153-200). MIT. https://doi.org/10.7551/mitpress/9780262527347.003.0003
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). Nesse caso, o sujeito ergativo ocuparia a posição de um SpecvP, a qual não comportaria nem o sujeito intransitivo, nem o objeto. Tal previsão se estende ao Bakairi, restando, portanto, às construções inacusativas e inergativas partilharem a mesma configuração: um sujeito interno ao VP para atender ao filtro de caso.

Vários autores vêm colocando em discussão, em âmbito sintático, a hipótese sobre a divisão dos verbos intransitivos em inergativos e inacusativos. Dentre estes, Wiltschko (2007) argumenta que, numa língua sintaticamente ergativa, essa distinção não se aplicaria (grifo nosso). Em vários trabalhos realizados, venho, a partir da análise de diferentes construções gramaticais, afirmando que o Bakairi se enquadra no rol das línguas sintaticamente ergativas, sustentando, ainda, uma mesma configuração para os verbos inacusativos e inergativos, além de ambos os argumentos destes verbos receberem a marca de caso absolutivo.

A expressão da absolutividade em termos de configuracionalidade, além de reafirmar o caso absolutivo como sempre marcado, garante a integridade do VP, estrutura na qual os argumentos internos (comumente chamados de S e P) atendem ao princípio de atribuição de caso, satisfazendo o filtro morfológico. Quanto ao argumento externo (A), este ocuparia uma posição periférica, ficando o licenciamento do caso ergativo (caso inerente) na dependência de um verbo leve. A alternância que se verifica nos pares de verbos ergativos-causativos é outra fonte de evidência para a primazia do caso absolutivo na língua. Verbos inacusativos causativizados implicam a presença de um novo morfema ((n)ã) no verbo para a projeção de um argumento externo agente, como mostramos nos Exemplos 37b e 38b.

Observa-se aí nesses exemplos (37b e 38b) que o padrão transitivo é que é derivado, o que nos permite ratificar o funcionamento sintático da língua a partir do fato de que os constituintes que se definem em termos de estrutura argumental são os argumentos internos ao VP - sujeito de verbos intransitivos e o objeto. Eis aí uma evidência para se definir o Caso absolutivo como estrutural, atribuído pelo verbo, sendo o Caso ergativo de natureza lexical ou inerente.

A estrutura abaixo resume a configuracionalidade em Bakairi

na qual é possível prever que o sujeito de verbo inergativo ou inacusativo é gerado na base interna ao VP, enquanto o sujeito de verbo transitivo seria gerado no Spec vP. Uma vez gerados internos ao VP, estes argumentos não podem mudar o status sintático, como se comprovou por exemplo em (*39b) acima. O argumento do verbo inacusativo em (39a) ‘Patrícia vomitou (a carne)’, expressão agramatical em Bakairi, não pode ser alçado à condição de sujeito-ergativo/agente. E enunciados como (37a) pepi n-eti-agui [canoa 3abs-afundar-passado] ‘A canoa afundou’ e (37b) yamundo pepi n-eti-ã-dai [criança canoa 3a.abs.afundar-transitivizador-passado] ‘A criança afundou a canoa.’ comprovam, mais uma vez, em Bakairi, que o padrão ergativo é derivado. Fato que singulariza o Bakairi face a outras línguas Karib, quando aí se tem o processo inverso: os verbos transitivos, como ‘afundar’, ficam intransitivizados, pelo processo chamado de reflexivização.

A indistinção entre inergativos e inacusativos é, para Wiltschko (2007), uma das principais evidências a favor da nomeação de uma língua como sintaticamente ergativa. Aliada a essa evidência, está, ainda, a obrigatoriedade de um marcador transitivo para licenciamento de um argumento externo (sujeito transitivo) dentro do vP. Já em Souza (Souza, 1994Souza, T.C.C. de (1994). Discurso e oralidade: um estudo em língua indígena [Tese de Doutorado]. UNICAMP. https://www.cpei.ifch.unicamp.br/biblioteca/discurso-e-oralidade-um-estudo-em-l%C3%ADngua-ind%C3%ADgena (acessado 30 de outubro, 2023).
https://www.cpei.ifch.unicamp.br/bibliot...
), trabalhando com a versão de Princípios e Parâmetros, atestávamos, para o Bakairi, não só a indistinção configuracional entre os verbos monoargumentais, bem como a dificuldade de se lidar com a noção de sujeito postulada em P&P, no caso o sujeito do verbo transitivo (caso ergativo). Com a proposta do verbo leve (vP), (Larson, in Chomsky 1995Chomsky, N. (1995). A minimalist program for linguistic theory. In N. Chomsky (Org.), The Minimalist Program (pp. 153-200). MIT. https://doi.org/10.7551/mitpress/9780262527347.003.0003
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), foi possível reafirmar a configuração do VP em função dos argumentos internos (sujeito intransitivo e objeto, caso aboslutivo) e sustentar o comportamento sintático uniforme dos verbos monoargumentais (Souza, 2006Souza, T.C.C. de (2006). Questões sobre ergatividade na língua Bakairi (Carib). XIV Congresso ALFAL: Monterrey, México., dentre outros).

4. Conclusão

A investigação dos verbos monoargumentais em Bakairi, afinal, se mostra eficaz em função de um fato a mais à descrição de sua natureza ergativa. A primazia da marcação do caso absolutivo, ao lado da previsão de uma configuração única, vêm ao encontro da indistinção sintática entre inergativos e inacusativos. Fato que, para Wiltschko (2007), é uma das principais evidências a favor da nomeação de uma língua como ergativa. Aliada a essa evidência, estão outras, dentre as quais, se destaca a obrigatoriedade de um marcador transitivo para licenciamento de um argumento externo (sujeito transitivo) dentro do vP. Enquanto o verbo atribui o Caso absolutivo, como derivado, o Caso ergativo é inerente, ou lexical (Chomsky, 1995Chomsky, N. (1995). A minimalist program for linguistic theory. In N. Chomsky (Org.), The Minimalist Program (pp. 153-200). MIT. https://doi.org/10.7551/mitpress/9780262527347.003.0003
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).

Por fim, o fato de os verbos transitivos com paradigma -tai serem aqueles que espelham um padrão derivado que, nos termos de Chomsky (1995Chomsky, N. (1995). A minimalist program for linguistic theory. In N. Chomsky (Org.), The Minimalist Program (pp. 153-200). MIT. https://doi.org/10.7551/mitpress/9780262527347.003.0003
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), preenchem a cabeça de um predicado secundário (vP), faz com que se reafirme o caráter de agentividade delegado ao argumento externo. Essa conclusão, porém, não esgota a discussão em torno da divisão dos verbos em Bakairi por esses dois paradigmas (-aki e -tai), uma vez que há verbos transitivos que podem pertencer a esses dois paradigmas. Logo, esses dois paradigmas não só não recobrem a divisão dos verbos em transitivos e intransitivos, como também não trabalham exclusivamente em função da distinção entre inergativos e inacusativos. A investigação extensiva da expansão da grade dos verbos em Bakairi, como a reflexivização, ou intransitivização, operada em construções de voz passiva, ao lado da análise dos processos de correferencialidade entre argumentos de natureza sintática diferente, somam a uma análise mais abrangente de aspectos relacionadas à natureza ergativa da língua.

Em termos epistemológicos, nosso trabalho vem a um só tempo esgraçar as discussões sobre ergatividade e sintaxe, colocando em pauta o processo de detransitivização, alinhando os verbos por um funcionamento único quando em jogo esá a mudança de diátese, definido a nosso ver como o eixo central para se descrever as consequências estruturais decorrentes da absolutividade. Com isso, o que passa a ser relevante extrapola a distribuição de caso no nome, descartando como foco a marca do ergativo, e evidenciando ser o Caso absolutivo default com relação a todo e qualquer mecanismo sintático. Como demonstramos ao longo do trabalho o caso lexical expressando o agente pode vir também como “by frase”, entretanto não corresponderia, em Bakairi, ao caso ergativo, podendo corresponder ao instrumental e a outros casos. De pertinente, porém, é o fato de que qualquer argumento a exercer o papel de agente ser este derivado por algum gatilho. Logo, a ergatividade é um fenômeno derivado a partir de uma estrutura canônica absolutiva.

Referências

  • 2
    Trabalhos arrolados nas referências bibliográficas.
  • 3
    Conferir, entre outros, Heider (2000Haider, H. (2000). Licensing of structural case plus economy yields Burzio’s generalization. In E.J. Reuland (Ed.), Argument and Case: Explaning Burzio’s Generalization (pp. 31-55). John Benjamins. https://doi.org/10.1075/la.34.05hai
    https://doi.org/10.1075/la.34.05hai...
    ), Wiltschko (2000Wiltschko, M. (2000). The syntax of transitivity and its effects: Evidence from Halkomelem Salish. In K. Megerdomian, & L. A. Barel (Eds.), WCCFL 20 Proceedings (pp. 593-606). Cascadilla Press. https://www.cascadilla.com/wccfl20.html (acessado 30 de outubro, 2023)
    https://www.cascadilla.com/wccfl20.html...
    ), Wollford (2006Woolford, E. (2006). Lexical case, inherent case, and argument structure. Linguistic Inquiry, 37(1), 111-130. https://doi.org/10.1162/002438906775321175 1162/002438906775321175 https://people.umass.edu/ellenw/Woolford%20Lexical%20Case,%20Inherent%20Case,%20and%20Argument%20Structure.pdf (acessado 30 de outubro, 2023).
    https://people.umass.edu/ellenw/Woolford...
    ).
  • 4
    A = agente; S = sujeito e O = objeto.
  • 5
    A notação [-V] assinala a ocorrência da marca de pessoa antes de raízes começadas por vogal; a notação [-C] assinala a ocorrência da marca de pessoa antes de raízes começadas por consoante.
  • 6
    A variedade de Bakairi falada em Santana mantem até hoje a nasal como segmento pleno.
  • 7
    Dados transcritos em ortografia Bakairi. O símbolo [r] corresponde a um flap nasal ou oral; o símbolo [â] corresponde ao schuá [∂]; [g] representa a fricativa velar sonora. A vogal média posterior [o] é sempre aberta, e a vogal média anterior [e] é sempre fechada. [y] corresponde a [i]. Como a nasal antes da queda, nasaliza a vogal anterior, em ortografia Bakairi a marcação [ĩ-] corresponde a [inh-]. O padrão acentual em Bakairi é fixo, assinalando como proeminente a penúltima sílaba da palavra, exceto em palavras terminadas por ditongo (oral ou nasal), quando a última sílaba passa a ser a proeminente.
  • 8
    O inversor tem uma larga expressão - -at-; -ad-; -as-; -az-; -ax-; -aj-, decorrente do processo de harmonia consonantal (por isso a alternância surdo/sonoro) e de processos morfofonêmicos.
  • 9
    Em nossos trabalhos temos classificado como inversor de diátese o formativo analisado em língua Karib como intransitivizador. O alcance deste formativo não é o mesmo de um intransitivizador ordinário, e sim o de atender as restrições à correferencialidade de argumentos sintaticamente diferenciados. O mesmo pode ocorrer, inclusive, preso a verbos intransitivos, como ocorre com o exemplo (8).
  • 10
    Estes paradigmas foram discutidos anteriormente por Von den Steinen (1892Von Den Steinen, K. (1892). Die Bakairi Sprache. Leipizig.) e Capistrano de Abreu (1885Capristano de Abreu, J. C. (1995). Os Bacaerys. Revista Brasileira 1º. Anos, Tomos III e IV.). A posição de ambos é divergente: o pesquisador alemão atribui uma diferença de sentido à diferença de paradigmas, quando compara por exemplo, um verbo transitivo modificado por um transitivizador, cada um pertencendo a paradigmas distintos; já o pesquisador brasileiro, atribui aos dois paradigmas a diferença entre verbos transitivos e intransitvos.
  • 11
    Provavelmente esta forma se origina de iwerã ‘agora’.
  • 12
    As ordens VS e VO marcam as sentenças como perguntas. A ordem SOV se realiza quando S é preenchido por nomes ou elementos de referência que funcionam como os nomes. Com pronomes de 1ª. e 2ª. pessoa do singular/plural, a ordem é OVS.
  • 13
    Nas pesquisas realizadas entre 1984 e 1992, trabalhando com quatro consultores, registramos a forma -ne. Hoje em dia e, dada a escrita da língua, registramos a forma -ni com outros consultores, sobretudo mais jovens. Por ora, vamos manter a -ne.
  • 14
    Esses dois paradigmas têm uma alternância interna a cada um, abrangendo, sempre, uma contraparte sonora, no que se refere, às consoantes (ex: -aki ~ -agui; -tai ~ -dai) para dar conta do processo de harmonia consonantal que abrange toda a distribuição dos segmentos consonantais na língua (Souza, 1995Souza T.C.C. de (1995). O traço sonoro em Bakairi. In L. Weltz (Ed.), Estudos fonológicos das línguas indígenas brasileiras. UFRJ. https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Awetzels-1995-estudos/Wetzels_1995_EstFonolLinguasIndigsBr.pdf (acessado 30 de outubro, 2023).
    https://etnolinguistica.wdfiles.com/loca...
    ).
  • 15
    Mais adiante retomaremos Chomsky (1995Chomsky, N. (1995). A minimalist program for linguistic theory. In N. Chomsky (Org.), The Minimalist Program (pp. 153-200). MIT. https://doi.org/10.7551/mitpress/9780262527347.003.0003
    https://doi.org/10.7551/mitpress/9780262...
    ) e outros para sustentar melhor a afirmativa de que a transitividade é uma questão de derivação.
  • 16
    Em muitas línguas Karib, como o Kuikuro, por exemplo, o processo é outro: o verbo transitivo é intransitivizado (ou reflexivizado, como se diz) para dar conta da expressão verbal intransitiva.
  • 17
    Em trabalho em andamento, retomamos dados como o expresso em (40b) colocando em discussão a proposta de Pylkkänem (1997) de dissociar transitivização de causativização.
  • 18
    Conferir notas 8 9 Em nossos trabalhos temos classificado como inversor de diátese o formativo analisado em língua Karib como intransitivizador. O alcance deste formativo não é o mesmo de um intransitivizador ordinário, e sim o de atender as restrições à correferencialidade de argumentos sintaticamente diferenciados. O mesmo pode ocorrer, inclusive, preso a verbos intransitivos, como ocorre com o exemplo (8). e 14 15 Mais adiante retomaremos Chomsky (1995) e outros para sustentar melhor a afirmativa de que a transitividade é uma questão de derivação. .
  • Disponibilidade de dados

    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2021
  • Aceito
    20 Out 2023
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