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AS CRÍTICAS À TEORIA POLÍTICA DE RAWLS: UMA TEORIA NÃO POLÍTICA DA POLÍTICA?

CRITIQUES TO RAWLS’ POLITICAL THEORY: AN APOLITICAL POLITICAL THEORY?

Resumo:

Este artigo examina críticas de diferentes vertentes da teoria política contemporânea à teoria política de Rawls. Essas críticas convergem para sugerir que, embora Rawls afirme sua teoria como política, esta seria uma teoria não política ou antipolítica. O objetivo é analisar essas objeções à insuficiência da teoria de Rawls como teoria política, buscando entender os limites e alcances dessa interpretação crítica. Para tanto, analisaremos as críticas externas à teoria rawlsiana elaboradas por Habermas, Walzer e Mouffe. A questão central é compreender se a teoria de Rawls, que é considerada por muitos como responsável por contribuir para a revitalização da teoria política contemporânea, seria, por fim, uma teoria não política. Pretende-se avaliar os argumentos que afastam o projeto rawlsiano do âmbito do político, especialmente a distância em relação à discussão política pública e aos conflitos políticos. A hipótese é que uma interpretação política da teoria rawlsiana é justificável, pois ela reconhece a existência de conflitos políticos profundos e leva em consideração a cultura política pública de sociedades pluralistas.

Palavras-chaves:
Teoria Política Normativa; Justiça Rawlsiana; Construtivismo Político; Conflito Político

Abstract:

This study examines critiques from several strands of contemporary political theory toward Rawls’ political theory. These critiques converge to suggest that, although Rawls claims that his theory is political, it would be considered a non-political or anti-political theory. This study aims to analyze these objections to the inadequacy of Rawls’ theory as political theory to understand the limits and scope of this critical interpretation. To do so, this research will analyze the criticisms of Rawlsian theory that have been formulated by Habermas, Walzer, and Mouffe. The central question is to understand if Rawls’ theory, which is considered by many as responsible for contributing to the revitalization of contemporary political theory, would ultimately be a non-political theory. This study intends to evaluate the arguments that distance the Rawlsian project from the political realm, especially from public political discussion and political conflicts. The defended hypothesis is that a political interpretation of Rawlsian theory is justifiable as it recognizes the existence of deep political conflicts and considers the public political culture of pluralistic societies.

Keywords:
Normative Political Theory ; Rawlsian Justice ; Political Constructivism ; Political Conflict

Introdução: o papel da teoria política de Rawls

A teoria política já teve seu fim anunciado por Easton ( 1953EASTON, David. (1953). The political system: an inquiry into the state of political science. New York: A. A. Knopf ) e Laslett ( 1956LASLETT, Peter. (1956). Introduction. In: LASLETT, Peter (ed.). Philosophy, politics and society: a collection. Oxford: Blackwell. pp. vii-xv. ), durante a segunda metade do século XX. A atmosfera intelectual na qual esse anúncio trágico para a teoria política foi formulado era marcada pela predominância da perspectiva de orientação empiricista do positivismo lógico. Sob essa perspectiva, os juízos morais e as preocupações normativas que outrora conduziam as reflexões da teoria política passaram a ser compreendidas como proposições valorativas que, de modo diferente das proposições sintéticas e analíticas, 1 1 “[…] o positivismo lógico distinguia três tipos de proposições: proposições”sintéticas”, sobre fatos empíricos […]; proposições analíticas, de necessidade lógica […]; e uma categoria residual, abrangente, de proferimentos “normativos” que nem descrevem algum estado do mundo nem contém verdades logicamente necessárias, mas servem apenas para expressar atitudes, sentimentos, preferências ou “valores”. Assim, para a perspectiva do positivismo lógico, os “[…] proferimentos éticos são cognitivamente vazios e sem sentido” (Ball, 2004 , p. 12). não seriam passíveis de comparação e verificação; e que, portanto, não poderiam ser derivadas de um raciocínio de tipo científico (Vita, 2008VITA, Álvaro de. (2008). “Apresentação da Edição Brasileira”. In: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: WMF Martins Fontes. ). Desse ponto de vista, portanto, a teoria política preocupada com questões normativas constituiria um campo de pesquisa infértil e, por fim, inútil para o entendimento e explicação dos comportamentos individuais, dos fenômenos sociais e políticos, além de sua inaptidão para oferecer diagnósticos capazes de servir como orientação à tomada de decisões políticas (Barry, 1980BARRY, Brian. (1980). The Strange Death of Political Theory. Government and Opposition, n. 15, pp. 276-288. ; Ball, 2004BALL, Terence. (2004). Aonde vai a Teoria Política? Revista de Sociologia e Política, n. 23, pp. 9-22. ).

Contudo, as posições de Easton e, sobretudo, de Laslett não foram discutidas sem ressalvas. O trabalho de Berlin ( 1962/2002BERLIN, Isaiah. (1962/2002). Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras. ) é um relevante contraponto a essa visão decadentista sobre a teoria política, e pode ser compreendido como uma resposta a esse enunciado trágico. De modo geral, Berlin destaca que as questões relativas à legitimidade do poder político, à liberdade, à justiça e à desobediência civil são todas questões normativas controvérsias em sociedades modernas pluralistas; e, nesse sentido, como questões controversas de moralidade política não poderiam ser redutíveis “[…] em causas, correlações funcionais ou probabilidades estatísticas” (Berlin, 1962/2002BERLIN, Isaiah. (1962/2002). Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 130). Questões como essas, portanto, “tornam claro que essas perguntas não são respondidas nem pela observação empírica, nem pela dedução formal” (Berlin, 1962/2002BERLIN, Isaiah. (1962/2002). Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras. p. 124).

Para compreendermos os rumos tomados pela teoria política, sobretudo a teoria política normativa, da segunda metade do século XX em diante, precisamos passar de algum modo pelo trabalho de John Rawls, em especial o livro Uma teoria da justiça , de 1971/2008RAWLS, John. (1971/2008). Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes. . Essa obra é considerada por muitos tanto como um trabalho que deu um impulso notável ao revigoramento das discussões morais controversas na teoria política (Barry, 1980BARRY, Brian. (1980). The Strange Death of Political Theory. Government and Opposition, n. 15, pp. 276-288. ; Miller, 1990MILLER, David. (1990). The Resurgence of Political Theory. Political Studies, v. 38, n. 3, pp. 421-437. ; Ball, 2004BALL, Terence. (2004). Aonde vai a Teoria Política? Revista de Sociologia e Política, n. 23, pp. 9-22. ; Gray, 2006GRAY, John. (2006). Jogos finais: questões do pensamento político moderno tardio. São Paulo: Editora Unesp. ) 2 2 “Nada contribuiu mais para moldar a filosofia política na última geração do que o livro de John Rawls Uma Teoria da Justiça . Para muitos, sua publicação há um quarto de século marcou o renascimento do próprio tema. […] Uma Teoria da Justiça determinou durante décadas a agenda do pensamento político acadêmico” (Gray, 2006 , p. 89). “O marco no desenvolvimento da teoria normativa foi sem dúvida ‘Uma Teoria da Justiça’ de Rawls, publicada pela primeira vez em 1971. […] Muitos dos principais textos nos anos que se seguiram são melhor vistos como tentativas de desenvolver alternativas sistemáticas à teoria de Rawls. ‘Sistemático’ é importante aqui” (Miller, 1990 , p. 428, tradução nossa). “[…] sua publicação [a obra Uma Teoria da Justiça , de Rawls] e recepção provou ser um importante fator no ressurgimento da Teoria Política na academia (Ball, 2004 , p. 15, acréscimo nosso). quanto um divisor de águas no que se refere à discussão normativa sobre a justiça. A partir dessa chave, podemos compreender a indicação de Nozick ( 1974–2011NOZICK, Robert. (1974/2011). Anarquia, Estado e Utopia. São Paulo: WMF Martins Fontes. /2011), um dos principais críticos de Rawls, de que qualquer teórico que almeje tratar sobre questões de justiça política e distributiva não pode se esquivar de passar pela teoria rawlsiana, seja para apreciá-la ou para criticá-la. Como indica Valentini ( 2009VALENTINI, Laura. (2009). On the apparent paradox of Ideal Theory. The Journal of Political Philosophy, v. 17, n. 3, pp. 332-355. ), as questões suscitadas pela obra de Rawls marcaram a agenda da teoria política e constituíram-se como um paradigma no qual os autores e autoras deveriam se posicionar. Nesse sentido, também podemos entender as palavras de Barry ( 1980BARRY, Brian. (1980). The Strange Death of Political Theory. Government and Opposition, n. 15, pp. 276-288. ) 3 3 “[…] Rawls foi quem mostrou que é possível sustentar um argumento racional sobre questões de valores. […] Entre os filósofos, o positivismo lógico, com sua doutrina de que todos os julgamentos de valor são meras expressões emotivas, já havia sido desacreditado. Mas Rawls foi a primeira pessoa a levar a mensagem para não filósofos” (Barry, 1980 , p. 285, tradução nossa). quando indica o papel de Rawls para a revitalização das preocupações normativas na teoria política contemporânea.

A despeito desse diagnóstico sobre a relevância da teoria rawlsiana para contribuir com o vigor das discussões da área de teoria política, uma posição marcante compartilhada na literatura recente, perpassando vário(a)s autore(a)s de diferentes perspectivas teóricas (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. ; Habermas, 1995HABERMAS, Jürgen. 1995. Reconciliation Through the Public use of Reason: Remarks on John Rawls’s Political Liberalism. Journal of Philosophy, 92(3): 109-131. ; Walzer, 2003WALZER, Michael. (2003). Esferas da Justiça: Uma defesa do pluralismo e da Igualdade. São Paulo: Martins Fontes. ), diz respeito ao argumento de que Rawls teria elaborado, na verdade, uma teoria não política da política . Logo, parece que estamos diante da instauração de um paradoxo interpretativo, isto é: como Rawls pode ser considerado uns dos principais responsáveis pela revitalização das discussões no campo da teoria política, e, ao mesmo tempo, ser considerado um autor cuja proposta teórica não é política? Dado que essa pergunta paradoxal evidencia uma contradição, é necessário entender quais argumentos são mobilizados pelo(a)s crítico(a)s de Rawls, e, principalmente, sob qual concepção de teoria política esse(a)s crítico(a)s estão justificando suas avaliações interpretativas. Neste artigo, pretendemos analisar os limites e alcances de tais interpretações críticas.

Trata-se aqui, portanto, de (i) uma discussão mais específica sobre como Rawls justifica sua teoria como política, e, também, trata-se, de (ii) uma discussão mais abrangente – e que não se encerra neste artigo – acerca das implicações normativas da concepção de política que é mobilizada pelo(a)s crítico(a)s de Rawls para justificar e avaliar o potencial político da teoria dele. Tomando essas questões como guia da análise, este artigo buscará avaliar as críticas à teoria rawlsiana enquanto uma teorização não política da política. Nosso objetivo geral é compreender se é possível justificar a teoria de Rawls como política e, nesse sentido; precisaremos, antes, depurar o alcance de tais críticas. Como objetivos específicos, procederemos a discussão e a avaliação dessas objeções ao caráter político da teoria rawlsiana a partir de um conjunto de questionamentos que acreditamos definir o escopo da questão posta pelo(a)s crítico(a)s:

  1. a.

    Do ponto de vista da justificação oferecida por Rawls para delimitar o escopo político de sua teoria, quais seriam os argumentos políticos mobilizados pelo autor;

  2. b.

    Quais são as justificativas oferecidas pelo(a)s crítico(a)s para fundamentar a consideração de que a teoria rawlsiana não é política;

  3. c.

    Como compreender a validade e o alcance da teoria política de Rawls a partir daquele(a)s crítico(a)s que a rotulam como não política e até como antipolítica.

O artigo se estrutura a partir da apresentação, primeiro em sua dimensão mais geral, da crítica dirigida à teoria rawlsiana. Num segundo momento, pretende-se apresentar as objeções específicas ao caráter político dela, iniciando por Habermas e Walzer e, em seguida, Mouffe. Almeja-se demonstrar como a formulação dessas críticas a Rawls é feita por caminhos distintos que, no entanto, confluem no sentido de indicar uma interpretação padrão da teoria rawlsiana como uma teoria não política.

Por fim, apresentamos a justificação que o autor liberal-igualitário oferece acerca de sua concepção política de justiça e, com isso, pretendemos oferecer argumentos em prol de uma interpretação política da teoria de Rawls. A argumentação que se pretende delinear no decorrer deste artigo será de tipo negativa, isto é, pretende-se discutir tais interpretações críticas à luz da hipótese argumentativa de que uma interpretação política da teoria rawlsiana é razoavelmente justificável. Pretende-se, portanto, elaborar uma argumentação divergente à “interpretação padrão” acima citada a partir da problematização e, quando necessário, da contestação, das críticas dirigidas ao liberalismo igualitário rawlsiano.

A teoria (não) política de John Rawls: da teoria moral à teoria política

As objeções formuladas à teoria política rawlsiana que serão objeto de nossa discussão se referem às críticas externas que estão em diálogo com Rawls tardio, posterior à publicação de Uma teoria da justiça ( 1971/2008RAWLS, John. (1971/2008). Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes. ). Para começar, elencaremos adiante algumas das principais revisões à Uma teoria da justiça , embora, cabe ressaltar, não pretendemos fazer uma discussão exaustiva desse tópico, 4 4 Para esse ponto ver: Freeman, 2003 ; Pogge, 2007 ; Mandle e Reidy, 2014 . já que nosso principal objetivo é refletir sobre críticas externas – de que a teoria rawlsiana não seria política – feitas em um período posterior.

Podemos dizer, em síntese, que o objetivo central de O liberalismo político , de 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , segundo Rawls, “é mostrar como se deve entender a sociedade bem-ordenada da justiça como equidade, formulada em Uma teoria da justiça à luz do fato do pluralismo razoável” (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. XXXVIII). Em sua preocupação de reformular a concepção de justiça, o autor afirma que, no livro de 1971, o argumento no qual estaria embasado o problema da estabilidade da justiça como equidade (Rawls, 2003RAWLS, John. (2003). Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes. ) pressupunha uma interpretação da congruência entre justo e bem que, além de colapsar o justo no bem e, com isso, diluir a diferenciação deontológica, condicionaria as exigências de uma conduta justa a uma doutrina do bem: a autonomia moral kantiana. Nesse sentido, a concepção de justiça esboçada em 1971 seria, por fim, uma concepção abrangente do bem, ancorada em posições éticas específicas.

Para tornar a concepção pública de justiça aceitável para os “cidadãos de fé” de uma sociedade marcada pelo pluralismo de concepções de bem, Rawls, como já foi mencionado anteriormente, revisitou certos pontos de sua teoria. Dentre as alterações feitas pelo autor, poderíamos elencar: (i) o desenvolvimento de uma concepção política de justiça; (ii) a alteração da concepção de pessoa moral para uma concepção política de pessoa; (iii) a ideia de razão pública (que de certo modo estaria contida em Uma teoria da justiça na cláusula da publicidade); e (iv) a ideia de consenso sobreposto, que corresponde a uma interpretação alternativa do problema da estabilidade em vista da interpretação formulada em Uma teoria da justiça . Todas essas modificações se interconectam no sentido de fornecer respostas ao dilema acerca de quais instituições políticas podem ser justificadas como legítimas e, portanto, seriam merecedoras de obediência individual e coletiva.

Um ponto central, e que se pode dizer que está no cerne de todas essas modificações introduzidas na concepção de justiça rawlsiana, é o abandono, por parte de Rawls, da pretensão de delinear sua concepção de justiça como parte da teoria moral. Assim, a própria concepção de justiça, bem como a concepção de pessoa que a acompanha, passam a ser concebidas como concepções políticas , e não mais concepções morais. Sua justificação requer o uso de razões que ninguém poderia razoavelmente rejeitar. Isso contrasta com a abordagem anterior do autor, que as fundamentava na adesão a uma concepção de autonomia moral kantiana, cuja justificativa era dependente de um suporte ético. Sob assa orientação, em O liberalismo político , o papel da justificação, com base no construtivismo político , torna-se fundamental para a compreensão da teoria política rawlsiana.

A despeito de Rawls ter revisado sua teoria, admitindo certas incompatibilidades internas e, sobretudo, afirmando uma concepção de justiça que passa a ser justificada como política e não metafísica, tais modificações introduzidas pelo autor, do ponto de vista de seus críticos, não conformariam razões suficientes para sustentar seu projeto teórico como uma teoria política da justiça. O cerne da questão reside no fato de que, para esses críticos e críticas, a concepção de Rawls permanece, mesmo após suas reformulações, apenas como uma concepção moral abstrata, não política. Nesse sentido, é fundamental compreender não apenas que tais modificações não são consideradas suficientes por seus críticos e críticas, mas também porque isso ocorre.

A teoria não política da política e suas abstrações filosóficas: as críticas de Habermas e Walzer

No debate que foi protagonizado por Habermas e Rawls, nos anos 1990, o teórico crítico, na terceira objeção 5 5 Não é nosso objetivo discutir todas as críticas sobre Habermas e sobre Rawls. que formula a Rawls, entende que as preferências deste filósofo prevalecem sobre a deliberação pública dos cidadãos “de carne e osso” (Habermas, 1990/ 2004HABERMAS, Jürgen. (1990/2004). A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. 2. ed. São Paulo: Loyola. , p. 84). 6 6 Rawls ( 1993/2011 ) esclarece que a ideia de sociedade bem-ordenada não é uma referência abstrata, mas adequadamente realista e, por isso, supõe que existam circunstâncias da justiça. Circunstâncias objetivas e subjetivas, as primeiras dizem respeito à escassez de recursos, e as segundas ao fato do pluralismo. Dessa forma, para o autor alemão, a teoria rawlsiana, ao abstrair as circunstâncias de contextos sociais reais nos quais as pessoas de “carne e osso” expressam suas reivindicações e ao delinear uma teoria que, a partir de contextos conjecturais e de constrangimentos hipotéticos – tal como o dispositivo de representação da posição original e o véu de ignorância –, pretende justificar sua validade no plano da discussão filosófica em vez de, e esse ponto da crítica de Habermas é importante, reservar a escolha dos princípios de justiça ao debate político público democrático. Soasessa lógica, o teórico crítico sustenta que os princípios de justiça de Rawls não passariam por um processo de legitimação democrático que é essencial para a justificação das instituições políticas (Habermas, 1990/ 2004HABERMAS, Jürgen. (1990/2004). A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. 2. ed. São Paulo: Loyola. , p. 67).

A crítica de Habermas atinge um ponto central da proposta do liberalismo político rawlsiano na medida em que a preocupação de Rawls em construir uma concepção política de justiça não poderia ser dissociada de seu propósito de construí-la sob o contexto de uma sociedade democrática, perpassada por valores políticos democráticos compartilhados na cultura política pública. Assim, sugerir, como faz o teórico crítico, que a teoria rawlsiana prescinde de considerações democráticas informadas por contextos concretos, e que, sobretudo, prescinde da política na medida em que sua justificação seria construída abstratamente de modo arbitrário pelo filósofo, é um apontamento que precisaria ser deslindado.

O argumento que se pretende demonstrar neste artigo supõe que (i) a validade da justificativa de Rawls sobre a concepção política de justiça , ao contrário do que afirma a crítica habermasiana, depende de considerações acerca da cultura política pública de cidadãos de “carne e osso”; e, como decorrência dessa discussão, pretende-se demonstrar (ii) como a definição de político em Rawls é informada por essas considerações que advêm da cultura política pública de uma sociedade democrática. 7 7 A tensão entre uma concepção normativa de sociedade democrática e uma concepção factualista, ou empiricamente orientada, de uma sociedade democrática, é relevante para esse ponto da discussão. O sentido que Rawls atribui à noção de sociedade democrática não se resume à concepção de um regime democrático competitivo. Podemos dizer que a compreensão rawlsiana de sociedade democrática é relativa à compreensão de uma sociedade que se estrutura com base no axioma da igualdade moral entre as pessoas (Vita, 2007 ).

Nesse sentido, cabe esclarecer que, quando Rawls expõe os elementos fundamentais que compõem a sua teoria da justiça como equidade, a qual defende ser uma concepção política de justiça, o autor pontua que uma das características constitutivas fundamentais de uma concepção política de justiça é: “[…] que seu conteúdo se expressa por meio de certas ideias fundamentais percebidas como implícitas na cultura pública política de uma sociedade democrática” (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , pp. 15-16). Em diversas passagens de O liberalismo político ( 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. ), obra na qual essa perspectiva ganhou maior espaço, a relação de dependência epistêmica entre a concepção política de justiça e as convicções profundamente arraigadas de uma sociedade democrática constitucional são essenciais para a construção da argumentação em prol da concepção de justiça como equidade de Rawls.

A construção teórica do filósofo analítico é delineada a partir de formulações desenvolvidas em um nível elevado de abstração filosófica. Alguns de seus críticos, como Habermas (1990/ 2004HABERMAS, Jürgen. (1990/2004). A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. 2. ed. São Paulo: Loyola. , p. 111), mas também Walzer ( 2003WALZER, Michael. (2003). Esferas da Justiça: Uma defesa do pluralismo e da Igualdade. São Paulo: Martins Fontes. , p. XVII), avaliam que essa opção analítica de Rawls comprometeria a validade e a aceitabilidade de sua teoria. Do ponto vista desses autores, não seria razoável uma teoria da justiça que pretende propor quais seriam os princípios de justiça mais razoáveis para o(a)s cidadãos e cidadãs de uma sociedade democrática, mas que, ao almejar tal objetivo, ignora, como indica Walzer, os significados compartilhados de justiça desse(a)s mesmo(a)s cidadãos e cidadãs.

Sob a lógica dessa crítica, Rawls não estaria levando em consideração a perspectiva dos cidadãos e cidadãs na medida em que constrói sua proposta por meio de recursos teóricos abstratos arbitrários, como o da deliberação sobre princípios de justiça na “posição original”. Recursos esses que teriam a pretensão de demonstrar, em tom de universalidade, como as pessoas, e nesse caso corresponderiam a “pessoas metafísicas”, se situadas num contexto de deliberação moral hipotética, no qual estivessem despidas de estruturas de diferenciação social, econômica e de visões éticas ou religiosas de mundo e, portanto, se estivessem inseridas num cenário de baseline igualitário, certamente, e após cuidadosa reflexão, optariam pela escolha dos princípios de justiça tal qual a equidade como aqueles mais razoáveis para cumprir as exigências dos valores da liberdade e da igualdade de uma sociedade democrática. Esse método analítico corresponderia, do ponto de vista de Habermas, a uma “tutela filosófica sobre os cidadãos” (Habermas, 1990/ 2004HABERMAS, Jürgen. (1990/2004). A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. 2. ed. São Paulo: Loyola. , p. 112) justamente, como já foi salientado anteriormente, por definir os constrangimentos à ação e à deliberação de pessoas não metafísicas, isto é, dos cidadãos e cidadãs de uma democracia constitucional por meio de um experimento hipotético idealizado pelo filósofo. Do ponto de vista de Habermas, o problema seria o de que “[…] todos os discursos essenciais de legitimação já ocorreram dentro da teoria” (Habermas, 1995HABERMAS, Jürgen. 1995. Reconciliation Through the Public use of Reason: Remarks on John Rawls’s Political Liberalism. Journal of Philosophy, 92(3): 109-131. , p. 128, tradução nossa) 8 8 A citação completa no original: “They cannot reignite the radical democratic embers of the original position in the civic life of their society, for from their perspective all of the essential discourses of legitimation have already taken place within the theory”. . E, do ponto de vista de Walzer, como salienta Forst, as “[…] abordagens morais abstratas, formais e universalistas são não democráticas, uma vez que são removidas do discurso político” (Forst, 2010FORST, Rainer. (2010). Contextos da Justiça. Tradução de Denílson Werle. São Paulo: Boitempo. , p. 196).

A validade dessa crítica depende de uma interpretação sobre se Rawls realmente teria desconsiderado os “significados compartilhados”, nos termos empregados por Walzer, dos cidadãos e cidadãs de “carne e osso” ao formular os princípios de justiça como equidade. Optamos por iniciar a discussão das críticas à teoria rawlsiana pela objeção ao seu potencial democrático, pois, para a estrutura de nossa argumentação, essa crítica é relevante na medida em que atinge o ponto no qual nosso argumento pretende ser delineado: a relação entre os princípios de justiça, e, de uma maneira mais ampla, a teoria de Rawls, com as convicções e juízos compartilhados de uma sociedade democrática. Cabe salientar que nesta seção ainda não temos como objetivo discutir as demais objeções dirigidas à teoria rawlsiana, isso será feito mais adiante. Partimos dessa crítica, encampada por Habermas e Walzer, por considerarmos que, além de incidir sobre um ponto relevante de nossa argumentação, envolve um entendimento equivocado sobre como o autor liberal-igualitário articula os juízos de justiça compartilhados em uma sociedade democrática.

Nesse sentido, pretendemos argumentar que a formulação dos princípios propostos não deriva de um empreendimento abstrato arbitrário do filósofo e que, diversamente disso, tal construção é necessariamente informada pelos juízos compartilhados das pessoas de “carne e osso”. Aqui chegamos ao ponto (i), mencionado anteriormente, que diz respeito à conexão entre o político e a construção teórica. Nosso argumento, de modo contrário à crítica formulada, defende que não é possível empreender uma discussão sobre o político na teoria rawlsiana se desconsiderarmos as consequências profundas da incorporação dos juízos compartilhados acerca da estrutura justificatória do argumento de Rawls. Desse modo, para nós, a discussão da relação entre o político e o teórico na teoria política de Rawls pressupõe o debate sobre como os juízos compartilhados de uma cultura política democrática informam a construção teórica desse autor e a sua concepção de política.

O desenvolvimento desse argumento passa por apresentar três pontos: (1) como o recurso à abstração não compromete a validade da teoria rawlsiana; (2) como os princípios de justiça não resultam de um mero experimento abstrato construído pelo filósofo, e; o ponto principas dessa nossa argumentação; (3) como os princípios de justiça não constituem uma ordem moral independente e, portanto, são construídos e informados pela razão prática das pessoas situadas no contexto de sociedades democráticas.

Tal como anteriormente foi exposto, alguns críticos sustentam que a teoria rawlsiana, por ser construída a partir de abstrações idealizadas, desconsideraria, por esse motivo, a posição das pessoas situadas em contextos políticos concretos. Contudo, o uso de concepções abstratas não incorreria nesse resultado apontado pelos críticos na medida em que, em primeiro lugar, como indica Rawls, “[…] a atividade de abstração é desencadeada por conflitos políticos profundos” (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. 53). Portanto, as discussões teóricas que se desenrolam sob o pano de fundo de concepções abstratas oriundas da filosofia política não são nem prescritas nem justificadas pela relevância da abstração em si, e sim, mais precisamente, tal recurso à abstração se faz necessário quando “[…] nossos entendimentos políticos compartilhados, como diria Walzer, colapsam” (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. 53). De modo que “[…] quanto mais profundo o conflito, maior o nível de abstração a que devemos chegar para ter uma visão clara e ordenada de suas raízes” (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. 54). A esse respeito, salienta Vita:

Rawls entende que essas idealizações permitem tornar o problema da escolha de princípios fundamentais de justiça social mais tratável do que se condições não ideais (em que há injustiças nas instituições ou na conduta de cidadãos e agentes políticos) fossem levadas em conta, o que tornaria impossível impedir que desigualdades arbitrárias, poder de barganha e capacidade desigual de ameaça contaminassem os termos do contrato social.

( 2022 VITA, Álvaro de. (2022). Por que uma teoria ideal da justiça? Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, v. 13, n. 1, pp. 1-33, 2022. DOI: https://doi.org/10.5902/2179378671026
https://doi.org/10.5902/2179378671026...
, p. 5).

A utilização de concepções abstratas é informada pelas condições da discussão pública e dela não pode apartar-se. Em segundo lugar, a justificação de uma concepção de justiça é um problema prático, e não teórico, epistemológico ou metafísico (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. 53; Rawls, 1992RAWLS, John. (1992). Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova, n. 25, pp.26-59. , p. 33) e, por conseguinte, a filosofia não poderia se impor aos juízos ponderados de justiça das pessoas. Dessa perspectiva, a atividade de abstração da qual se vale a construção teórica rawlsiana não apresenta, em si mesma, validade epistêmica independente, para além de representar um guia possível à reflexão prática que tem a última palavra acerca de qual concepção de justiça corresponde àquela que é a mais razoável para os cidadãos e cidadãs de uma sociedade democrática ou, ao menos, àquela que pode cumprir as exigências de legitimidade política (normativa) em uma sociedade democrática. Como Rawls afirma:

A filosofia política não se afasta, como pensam alguns, da sociedade e do mundo. E também não tem a pretensão de descobrir com seus próprios métodos características de argumentação, e apartada de toda e qualquer tradição de prática e pensamentos políticos, em que consiste a verdade.

(Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. 53).

O uso de concepções abstratas na discussão teórica rawlsiana, portanto, não implica a desconsideração da existência de conflitos e demandas a respeito da justiça e a respeito do conteúdo daquilo que torna uma vida valiosa; mas, pelo contrário, é justamente por reconhecer a dimensão desse desacordo moral profundo que Rawls utiliza concepções que, por serem abstratas, lhe oferecem uma base para justificação a partir da qual uma discussão acerca do que há de comum em relação aos juízos sobre a justiça no contexto de sociedades democráticas marcadas pelo pluralismo é possível de ser delineada. Desse modo, a construção dos princípios de justiça pressupõe a existência de tal desacordo moral profundo, que é concreto e socialmente enraizado. Sendo assim, o modo como Rawls constrói sua teoria não é arbitrário no que se refere à posição das pessoas enquanto cidadãos e cidadãs de uma sociedade democrática. No entanto, a questão que fica é a de como seria possível chegar a um ponto de acordo sobre princípios de justiça, uma vez que o desacordo moral “[…] é o resultado esperado do exercício da razão humana sob a estrutura de instituições livres de um regime democrático constitucional” (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. XVII). A discussão quanto a essa questão será apresentada mais adiante neste artigo.

A formação de um consenso antipolítico na teoria não-política de Rawls: a crítica de Mouffe

A crítica segundo a qual a dimensão consensualista e, portanto, anti-agonística, da teoria rawlsiana como um reflexo de seu caráter antipolítico é uma objeção formulada por Chantal Mouffe. Nesta seção do artigo, nos dedicaremos a discussão mais específica sobre a crítica dessa autora a Rawls.

Mouffe é peremptória em afirmar que a teoria de Rawls corresponde a uma “filosofia política sem política” (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 59); esse é, inclusive, o título que dá o tom de um capítulo dedicado a discutir a teoria rawlsiana em seu livro The return of the political ( 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. ). A autora desenvolve suas objeções ao liberalismo de Rawls tomando como critério de avaliação analítica-normativa a concepção agonística dela acerca do que constitui o político. Desse modo, antes de passarmos propriamente para as objeções da autora ao liberalismo político rawlsiano, precisamos esclarecer, mesmo que de modo sintético, a concepção dela sobre o político.

A concepção mouffeana quanto à natureza do político é, como a própria autora sugere: agonística. Ela defende essa visão ao conceber o político como o espaço onde “[…] os conflitos, os antagonismos, as relações de poder” estão permanentemente em disputa por atores que se definem de modo relacional e que, sobretudo, estruturam-se a partir de uma lógica de relação agonística (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 71). Em resumo, o político possui uma especificidade para Mouffe, pois representa o plano em que são manifestados os antagonismos existentes na sociedade (Miguel, 2014MIGUEL, Luis Felipe. (2014). Consenso e conflito na teoria democrática: Para além do “agonismo”. Lua Nova, n. 92, pp. 13-43. , p. 26). A visão nuclear que embasa a posição teórica da autora é, portanto, de uma lógica do conflito e não a do consenso. As críticas que a autora dirige ao liberalismo rawlsiano baseiaasse nessa concepção acerca do político. Em vista disso, o ponto central das objeções de Mouffe a Rawls dirigem-se ao apagamento operado pela teoria rawlsiana de noções políticas fundamentais, ( 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 79), tais quais o conflito, o poder, a divisão e o antagonismo, em prol da manutenção de um consenso que, segundo Mouffe, configura-se como antipolítico. Nesse sentido, a teoria rawlsiana teria como objetivo a busca pela eliminação da contingência e da indeterminação características do político. Desse modo, para Mouffe, a teoria de Rawls estaria duplamente enganada na medida em que, primeiro, negaria a política; e, segundo, estaria equivocada quanto à sua natureza ( 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 187).

Embora a autora desenvolva críticas específicas à forma como Rawls define os termos de seu liberalismo político, o ponto de partida da crítica de Mouffe funda-se nas premissas liberais. Para a autora, o liberalismo é, por natureza, antipolítico (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p.185). A despeito de ela reconhecer os distanciamentos de Rawls com relação à perspectiva liberal clássica, bem como as inovações teóricas desse autor (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , pp. 68-69), Rawls continua sendo, no fundo, um representante de algum tipo de liberalismo. E como um liberal, esse autor endossaria as características teóricas liberais fundamentais do (i) individualismo; do (ii) racionalismo; do (iii) universalismo e da (iv) imparcialidade/neutralidade. Características que, cada uma a seu modo, operam um apagamento e uma negação da política, nos termos em que Mouffe a entende. Nesse sentido, Mouffe argumenta que a defesa de uma perspectiva pautada no individualismo condicionaria todos os aspectos normativos para o âmbito da moralidade individual (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 149) e, por isso, negaria a construção relacional das identidades e das demandas coletivas. Negaria, portanto, um aspecto fundamental da vida social que é a coletividade. O racionalismo, por sua vez, apresenta-se como a única linguagem possível, e, associado à pretensão de imparcialidade, almeja construir discursos que se pretendem universais, mas que, na verdade, representavam posições apenas parciais e, no máximo, hegemônicas. Para Mouffe, a pretensão de definir os termos do jogo em uma linguagem racional opera, na verdade, uma exclusão discursiva na medida em que fecha o horizonte de possibilidades discursivas adversárias, pois, ao definir seus adversários como irracionais, os torna legitimamente impossibilitados de enquadrar-se dentro dos termos estipulados pelo modelo hegemônico. O problema que a autora vê nesses valores liberais (racionalismo; universalismo e imparcialidade) é o de que camuflam a imposição de uma perspectiva particular, a partir da construção de uma justificação pretensiosamente imparcial. Grosso modo , esses são os problemas apontados por Mouffe em relação ao tratamento do político presentes no discurso liberal. Cabe agora especificarmos como essa visão da autora ecoa nas suas críticas dirigidas a Rawls.

Como pontuamos acima, a principal crítica de Mouffe a Rawls é a de sustentar que na teoria desse liberal-igualitário não há lugar para o conflito e, por conseguinte, na definição mouffeniana, não há política. Para apresentarmos a argumentação de Mouffe easprol dessa hipótese, iremos organizar a discussão em torno de três demarcações principais sobre a teoria de Rawls que a autora desenvolve em diferentes momentos de seu texto: (i) a teoria rawlsiana é, na verdade, uma teoria moral e não uma teoria política; (ii) a discussão que Rawls chama de política se estrutura por meio da negação daquilo que não é político, sendo, portanto, uma definição negativa. Desse modo, mesmo se assumirmos os próprios termos do autor ao conceituarmos o político, somente encontraremos uma definição que opera por meio de afastamentos e afirmações do que não é o político. Para Mouffe, portanto, Rawls é incapaz de oferecer uma definição do que constitui o político em sua teoria. Por fim, (iii) a demarcação que delineamos diz respeito à dimensão necessariamente antipolítica do consenso.

Um dos problemas evidentes para Mouffe na teoria da justiça de Rawls é que essa é desenvolvida sob a modelagem de raciocínios estritamente morais, e não políticos. A teoria de Rawls, portanto, é, para essa autora, somente um discurso moral. E como discurso moral, no qual os indivíduos correspondem às unidades básicas de agência, essa teoria não poderia nos dizer nada acerca da política. A autora salienta que o próprio Rawls é quem define que a distância entre política e moralidade, para ele, a diferença entre a filosofia moral e a filosofia política é apenas uma questão de alcance (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. apud Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. ). Com isso, para Mouffe, esse autor estaria colocando o discurso político no mesmo campo e patamar do discurso moral (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , pp. 78-79). Por isso, a autora pontua que Rawls desenvolve uma “filosofia política sem fundamentos” [políticos] (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 78, acréscimo nosso). Nesse sentido, os princípios de justiça correspondem a discursos estritamente morais, despidos de elementos políticos.

Essa crítica de Mouffe sobre a separação rígida dos campos da política e da moral é, para nós, bastante problemática e simplificadora. Mesmo se tomarmos como ponto de partida a concepção defendida pela autora acerca da dimensão conflituosa que é constitutiva do político, e as suposições e premissas que a acompanham, ficaria nebuloso delinearmos uma separação analítica clara entre os elementos estritamente políticos e morais presentes na dinâmica dos conflitos, nos antagonismos e nos interesses em disputa. Isso ocorre porque as gramáticas defendidas no conflito político incluem elementos de discurso moral. Cada gramática em disputa busca um lugar nesse conflito, e essa demarcação é definida tanto pela relação entre elas, conforme sugerido por Mouffe, quanto por um núcleo normativo interno, que gera divergências nos valores fundamentais em disputa. Valores esses que servem, também, como guia à ação política. Assim, o conflito pode ser o modo pelo qual a política processa a multiplicidade de visões de mundo concorrentes, mas o que as faz divergir fundamentalmente é a posição de que constituem visões “verdadeiras” e que, portanto, merecem um lugar privilegiado na construção da linguagem hegemônica da sociedade. A política, portanto, além de ter a sua moralidade constitutiva, também é perpassada por discursos morais conflitantes entre si, e que conferem tonalidades distintas ao conflito político. Nesse ponto, portanto, consideramos que a crítica de Mouffe falha em indicar a falta de validade da teoria de Rawls na sua pretensão política apenas porque esse autor também articula explicitamente elementos morais na discussão teórica. Mas, ainda nos cabe analisar as demais objeções da autora e discutir sua respectiva pertinência.

O segundo ponto de objeção que incluímos em nossa demarcação das críticas de Mouffe diz respeito à definição negativa da política operada por Rawls em sua teoria. Aqui a questão para Mouffe é que mesmo levando em consideração somente o que o autor de O liberalismo político designou como político, ainda estaríamos diante de uma concepção insuficiente e, sobretudo, esvaziadora do político. Nesse sentido, a política em Rawls é designada apenas de maneira negativa para especificar uma forma de moral não baseada numa doutrina abrangente e que somente se aplica a certas áreas, a saber, a estrutura básica da sociedade; como Mouffe detalhadamente expõe:

É-nos dito que ‘a primeira característica de uma concepção política de justiça é a de que, embora tal concepção seja, evidentemente, uma concepção moral, é uma concepção moral concebida para um tipo específico de objeto, nomeadamente para instituições políticas, sociais e econômicas’, e que ‘a segunda característica complementa a primeira: uma concepção política não deve ser entendida como uma concepção moral generalizada e abrangente aplicável à ordem política’. Até agora nada foi dito de positivo a respeito da natureza específica do político. Finalmente, Rawls refere a terceira característica de uma concepção política de justiça: ‘não é formulada em termos de uma doutrina religiosa, filosófica ou moral geral ou abrangente, mas antes em termos de certas ideias intuitivas fundamentais latentes na cultura política pública de uma sociedade democrática’. Assim, restam-nos as ideias intuitivas para compreendermos em que sentido uma concepção de justiça é política.

(Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 70).

Consideramos que essa crítica de Mouffe tem a sua pertinência na medida em que, quando Rawls busca demarcar o caráter político de sua teoria da justiça como equidade, esse autor o faz, muitas vezes, de modo a demarcar o que a sua teoria da justiça não é: uma concepção abrangente; metafísica; independente da justificação a partir de juízos societais compartilhados; dirigida à conduta pessoal (em vez de circunscrita a um objeto institucional específico); despida de pretensões acerca da possibilidade de uma justificação compartilhada do uso do poder coercitivo. Dessa forma, a discussão que Rawls mobiliza para elucidar o que compreende por uma concepção política de justiça e, portanto, pelo que compreende sobre a constituição da dimensão do político, é, grosso modo , feita a partir de uma perspectiva negativa, isto é, a partir da definição da concepção de justiça por meio da exclusão daquilo que essa concepção não é.

Contudo, apesar de considerarmos essa crítica de Mouffe pertinente e válida, discordamos da conclusão desenvolvida pela autora: de que esse movimento em direção a uma definição negativa implica, necessariamente, um esvaziamento do político. Assim como as posições inscritas no âmbito da política, da forma como Mouffe a entende, são construídas de modo relacional, a teoria política também precisa se posicionar relacionalmente no debate teórico, por meio de afastamentos e aproximações conceituais. Esse movimento, em si mesmo, não significa a ausência de uma dimensão política que é defendida na construção teórica. Significa, conforme Mouffe captou bem, que a compreensão de como essa dimensão é construída na teoria se dá pelo afastamento e pela negação justificada de características essencialmente não políticas. Nesse sentido, a definição do que constitui o político não pode ser somente aceita como normativamente válida quando for desenvolvida sob um ponto de vista positivo ao invés do negativo. A autora não oferece nenhuma justificativa que demonstre a invalidade normativa de uma definição negativa. O único critério, nesse caso, parecem ser os juízos de valor da própria autora sobre o que seria uma “boa” teoria política, que, no limite, são reflexos de uma posição valorativa particular sobre o que é o político, e não constitui um critério independente de avaliação.

Provavelmente o ponto mais ácido da crítica de Mouffe a Rawls diz respeito à dimensão do consenso no liberalismo rawlsiano. Esse ponto é central para a crítica empreendida pela autora de que a teoria de Rawls representa, na verdade, uma expressão teórica que é essencialmente antipolítica. Tendo sempre em mente o eixo do conflito, que a autora considera a dimensão principal da política, podemos, então, nos debruçar sobre os argumentos que Mouffe delineia easdefesa dessa sua objeção. A aslevância dessa objeção acerca do caráter antipolítico do consenso seria, para a construção da crítica de Mouffe como um todo, salutar na medida em que a autora entende que a dimensão do consenso é indispensável para a elaboração da teoria rawlsiana. Primeiro, pois os princípios de justiça de Rawls derivam de uma reflexão contratualista da qual emerge um acordo compartilhado sobre o que os fundamenta; e, depois, porque a sociedade bem-ordenada, fundada sob esse acordo contratualista, seria sustentada ao longo do tempo a partir de um consenso sobreposto entre distintas concepções de bem que, deixando de lado suas antipatias, concordam mutuamente em endossar os princípios de justiça como a base compartilhada da cooperação social. Esse raciocínio esquemático que esboçamos sobre a teoria de Rawls é, evidentemente, reducionista, mas é necessário do ponto de vista da crítica de Mouffe para evidenciar a relevância que essa objeção sobre o consenso tem para o seu argumento central, segundo o qual a teoria rawlsiana seria antipolítica. Então, cabe esclarecer: qual é o problema com o consenso? Ou melhor, quais são os problemas, de acordo com Mouffe?

Mouffe defende que a característica constitutiva da democracia é a sua indeterminação ( 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 194). Essa visão sobre a democracia, aliada à concepção agonística da política, implica a negação da possibilidade da definição de um consenso político “racional”; pois, em primeiro lugar, a política necessariamente fomenta formas de divisão e conflito; e, sendo assim, a referência a um consenso significa a imposição de um discurso hegemônico dentro da dinâmica agonística da democracia. E, em segundo lugar, o caráter indeterminado da democracia diz respeito à sua permanente abertura à luta discursiva, e, dessa forma, a imposição de um consenso “racional” configura uma negação da própria natureza da democracia.

Nesse sentido, para Mouffe, todo consenso é a expressão da configuração de um discurso hegemônico. Aqui, a autora critica novamente a fundamentação liberal do consenso rawlsiano, baseado na racionalidade, na universalidade e na imparcialidade. Essas são formas, para Mouffe, discursivas parciais como quaisquer outras e, portanto, são, por natureza, incapazes de conferir a fundamentação, pretensamente homogênea e compartilhada, de um consenso. Desse modo, todo discurso que se afirmar consensual opera, na verdade, um ato de exclusão 9 9 “[…] todos os consensos são, por necessidade, baseados em atos de exclusão […] nunca poderá existir consenso racional” (Mouffe, 1996 , p. 187). e, além disso, de coerção, pois “[…] a coerência social só será atingida à custa da repressão de algo que a nega” (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 188). Em vista disso, a autora sinaliza que a teoria rawlsiana, dada a sua suposição consensual em torno dos princípios de justiça, empreenderia, por um lado, uma forma de encerramento do caráter indeterminado da democracia; e, por outro lado, negaria o conflito por meio da pretensão de superá-lo por meio de uma forma de ilusionismo racional relativo ao consenso, que é pretensamente inclusivo e imparcial, contudo, verdadeiramente parcial e exclusivo. Nas palavras de Mouffe:

A fim de evitar os perigos desse encerramento, o que é preciso abandonar é a própria ideia de que poderia existir algo como um consenso político ‘racional’, se isso significar um consenso não baseado em qualquer forma de exclusão”.

“Ao postular que é possível atingir um consenso moral livre sobre os fundamentos políticos através de procedimentos racionais e que tal consenso é proporcionado pelas instituições liberais, acaba por assumir um conjunto historicamente específico de acordos com caráter de universalidade e de racionalidade, o que é contrário à indeterminação constitutiva da democracia moderna.

(Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 194).

A aceitação dessa crítica de Mouffe depende da aceitação de que a perspectiva teórica oferecida por ela é a resposta mais adequada e teoricamente razoável para lidar com os desafios do pluralismo que permeia as sociedades contemporâneas. A validade de sua crítica depende, portanto, da visão de que o agonismo é insuperável. A discussão de sua objeção a Rawls nesses termos é impraticável dentro deste artigo, dada a profundidade que um debate no nível de justificação sobre qual seria a posição teórica mais adequada exige. Posto isso, nossa pretensão será a de apontar incoerências no argumento de Mouffe, sem, contudo, entrar no mérito da pertinência de sua posição teórica como um todo.

Dessa forma, nos cabe indagar se a dimensão do consenso e do conflito são necessariamente excludentes tal como Mouffe defende. Partindo de um questionamento da autora sobre a impossibilidade de eliminação da discordância do horizonte da política, buscaremos problematizar essa relação. De acordo com Mouffe, “[…] não devemos imaginar a eliminação da discordância, mas apenas a sua contenção em formas que respeitem a existência de instituições democrático-liberais” (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 72). Acreditamos que Rawls não se opõe a essa visão defendida pela autora. Assim, podemos entender que “formas que respeitem a existência de instituições democráticas” correspondem à presença de um acordo fundamental compartilhado e também à aceitação comum da legitimidade normativa dessas instituições, o que justifica respeitá-las. Portanto, parece haver a necessidade, mesmo em Mouffe, de uma área mínima de acordo compartilhado.

Para lidar com a questão da possibilidade, e até necessidade, de uma área consensual, vamos partir da discussão que Mouffe faz sobre Rawls não levar em consideração as relações de poder e, com isso, de conflito em sua teoria. De acordo com Mouffe, a teoria rawlsiana está isenta de relações de poder (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 71) – aqui a autora faz alusão ao modo como Rawls constrói sua teoria a partir do dispositivo da posição original e do véu da ignorância –, e que, por isso, além da ênfase que o autor concede à dimensão do consenso, a “[…] a bem-ordenada sociedade de Rawls fundamenta-se na eliminação da própria ideia de política” (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 93). Mas, do ponto de vista dos objetivos de Rawls, é perfeitamente coerente que o acordo sobre princípios de justiça seja hipoteticamente justificado de um contexto no qual as relações assimétricas de poder estejam ausentes. Isso não é um problema do ponto de vista normativo. Afinal, como seria possível desenvolver uma reflexão sobre a elaboração de princípios de justiça se levássemos em consideração as relações que demarcam fronteiras e assimetrias entre as pessoas e que, por isso, necessariamente estruturam de modo injusto suas relações? A posição de Mouffe, portanto, exclui a possibilidade de pensarmos alternativas para alargar os limites do que podemos considerar justo. Rawls não nega, nem poderia negar, que há estruturas que demarcam relações de poder assimétricas na sociedade. O fato desse autor valer-se de um recurso de constrangimento hipotético, tal como é o véu da ignorância, contribui para evidenciar que ele leva muito a sério o impacto das relações de poder existentes na sociedade contemporânea sobre a perspectiva de vida das pessoas, e não o contrário. Se aceitarmos a crítica de Mouffe, aceitaremos que a possibilidade de vislumbrar um acordo sobre um núcleo comum e compartilhado que estruture as instituições no que se refere às considerações acerca da justiça seria impossível de ser alcançado. Um núcleo consensual é normativamente essencial para legitimar as instituições, e é sobre esse acordo fundamental que Rawls discute, porque: “[…] o desejo de um acordo livre de coerção, um entendimento público coerente com as condições históricas e restrições do nosso mundo social pode emergir. Enquanto não pudermos conceber como isso poderia ocorrer, não pode ocorrer” (Rawls, 1992RAWLS, John. (1992). Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova, n. 25, pp.26-59. , p. 34). Aqui trata-se, ainda, de indeterminação e de possibilidades discursivas e não, conforme argumenta Mouffe, de um encerramento 10 10 Mouffe pontua que os princípios de justiça de Rawls fazem parte de um jogo de significados em disputa, e correspondem apenas a uma alternativa, não a única possível ou à verdadeira alternativa (Mouffe, 1996 , p. 75). Mas o autor de O liberalismo político não pode discordar disso. Mesmo considerando-se somente as posições abarcadas pela teoria do liberalismo político, o próprio Rawls. (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 193) a partir de um consenso ilusório.

Construtivismo político, justiça e democracia: a construção da teoria política de John Rawls

Podemos dizer que entre as principais preocupações teóricas de Rawls estaria certamente a de esclarecer como os princípios de justiça (Rawls, 2002RAWLS, John. (2002). Justiça e democracia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes. ), tal qual a equidade, não se fundamentam sob uma ordem moral independente, mas, de modo contrário a isso, tais princípios seriam construídos com base naquilo que o autor chama de “pontos fixos e de ideias intuitivas” que são socialmente construídas e compartilhadas na cultura política no contexto de uma democracia constitucional (Rawls, 1992RAWLS, John. (1992). Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova, n. 25, pp.26-59. , pp. 31-32). Essa ideia será mais desenvolvida adiante. É importante, antes, ressaltar que ao desvincular a justificação dos princípios de justiça de algum critério moral independente, Rawls rompe analítica e filosoficamente com uma visão canônica que advém de uma longa trajetória na filosofia política. Ao contrário dessa visão canônica, os princípios de justiça da teoria rawlsiana não são justificados a partir de verdades morais ou de leis da natureza, pois estas são, por sua vez, independentes e transcendentais à vontade das pessoas de “carne e osso”, tal como são as lex naturalis dos contratualistas jusnaturalistas. 11 11 Cabe notar que em Uma teoria da justiça ( 1971/2008 ), John Rawls inaugurou uma forma de teoria cuja justificação moral de princípios de justiça baseia-se em uma forma de deliberação hipotética inspirada no contratualismo “tal como foi formulado por Locke, Rousseau e Kant” (Rawls, 1993/2011 , p. XLI). Mas o tipo de contratualismo rawlsiano é profundamente diferente da tradição contratualista moderna. Não há, na discussão desenvolvida por Rawls, nenhuma referência a algum estado de natureza prévio ou às leis naturais, questões essas típicas na discussão contratualista jusnaturalista. Diversamente de visões morais intuicionistas, os princípios de justiça da teoria rawlsiana são justificados mediante valores políticos, estes, por sua vez, são valores dependentes de um processo de construção que é moral e socialmente enraizado. Por esse motivo, tais princípios originam-se da razão prática comum dos cidadãos e cidadãs no contexto de sociedades democráticas. Os princípios de justiça como equidade, portanto, resultam de um procedimento de construção operado pela razão prática comum a todo(a)s, e são, por isso, potencialmente compartilhados.

O método analítico do qual Rawls se vale para argumentar teoricamente acerca da possibilidade de conexão dos princípios de justiça com as nossas convicções morais refletidas é o que o autor chamou de “equilíbrio reflexivo”. Em resumo, esse equilíbrio equivale aos ajustes mútuos entre uma determinada concepção de justiça resultante de um procedimento de justificação hipotético contratualista com os juízos ponderados de justiça das pessoas. Esse procedimento integra a opção metodológica rawlsiana, que é o “construtivismo político”.

Há duas questões, que podemos descrever como práticas, que embasam o modo como o construtivismo político rawlsiano é delineado: uma delas é (i) o fato do pluralismo, e, a segunda questão, que é condicionada pela primeira, corresponde a (ii) como definir os termos de cooperação social no contexto de sociedades marcadas pelo conflito moral profundo decorrente do pluralismo de visões de mundo. Sob esse conjunto de apontamentos, Rawls pergunta-se:

Como devem ser determinados os termos equitativos de cooperação? Devem simplesmente ser estabelecidos por uma autoridade externa, distinta das pessoas que cooperam, por exemplo, pela lei de Deus? Ou esses termos devem ser aceitos por essas pessoas como equitativos em vista do conhecimento que têm de uma ordem moral independente? Ou esses termos devem ser estabelecidos por um acordo entre essas próprias pessoas, tendo em vista o que consideram como seu benefício recíproco? A justiça como equidade, como já dissemos, adota uma modalidade da última alternativa (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. 115).

Diante disso, a tarefa da filosofia política no contexto de sociedades democráticas seria, para Rawls ( 1992RAWLS, John. (1992). Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova, n. 25, pp.26-59. , p. 29), a de refletir e levar em consideração as convicções presentes na cultura política pública democrática para

[…] debruçar-se sobre essas questões [profundamente controversas mesmo na tradição democrática e na cultura política pública de uma democracia, como a de conciliar as exigências conflitantes de valores políticos centrais nessa própria tradição, como a liberdade e a igualdade] e examinar se alguma base subjacente de acordo pode ser descoberta e se um modo mutuamente aceitável de resolvê-las pode ser publicamente estabelecido (Rawls, 1992RAWLS, John. (1992). Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova, n. 25, pp.26-59. , p. 29, acréscimo nosso).

Sendo assim consideramos que os críticos de Rawls não teriam razões suficientes para argumentar que o liberalismo político rawlsiano desconsidera as convicções públicas de agentes que estão situados sob contextos democráticos e, por consequência disso, oblitera a discussão pública devido à construção teórica de cunho abstrato. A atividade de abstração, portanto, é uma ferramenta analítica a serviço da discussão em prol de uma base pública e compartilhada de justificação dos termos da cooperação social; e, desse modo, “[…] as bases dessa visão [do construtivismo político] encontram-se nas ideias fundamentais da cultura política pública, bem como nos princípios e nas concepções de razão prática compartilhados pelos cidadãos” (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. 115). A questão da construção de uma base pública de justificação é, para esse autor, um problema político prático e não filosófico ou de um normativismo abstrato somente, uma vez que “[…] nenhuma concepção moral geral pode fornecer uma base publicamente reconhecida para uma concepção de justiça num Estado democrático moderno” (Rawls, 1992RAWLS, John. (1992). Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova, n. 25, pp.26-59. , p. 27). Nessa linha, Rawls destaca que:

O dualismo, no liberalismo político, entre o ponto de vista da concepção política e os muitos pontos de vista das doutrinas abrangentes não é um dualismo que se origine na filosofia. Tem origem, mais precisamente, na natureza especial da cultura política democrática marcada pelo pluralismo razoável.

(Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. XXII).

O ponto principal a destacar sobre uma concepção política de justiça , no caso a justiça como equidade, é a sua independência com relação às estruturas normativas das diversas e divergentes concepções de bem que coexistem em uma sociedade democrática. Aqui, chegamos a um ponto que se conecta diretamente à discussão que o autor de O liberalismo político desenvolve na seção § 2 desse livro sobre a ideia de uma concepção política de justiça (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , pp. 13-17). Nesta seção, o autor afirma que uma concepção política de justiça apresenta três características: (i) é uma concepção moral que se aplica às instituições políticas, sociais e econômicas; (ii) é uma concepção que se sustenta por si mesma ao não depender da adesão epistêmica advinda de concepções metafísicas e (iii) a característica constitutiva de uma concepção política de justiça diz respeito a como o seu conteúdo é construído.

Podemos dizer que Rawls, portanto, reconstrói teoricamente, e por isso o uso analítico ao recurso de abstrações é relevante, o que é construído socialmente. Esse autor realiza, por fim, uma reconstrução analítica baseada em valores construídos de modo interpessoal, ou seja, sobre valores que são imanentes à sociedade democrática. Cabe mencionar que a concepção de justiça como equidade é também uma concepção moral, na medida em que envolve e mobiliza certos valores morais (como o valor da igualdade humana fundamental). No entanto, o que explicitamente a diferencia de outras concepções morais – e aqui nos distanciamos da crítica de Mouffe –, é que, segundo Rawls, essa concepção se limita à esfera do político. A concepção de justiça como equidade é, portanto, uma concepção moral que não é abrangente nem parcialmente abrangente, como é o caso de concepções morais que exprimem visões metafísicas. Esses tipos de concepções (advindas de visões metafísicas), por conseguinte, mobilizam um conjunto de valores morais que escapam da esfera do político, embora possam também mobilizar valores que prescrevam virtudes políticas, como é o caso do humanismo cívico. Concepções metafísicas são, portanto, concepções sobre o bem humano em uma variedade de contextos (no limite, a todos os âmbitos de atividade humana) e que, por isso, aplicam-se a uma ampla gama de objetos (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. 206).

De modo diferente, uma concepção que visa mobilizar um tipo de fundamentação que escape ao reino da metafísica não pressupõe, em sua justificação, a aceitação de doutrinas religiosas, filosóficas ou morais específicas, e, além disso, não diz respeito a preceitos ou regras de conduta pessoal na medida em que o objeto para o qual foi formulada é a estrutura básica de um regime democrático constitucional. Diferentemente de uma doutrina abrangente de bem, a concepção de justiça como equidade é política, segundo Rawls, pois é proposta somente para “[…] as principais instituições da vida política e social, e não para a vida como um todo” (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. 206).

Conflito e consenso democrático: em defesa da teoria política normativa rawlsiana

Diversamente do que afirmam alguns críticos, especialmente Chantal Mouffe, a teoria de Rawls reserva um lugar relevante ao conflito. É justamente a percepção de que as sociedades pluralistas são marcadas por conflitos político-morais não passíveis de uma solução definitiva sem o uso da coerção ilegítima que é o pano de fundo da inspiração teórica rawlsiana para seu liberalismo político. Sendo assim, o campo do político, em Rawls, pressupõe a existência permanente de conflitos profundos na sociedade. Isso pode ser visto nesta indagação do autor:

[…] como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais que se encontram profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas ou morais razoáveis, embora incompatíveis entre si?

(Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. XIX).

Desse modo, o conflito socialmente enraizado estampa o pano de fundo da teoria de Rawls. O político, nesse arranjo teórico, é, portanto, percebido sob a lente do desacordo moral latente e inevitável. Entretanto, é importante ressaltar, Rawls não entende o conflito moral, alimentado pelas divergências entre as concepções de bem, como um conflito propriamente político, embora seja um conflito social. Desse modo, a concepção desse autor sobre o que constitui o político, embora seja informada pela existência de tal conflito, não é por ele definido ou limitado.

Do ponto de vista factual, o político na teoria de Rawls está em consonância com o desacordo moral na medida em que é com base no fato do pluralismo que a teoria rawlsiana desenvolve a justificativa para o estabelecimento de um acordo acerca dos termos da cooperação social. Por isso, Rawls afirma que “[…] a justificação de uma concepção de justiça é mais uma tarefa social prática do que um problema epistemológico ou metafísico” (Rawls, 1992RAWLS, John. (1992). Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova, n. 25, pp.26-59. , p. 26).

O político na teoria rawlsiana, como já foi salientado aqui, subsiste ao desacordo moral profundo, mas, de modo contrário aos efeitos desagregadores inevitáveis causados por esse desacordo moral profundo, o político para Rawls diz respeito à possibilidade de uma base compartilhada de acordo sobre a cooperação social. O político, portanto, é a antítese do desacordo moral profundo e irreconciliável, o que, por sua vez, não significa que seja a antítese do conflito político. O espaço do político se refere àquilo que é público no sentido de que todo(a)s podem razoavelmente aceitar levando em consideração sua dignidade moral, mesmo que tenham divergências e conflitem quanto suas doutrinas abrangentes de bem. Isso, no entanto, não implica que o que não diga respeito ao político seja, necessariamente, privado. 12 12 Para uma discussão sobre os limites entre o público, privado e o não público na teoria rawlsiana, ver: Assumpção ( 2012 ).

O político na teoria rawlsiana tem uma dimensão normativa que o desacordo moral não tem, uma vez que esse corresponderia a uma constatação factual da existência de um contexto pluralista nas sociedades modernas. E por ter esse apelo normativo, a esfera do político na teoria rawlsiana, e, vale destacar, de modo bastante diferente da tradição que atrela o político a um cálculo racional autointeressado, associa o político a uma esfera de reciprocidade no sentido de que todos o(a)s membro(a)s de uma sociedade bem-ordenada aceitam, e esperam que o(a)s outro(a)s também aceitem, os termos equitativos de cooperação social. A questão crucial que se coloca, então, é compreender o que corresponde ao conteúdo que esse acordo político público poderia englobar enquanto termos da cooperação social.

O dilema com o qual nos deparamos novamente, e que estrutura a teoria de Rawls, é: como construir uma espécie de consenso acerca dos termos de um acordo político se a sociedade a qual esse acordo regulará é perpassada por conflitos socialmente arraigados para os quais não há solução? Nesse sentido, um acordo substantivo poderia, como Habermas aponta ( 1995HABERMAS, Jürgen. 1995. Reconciliation Through the Public use of Reason: Remarks on John Rawls’s Political Liberalism. Journal of Philosophy, 92(3): 109-131. ), obliterar os termos nos quais cada geração, em vista de seu próprio contexto e suas próprias demandas e reivindicações, conseguiria reescrever os termos desse acordo para adequá-lo a suas necessidades historicamente constituídas. Sob esse ponto de vista, o conflito e a possibilidade de mudança seriam, portanto, retirados da arena política pela teoria de Rawls. Contudo, um ponto essencial a ser ressaltado é que o acordo público diz respeito apenas aos valores políticos fundamentais e não à vida política da sociedade como um todo, seus espaços não públicos e sua cultura de fundo, e é esse ponto fundamental que as críticas externas deixaram de lado.

Nesse caso, o ponto relevante a ser esclarecido é: o que são e quais são os valores políticos fundamentais? Esses valores corresponderiam àqueles pontos fixos ou ideias intuitivas fundamentais de uma cultura política e, por isso, podem integrar uma base de acordo compartilhada. Esses valores não são substantivamente informados pela filosofia, mas, como este artigo buscou argumentar, são justificados com base nos “significados compartilhados” de uma sociedade democrática. Tais valores, de forma ampla, dizem respeito a como a estrutura básica da sociedade se constitui. Dizem respeito, grosso modo , ao regime político democrático constitucional e aos direitos fundamentais constitucionais que o integram. Em razão disso, o acordo acerca da cooperação social não engessa a dinâmica do conflito na medida em que estrutura, em sentido lato, as regras nas quais os antagonismos se desenvolverão.

O argumento que buscamos traçar neste artigo acerca do político na teoria de John Rawls pode ser defendido de duas maneiras complementares. A primeira concebe o político como a antítese do metafísico, isto é, o político corresponde a um tipo de justificação do poder coercitivo que não se assenta em razões informadas por concepções de bem e doutrinas abrangentes. O político diz respeito a uma concepção que não reivindica o status moral de ser uma concepção política verdadeira , mas apenas assume ser uma concepção razoável, entre muitas outras concepções razoáveis em conflito que possam existir devido ao pluralismo moral . Por outro lado, o político representa um acordo público acerca dos termos equitativos de cooperação . Esse acordo pressupõe a consideração de uma concepção razoável de justiça, isto é, como dito, uma concepção política e não metafísica. Tal acordo é normativamente público, no sentido de que nenhum membro de uma comunidade política bem-ordenada pela concepção que especifica seus termos teria razões para rejeitá-lo. Esse acordo ancora-se sobre ideias fundamentais inscritas na cultura política de uma sociedade democrática. Esse ponto, já bastante mencionado neste artigo, é um componente central do argumento, sem o qual a concepção política de justiça não seria possível de ser construída. 13 13 Aqui fazemos alusão ao método do construtivismo político utilizado por Rawls para elaborar a concepção de justiça como equidade. Como argumenta o autor: “[…] sua tarefa [do construtivismo político] é conectar o conteúdo dos princípios de justiça à concepção dos cidadãos na condição de pessoas livres e iguais” (Rawls, 1993/2011 , p. 450).

Em consonância com o ponto de vista que buscamos argumentar no decorrer deste artigo, podemos dizer que haveria um núcleo normativo na teoria de Rawls que subjaz aos diferentes níveis de argumentação de justificação de sua concepção de justiça como equidade (considerada, na teoria do liberalismo político, como um dos membros da família de concepções políticas razoáveis de justiça). Esse núcleo normativo corresponderia a certas ideias intuitivas – como a concepção de pessoa na condição de cidadão(ã) dotado(a) das duas faculdades morais fundamentais e a concepção de sociedade bem-ordenada como um sistema de cooperação social caracterizado por termos equitativos de acordo entre pessoas que se concebem desse modo – de uma cultura política democrática. Sob esse ponto de vista, a estrutura da argumentação de Rawls em prol de uma concepção política de justiça depende, em seus diferentes níveis, do pressuposto acerca dos pontos fixos compartilhados em uma cultura política democrática. Desse modo, as ideias fundamentais que compõem a teoria da justiça rawlsiana 14 14 Explicadas na Conferência I do livro O liberalismo político . , tais quais o argumento da posição original, a ideia de sociedade bem-ordenada, a concepção de pessoa como livre e igual e dotada de certas capacidades morais, são construídas a partir da suposição de uma estrutura subjacente de valores que são inspirados por uma cultura política democrática. 15 15 Conforme Rawls argumenta (em Uma teoria da justiça , na parte III; e em O liberalismo político , nas seções § 7 e § 8 da Conferência II), há, em sua construção teórica, um pressuposto acerca da psicologia moral dos cidadãos e cidadãs. À medida que as pessoas se socializam em um contexto de cultura pública democrática, em uma sociedade bem-ordenada, os valores públicos são, ao longo do tempo, internalizados de modo a compor o repertório político-moral desses cidadãos e cidadãs.

Entretanto, o argumento da cultura política – da forma como reconstruímos em nossa discussão – pode parecer a um(a) leitor(a) atento de Rawls teoricamente problemático: a compreensão desse autor sobre a cultura política de uma sociedade democrática diz respeito à cultura de sociedades existentes (reais) ou conjecturais (ideais)? No que vem a seguir, buscaremos expor e esclarecer esse dilema. Para tanto, precisamos lembrar ao leitor(a) que começamos a seção sobre o político em Rawls afirmando que sua teoria não abstrai as circunstâncias dos contextos reais das pessoas de “carne e osso” em prol de uma argumentação de tipo normativa-abstrata. O modo como defendemos essa interpretação se baseou na elucidação da posição de Rawls sobre como a concepção política de justiça seria expressão de certas ideias intuitivas fundamentais de uma sociedade democrática. E é justamente nesse ponto que nos deparamos com nosso problema. Por organizarmos o argumento da cultura política democrática de forma a se contrapor a uma posição normativa-abstrata que (poderia) se aparta do mundo real, pode parecer que sugerimos que a compreensão de Rawls sobre a cultura política seja empiricamente orientada. Contudo, a compreensão de Rawls acerca da cultura política não é propriamente de orientação empírica, mas, ao mesmo tempo, não é puramente normativa. Com isso queremos dizer que o autor estrutura sua argumentação em torno de certos componentes essenciais existentes no contexto de sociedades modernas. E por isso o autor não é indiferente aos fatos. Mas, ao mesmo tempo, a concepção de democracia desse autor é normativa e, por conseguinte, seu entendimento de uma cultura política de uma sociedade democrática no registro conjectural de sua teoria possui componentes normativos relevantes.

Como buscamos apresentar no início deste artigo, nossa discussão sobre a validade das objeções dirigidas à teoria rawlsiana poderiam ser conduzidas por três questionamentos: (a) do ponto de vista da justificação oferecida por Rawls para delimitar o escopo político de sua teoria, quais seriam os argumentos políticos mobilizados pelo autor; (b) quais são as justificativas oferecidas pelos críticos para fundamentar a consideração de que a teoria rawlsiana não é política; (c) como compreender a validade da teoria política de Rawls a partir daquele(a)s crítico(a)s que a rotulam como não política e até como antipolítica.

Buscamos expor os argumentos oferecidos por Rawls para definir sua proposta como uma teoria que é política. Nesta seção buscamos, também, definir o conceito de político em Rawls e mostrar como essa dimensão é essencial à sua construção teórica; discutindo também como a sua concepção de político não prescinde das considerações compartilhadas das pessoas de “carne e osso”, mas é informada necessariamente por tais considerações. Nas seções que se seguiram buscamos desenvolver um diálogo com os críticos de Rawls e construir nossa exposição sobre como a teoria rawlsiana poderia ser uma teoria política. No conjunto dessas seções que compõem este artigo, buscamos, portanto, responder aos três questionamentos propostos no início deste trabalho.

O momento agora é de fazer um breve balanço, em perspectiva comparada, das críticas dirigidas à teoria rawlsiana. Acreditamos que um ponto em comum na maioria das objeções que analisamos diz respeito à visão de que a teoria rawlsiana não teria, ou nem buscaria ter, uma conexão com o mundo real na medida em que corresponderia a uma perspectiva teórica que seria, grosso modo , abstrata e composta por idealizações.

Para Walzer, por exemplo, a teoria rawlsiana seria construída por “um filósofo que subiu as montanhas” e que, portanto, não seria capaz de levar em consideração os juízos compartilhados das pessoas situadas em contextos concretos. Já a crítica de Habermas não fica longe disso ao considerar que o filósofo analítico formula sua teoria de modo a retirar das pessoas de “carne e osso” a agência política que, por sua vez, passa a residir no próprio filósofo. Mouffe considera que Rawls não teria entendido a natureza do politico que é, para essa autora, necessariamente conflituosa. Do ponto de vista da autora, Rawls, ao buscar apagar a dimensão do conflito em prol do consenso em sua teoria, estaria despindo-a do elemento mais essencial e definidor da política. A teoria rawlsiana seria, portanto, antipolítica nesse sentido.

as modo divergente dessa visão, a posição central que buscamos defender tanto na exposição da perspectiva rawlsiana quanto na análise das críticas a ela é a de que a compreensão da dimensão do político em Rawls é dependente da suposição sobre as ideias intuitivas latentes advindas de uma cultura política democrática. Ademais, é justamente a percepção de que as sociedades pluralistas são marcadas por conflitos político-morais não passíveis de uma solução definitiva sem o uso da coerção ilegítima que está o pano de fundo da inspiração teórica rawlsiana para seu liberalismo político. Sendo assim, o campo do político, em Rawls, pressupõe a existência permanente de conflitos profundos na sociedade. A compreensão de Rawls sobre o político é normativa, mas também é sensível aos fatos. Em razão disso, o político enquanto uma base compartilhada de apoio representa uma dimensão que além de ser normativamente relevante para oferecer uma base de legitimidade (normativa) às instituições, também se configura como um horizonte do “praticamente possível” (Rawls, 2001RAWLS, John. (2001). O Direito dos Povos. “A primeira parte da Teoria Ideal”. São Paulo: Martins Fontes. , p. 16).

A teoria de Rawls, portanto, nos ampara acerca da reflexão de que a política não é somente composta pela dimensão do conflito ou de um mero cálculo de interesses divergentes. A teoria política, por sua vez, não diz respeito apenas aos diagnósticos de tempo, à interpretação e explicação dos fatos e à menção e inclusão de temas políticos imediatos da agenda contemporânea na discussão teórica, mas também se refere a uma teoria política que orientada por problemas (Vita, 2017VITA, Álvaro de. (2017). Teoria política normativa e justiça rawlsiana. Lua Nova, v. 102, pp. 93-135. ) e, que, a despeito de recorrer a idealizações na fase de sua construção, (i) leva em consideração a perspectiva das pessoas situadas em contextos democráticos historicamente constituídos; e que é (ii) capaz de oferecer orientação à ação em circunstâncias não ideais, pois “os limites do possível não são dados pelo existente […]. Portanto, temos de nos valer da conjetura e da especulação, argumentando da melhor maneira possível no sentido de que o mundo social a que aspiramos é factível e pode existir efetivamente” (Rawls, 2001RAWLS, John. (2001). O Direito dos Povos. “A primeira parte da Teoria Ideal”. São Paulo: Martins Fontes. , p. 16) e, assim, “[…] enquanto não pudermos conceber como isso poderia ocorrer, não pode ocorrer” (Rawls, 1992RAWLS, John. (1992). Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova, n. 25, pp.26-59. , p. 34). A teoria política pode, portanto, nos ajudar a ampliar os limites do praticamente possível ao mesmo tempo em que não desconsidera o que é existente e, portanto, não desconsidera as circunstâncias sociais e políticas nas quais os juízos compartilhados das pessoas “de carne e osso” são construídos. E, dessa forma, a teoria rawlsiana é, portanto, uma teoria política.

Bibliografia

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    » https://doi.org/10.5902/2179378671026
  • WALZER, Michael. (2003). Esferas da Justiça: Uma defesa do pluralismo e da Igualdade. São Paulo: Martins Fontes.
  • 1
    “[…] o positivismo lógico distinguia três tipos de proposições: proposições”sintéticas”, sobre fatos empíricos […]; proposições analíticas, de necessidade lógica […]; e uma categoria residual, abrangente, de proferimentos “normativos” que nem descrevem algum estado do mundo nem contém verdades logicamente necessárias, mas servem apenas para expressar atitudes, sentimentos, preferências ou “valores”. Assim, para a perspectiva do positivismo lógico, os “[…] proferimentos éticos são cognitivamente vazios e sem sentido” (Ball, 2004BALL, Terence. (2004). Aonde vai a Teoria Política? Revista de Sociologia e Política, n. 23, pp. 9-22. , p. 12).
  • 2
    “Nada contribuiu mais para moldar a filosofia política na última geração do que o livro de John Rawls Uma Teoria da Justiça . Para muitos, sua publicação há um quarto de século marcou o renascimento do próprio tema. […] Uma Teoria da Justiça determinou durante décadas a agenda do pensamento político acadêmico” (Gray, 2006GRAY, John. (2006). Jogos finais: questões do pensamento político moderno tardio. São Paulo: Editora Unesp. , p. 89). “O marco no desenvolvimento da teoria normativa foi sem dúvida ‘Uma Teoria da Justiça’ de Rawls, publicada pela primeira vez em 1971. […] Muitos dos principais textos nos anos que se seguiram são melhor vistos como tentativas de desenvolver alternativas sistemáticas à teoria de Rawls. ‘Sistemático’ é importante aqui” (Miller, 1990MILLER, David. (1990). The Resurgence of Political Theory. Political Studies, v. 38, n. 3, pp. 421-437. , p. 428, tradução nossa). “[…] sua publicação [a obra Uma Teoria da Justiça , de Rawls] e recepção provou ser um importante fator no ressurgimento da Teoria Política na academia (Ball, 2004BALL, Terence. (2004). Aonde vai a Teoria Política? Revista de Sociologia e Política, n. 23, pp. 9-22. , p. 15, acréscimo nosso).
  • 3
    “[…] Rawls foi quem mostrou que é possível sustentar um argumento racional sobre questões de valores. […] Entre os filósofos, o positivismo lógico, com sua doutrina de que todos os julgamentos de valor são meras expressões emotivas, já havia sido desacreditado. Mas Rawls foi a primeira pessoa a levar a mensagem para não filósofos” (Barry, 1980BARRY, Brian. (1980). The Strange Death of Political Theory. Government and Opposition, n. 15, pp. 276-288. , p. 285, tradução nossa).
  • 4
    Para esse ponto ver: Freeman, 2003FREEMAN, Samuel (ed.). (2003). The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge University Press. ; Pogge, 2007POGGE, Thomas. (2007). John Rawls: His Life and Theory of Justice. Oxford: Oxford University Press. ; Mandle e Reidy, 2014MANDLE, Jon R.; REIDY, David A. (ed.). (2014). A Companion to Rawls. Hoboken: John Wiley & Sons. .
  • 5
    Não é nosso objetivo discutir todas as críticas sobre Habermas e sobre Rawls.
  • 6
    Rawls ( 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. ) esclarece que a ideia de sociedade bem-ordenada não é uma referência abstrata, mas adequadamente realista e, por isso, supõe que existam circunstâncias da justiça. Circunstâncias objetivas e subjetivas, as primeiras dizem respeito à escassez de recursos, e as segundas ao fato do pluralismo.
  • 7
    A tensão entre uma concepção normativa de sociedade democrática e uma concepção factualista, ou empiricamente orientada, de uma sociedade democrática, é relevante para esse ponto da discussão. O sentido que Rawls atribui à noção de sociedade democrática não se resume à concepção de um regime democrático competitivo. Podemos dizer que a compreensão rawlsiana de sociedade democrática é relativa à compreensão de uma sociedade que se estrutura com base no axioma da igualdade moral entre as pessoas (Vita, 2007VITA, Álvaro de. (2007). Sociedade democrática e democracia política. Política & Sociedade: Revista de Sociologia Política, v. 6, n. 11, pp. 159-181. ).
  • 8
    A citação completa no original: “They cannot reignite the radical democratic embers of the original position in the civic life of their society, for from their perspective all of the essential discourses of legitimation have already taken place within the theory”.
  • 9
    “[…] todos os consensos são, por necessidade, baseados em atos de exclusão […] nunca poderá existir consenso racional” (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 187).
  • 10
    Mouffe pontua que os princípios de justiça de Rawls fazem parte de um jogo de significados em disputa, e correspondem apenas a uma alternativa, não a única possível ou à verdadeira alternativa (Mouffe, 1996MOUFFE, Chantal. (1996). O regresso do político. Lisboa: Gradiva. , p. 75). Mas o autor de O liberalismo político não pode discordar disso. Mesmo considerando-se somente as posições abarcadas pela teoria do liberalismo político, o próprio Rawls.
  • 11
    Cabe notar que em Uma teoria da justiça ( 1971/2008RAWLS, John. (1971/2008). Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes. ), John Rawls inaugurou uma forma de teoria cuja justificação moral de princípios de justiça baseia-se em uma forma de deliberação hipotética inspirada no contratualismo “tal como foi formulado por Locke, Rousseau e Kant” (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. XLI). Mas o tipo de contratualismo rawlsiano é profundamente diferente da tradição contratualista moderna. Não há, na discussão desenvolvida por Rawls, nenhuma referência a algum estado de natureza prévio ou às leis naturais, questões essas típicas na discussão contratualista jusnaturalista.
  • 12
    Para uma discussão sobre os limites entre o público, privado e o não público na teoria rawlsiana, ver: Assumpção ( 2012ASSUMPÇÃO, San Romanelli. (2012). Justiça e gênero sob uma perspectiva cosmopolitana. 2012. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. ).
  • 13
    Aqui fazemos alusão ao método do construtivismo político utilizado por Rawls para elaborar a concepção de justiça como equidade. Como argumenta o autor: “[…] sua tarefa [do construtivismo político] é conectar o conteúdo dos princípios de justiça à concepção dos cidadãos na condição de pessoas livres e iguais” (Rawls, 1993/2011RAWLS, John. (1993/2011). O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: WWF Martins Fontes. , p. 450).
  • 14
    Explicadas na Conferência I do livro O liberalismo político .
  • 15
    Conforme Rawls argumenta (em Uma teoria da justiça , na parte III; e em O liberalismo político , nas seções § 7 e § 8 da Conferência II), há, em sua construção teórica, um pressuposto acerca da psicologia moral dos cidadãos e cidadãs. À medida que as pessoas se socializam em um contexto de cultura pública democrática, em uma sociedade bem-ordenada, os valores públicos são, ao longo do tempo, internalizados de modo a compor o repertório político-moral desses cidadãos e cidadãs.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Jul 2021
  • Aceito
    18 Dez 2023
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