Open-access Políptico

PALAVRA ABERTA FREE SPEECH

Políptico

Tomaz Tadeu

Professor do Programa de Pós-Graduação da UFRGS (Porto Alegre/Brasil). tomaz_tadeu@yahoo.com.br

I. menos

7. Não argumente. Minta.

4. Não disserte. Desconcerte.

3. Não demonstre. Desmonte.

2. Repita.

2. Não falei?

1. Não termine pelo fim.

300. Nem comece pelo começo.

35. Troque o fim pelo começo.

53. E vice-versa.

3. Aproveite e troque tudo.

12. Esqueça os rodapés. Tente os rodopios.

136. Livre-se das referências. Perca-se.

90. Não cite. Vampirize.

28. Não ornamente. Desmanche.

39. Não embeleze. Suje.

89. Não decore. Borre.

55. Não limpe. Manche.

145. Não floreie. Desflore.

18. Não regule. Fabule.

48. Se perguntarem pelo método, responda: todo.

59. Se perguntarem pelo objetivo, diga: tivo.

111. Se perguntarem pela teoria, ria.

201. Se perguntarem pela norma, informe: não vi.

44. Se perguntarem pela coerência, gagueje.

8. Se perguntarem pelo problema, abra: não tenho.

99. Se perguntarem quem disse, rebata: disseram.

250. Se pedirem para esclarecer, obscureça.

10. Não discorra. Distorça.

66. Não discurse. Desconverse.

200. Nem ordem, nem inversão. Diversão.

22. Não explique. Complique.

9. Não empilhe. Cave.

69. Não empaste. Raspe.

33. Não enfileire. Descarrilhe.

88. Não siga o caminho. Saia do trilho.

301. Não focalize. Disperse.

15. Não organize. Embaralhe.

78. Não dê forma. Deforme.

35. Não funda. Confunda.

101. Não centralize. Distribua.

102. Pra quê régua? Enfie os dedos.

38. Pra quê compasso? Meta os pés.

II. panfletinho

a. pensamentinhos

1. Não confundir o rebelde com o militante. São, aliás, inimigos mortais.

2. A rebeldia não é um estado de consciência, mas um movimento do pensamento.

3. O pensamento rebelde não tem hora, nem lugar. É intempestivo e impertinente.

4. O conformismo é da família do bom senso e do senso comum. Já a rebeldia tem relações de afinidade com o contra-senso e o não-senso.

5. Geograficamente, a rebeldia se situa nos antípodas dos gestos de boa-vontade e das piedosas declarações das boas-almas.

6. A rebeldia é sempre generosa. Piedosa ou caridosa, nunca.

7. A rebeldia até pode ser coletiva. Mas não funda nem segue escolas, partidos ou organizações.

8. O "não" do pensamento rebelde não tem nada a ver com niilismo. É exatamente o contrário: é sempre um "sim" à vida, contra os que tentam extingui-la.

9. À rebeldia repugna o culto aos pais da pátria e o apelo a salvadores messiânicos.

10. A rebeldia vem antes do poder. Satã não existe porque Deus existe. É justamente o contrário.

11. O rebelde pode passar. Arrepende-se, retrata-se, desdiz-se, adere a uma igreja, entra num partido, arruma uma boquinha no aparelho de Estado, veste um terno fino, pede a extrema-unção. Já a rebeldia obstina-se em sobreviver.

12. O desrespeito é a primeira regra de boas maneiras da rebeldia.

13. Se a rebeldia tem uma fórmula é a do personagem Bartleby, de Herman Melville: "Prefiro não". Ou, então, a do porqueiro de Antonio Machado/Juan de Mairena: "Não me convence."

14. A rebeldia nega-se a dar foros de privilégio a qualquer tipo de ator, individual ou coletivo: operário, sem-terra, sem-nada. Mas acredita piamente num povo por vir.

15. À rebeldia repugna falar em nome de quem quer que seja.

16. Seriedade é coisa de conformista. A rebeldia está mais para o riso e o humor. Mas isso não quer dizer que a rebeldia não seja pra valer.

17. Por inclinação, a rebeldia não se reserva um domínio limitado e específico: ela se alastra pela política, pela arte e pela conduta. Pela vida.

18. A rebeldia é puro desejo.

19. A rebeldia tem pouco interesse pelo que é. Em troca, é ilimitado seu interesse pelo que ainda não é e pelo que pode vir a ser.

20. Não existe rebeldia sem um pensamento do novo, do imprevisível e do inesperado.

21. Que ironia! O poder é pançudo, mas triste. A rebeldia é magra, mas alegre.

22. Nem vermelha, nem negra. A rebeldia não tem nenhuma cor. Tem todas.

23. Nem ícones, nem ídolos, nem vanguardas. Só conexões.

24. Nem bandeirinhas, nem símbolos, nem botõezinhos. Só criações.

25. A rebeldia não é a negação da ordem constituída. Ela é a afirmação daquilo que a ordem constituída nega.

26. Desconfiar dos que falam de revolução como se fossem padres ou pastores. Ou de padres e pastores que falam de revolução.

27. Intelectuais no governo ou no partido não passam de meros porta-vozes.

28. Não existe intelectual a favor.

b. intermezzo pedagógico

1. Pedagogia e pensamento não dão bom par.

2. A rebeldia não tem nenhuma solução para os problemas da educação. A rebeldia é um problema para a educação.

3. Não confundir rebeldia com formação da consciência crítica. A rebeldia não quer formar coisa nenhuma.

4. Formação para a cidadania, então, que palavrão! Cidadania? O rebelde responde: passo!

5. Nem vale a pena adjetivar a pedagogia. Pedagogia crítica, pedagogia da esperança, pedagogia rizomática. É que a substância é irrecuperável.

6. Com as pedagogias cristãs, então, meu Deus, a rebeldia não quer nem conversa. Vade retro, Jesus Cristo!

7. Não pensem que haja um divórcio entre pedagogia de esquerda e pedagogia de estado. São tão bem casados!

8. As pedagogias da esquerda no poder são simplesmente pedagogias de funcionários. Burocratizadas, pobrezinhas, morreram de bom comportamento.

9. A pedagogia é o reino das boas almas e dos espíritos caridosos. Que o inferno lhes seja ameno!

10. O que move a pedagogia não é nem a vontade de saber, nem a vontade de poder, mas a vontade de salvar. Mas quem eles querem salvar? E quem quer mesmo ser salvo?

11. As boas almas da pedagogia formam um imenso e deplorável Exército da Salvação. E dê-lhe sineta!

c. maquininha de guerra

1. Implodir o bom senso. Meios: o riso, o ridículo, o humor. Táticas: a inversão, a variação, o choque.

2. Permanecer a léguas de distância do aparelho de Estado. E de todas as suas ramificações: os sindicatos colaboracionistas, os movimentos sociais atrelados e as ongs auxiliares.

3. Forçar os limites. Empurrar as margens. Pular as fronteiras.

4. Cavar. Minar. Esburacar. Em algum lugar tem que haver uma saída.

5. Onde houver cerimônia, instalar a sem-cerimônia. Onde houver ritual, começar um baile.

6. Se apelarem para a autoridade, perguntar quem fundou. Se apelarem para a moral, perguntar quem inventou. Se apelarem para os valores, perguntar: de quem, cara-pálida?

7. Subverter a linguagem e a gramática: é por aí que se infiltram o poder do senso comum e o senso comum do poder.

8. Desatar os nós que vinculam os poderosos do momento aos coletivos abstratos: pátria, nação, família. Melhor: colocar em descrédito todo tipo de coletivo abstrato.

9. Fazer delirar as escolas, os partidos e as seitas, sem deixar de fora as religiões instituídas.

10. Nunca tomar nada de assalto. Se tiver que tomar de assalto é porque não vale a pena.

11. Juntar o libertino com o libertário, o desejo com a rebeldia.

12. Quando a esquerda vira à direita, é hora de dar meia-volta.

13. Contra os aprumados artilheiros do bom-senso, as estocadas de não-senso dos infernais arteiros da maquininhadeguerra.

14. Às convocações à ordem responder com a debandada geral. Às palavras de ordem, com as palavras fora de ordem.

d. antologia de algibeira

1. Se tivesse uma lista delas, me desligaria de todas as associações às quais nunca me filiei. Henry David Thoreau

2. Uma sociedade parece definir-se menos por suas contradições que por suas linhas de fuga: ela foge por todos os lados. Gilles Deleuze

3. Todos os corpos estão saciados; as consciências, resignadas. Não existe mais sequer aquela inquietação que atravessa o vazio dos ossos: só uma imensa satisfação de inertes almas bovinas. Antonin Artaud

4. Eu lhes digo: é preciso carregar ainda, dentro de si, algum caos, para poder dar à luz uma estrela dançante. Friedrich Nietzsche

5. É preciso livrar-se do mau gosto de querer estar de acordo com muitos. Friedrich Nietzsche

6. Melhor na ponta dos pés / Do que de quatro! Friedrich Nietzsche

7. Odeio do fundo do coração o séqüito dos déspotas e dos sacerdotes, /

Porém ainda mais o gênio que com eles se compromete. Friedrich Hölderlin

8. Não é com a ira que se mata, mas com o riso. Venham, matemos o espírito de gravidade! Friedrich Nietzsche

9. Se fizer uma revolução, que seja por diversão, / não com uma seriedade sinistra, / nem com um fervor mortal, / mas por diversão. D. H. Lawrence

10. Minha especialidade é viver era – a legenda / de um homem (que não tinha renda / porque não estava à venda). E. E. Cummings

11. A desobediência é a virtude original do homem. Oscar Wilde

12. O Estado mente em todas as línguas do bem e do mal; e, qualquer coisa que diga, mente – e, qualquer coisa que possua, roubou-a. Friedrich Nietzsche

13. Onde cessa o Estado, somente ali começa o homem que não é supérfluo. Friedrich Nietzsche

14. Não em torno de novos barulhos; em torno dos inventores de novos valores, gira o mundo; gira inaudível. Friedrich Nietzsche

15. Um exército vermelho deixa de ser uma máquina de guerra na medida em que se torna engrenagem mais ou menos determinante de um aparelho de Estado. Gilles Deleuze

16. Organize uma greve em sua escola ou local de trabalho, com a justificativa de que não estão sendo satisfeitas suas necessidades de indolência & beleza espiritual. Hakim Bey

17. Platão: "Se servisses Dionísio [tirano de Siracusa], não precisarias lavar verduras". Diógenes: "Se lavasses verduras, não precisarias servir Dionísio".

18. Você tem-me cavalgado, / seu safado! / Você tem-me cavalgado, / mas nem por isso me pôs / a pensar como você. / Que uma coisa pensa o cavalo; / outra quem está a montá-lo. Alexandre O'Neill

III. por que escrevemos assim

Porque não acreditamos na Santíssima Trindade. Porque renegamos o Pai. O Filho. E o Espírito Santo. Porque somos criaturas da terra. E no plano rastejamos. Porque nos recusamos a fazer a prova da identidade. É igual? É semelhante? É parecido? Reconhecemos? Apostamos tudo no teste da diferença. Aumenta o mundo? É estranho? Causa espanto? É irreconhecível? Isso faz a nossa cabeça. Porque não temos negócio com a objetividade. Nem com a subjetividade. Nem botamos nossas fichas na descontinuidade entre objeto e sujeito. Ou entre a linguagem e o mundo. Porque cremos que escrever é só escrever. Sem assunto. Nem propósito. Sem ciência. E sem metafísica. Porque não reconhecemos a divisão de disciplinas. Nem de gêneros. Não queremos classificar. Nem, muito menos, ser classificados. Porque somos da educação. Mas também não somos. Porque não somos da literatura. Mas também somos. Simplesmente porque queremos escrever o que nos dá na telha. O que nos vem à cabeça. E investir tudo na idéia que está à espreita. Porque não pertencemos a nenhuma seita. Nem nos filiamos a qualquer escola. E não tomamos nenhum partido. Porque não queremos ser bem comportados. Porque preferimos faltar ao respeito. E ser malcriados. Porque queremos fazer arte. Porque abominamos os padres, os pais da pátria e os guias dos povos.

E os que querem salvar o mundo. E nos levar juntos. Porque queremos armar nossa tenda no deserto. E pregar pra ninguém. Uma doutrina sem credo, sem dogmas e sem fé. Porque não viajamos sem nossa catapulta. E sem nossa bolsinha de calhaus. E nos divertimos mirando na cabeça dos que se dão importância. E na espinha dos que se curvam. E na perna dos que se ajoelham. E porque não nos importam os que detêm o poder. Ou que traficam com o poder. Ou que se dobram ao poder. Porque rejeitamos uma vida de rebanho. De resignação. E de conformidade. Porque recusamos os juízos. E os tribunais. E as sentenças de morte. Porque não acreditamos em abstrações. Num mundo melhor. Numa educação melhor. No outro mundo. Porque, pra nós, escrever não é comunicar idéias. Nem passar informações. Muito menos pregar, prescrever ou ensinar. Pra isso existem os jornais, as igrejas e as escolas. Preferimos confundir. Desorientar. E tirar do lugar. Sair do sério. E correr por fora. Porque é o nosso desejo. Que não vem de dentro. Nem de fora. Mas das juntas. Das junções. E dos encaixes. Dos cruzamentos e dos encontrões. Porque preferimos o humor ao espírito de gravidade. A falta de decoro às boas maneiras. O sóbrio ao espalhafatoso. Porque fugimos das cerimônias. E das santimônias. Da pompa e circunstância. E porque torcemos o nariz para o oficial. O sagrado. E o santificado. Porque escrever é a nossa morada. E o pão nosso de cada dia. Amém.

IV. devir-caramujo

Uma escrita. Um estilo. Isso me afecta. Me pega. Me puxa. Me gruda. Me grudo. Viro carrapato. Afecto. Me agarro. Meto-me. Penetro. Chupo. Sugo. Mas só três afectos? Mais, M. Deleuze. Mais. Tipo suspender o juízo. Deixar-se envolver. Me fabular. Me inventar. Fazer-me esquecer da vida. Lembrar-me de uma. Tirar-me da vida. Tirar-me a vida. Me dar uma. Agora, se o estilo faz corpo mole, façam-me o favor, me devolvam o ingresso. Mas escrever não é mole, não. Eles dizem que a enunciação é coletiva. Acredito. Dizem até que escreveram a dois. Duvido e faço pouco. Pra escrever faz falta um cantinho só seu. Ainda que no meio de muita gente. O truque aqui é saber se recolher. Devir-caramujo. Não se iluda. Você vai estar só. Mas não se apavore. Você já pode chamar a macacada. A matilha. O bando. O tal coletivo. Só com todo mundo. Você tava crente que era o dono do pedaço. Mas tire o seu cavalinho da chuva. Agora o cavalo é você. E o coletivo, o teu guia. Não do tipo soviete, claro. Mas nem por isso deixe de prestar atenção aos russos. Fique de olho, sobretudo, no mestre do diz-que-diz. Você vai começar a ouvir vozes. Só não pense que elas vêm de dentro. Estique bem a orelha. E acredite nos rumores. É com zunzum que a coisa funciona. Eu é muita gente. Agora te prepara. É chegada a hora. Você vai começar a falar línguas. ¿Estás listo? Mas não te preocupa, che boludo, que não falo dessas línguas. Tou sabendo que teu portunhol mal dá pro gasto. Tou falando de enrolar a língua. De botar a língua. Bota a língua pra fora. Da boca pra fora. Da língua pra fora. Pra fora da Língua. A Língua comporta. A Língua é morta. Tem que mexer a língua. Mexer com a Língua. Morder a Língua. A Língua é a coisa mais normal do mundo. Já uma [língua dentro da Língua] é uma monstruosidade. Serpenteia. Penteia. Teia. Serpentina. Sabemos que é conveniente ser fluente na própria Língua. Saber o que dizer na hora certa. No lugar certo. Uma palavra atrás da outra. Seguir uma linha reta. A palavra exata. Exata. Obedecendo a ordem certa. Nenhuma vírgula a mais. Nenhuma vírgula a menos. Muito conveniente. Coisa bem diferente é vacilar. Trocar as bolas. Tropeçar nas próprias palavras. Não dizer coisa com coisa. Isso é muito inconveniente. Meter a língua. Calar a Língua. A linguaruda. A língua dentro da Língua come a Língua. Como a Língua. A língua dentro da Língua também segue uma linha. Só que modulada. Mo-du-la-da. Abstrata. Ah, a Língua me cansa. Hora de recolher a língua. Não sem antes pedir que você me jure que não entendeu nadinha deste meu patuá. Quem disse que eu tava querendo me fazer entender?

V. milonguita

É tudo uma questão de velocidade. Mais. Menos. Me sopra o marrano. O gentil polidor de lentes. É veloz, te digo. O garoto. Ou a escrita dele. Começa fio d'água. Já córrego. Já corre. Escorrego. Quando me dou conta, é marzão. Correnteza louca. Redemoinho. Furacão. Katrina. Catarinão. Vou junto. Me deixo levar. Me deixo? Mal digo. Sou arrastado. Surfa. Ela. Ele. Eu, no sulco. No rastro. Bustrofédon. Ele surta. Ela salta. Eu fico alto. Alterado. Sem tragar. Sem fungar. Sem picar. Na carreira sem carreirinhas. A secas. Como o outro. O bêbado de água cristalina. Mas inspiro, claro. Respiro. Me aproveito das travadas. Pois esse garoto também roda o pé. Dá pra trás. Fica de pé atrás. Logo agora que eu já tinha tirado os pés do chão. Mas agora foi ele quem fincou os pés no chão. Arrasta os pés. Pesadão. Dá topadas no rodapé. Parou de correr. Agora discorre, o sabidinho, o sabidão. Engraçado. Diz corre. Mas fica parado. Não tem outro jeito. Agora é a minha vez. De empurrar o garoto. Botá-lo pra correr. Quer dizer, a escrita dele. Ela continua escorrendo, não nego. Mas essas freadas, sei não. Esses papelitos espalhados pelo chão. Me dizendo o que eu deveria saber. Bocejo. So boring, so boring. Eu não quero saber nada. Saber de nada. Tira essa lousa da minha frente, good boy. Some com esse Livro. Com o Livro. Não vim aqui pra ser informado. Tua informação não vale um tostão. Não quero nem de graça. Te digo, assim perde a graça.

Mas dou de barato e te digo logo, na marra, de sopetão, qual é a milonga. Qual é o barato. Mas você já sabe. Soube desde o começo. O que te atrapalhou foi o excesso de prudência. As salvaguardas. Mas aqui não tem nada pra salvar, nem guardas a proteger. Guarda aberta. Estamos aqui pra arriscar. É tudo ou nada. Rola o dado e manda ver. Depois, güenta o tranco. Ou você prefere a segurança do seu chãozinho? Uma milonguita que te leve de volta ao natal? Mas agora fui eu que perdi o caminho. Como ia dizendo, deixa de conversa fiada e me golpeie de uma vez. De direita ou de esquerda, não importa. Me bote a nocaute. Me atinja no peito. Na boca do estômago. Me deixe puto. Me irrite. Me alegre. Me deixe triste. Me arrebate. Tá certo. Eu admito. Foi mesmo isso que você fez a maior parte do tempo. Eu sei. Você dá mostras de que entende do riscado. Do arriscado. Você conhece os golpes. Boxeur. Esgrimista. Jazzeur. Você vai direto ao ponto. Do oponente você conhece os pontos fracos. Você é um atleta da escrita. Só não esqueça dos seus pontos fracos. É aqui que eu lhe pego. Já lhe disse alguns. Mas não todos. Desta vez você venceu. Mas ainda vou lhe fazer beijar as cordas. So long, bad boy.

VI. jam session

Isso é uma banca.

Isso é, uma banca.

Isso é uma banca?

Isso é uma banca!

Isso é uma banca?!

Isso é um tribunal?

O juízo de Deus?

O juízo final?

Ou estamos aqui só

pra desfrutar disso?

Como num painel

de degustação

de vinho.

Eu gosto disso.

Ou não gosto.

É tudo.

Quero é saber

se sabe a amoras maduras.

Se cheira a cravo ou canela.

Se reflete tons de rubis.

A vida que carrega

da vida passada na vinha.

Da seiva, do sol, do solo.

Gosto da brevidade.

Da concentração

e da intensidade.

Da desidratação.

Não gosto de

tanta explicação.

Não basta mudar

o rodapé de lugar.

Não saímos

da marcenaria.

Nem da pedagogia.

Dos teiques

eu gosto.

Do improviso.

Do imprevisto.

Do fragmento.

Do inacabado

que vira acabado

porque não tem

mesmo jeito.

Gosto menos

quando o teique

vira argumento.

Concerto, sinfonia.

Ópera barroca.

E o ritornelo

incha, engorda.

Fica sério.

E a cançãozinha

toma ares

de Hino Nacional.

Do que mais gostei

foi do estilo

do começo.

Cheio de bossas,

de manhas

e de patranhas.

A gente fica

sem saber

se o eu é o eu

ou se é aquele outro.

Se é o vivido.

Ou o inventado.

É bom ser enganado.

Não dá pra não gostar,

no começo ainda,

desse tom de non-sense,

de papo maluquinho,

de conversa descosida.

Não tem rumo

nem propósito

nem sentido.

Mas parece ter.

Pura esquizofrenice:

como a da família Glass

de J. D. Salinger.

E gosto das coisas.

As desprezadas coisas.

Das desprezadas vidas das coisas.

Das sacolinhas e das balanças,

dos cabides e das facas.

(Não será, talvez, por acaso,

que a sessão quase termina

com o casaco de Marx).

Agora na casa dessa gente

podiam facilitar as coisas

e chamar aquele objeto

simplesmente de esmeril.

Adorei os desenhos.

Detestei, porém,

vê-los rebaixados

ao vil papel de

meras ilustrações.

Mereciam melhor sorte.

Sem falar no truque,

arrabalero, por certo,

(ouço o som de

um bandoneon),

da muchacha que entrou,

assim de contrabando,

(mas disso eu gostei),

nesta jam session.

Não gostei muito

das intimidades.

Velho Buk, velho Miller.

Não é por nada, não.

Só sinto que isso

é da família,

do eu e do pessoal.

E conspira contra

o maquínico.

Desgosta-me

a fusão do Bartleby

de Melville-Deleuze

com o de Vila-Mata.

O do "prefiro não" com o

do "não escrevo, não".

Cuidado com a

Síndrome Vila-Mata:

informação não

é fabulação.

Pra terminar

este gosto-não-gosto

gostaria de dizer

que as piores coisas

disso tudo

não são minhas.

VII. ça marche

ça marche

quando me pega a

contrapelo e me destelha.

Quando me desatina

e me leva pra China.

Quando me tonteia

e me faz dizer Ah!

Quando me pega de

plancha e me retalha.

Quando me arranha a pele

e me lanha a carne.

Quando dói aqui.

E me faz dizer Ai!

Quando me pega de

jeito e me transporta.

Quando me toca o palato

e me aguça o tato.

Quando me deixa

alto e me faz dizer

mais quero mais!

Quando me faz ver

o que não eu não via.

E ouvir o que eu não ouvia.

E me carrega pra longe daqui.

E me faz dizer Oh!

Quando não sei se

o que ouço é

o que quer dizer ou

se o que quer dizer

é o que ouço.

Quando põe tudo

de ponta-cabeça.

E o que antes valia

não serve pra nada.

E o que não valia

agora não tem preço.

Quando me faz dizer

socorro que me perco!

Quando me incha

de desejo.

E me leva junto

e me funde

e me derrete.

E me faz dizer

Uhm! Aiii! Aaaah!

Ooooh! Ahnnn!

Sim! Sim! Assim!

Recebido em: 02/03/07

Aprovado em: 28/04/07

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jan 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2007
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