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A JUSTIÇA JUVENIL ENTRE O BEM-ESTAR E A TUTELA Proximidades e diferenças entre Inglaterra e Brasil

Youth justice between welfare and tutelage: similarities and differences between England and Brazil

Resumo:

Este artigo discute como as diferentes formas históricas de incorporação dos direitos sociais ao status de cidadania na Inglaterra e no Brasil constituíram-se como condições importantes de emergência da justiça juvenil nesses países. Nesse sentido, a questão central a ser discutida são as proximidades e diferenças das condições de emergência da justiça juvenil nesses dois países, tomadas aqui a partir da relação com os direitos sociais e as formas históricas assumidas por esses em cada um dos casos, e que são tratadas analiticamente no artigo a partir das noções de bem-estar, na Inglaterra, e de tutela, no Brasil.

Palavras-chave:
justiça juvenil; direitos sociais; bem-estar; tutela

Abstract:

This paper analyzes the relationship between the conditions of the emergence of youth justice and the historical forms of incorporation of social rights into citizenship status in England and Brazil. Focusing on the comparison of the historical experiences of these two countries and highlighting their similarities and differences, the paper relates the emergence of youth justice to the analytical notions of social rights as welfare, in England, and of social rights as tutelage, in Brazil.

Keywords:
youth justice; social rights; welfare; tutelage

Introdução

A justiça juvenil, que fornece tratamento penal especial para crianças e adolescentes que cometem infrações penais, emergiu em diversos países europeus e do continente americano entre meados do século XIX e início do século XX, juntamente com o surgimento de uma nova sensibilidade jurídica em relação a crianças e adolescentes (García Méndez, 2004GARCÍA MÉNDEZ, Emilio. (2004), Infancia. De los derechos y de la justicia. Buenos Aires, Editores del Puerto.; Trépanier, 2018TRÉPANIER, Jean. (2018), “The roots and development of juvenile justice: an international overview”, in J. Trépanier & X. Rousseaux (eds.), Youth and justice in western states, 1815-1950: from punishement to welfare. Londres: Palgrave Macmillan.).1 1 O público atendido pela justiça juvenil brasileira atual compreende indivíduos na faixa etária dos 12 aos 17 anos completos (em casos excepcionais, os jovens podem ficar no sistema até os 21 anos). Já a justiça juvenil inglesa é voltada para a responsabilização criminal dos indivíduos entre 10 e 17 anos, havendo a possibilidade de transferência para o sistema de justiça criminal após essa idade (Gelsthorpe e Lanskey, 2016). Cabe ressaltar que, na Inglaterra, é mais comum que indivíduos nessa faixa etária sejam referidos como crianças ou jovens (children e young persons). Conforme será discutido neste artigo, essa nova sensibilidade levou à problematização da punição de crianças e adolescentes pobres, até então tratados da mesma forma que os adultos, e à mobilização de movimentos de reforma do direito penal e das instituições de justiça criminal.

A premissa de criação dessa justiça era a de que crianças e adolescentes não deveriam ser tratados como adultos e, portanto, o tratamento penal dispensado a eles deveria ser separado da justiça criminal. As novas instituições penais criadas para atender especificamente ao público infanto-juvenil logo passaram a focar a reabilitação como forma de evitar a formação do criminoso adulto; e foram seguidas da implantação de cortes especiais voltadas para o tratamento penal desse público (Trépanier, 2018TRÉPANIER, Jean. (2018), “The roots and development of juvenile justice: an international overview”, in J. Trépanier & X. Rousseaux (eds.), Youth and justice in western states, 1815-1950: from punishement to welfare. Londres: Palgrave Macmillan.; Muncie, 2015MUNCIE, John. (2015), Youth and Crime. 4th ed. Londres, Sage.).

Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa comparativa que conduzi sobre as experiências de justiça juvenil da Inglaterra e do Brasil, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp. A pesquisa investigou se a existência dessa justiça especializada nos casos comparados geraria tensões entre os direitos civis, comumente associados à justiça criminal, e os direitos sociais, aos quais a própria emergência da justiça juvenil está relacionada, como abordarei aqui. Este artigo discute, especificamente, como as diferentes formas históricas de incorporação dos direitos sociais ao status de cidadania constituíram-se como condições importantes de emergência da justiça juvenil nos casos estudados.

Nesse sentido, a questão central a ser discutida são as semelhanças e diferenças das condições de emergência da justiça juvenil nesses dois países, tomadas aqui a partir da relação com os direitos sociais e as formas históricas assumidas por esses em cada um dos casos, e que são tratadas analiticamente nas noções de bem-estar, na Inglaterra, e de tutela, no Brasil.

O artigo está dividido em quatro seções, sendo a primeira referente às questões metodológicas que orientaram a pesquisa, bem como aos procedimentos adotados. A segunda e terceira seções apresentam os resultados da pesquisa realizada na Inglaterra, sendo a segunda dedicada a abrir a discussão a partir das definições de direitos sociais e sua relação com a noção bem-estar nesse país, e a terceira à emergência da justiça juvenil inglesa e sua relação com a noção de bem-estar. A quarta e última sessão aborda a emergência da justiça juvenil no Brasil, trazendo uma comparação entre bem-estar e tutela nos casos analisados.

Questões metodológicas e procedimentos de pesquisa

A proposta metodológica inicial era desenvolver dois tipos ideais de justiça,2 2 A proposta de construção de tipos ideias de justiça baseava-se nas contribuições de Max Weber (1996). sendo o primeiro de justiça social, relacionado às políticas de bem-estar e direitos sociais; e o segundo de justiça criminal, focado nos direitos civis e no devido processo legal. A ideia era explorar como os casos empíricos da Inglaterra e do Brasil poderiam operar esses modelos dicotômicos, considerando que a justiça juvenil seria um híbrido que carrega elementos de ambos. Em outras palavras, essa dicotomia estaria na origem de todo sistema de justiça juvenil e a questão seria compreender como cada caso empírico lida com as tensões por ela produzidas.3 3 No Brasil, essa dicotomia aparece mais explicitamente na literatura contemporânea dedicada a pensar as consequências da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Nesse sentido, na literatura jurídica, destaca-se a discussão sobre o Direito Penal Juvenil (Schecaira, 2014; Sposito, 2013). Na literatura das ciências sociais, destaca-se, dentre outros, o recente estudo de Eduardo Cornelius (2018), que discute essas tensões na chave do formalismo da justiça criminal e do informalismo da justiça juvenil no Brasil.

Contudo, o desenvolvimento da pesquisa na Inglaterra levou a um deslocamento metodológico da construção de modelos e tipos ideias para o estudo das condições de emergência da justiça juvenil, uma vez que a problematização do caso inglês se constrói, na literatura especializada, a partir da noção de bem-estar, como tratarei nas seções seguintes.

A problematização, como define Nikolas Rose (1999)ROSE, Nikolas (1999), “Preface to the second edition”, in N. Rose, Governing the soul: the shaping of the private self. Londres, Free Association Books. a partir da contribuição de Michel Foucault (2001)FOUCAULT, Michel. (2001), “Nietzsche, a genealogia e a história”, in M. Foucault, Microfísica do poder¸ Rio de Janeiro, Edições Graal., refere-se justamente às condições de emergência nas quais um determinado fenômeno torna-se um problema. Segundo Rose, essas condições são relativas ao surgimento de preocupações específicas – sejam elas morais, políticas, econômicas, jurídicas, militares ou geopolíticas –, em que certas pessoas, práticas ou formas de conduta passam a ser consideradas problemáticas, bem como aos critérios mobilizados para definir essas pessoas, práticas ou formas de conduta como problemáticas. Essas condições referem-se também à constituição de autoridades, entendidas por Rose não somente como figuras públicas ou personagens que ganham importância nesses contextos, mas também como a emergência de especialidades – ou de saberes, para usar o termo de Foucault (1999)FOUCAULT, Michel. (1999), Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes. – sobre o fenômeno. Além disso, as condições de emergência tratam das operações que organizam (ou reorganizam) as formas de intervenção no problema por meio de práticas e instituições.

Nesse sentido, o deslocamento metodológico implicou analisar como o tratamento penal de crianças e adolescentes tornou-se um problema na Inglaterra e no Brasil, para o qual a justiça juvenil apresenta-se como uma resposta possível. Mais especificamente, esta pesquisa buscou construir uma compreensão interpretativa das condições de emergência, e suas características centrais, da justiça juvenil na Inglaterra e no Brasil, relacionando-as às formas históricas de acesso a direitos sociais de crianças e adolescentes nesses países.

Para tanto, a metodologia buscou seguir o caminho trilhado no caso inglês, principalmente, por David Garland (2018)GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. , que, também baseado em Michel Foucault (1999)FOUCAULT, Michel. (1999), Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes., reconstrói a penalidade moderna – isto é, o conjunto de sanções penais, estratégias, representações, agências, técnicas, conhecimentos e instituições referentes ao controle do crime e à justiça criminal –, como uma ruptura entre uma penalidade liberal (vitoriana) e o welfarismo penal, como tratarei nas próximas seções.

A questão aqui é pensar a justiça juvenil não somente como parte da penalidade moderna, mas também a partir de sua relação com a emergência do welfarismo penal, no caso inglês, e de sua constituição como uma penalidade própria, que Jo Phoenix (2016)PHOENIX, Jo. (2016), “Against Youth Justice and Youth Governance, for Youth Penality.” British Journal of Criminology, 56, 1: 123–40. DOI: https://doi.org/10.1093/bjc/azv031.
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chama de penalidade juvenil, definida como o poder de punir crianças e adolescentes.4 4 Para a discussão sobre o poder de punir e o conceito de penalidade, ver Garland e Young (1983). Segundo a autora, o conceito de penalidade juvenil permite teorizar, analisar e investigar práticas específicas de punição – sejam elas estatais ou comunitárias, penais ou não-penais – e entender por que e como essas práticas assumem a forma que assumem.

A meu ver, a penalidade juvenil é um conceito analítico, enquanto a justiça juvenil é um conceito empírico e histórico que opera o poder de punir nos níveis formal, estatal e judicial-penal. Nesta pesquisa, optei por manter o conceito de justiça juvenil, justamente, por focar as formas estatais e penais em suas manifestações históricas. A justiça juvenil é considerada aqui um conceito empírico que descreve os conjuntos de práticas, discursos, instituições e atores pelos quais diversos países têm gerenciado de maneira formal, sistemática e específica os atos cometidos por crianças e adolescentes considerados ilícitos.

Embora meus estudos sobre o caso brasileiro tenham me orientado no desenho desta investigação (Paula, 2019PAULA, Liana de. (2019), “Cidadania, corpo e punição: expansão e violação de direitos civis de adolescentes internados na antiga Febem-SP”. Sociedade e Estado, 34, 3: 719-744. DOI: https://doi.org/10.1590/s0102-6992-201934030004.
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, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial. e 2015PAULA, Liana de. (2015), “Da ‘questão do menor’ à garantia de direitos. Discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana”. Civitas, 15, 1: 27-43. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.16937.
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), concentrei-me na análise do caso inglês. Conduzi a pesquisa procurando tanto semelhanças nas condições de emergência da justiça juvenil de ambos os casos, quanto particularidades em cada um deles. Consequentemente, o caso inglês foi usado como base da análise e as comparações com o caso brasileiro foram usadas para identificar diferenças que requerem novas investigações.

Sobre os procedimentos de pesquisa, esses foram divididos em duas partes: a primeira concentrou-se na coleta de dados da justiça juvenil da Inglaterra, e a segunda focou o desenvolvimento de parâmetros analíticos para comparação com o caso brasileiro. O desenho metodológico da primeira parte combinou pesquisa bibliográfica e documental e entrevistas com operadores e consultores da justiça juvenil. Para a segunda parte da pesquisa, os procedimentos metodológicos consistiram em pesquisa bibliográfica e revisão analítica da literatura. Os resultados aqui apresentados centram-se na pesquisa bibliográfica e sua revisão analítica, embora as entrevistas com operadores e consultores da justiça juvenil inglesa tenham contribuído para indicar os caminhos dessa análise.

Bem-estar e direitos sociais na Inglaterra

O ponto de partida desta discussão são as condições de emergência dos direitos sociais na Inglaterra e sua relação com uma nova forma de pensar os problemas a serem enfrentados pelo Estado, levando à constituição do Estado de Bem-Estar Social e, consequentemente, a uma nova penalidade, o welfarismo penal (Garland, 2018GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. ).

As concepções modernas de direitos sociais e cidadania social foram elaboradas por Marshall (1967)MARSHALL, Thomas Humphrey. (1967), “Cap. III – Cidadania e classe social”, in T. H. Marshall, Cidadania, classe social e status, Rio de Janeiro, Zahar. e o tornam, segundo Garland (2014)GARLAND, David. (2014), “The welfare state: A fundamental dimension of modern government”. Archives Europeennes de Sociologie, 55, 3: 327–364. DOI: https://doi.org/10.1017/S0003975614000162.
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, um dos importantes teóricos do Estado de Bem-Estar Social no Reino Unido. Marshall aborda, em seu ensaio, a incorporação dos direitos sociais ao status de cidadania no século XX como um movimento de expansão de direitos.5 5 Para tratar dessa expansão de direitos, Marshall adota uma perspectiva histórico-evolutiva – começando com os direitos civis, seguidos dos direitos políticos e, finalmente, dos direitos sociais – que foi posteriormente bastante questionada. Como pontuam Wanderley Guilherme dos Santos (1994) e José Murilo de Carvalho (2004), a experiência do Brasil aponta que não é possível defender a universalidade dessa ordem de evolução histórica dos direitos de cidadania. No caso brasileiro, os direitos sociais desenvolveram-se antes dos direitos civis e políticos, além de ter havido momentos em que uns eram suspensos, enquanto outros expandiam-se. Além disso, a perspectiva evolutiva e de expansão dos direitos de Marshall também encontra críticas em autores como Aníbal Quijano (2005), Antonio Escrivão Filho e José Geraldo de Souza Júnior (2016). Garland, por sua vez, interpreta essa incorporação dos direitos sociais como a emergência de uma nova racionalidade de governo, surgida entre os séculos XIX e XX e resultante da emergência de uma nova concepção da relação entre o social e o econômico (Garland, 2016GARLAND, David. (2016), The welfare state: a very short introduction. Oxford, Oxford University Press.).

Segundo Marshall, os direitos sociais englobam desde o direito de mínimo bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, da herança social e conduzir a vida de acordo com os padrões civilizatórios da sociedade. Para ele, os direitos sociais possibilitam a promoção da igualdade social nas sociedades capitalistas, apesar de sua desigualdade econômica, reduzindo as distâncias entre as classes sociais. São direitos coletivos e as instituições a eles associadas são o sistema educacional e os serviços sociais.

Ainda segundo Marshall, embora os direitos sociais só tenham se desenvolvido na Inglaterra no século XX, a Poor Law de 1601 (ou Old Poor Law), editada no final do reinado de Elizabeth I, continha elementos primários desses direitos ao prever um sistema de regulamentação dos salários que visava ajustar “a renda real às necessidades sociais e ao status de cidadão e não apenas ao valor de mercado” (Marshall, 1967MARSHALL, Thomas Humphrey. (1967), “Cap. III – Cidadania e classe social”, in T. H. Marshall, Cidadania, classe social e status, Rio de Janeiro, Zahar., p. 72, grifo original). No final do século XVIII, com a industrialização, criou-se uma tensão entre esses elementos primários de direitos sociais e a emergente concepção de direitos civis, associados, na economia, ao livre contrato de trabalho.

Em 1834, foi editada uma nova Poor Law (Poor Law Amendment Act 1834 ou New Poor Law), que deixou de tratar da regulamentação dos salários e, assim, de intervir na formação do livre mercado de mão-de-obra, e passou a centrar-se na assistência aos incapazes – por idade ou doença – e aos miseráveis. Para Marshall, as reivindicações dos pobres foram entendidas na nova Poor Law não como parte dos direitos de cidadania, mas como uma alternativa a esses direitos, isto é, “reivindicações que poderiam ser atendidas somente se deixassem de ser inteiramente cidadãos” (Marshall, 1967MARSHALL, Thomas Humphrey. (1967), “Cap. III – Cidadania e classe social”, in T. H. Marshall, Cidadania, classe social e status, Rio de Janeiro, Zahar., p. 72). Para ter acesso à assistência, era preciso renunciar ao direito civil de liberdade individual e aos direitos políticos, ou seja, aceitar a assistência significava excluir-se da cidadania.

É importante destacar a tensão fundante que Marshall estabelece entre direitos civis e direitos sociais, qual seja, no momento em que os primeiros se consolidaram, fizeram-no firmando uma ruptura em relação às reivindicações por assistência. Dito de outro modo, os direitos civis implicavam, naquele momento, uma noção de cidadania da qual os direitos sociais não faziam parte.

Essa tensão tornou-se mais clara na Era Vitoriana (1837-1901), auge do liberalismo britânico e da noção de individualismo a ele relacionada. Como aponta David Garland (2018)GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. , essa noção de individualismo permeava todos os aspectos da vida vitoriana, desde a economia e a filosofia até o direito e a filantropia. Apoiada na economia política clássica, na filosofia utilitarista e na religião evangélica, essa noção tinha como corolários a livre iniciativa, o livre comércio e a liberdade individual, resultando em uma concepção de indivíduo enquanto sujeito livre, racional e responsável, de posse de seu eu e seu destino, e escolhendo e agindo de acordo com cálculos utilitários (Garland, 2018GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. ).

Segundo Garland (2018)GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. , o aspecto político dessa noção era o cidadão, com sua liberdade individual e seus direitos civis. Cada indivíduo, que para os vitorianos remetia ao homem adulto branco britânico, era uma pessoa livre e igual, não contida por nenhum poder arbitrário ou hierarquia e possuidora de toda a liberdade de expressão e ação de um cidadão nascido livre. Todo cidadão britânico gozava, assim, de seus direitos civis – possuir, contratar, processar, evitar prisão arbitrária, entre outros –, mesmo que não tivesse como exercê-los.

No corolário da liberdade individual vitoriana, a concepção de interferência mínima do Estado era um elemento importante. Como consequência, a pobreza e o crime eram entendidos como questões pertencentes à esfera privada, fora da alçada das preocupações de Estado. Os problemas da pobreza, do desemprego ou do emprego sazonal que afetavam os trabalhadores britânicos de menor qualificação eram interpretados como fracasso individual, podendo ser superados com a incorporação dos hábitos da autoajuda, da disciplina e da austeridade. Não requeriam, portanto, auxílio estatal ou controle do mercado de trabalho, o que circunscrevia o bem-estar a uma questão privada (Garland, 2018GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. ).

Quanto ao crime, como explica Garland (2018)GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. , embora todo sistema penal seja, por natureza, intervencionista e envolva um conjunto de proibições, regulações e outras formas de interferência estatal na liberdade individual, o sistema penal vitoriano era conduzido e apresentado em termos minimalistas do contrato social. Assim, tanto o crime era entendido como uma escolha individual de romper o contrato com a sociedade quanto o bem-estar e reforma do ofensor eram entendidos como questão de consciência individual.

Segundo Garland (2018GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. , 2014GARLAND, David. (2014), “The welfare state: A fundamental dimension of modern government”. Archives Europeennes de Sociologie, 55, 3: 327–364. DOI: https://doi.org/10.1017/S0003975614000162.
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), essa concepção de interferência mínima do Estado sofreu uma profunda ruptura ainda no final da Era Vitoriana, na passagem do século XIX para o século XX, com a emergência uma nova governamentalidade, isto é, uma nova racionalidade de governo, o Estado de Bem-Estar Social. As principais mudanças que marcaram essa emergência foram as novas formas de entender a relação entre o social e o econômico, as novas concepções sobre os problemas a serem enfrentados e uma nova racionalidade de governo a elas relacionada. Dito de outro modo, o que distingue o Estado de Bem-Estar Social é a emergência de um novo estilo de pensar e agir sobre os problemas do emprego e da seguridade, que incorpora toda a economia e toda a população, e não apenas os pobres (Garland, 2014GARLAND, David. (2014), “The welfare state: A fundamental dimension of modern government”. Archives Europeennes de Sociologie, 55, 3: 327–364. DOI: https://doi.org/10.1017/S0003975614000162.
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). Para compreender as consequências da emergência do Estado de Bem-Estar Social para o sistema penal, Garland (2018)GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. aponta os movimentos e as novas práticas que surgiram nas franjas do sistema penal vitoriano, e que serão discutidos na próxima seção.

Retomando a contribuição de Marshall (1967)MARSHALL, Thomas Humphrey. (1967), “Cap. III – Cidadania e classe social”, in T. H. Marshall, Cidadania, classe social e status, Rio de Janeiro, Zahar., este aponta que foram mudanças no tratamento das crianças durante o século XIX que possibilitaram o fim da tensão entre direitos sociais e direitos civis e a inclusão dos direitos sociais no status de cidadania. Embora não se reconhecesse que crianças pudessem ser cidadãs, o desenvolvimento do sistema educacional público obrigatório legitimou-se, para o autor, pela necessidade de formação dos futuros cidadãos, capazes de exercer seus direitos civis e políticos, o que abriu caminho para que os direitos sociais fossem incorporados à cidadania.

Como dito anteriormente, também data de meados do século XIX e início do século XX o desenvolvimento da justiça juvenil inglesa, havendo, portanto, um entrelaçamento entre sua criação, a incorporação dos direitos sociais à cidadania e a emergência do Estado de Bem-Estar Social. Esse entrelaçamento pode ser observado na noção de bem-estar de crianças e adolescentes que, segundo Loraine Gelsthorpe e Caroline Lanskey (2016), orientou a criação dessa justiça e sua legislação até a década de 1990.

Bem-estar e a justiça juvenil na Inglaterra no século XX

Na literatura especializada, bem-estar ou welfare é um tema central na discussão não somente sobre a justiça juvenil inglesa, mas sobre a justiça juvenil britânica em geral (Case, 2018CASE, Stephen. (2018), Youth Justice: a critical introduction. London, Routledge.; Muncie, 2015MUNCIE, John. (2015), Youth and Crime. 4th ed. Londres, Sage.; Smith, 2014aSMITH, Roger. (2014a), “Towards a ‘Welfare + Rights’ Model in Youth Justice.” Critical and Radical Social Work, 2, 3: 287–303. DOI: https://doi.org/10.1332/204986014X14096555906097.
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, 2005SMITH, Roger. (2005), “Welfare versus Justice – Again!” Youth Justice, 5, 1:3–16. DOI: https://doi.org/10.1177/147322540500500102
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; Hendrick, 2003HENDRICK, Harry. (2003), Child Welfare: Historical dimensions, contemporary debate. Bristol, Policy Press.) e sobre a penalidade britânica moderna (Garland, 2018GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. ).

Segundo John Muncie (2015)MUNCIE, John. (2015), Youth and Crime. 4th ed. Londres, Sage., bem-estar e justiça foram as estratégias dicotômicas da justiça juvenil no Reino Unido dos anos 1930 até o final dos anos 1990. Para os defensores da estratégia do bem-estar, crianças e adolescentes que cometiam atos ilícitos faziam-no como resultado de múltiplas privações, e a resposta mais adequada seria atender às suas necessidades de cuidado e proteção e fornecer tratamento e reabilitação (ver também Bailey, 1987BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press.; Smith, 2005SMITH, Roger. (2005), “Welfare versus Justice – Again!” Youth Justice, 5, 1:3–16. DOI: https://doi.org/10.1177/147322540500500102
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). É importante enfatizar que os elementos discursivos básicos que definem essa estratégia são precisamente: necessidades, bem-estar, cuidado, proteção, tratamento e reabilitação.

Ainda segundo Muncie (2015)MUNCIE, John. (2015), Youth and Crime. 4th ed. Londres, Sage., embora tenha sido hegemônica entre os anos 1930 e 1990, a estratégia do bem-estar não eliminou os traços da estratégia da justiça, que também esteve presente desde a criação da justiça juvenil britânica e que enfatiza a responsabilização criminal de crianças e adolescentes.6 6 Um exemplo da permanência da estratégia da justiça pode ser encontrado na obra de Victor Bailey (1987), que analisa os processos políticos de elaboração da legislação sobre a justiça juvenil britânica entre os anos de 1914 e 1948. Esse exemplo refere-se à permanência do uso de medidas privativas de liberdade (internação) na justiça juvenil, apesar do posicionamento contrário dos defensores do bem-estar infanto-juvenil. A estratégia da justiça remonta ao início do século XIX, sendo predominantemente definida pelo problema da punição. Nesse sentido, os primeiros movimentos de especialização da justiça juvenil na Inglaterra preocupavam-se somente em criar instituições específicas para crianças e adolescentes para evitar seu contato com infratores adultos e, por isso, mais experientes (Muncie, 2015MUNCIE, John. (2015), Youth and Crime. 4th ed. Londres, Sage.).

Segundo Margaret May (1973)MAY, Margaret. (1973), “Innocence and Experience: The Evolution of the Concept of Juvenile Delinquency in the Mid-Nineteenth Century.” Victorian Studies The Victorian Child, 17, 1:7–29. Disponível em http://www.jstor.org/stable/3826512.
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, no início do século XIX, crianças e adolescentes que cometessem atos ilícitos eram julgados como adultos no Reino Unido, havendo poucas diferenças legais entre definição do ato, modo de julgamento e punição. A única diferença legal a se destacar era o princípio de doli incapax, segundo o qual a capacidade de crianças e adolescentes entre sete e 14 anos de compreender e avaliar suas próprias ações deveria ser levada em consideração. Nesse caso, a promotoria tinha que provar sua capacidade de discernimento para que pudessem ser julgados como adultos (ver também Magarey, 1978MAGAREY, Susan. (1978). “The Invention of Juvenile Delinquency in Early Nineteenth-Century England.” Labour History, 34: 11–27. Disponível em http://www.jstor.org/stable/27508306.
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).7 7 Havia um princípio similar de discernimento no Código Penal Brasileiro de 1890, antes da instituição do Código de Menores em 1927. Ver Alvarez (1989).

Crianças e adolescentes estavam sujeitos a todas as principais formas de punição estabelecidas pela lei criminal britânica, incluindo a pena capital, o degredo e a prisão. Durante a primeira metade do século XIX, a pena capital e o degredo foram gradualmente substituídos pela prisão. Além disso, houve os primeiros esforços na reforma das prisões (ver também Garland, 2018GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. ). No entanto, crianças e adultos ainda eram tratados da mesma maneira (May, 1973MAY, Margaret. (1973), “Innocence and Experience: The Evolution of the Concept of Juvenile Delinquency in the Mid-Nineteenth Century.” Victorian Studies The Victorian Child, 17, 1:7–29. Disponível em http://www.jstor.org/stable/3826512.
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).

Conforme apontado por Susan Magarey (1978)MAGAREY, Susan. (1978). “The Invention of Juvenile Delinquency in Early Nineteenth-Century England.” Labour History, 34: 11–27. Disponível em http://www.jstor.org/stable/27508306.
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, a reforma penal conduzida pelo Ministro do Interior Robert Peel, entre 1822 e 1827, ampliou o escopo do direito penal e aumentou a severidade da punição de delitos que antes eram desconsiderados ou que não levavam à prisão.8 8 A reforma introduziu leis, tais como o Vagrancy Act de 1824 e o Malicious Trespass Act de 1827, que criminalizaram comportamentos relativamente comuns entre crianças e adolescentes das camadas populares (tais como pegar frutas dos quintais ou danificar jardins). Além da criação de novos tipos penais, a reforma acelerou o processamento penal dos infratores, com a implantação de ritos sumários para uma série de novos crimes (Margarey, 1978). Juntamente com a queda em desuso do princípio de doli incapax para menores de 14 anos, a reforma contribuiu para aumentar o número de crianças e adolescentes presos durante a primeira metade do século XIX e para a emergência de um novo problema: a então chamada delinquência juvenil.

A ideia de que o envolvimento de crianças e adolescentes com infrações penais exigia uma resposta diferenciada surgiu somente na década de 1850, com os filantropos e os chamados “salvadores de crianças” (child savers). Nesse sentido, May (1973)MAY, Margaret. (1973), “Innocence and Experience: The Evolution of the Concept of Juvenile Delinquency in the Mid-Nineteenth Century.” Victorian Studies The Victorian Child, 17, 1:7–29. Disponível em http://www.jstor.org/stable/3826512.
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situa a segunda metade do século XIX como o período de surgimento do que define como sendo uma nova sensibilidade em relação a crianças e adolescentes que cometessem atos ilícitos, em que eles deixaram de ser considerados como pequenos adultos nos tribunais e passaram a ter um cuidado especial. Para a autora, a distinção da chamada delinquência juvenil em relação à criminalidade adulta esteve associada ao surgimento de um novo conceito de cuidado e à consequente introdução do tratamento de caráter reformador, ao invés de meramente punitivo. As primeiras escolas industriais e os primeiros reformatórios e para crianças e adolescentes que precisassem, respectivamente, de cuidado e proteção ou que tivessem cometido alguma infração foram instituídos no Reino Unido entre 1854 e 1857.

Victor Bailey (1987)BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press. destaca a “descoberta” da adolescência e o surgimento de movimentos de defesa da infância entre o final do século XIX e início do século XX como relacionados à essa nova concepção de delinquência. Nesse esteio, Kate Bradley (2008a)BRADLEY, Kate. (2008a), “Juvenile Delinquency, the Juvenile Courts and the Settlement Movement 1908-1950: Basil Henriques and Toynbee Hall.” Twentieth Century British History, 19, 2: 133–55. DOI: https://doi.org/10.1093/tcbh/hwm038
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observa que o interesse pela delinquência juvenil estava relacionado a uma convergência, nesse período, de interesses acadêmicos e populares em torno do bem-estar e desenvolvimento de crianças e jovens. Essa convergência também se manifestava em campanhas referentes ao fim do trabalho infantil nas fábricas e à assistência às crianças em situação de rua, e pela criação de várias associações voltadas para o bem-estar infantil. Além disso, uma série de Education Acts editados nesse período padronizou a escolarização infanto-juvenil e tornou-a obrigatória.

O movimento dos reformadores e defensores do bem-estar e do desenvolvimento infanto-juvenil tornou-se um influente lobby político no início do século XX, culminando na edição do primeiro Children Act de 1908, que focava a proteção infantil e instituiu as cortes de justiça juvenil no Reino Unido. A consolidação da estratégia do bem-estar, para retomar a expressão de Muncie (2015)MUNCIE, John. (2015), Youth and Crime. 4th ed. Londres, Sage., veio com o Child and Young Persons Act de 1933 (ver também Bailey, 1987BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press.).

Para Bradley (2008b)BRADLEY, Kate. (2008b), “Juvenile Delinquency and the Evolution of the British Juvenile Courts, c.1900-1950”. History in Focus, 14: Welfare. Disponível em https://www.history.ac.uk/ihr/Focus/welfare/articles/bradleyk.html.
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, embora as preocupações com o bem-estar dos mais jovens não fossem novas, o desenvolvimento da industrialização e suas consequências no século XIX trouxeram novos significados e novas práticas para os filhos dos trabalhadores pobres e para a juventude urbana do Reino Unido. Segundo a autora, e como também destaca Bailey (1987)BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press., os novos significados e as novas práticas estavam relacionados à afirmação da supremacia do Império Britânico por meio da saúde, da moral e da robustez de sua força de trabalho, o que levou ao investimento na formação dos filhos dos trabalhadores pobres urbanos como “bons cidadãos”, isto é, ao investimento no seu treinamento para o trabalho e também na sua educação moral e no autocontrole como formas de afastá-los do crime e incentivá-los a contribuírem para a sociedade (Bradley, 2008bBRADLEY, Kate. (2008b), “Juvenile Delinquency and the Evolution of the British Juvenile Courts, c.1900-1950”. History in Focus, 14: Welfare. Disponível em https://www.history.ac.uk/ihr/Focus/welfare/articles/bradleyk.html.
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).9 9 Nas palavras de Alexander Paterson, um dos mais conhecidos reformadores britânicos do período: “No country that has joined the struggle for supremacy (…) can allow the finest human material to grow stiff or die for lack of help and understanding” (Paterson apudBailey, 1987, p. 9-10).

Por fim, o período entre o final do século XIX e início do XX marcou mudanças profundas não somente em relação ao tratamento penal de crianças e adolescentes, mas nas formas de punição como um todo no Reino Unido. Trata-se, para Garland (2018)GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. , do surgimento de um novo sistema penal, que o autor chama de welfarismo penal. Segundo Garland, foi o breve período entre a publicação do relatório do Comitê Gladstone, em 1895, e o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, que marcou a descontinuidade do sistema penal vitoriano e a emergência desse novo sistema, definido por ele como uma nova penalidade, isto é, um novo padrão de sanções penais, estratégias e representações combinadas com novas agências, técnicas, conhecimentos e instituições.10 10 O relatório do Comitê Gladstone apresentou recomendações para reformar o sistema prisional britânico, focando a reabilitação. Dentre as recomendações, estava a de não dispensar tratamento penal mais duro a adolescentes e jovens entre 16 e 21 anos (Cross, 1971).

Como dito na seção anterior, a penalidade vitoriana caracterizava-se pela estreita relação entre o liberalismo econômico e o campo da punição. As representações oficiais dessa penalidade, fundamentadas na concepção de crime como escolha individual, tratavam do problema do controle do crime a partir da defesa da justiça, da retribuição e da dissuasão (Garland, 2018GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. ).

Seus efeitos práticos, porém, direcionavam o controle penal para os trabalhadores mais pobres. Como apontado por Garland (2018)GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. , as prisões vitorianas estavam cheias de trabalhadores analfabetos, de baixa qualificação ou desempregados. Nesse contexto, a dissuasão operava de modo a ameaçar de punição quem, mesmo submetido a condições precárias de trabalho, cogitasse atravessar a linha moral entre trabalho e crime. Na fase final do sistema penal vitoriano, entre 1865 e 1895, o encarceramento havia se tornado o principal modo de punir os infratores adultos, sendo a prioridade do regime prisional a repressão ao crime (Garland, 2018GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. ).

É importante destacar que a mudança desse sistema veio de suas margens, isto é, do tratamento que passou a ser dispensado a não cidadãos, a crianças e adolescentes. Como dito anteriormente, a partir de 1850, crianças e adolescentes que cometessem atos ilícitos foram deixando de ser encaminhados para as prisões e passaram a ser internados em reformatórios que combinavam detenção penal com educação, e que eram mantidos por instituições de caridade certificadas e parcialmente financiadas pelo governo central (Garland, 2018GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. ).

Nesse sentido, Garland afirma que:

Devemos notar que essas instituições significavam que a prática da reforma (embora de forma educacional e frequentemente evangélica) tinha uma posição definitiva no [novo] sistema. É claro que essas instituições eram privadas, lidavam com crianças e não com cidadãos, mantendo-se formalmente distintas do sistema estatal de tratar os infratores. Não obstante, elas formaram um exemplo reformador nas margens do sistema e que seria mais tarde referido como um precedente para uma prática de reforma muito mais ampla (e um pouco diferente). (Garland, 2018GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. , p. 8)11 11 Tradução minha. No original: “We should note that these institutions meant that the practice of reformation (albeit in an educational and often evangelical form) had a definite foothold in the system. Of course these were private institutions, dealing with children and not citizens, kept formally distinct from the state system of dealing with deviants. Nevertheless they formed a reformative example on the margins of the system and one which would later be referred to again and again as a precedent for a much wider (and somewhat different) practice of reform.”

Como exposto por Garland (2018)GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. , a emergente justiça juvenil e suas inovadoras instituições de reforma podem ser consideradas parte importante da transformação que levou ao surgimento do welfarismo penal. Nesse caso, a justiça juvenil situa-se nesse novo espectro que se apresenta como uma descontinuidade com o que Garland chamou de sistema penal vitoriano e o que Bailey (1987)BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press. definiu como justiça retributiva. Para Bailey (1987)BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press., e considerando o caso específico da justiça juvenil, a dicotomia entre reformistas e retributivistas e suas lutas políticas não levaram à superação da estratégia de justiça retributiva, o que pode ser exemplificado pela permanência de medidas privativas de liberdade.

Nesse sentido, ao analisar o período entre 1914 e 1948, Bailey (1987)BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press. detalha a atuação dos reformistas a partir do primeiro Children Act, de 1908, para a publicação do Child and Young Persons Act, em 1933, e seu empenho no desenvolvimento do chamado probation system, isto é, do sistema de liberdade condicional para adolescentes e jovens. Essa atuação levou à diversificação das medidas adotadas pela justiça juvenil inglesa, de modo que a aplicação da probation (liberdade condicional) nas cortes juvenis passou de 10,6%, em 1910, para 54%, em 1934. Contudo, os reformistas não conseguiram eliminar da legislação e das práticas da justiça juvenil as possibilidades de internação em reformatórios e de castigos corporais.12 12 A permanência da possibilidade de castigos corporais, fortemente combatida pelos reformistas, indica que, embora tenha havido uma ampliação de direitos sociais para crianças, adolescentes e jovens no Reino Unido nesse período, eles não eram vistos como detentores de direitos civis. Sobre a relação entre castigos corporais e direitos civis, ver Caldeira (2000) e Paula (2019). Ainda assim, os reformatórios foram reformulados nos anos 1920, a partir da reorganização do sistema Borstal (Bailey, 1987BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press.),13 13 A primeira instituição Borstal foi criada no vilarejo de mesmo nome (no condado de Kent, Inglaterra) em 1902, a partir do relatório do Comitê Gladstone, de 1895. As instituições do sistema Borstal, que atendiam adolescentes e jovens sentenciados, focavam o treinamento dos internos para o trabalho (Bailey, 1987). sendo esse substituído pelos centros de custódia juvenil nos anos 1980.

A manutenção de medidas privativas de liberdade indica que a estratégia da justiça, retomando a expressão de Muncie (2015)MUNCIE, John. (2015), Youth and Crime. 4th ed. Londres, Sage., permaneceu latente ao longo do século XX, enquanto a estratégia de bem-estar buscou consolidar-se na organização da justiça juvenil inglesa. Emergindo em meados do século XIX, com os filantropos, os “salvadores de crianças” e seus reformatórios e escolas industriais, e ganhando força com o movimento de reformadores e defensores do bem-estar e desenvolvimento infantojuvenil na virada para o século XX e seu bem-sucedido lobby para a promulgação de um conjunto legislativo voltado ao cuidado e proteção da infância pobre, essa estratégia visou circunscrever a justiça juvenil enquanto instituição de assistência social, afastando-a, portanto, da justiça criminal e dos direitos civis a ela associados.

Assim, embora a tensão entre direitos sociais e civis parecesse “superada” para Marshall (1967)MARSHALL, Thomas Humphrey. (1967), “Cap. III – Cidadania e classe social”, in T. H. Marshall, Cidadania, classe social e status, Rio de Janeiro, Zahar., ela reapareceu na forma da dicotomia entre bem-estar e justiça na justiça juvenil inglesa ao longo do século XX e na consequente impossibilidade de que crianças e adolescentes pudessem, ao mesmo tempo, ser pensados como portadores de direitos sociais e civis. O registro dos direitos civis, para os ingleses, situava-se (e ainda se situa) claramente no âmbito da justiça (criminal, retributiva, mas também atrelada ao due process of law, ao devido processo legal). E, para os defensores da estratégia do bem-estar, a crianças e adolescentes caberiam apenas os direitos sociais, postergando o exercício dos direitos civis para o futuro como forma de cuidar da infância.

Nos anos 1990, uma nova descontinuidade no campo da justiça juvenil inglesa foi produzida juntamente com a emergência do New Public Managerialism (NPM), ou nova administração pública gerencial, e o aprofundamento da ‘virada punitiva’ promovido pelo New Labour de Tony Blair. Essa descontinuidade tem como marco o Crime and Disorder Act de 1998, que reforça os aspectos retributivos e introduz instrumentos de avaliação do risco do adolescente a si mesmo e à sociedade como parte da justiça juvenil inglesa.14 14 Vale destacar que, segundo Lesley McAra (2010), haveria atualmente quatro paradigmas no discurso sobre a justiça juvenil: retribuição, bem-estar, restauração e atuarialismo, sendo este último relativo à incorporação da NPM. Ver também Case (2018), Smith (2014b) e McLaughlin et al. (2001). Porém, a análise dessa descontinuidade e seus desdobramentos contemporâneos extrapola o escopo deste artigo.

Tutela e a justiça juvenil no Brasil no século XX

A questão central para a comparação entre a emergência da justiça juvenil na Inglaterra e no Brasil é pensar nas formas históricas assumidas pelos direitos sociais e pela problematização dos filhos dos trabalhadores pobres urbanos nos dois países. De início, e como dito na introdução, essa problematização marcou a criação da justiça juvenil em diversos países, ou seja, a justiça juvenil, em sua emergência histórica, configurou-se como uma das respostas estatais ao problema dos filhos dos trabalhadores pobres urbanos, embora não fosse a única resposta.

De fato, a emergência da justiça juvenil no Brasil foi fortemente marcada pelos debates públicos sobre pobreza e questão social que caracterizaram a Primeira República, entre o final do século XIX e o início do século XX (Alvarez, 2003ALVAREZ, Marcos César. (2003), Bacharéis, criminologistas e juristas. São Paulo, IBCCrim.; Paula, 2015PAULA, Liana de. (2015), “Da ‘questão do menor’ à garantia de direitos. Discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana”. Civitas, 15, 1: 27-43. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.16937.
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). A urbanização acelerada e caótica produziu rápidas mudanças nas cidades do Rio de Janeiro, então capital federal, e de São Paulo, que passara a ser um importante centro econômico com a produção de café (Caldeira, 2000CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. (2000), Cidade de muros. São Paulo, Editora 34, Edusp.; Fausto, 2001FAUSTO, Boris. (2001), Crime e cotidiano. São Paulo, Edusp.). Com a urbanização acelerada, cresceu também o número de crianças e adolescentes que ficavam pelas ruas das cidades.

Não havia, naquele momento, um aparato institucional público ou privado capaz de absorver a demanda por creches, liceus e escolas, e as poucas instituições existentes eram privadas e restritivas em relação ao público atendido (Moura, 1999MOURA, Esmeralda B. B. (1999), “Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo”, in M. Del Priore (org.), História das crianças no Brasil, São Paulo, Contexto.; Santos, 1999SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. (1999), “Criança e criminalidade no início do século”, in M. Del Priore (org.), História das crianças no Brasil, São Paulo, Contexto.). Assim, quando não eram precocemente inseridos no mundo do trabalho, meninos e meninas pobres encontravam nas ruas da cidade alternativas de diversão e sustento e, por vezes, envolviam-se em atividades ilícitas (Santos, 1999SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. (1999), “Criança e criminalidade no início do século”, in M. Del Priore (org.), História das crianças no Brasil, São Paulo, Contexto.; Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial., 2015PAULA, Liana de. (2015), “Da ‘questão do menor’ à garantia de direitos. Discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana”. Civitas, 15, 1: 27-43. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.16937.
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).

Foram essas crianças e esses adolescentes pobres que circulavam pelas ruas que se tornaram o foco dos debates públicos que levaram à criação das primeiras instituições especializadas de tratamento, como o Instituto Disciplinar e Colônia Correcional da cidade de São Paulo, em 1902, e à promulgação da primeira legislação especificamente voltada para infância e adolescência, o Código de Menores de 1927 (Alvarez, 1989ALVAREZ, Marcos César. (1989), A emergência do Código de Menores de 1927. Dissertação de mestrado, Departamento de Sociologia – FFLCH/USP, São Paulo.; Santos, 1999SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. (1999), “Criança e criminalidade no início do século”, in M. Del Priore (org.), História das crianças no Brasil, São Paulo, Contexto.; Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial., 2015PAULA, Liana de. (2015), “Da ‘questão do menor’ à garantia de direitos. Discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana”. Civitas, 15, 1: 27-43. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.16937.
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). No Rio de Janeiro e em São Paulo, industriais, juristas e autoridades do início do século XX defendiam sua retirada das ruas, visando sua inserção precoce no mundo do trabalho e evitando assim o “perigo moral” de se tornarem criminosos.15 15 Sobre a percepção da rua como lugar de perigo moral para as crianças, ver Gregori, 2000; Alvim e Valladares, 1988.

Enquanto a criação das primeiras instituições penais específicas para crianças e adolescentes na Inglaterra na segunda metade do século XIX esteve relacionada ao crescimento do número de crianças e adolescentes presos com adultos, como tratado na seção anterior, no Brasil, o problema que se colocava para o debate era o do crescimento do número de crianças e adolescentes nas ruas.

Como destaca Esmeralda Moura (1999)MOURA, Esmeralda B. B. (1999), “Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo”, in M. Del Priore (org.), História das crianças no Brasil, São Paulo, Contexto., a solução defendida pelos industriais era o recrutamento de crianças e adolescentes na condição de aprendizes, o que entendiam ser uma atividade filantrópica que enaltecia o trabalho “enquanto instrumento que permitia, (...) resgatá-los e preservá-los do contato pernicioso das ruas, que projetava sobre a cidade as sombras de uma crescente criminalidade” (Moura, 1999MOURA, Esmeralda B. B. (1999), “Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo”, in M. Del Priore (org.), História das crianças no Brasil, São Paulo, Contexto., p. 276). Conforme pontuei em trabalho anterior (ver Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial.), nessa solução havia, por um lado, uma motivação econômica na exploração da força de trabalho infantojuvenil, porém havia, por outro, a crença de que a inserção precoce no mundo do trabalho poderia preservar crianças e adolescentes pobres das situações de abandono, desamparo e criminalidade.

Como observei, o Código Penal Republicano, de 1890, respaldava os industriais, uma vez que permitia que as autoridades policiais lhes encaminhassem crianças e adolescentes apreendidos (Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial.). Segundo esse Código, crianças e adolescentes entre nove e 14 anos que fossem considerados capazes de discernir quando cometeram uma infração,16 16 De forma semelhante ao princípio do doli incapax apontado por May (1973) no caso inglês, o Código Penal Republicano brasileiro previa o princípio do discernimento para responsabilizar penalmente crianças e adolescentes entre nove e 14 anos. A análise desse princípio e de sua eliminação da legislação brasileira como um dos pontos centrais da discussão e publicação do primeiro Código de Menores foi feita por Marcos César Alvarez (1989). e adolescentes entre 14 e 17 anos que cometessem uma infração (para os quais o discernimento era presumido), poderiam ser recolhidos em estabelecimentos industriais especiais (Alvarez, 1989ALVAREZ, Marcos César. (1989), A emergência do Código de Menores de 1927. Dissertação de mestrado, Departamento de Sociologia – FFLCH/USP, São Paulo.; Fausto, 2001FAUSTO, Boris. (2001), Crime e cotidiano. São Paulo, Edusp.; Santos, 1999SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. (1999), “Criança e criminalidade no início do século”, in M. Del Priore (org.), História das crianças no Brasil, São Paulo, Contexto.).

Contudo, como pontuei (Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial.), o encaminhamento para estabelecimentos industriais era uma solução precária, pois, enquanto a demanda por vagas crescia (Fausto, 2001FAUSTO, Boris. (2001), Crime e cotidiano. São Paulo, Edusp.; Santos, 1999SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. (1999), “Criança e criminalidade no início do século”, in M. Del Priore (org.), História das crianças no Brasil, São Paulo, Contexto.), essa solução dependia de acordos ad hoc entre industriais e autoridades policiais. Como resultado, as autoridades policiais terminavam por recorrer a expedientes extrajudiciais, como a prisão temporária e o cumprimento de pena em penitenciárias junto a adultos, o que contrariava a diretriz estabelecida pelo Código Penal Republicano de separação de crianças e adolescentes dos adultos.

Em São Paulo, a criação do Instituto Disciplinar e da Colônia Correcional (Lei n. 844, de 10 de outubro de 1902) resultou de uma campanha conduzida pelo jornal A Nação (Fausto, 2001FAUSTO, Boris. (2001), Crime e cotidiano. São Paulo, Edusp.) e por autoridades principalmente relacionadas ao universo jurídico, com destaque para o jurista e deputado estadual Candido Motta (ver Alvarez, 2003ALVAREZ, Marcos César. (2003), Bacharéis, criminologistas e juristas. São Paulo, IBCCrim.). De forma semelhante, a Escola Correcional XV de Novembro foi criada no Rio de Janeiro em 1903 (Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial.).

O Código de Menores estabeleceu o encaminhamento de crianças e adolescentes pobres considerados abandonados, carentes ou infratores para instituições especiais de assistência social e correção, além de regulamentar o trabalho infanto-juvenil. Nesse sentido, a criação da justiça juvenil brasileira, com o Código, foi marcada pela junção entre procedimentos penais especiais para crianças e adolescentes pobres considerados potencialmente perigosos e a construção de um aparato assistencialista para atendê-los (Alvarez, 2003ALVAREZ, Marcos César. (2003), Bacharéis, criminologistas e juristas. São Paulo, IBCCrim.).

Segundo Marcos César Alvarez (2003)ALVAREZ, Marcos César. (2003), Bacharéis, criminologistas e juristas. São Paulo, IBCCrim., o assistencialismo era visto, na Primeira República, como uma alternativa para solucionar os problemas gerados pela pobreza urbana e pela questão social, sem que a assistência implicasse uma extensão da cidadania à população pobre. Assim, para o autor, a estratégia adotada pelas autoridades, na Primeira República, para o enfrentamento da questão social foi semelhante à da Inglaterra do século XIX (i.e., anterior à incorporação dos direitos sociais à cidadania), focando a tutela e a assistência social como formas de restrição e não de expansão de acesso ao registro da cidadania. Como na Inglaterra do século XIX, também no Brasil do início do século XX a assistência voltava-se especialmente para mulheres e crianças, justamente por não as considerar cidadãos plenos (Alvarez, 2003ALVAREZ, Marcos César. (2003), Bacharéis, criminologistas e juristas. São Paulo, IBCCrim.).

Contudo, a emergência da justiça juvenil na Inglaterra, entre a segunda metade do século XIX e a promulgação do Children Act no início do século XX, acompanhou o processo histórico de incorporação dos direitos sociais ao registro da cidadania. Assim, é importante destacar a relação que se estabeleceu por lá entre bem-estar e justiça juvenil. Embora não reconhecesse crianças e adolescentes como cidadãos plenos, a constituição da justiça juvenil inglesa a partir da estratégia de bem-estar visava sua formação como (futuros) “bons cidadãos” (Bradley, 2008bBRADLEY, Kate. (2008b), “Juvenile Delinquency and the Evolution of the British Juvenile Courts, c.1900-1950”. History in Focus, 14: Welfare. Disponível em https://www.history.ac.uk/ihr/Focus/welfare/articles/bradleyk.html.
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), indicando um movimento de expansão do acesso à cidadania aos filhos dos trabalhadores pobres urbanos.

No Brasil, pelo contrário, a emergência da justiça juvenil no início do século XX não se enquadra em um movimento de expansão do acesso à cidadania aos trabalhadores pobres urbanos por meio da incorporação dos direitos sociais. Embora haja nessa emergência elementos que dialogam com o caso inglês, há também especificidades relativas às formas históricas assumidas no Brasil para interpretar e responder à questão social, que podem ser observadas na noção de assistencialismo na Primeira República, analisada por Alvarez (2003)ALVAREZ, Marcos César. (2003), Bacharéis, criminologistas e juristas. São Paulo, IBCCrim., e na bifurcação entre assistência e seguridade social a partir dos anos 1930.

Essa forma histórica bifurcada assumida pela incorporação dos direitos sociais no Brasil foi analisada por Wanderley Guilherme dos Santos (1994)SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1994), Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Editora Campus., constituindo o conceito de cidadania regulada. Brevemente, segundo Santos (1994)SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1994), Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Editora Campus., o conceito de cidadania regulada é central para compreender a legislação brasileira entre os anos 1930 e 1980, bem como a política econômica e social desse período, uma vez que esse conceito permite compreender como se operavam as desigualdades entre os incluídos e os excluídos no registro da cidadania. Santos chama a atenção para o fato de que a cidadania regulada implicava um status de cidadania que não era universal, mas dependente do status ocupacional. Assim, a carteira de trabalho assinada era o documento que regulava o acesso aos direitos de cidadania até o final dos anos 1980.

O período que engloba a Era Vargas (1930-1945) ficou caracterizado pela formalização de um conjunto de leis de proteção ao trabalhador (com destaque para a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, em 1943) e a forte expansão de direitos sociais associados a essa proteção, notadamente a seguridade e a previdência social. Desse modo, o acesso a parte dos direitos sociais foi incorporado ao registro da cidadania, mas passou a depender da carteira de trabalho assinada, ficando os trabalhadores informais e os sem trabalho fora dessa proteção que passou a ser oferecida pelo Estado (Santos, 1994SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1994), Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Editora Campus.; Carvalho, 2004CARVALHO, José Murilo de. (2004), Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.).

Aos trabalhadores informais e aos sem trabalho, categorias às quais pertencia parte dos trabalhadores pobres urbanos, coube o registro da assistência social, que seguiu por outro caminho que não o da incorporação enquanto direito social. Como analisado por Maria Luiza Mestriner (2008)MESTRINER, Maria Luiza. (2008), “A filantropia disciplinadora no enfrentamento da questão social (1930-1945)”, in M. L. Mestriner, O Estado entre a filantropia e a assistência social, São Paulo, Cortez., a criação do Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), em 1938, marcou a vinculação da assistência social a modelos filantrópicos e à ideia de que o Estado deveria subsidiar a assistência privada (muitas vezes, oferecida por grupos religiosos) e fornecer assistência suplementar. Nesse sentido, a tônica da assistência social remetia às noções de benemerência e amparo, e não a uma política social (Mestriner, 2008MESTRINER, Maria Luiza. (2008), “A filantropia disciplinadora no enfrentamento da questão social (1930-1945)”, in M. L. Mestriner, O Estado entre a filantropia e a assistência social, São Paulo, Cortez.; também Sposati, 1988SPOSATI, Aldaíza. (1988), Vida urbana e gestão da pobreza. São Paulo: Cortez.).

A partir dos anos 1930, a organização da assistência a crianças e adolescentes pobres considerados abandonados e carentes acompanhou a tendência de vinculação entre Estado e filantropia (Rizzini, 2011RIZZINI, Irma. (2011), “Meninos desvalidos e menores transviados: a trajetória da assistência pública até a Era Vargas”, in I. Rizzini & F. Pilotti (orgs), A arte de governar crianças. São Paulo, Cortez.). Porém, o atendimento aos considerados infratores ficou reservado às instituições públicas, estabelecendo-se uma vinculação complementar entre executivo e judiciário, em que coube ao primeiro prover as instituições de internação a serem usadas pelos juizados de menores.

Em São Paulo, o Departamento de Assistência Social foi criado em 1934 (Decreto Estadual nº 6.476) com foco na infância e adolescência e o objetivo de “remodelar os institutos disciplinares” (Sposati, 1988SPOSATI, Aldaíza. (1988), Vida urbana e gestão da pobreza. São Paulo: Cortez., p. 111). Após a criação da primeira Escola de Serviço Social em São Paulo, em 1936,17 17 Segundo Aldaíza Sposati (1988), a criação da Escola de Serviço Social em São Paulo aprofundou o movimento, iniciado com a intervenção da medicina social na filantropia, de conversão da assistência em serviço social por meio de sua profissionalização e maior sistematização de seus saberes e práticas. o Departamento foi substituído, em 1938, pelo Serviço Social dos Menores Abandonados e Delinquentes, o qual visava “organizar e executar no Estado, o serviço social dos menores abandonados e delinquentes, em seu aspecto médico-pedagógico e social” (art. 1º do Decreto Estadual nº 9.744, de 19 de novembro de 1938).18 18 Para as práticas institucionais adotadas pelo Serviço Social de Menores de São Paulo, ver Alvarez et al. (2021). No Rio de Janeiro, que ainda era a capital federal, o Serviço de Atendimento a Menores – SAM foi criado em 1941 (Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial.).

Assim, o período de emergência e consolidação da justiça juvenil no Brasil não se insere em um registro (ou estratégia) de bem-estar social, mas no registro de uma assistência que não é direito social, embora seja, ao mesmo tempo e em certa medida, tutelada pelo Estado (Alvarez et al., 2021ALVAREZ, Marcos César; LOURENÇO, Luiz Cláudio; CHIES-SANTOS, Mariana. (2021), “Jovens internados em São Paulo (1934-1950): notas para uma análise genealógica das instituições disciplinares e de controle social.” Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, 13, 25: 175-199. DOI: https://doi.org/10.14295/rbhcs.v13i25.11964.
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; Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial., 2015PAULA, Liana de. (2015), “Da ‘questão do menor’ à garantia de direitos. Discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana”. Civitas, 15, 1: 27-43. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.16937.
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). Estar no registro da tutela estatal significava, em primeiro lugar, estar fora da cidadania, isto é, inseriam-se no registro da tutela aqueles a quem não se aplicava o status de cidadão. A tutela significava também que os que estavam fora desse status se tornavam objeto da intervenção do Estado. Assim, as crianças e os adolescentes pobres considerados abandonados, carentes ou infratores tornavam-se objetos da tutela do Estado.19 19 Embora se possa dizer que crianças e adolescentes também seriam objeto de intervenção no caso inglês, as formas assumidas pelos direitos sociais enquanto bem-estar procuravam promover o acesso antecipado a esses direitos como preparação para a cidadania plena (ou seja, o acesso a direitos sociais como preparação para o acesso aos direitos civis e políticos).

A justiça juvenil brasileira, desde sua criação nos anos 1920 até o final dos anos 1980, operou sob o registro tutelar da assistência a crianças e adolescentes pobres. Reforçou a noção de sua incapacidade em ter suas necessidades básicas supridas – não somente pela idade, mas também pelas precárias condições materiais de suas famílias – para legitimar intervenções de cunho assistencial que consistiam, principalmente, na internação em instituições do Estado (Alvarez et al., 2021ALVAREZ, Marcos César; LOURENÇO, Luiz Cláudio; CHIES-SANTOS, Mariana. (2021), “Jovens internados em São Paulo (1934-1950): notas para uma análise genealógica das instituições disciplinares e de controle social.” Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, 13, 25: 175-199. DOI: https://doi.org/10.14295/rbhcs.v13i25.11964.
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; Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial., 2015PAULA, Liana de. (2015), “Da ‘questão do menor’ à garantia de direitos. Discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana”. Civitas, 15, 1: 27-43. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.16937.
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).20 20 Como aponta Robert Castel (2010), ao analisar as transformações históricas da questão social na França, e em especial comparação com a Inglaterra, a tutela implica uma forma de proteção assistencial que não assegura direitos, mas reitera a condição de incapacidade daqueles que recebem esse tipo de proteção. A incapacidade se traduz, segundo Castel, na impossibilidade de suprir, por si só, as necessidades básicas de sobrevivência, englobando assim segmentos da população considerados isentos – momentânea ou definitivamente – da obrigação de trabalhar.

Entre meados dos anos 1960 e fins dos anos 1970, a justiça juvenil passou por reformas que incorporaram de forma peculiar a noção de bem-estar à assistência a crianças e adolescentes considerados abandonados, carentes e infratores. Nesse sentido, datam de 1964 a publicação da Política Nacional de Bem-Estar do Menor – PNBEM e a criação da Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor – Funabem, ambas após o Golpe Militar.21 21 Já a criação da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – Febem de São Paulo foi em 1976. Sobre o contexto de elaboração da PNBEM e criação da Funabem, bem como sua relação com o Regime Militar e a teoria da marginalização social, ver Alvim e Valladares (1988); Rodrigues (2001) e Paula (2017). Contudo, para promover o bem-estar dos filhos dos trabalhadores pobres, as reformas reiteraram a percepção de que era necessário ampliar a tutela estatal, justificando-a com base na associação entre pobreza urbana e abandono, marginalização social e delinquência. O segundo Código de Menores (1979) sintetizou essa associação na forma da doutrina da situação irregular (Cifali et al., 2020CIFALI, Ana Claudia; CHIES-SANTOS, Mariana; ALVAREZ, Marcos César. (2020), “Justiça juvenil no Brasil: continuidades e rupturas.” Tempo social, 23, 3: 197-228. DOI: https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2020.176331.
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; Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial.; Rodrigues, 2001RODRIGUES, Gutemberg Alexandrino. (2001), Os filhos do mundo. São Paulo, IBCCrim.).

Com a transição democrática, nos anos 1980, e a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, em 1990, a cidadania no Brasil deixou de ser regulada pela ocupação de posto formal no mercado de trabalho e ganhou status universal conferido a todos os nascidos no país, o que significou a inclusão, ao menos formal, de crianças e adolescentes nesse registro. Assim, passaram a ser reconhecidos legalmente como cidadãos perante o Estado, e não mais como objeto de tutela estatal. De fato, a redemocratização colocou a universalização do status e a igualdade de acesso à cidadania na agenda política brasileira, o que levou a novas reformas na justiça juvenil nos anos 1980 e 1990. E essas reformas produziram uma dupla ruptura em relação ao registro da tutela.

A primeira ruptura foi a conversão do assistencialismo em um conjunto de direitos sociais, isto é, a justiça juvenil deixou de se organizar, ao menos formalmente, a partir da tutela de incapazes considerados perigosos, e passou a se organizar em torno do problema da garantia de direitos de adolescentes que, tendo cometido atos ilícitos, são sentenciados ao cumprimento de medidas socioeducativas. Nesse sentido, as reformas legais dos anos 1980 e 1990 tenderam a favorecer a implementação de políticas de bem-estar social na justiça juvenil, o que redefiniu a responsabilização criminal de adolescentes como uma oportunidade de inclusão social por meio do acesso a direitos de cidadania – especialmente, os direitos sociais à educação, à assistência social e à saúde (Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial., 2015PAULA, Liana de. (2015), “Da ‘questão do menor’ à garantia de direitos. Discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana”. Civitas, 15, 1: 27-43. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.16937.
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).

A segunda ruptura foi a introdução de uma outra dimensão da cidadania na justiça juvenil: os direitos civis. Com o ECA, alguns direitos relativos ao devido processo legal passaram a ser assegurados, merecendo destaque as previsões legais do direito à defesa por meio de advogado ou defensor público, o que não havia nos Códigos de Menores, e de responsabilização das instituições de internação nos casos de maus tratos ou tortura aos adolescentes internados (Paula, 2019PAULA, Liana de. (2019), “Cidadania, corpo e punição: expansão e violação de direitos civis de adolescentes internados na antiga Febem-SP”. Sociedade e Estado, 34, 3: 719-744. DOI: https://doi.org/10.1590/s0102-6992-201934030004.
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). Contudo, essa introdução parcial produz uma série de contradições no processamento legal dos adolescentes, como observado por Schecaira (2014)SCHECAIRA, Sérgio Salomão. (2014), Sistema de garantias e o Direito Penal Juvenil. São Paulo, Revista dos Tribunais. e Sposito (2013)SPOSITO, Karyna Batista. (2013), Direito Penal de Adolescentes: elementos para uma teoria garantista. São Paulo: Saraiva. nas discussões sobre Direito Penal Juvenil, e por Cornelius (2018)CORNELIUS, Eduardo Gutierrez. (2018), O pior dos dois mundos? São Paulo, IBCCrim..

É importante ressaltar que essas reformas não alteraram o público-alvo a quem a justiça juvenil se destina desde sua criação: os adolescentes pobres.22 22 Para uma análise das continuidades entre o ECA e as legislações anteriores, ver Cifali et al. (2020). Pelo contrário, assumiram que os adolescentes atendidos por esse sistema são, principalmente, pobres que enfrentam dificuldades em acessar seus direitos. Portanto, as reformas estabeleceram que a responsabilização criminal desses adolescentes deve ser acompanhada de sua promoção social, i.e., a punição é vista como uma possibilidade de promoção da cidadania de adolescentes pobres, mesmo que as práticas efetivas da justiça juvenil ainda estejam distantes de realizar essa possibilidade (Paula, 2017PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial., 2015PAULA, Liana de. (2015), “Da ‘questão do menor’ à garantia de direitos. Discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana”. Civitas, 15, 1: 27-43. DOI: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2015.1.16937.
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).

Se as reformas na justiça juvenil brasileira nos anos 1980 e 1990 apontaram para uma tendência de ampliação de direitos de cidadania dos adolescentes por ela atendidos e para a conjugação entre direitos sociais e direitos civis, não obstante suas contradições, as reformas da justiça juvenil inglesa no mesmo período caminharam em outra direção. Segundo Gelsthorpe e Lanskey (2016)GELSTHORPE, Loraine; LANSKEY, Caroline. (2016), “Youth Justice in England and Wales”, in Oxford Handbooks Online. Nova York, Oxford University Press. DOI: 10.1093/oxfordhb/9780199935383.013.60.
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, embora o princípio do bem-estar – e, portanto, dos direitos sociais – tenha prevalecido desde sua criação até os anos 1980, as reformas a partir de então tenderam a enfatizar o punitivismo e a resposta ao risco, especialmente em relação aos que cometeram infrações penais graves e aos que se aproximam da idade adulta. Assim, houve uma aproximação com a justiça criminal, para a qual podem ser encaminhados parte dos jovens tidos como mais perigosos.23 23 Essa tendência também começa a se desenhar no Brasil a partir dos anos 2010, especialmente com a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional – PEC 171/1993 em 2015, que visa reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos. Contudo, ainda segundo as autoras, o princípio de bem-estar persiste tanto na implantação de ações de justiça restaurativa quanto na multidisciplinariedade das equipes que atuam na justiça juvenil, conforme previsto no Crime and Disorder Act, de 1998.

Considerações finais

Como exposto neste artigo, os resultados da pesquisa apontam que as condições de emergência da justiça juvenil na Inglaterra estiveram relacionadas não somente a uma nova sensibilidade jurídica em relação a crianças e adolescentes, mas também à incorporação dos direitos sociais ao status de cidadania e ao movimento de sua expansão aos filhos dos trabalhadores pobres urbanos, contribuindo para a constituição de penalidade definida por David Garland (2018)GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. como welfarismo penal. Essa justiça desenvolveu-se primeiramente com a criação de reformatórios voltados para o atendimento de crianças e adolescentes considerados infratores em meados do século XIX, e foi seguida da publicação do Children Act, em 1908, e da implantação das cortes juvenis no início do século XX, que marcam a estratégia do bem-estar, ampliada com o desenvolvimento do probation system e da publicação dos Children and Young Persons Acts, de 1933 e 1969, e rompida em 1998, com o Crime and Disorder Act.

Já no caso do Brasil, embora se possa dizer que a constituição da justiça juvenil também estivesse relacionada a uma nova sensibilidade jurídica em relação a crianças e adolescentes, essa se configurou como uma resposta assistencialista e de tutela estatal que não foi interrompida, mas reforçada com o movimento de expansão controlada e bifurcada do acesso a direitos sociais a partir dos anos 1930, que excluiu o acesso de trabalhadores pobres informais a esses direitos, ao mesmo tempo em que os direcionava à assistência social como alternativa para os de fora do registro da cidadania. Para os filhos desses trabalhadores que necessitassem de cuidado ou que cometessem atos ilícitos, a tutela estatal e o assistencialismo apresentaram-se como respostas possíveis que terminaram por reiterar a assistência social como um fora do direito e fora da cidadania.24 24 O que não significa, porém, que a noção de bem-estar no caso inglês tenha estado isenta de elementos assistencialistas ou tutelares. Das primeiras instituições voltadas especificamente para o atendimento de adolescentes que cometessem atos ilícitos criadas no início do século XX, à criação do primeiro juizado de menores, em 1923, no Rio de Janeiro, e à promulgação do primeiro Código de Menores, em 1927, estabeleceu-se a resposta assistencialista e de tutela estatal, reiterada pelo segundo Código de Menores, de 1979, e rompida somente com o ECA, em 1990.

Há, por um lado, semelhanças nos casos brasileiro e inglês. Em ambos, a emergência da justiça juvenil articulava os temas da infância e adolescência com a pobreza urbana, o trabalho e o crime, e se voltava para os filhos dos trabalhadores pobres urbanos com a intenção de reabilitá-los para o trabalho por meio, inicialmente, dos reformatórios e escolas industriais.

Por outro lado, há algumas diferenças a se destacar. A primeira delas, analisada neste artigo, refere-se às noções de bem-estar e tutela, mobilizadas analiticamente para tratar as diferentes formas históricas assumidas pelos direitos sociais, especialmente a assistência social, na Inglaterra e no Brasil.

Uma segunda diferença, decorrente da primeira, coloca-se nas práticas que operacionalizaram os casos em questão ao longo do século XX. Enquanto na Inglaterra as medidas privativas de liberdade eram vistas como uma incômoda permanência retributiva e houve o desenvolvimento de um sistema de medidas não privativas de liberdade na forma de probation (Bailey, 1987BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press.; Garland, 2018GARLAND, David. (2018), Punishment and Welfare: A History of Penal Strategies. New Orleans (US), Quid Pro Books. ), no Brasil, a justiça juvenil pautou-se pelo uso extensivo da internação.

Por fim, há os objetivos declarados da intervenção da justiça juvenil. No caso inglês, colocava-se o problema da formação da classe trabalhadora exemplar, física e moralmente, e dos filhos dos trabalhadores pobres como “bons cidadãos”. Já no caso brasileiro, o problema colocava-se em termos de controlar o perigo representado pelos filhos dos não cidadãos ou dos não reconhecidos como trabalhadores pela ausência de vínculos formais de trabalho.

Agradecimentos

Agradeço a Anthony Pereira, do King’s Brazil Institute do King’s College London, e a Loraine Gelsthorpe, do Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge, por terem me recebido como pesquisadora visitante. Também agradeço aos colegas Fiona Macaulay, Sacha Darke e Tim Bateman, pelo apoio na realização da pesquisa e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp pelo financiamento da bolsa de pesquisa no exterior.

  • 1
    O público atendido pela justiça juvenil brasileira atual compreende indivíduos na faixa etária dos 12 aos 17 anos completos (em casos excepcionais, os jovens podem ficar no sistema até os 21 anos). Já a justiça juvenil inglesa é voltada para a responsabilização criminal dos indivíduos entre 10 e 17 anos, havendo a possibilidade de transferência para o sistema de justiça criminal após essa idade (Gelsthorpe e Lanskey, 2016GELSTHORPE, Loraine; LANSKEY, Caroline. (2016), “Youth Justice in England and Wales”, in Oxford Handbooks Online. Nova York, Oxford University Press. DOI: 10.1093/oxfordhb/9780199935383.013.60.
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    ). Cabe ressaltar que, na Inglaterra, é mais comum que indivíduos nessa faixa etária sejam referidos como crianças ou jovens (children e young persons).
  • 2
    A proposta de construção de tipos ideias de justiça baseava-se nas contribuições de Max Weber (1996)WEBER, Max. (1996), “Introdução do autor”, in M. Weber, Ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Pioneira..
  • 3
    No Brasil, essa dicotomia aparece mais explicitamente na literatura contemporânea dedicada a pensar as consequências da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Nesse sentido, na literatura jurídica, destaca-se a discussão sobre o Direito Penal Juvenil (Schecaira, 2014SCHECAIRA, Sérgio Salomão. (2014), Sistema de garantias e o Direito Penal Juvenil. São Paulo, Revista dos Tribunais.; Sposito, 2013SPOSITO, Karyna Batista. (2013), Direito Penal de Adolescentes: elementos para uma teoria garantista. São Paulo: Saraiva.). Na literatura das ciências sociais, destaca-se, dentre outros, o recente estudo de Eduardo Cornelius (2018)CORNELIUS, Eduardo Gutierrez. (2018), O pior dos dois mundos? São Paulo, IBCCrim., que discute essas tensões na chave do formalismo da justiça criminal e do informalismo da justiça juvenil no Brasil.
  • 4
    Para a discussão sobre o poder de punir e o conceito de penalidade, ver Garland e Young (1983)GARLAND, David; YOUNG, Peter. (1983), “Towards a social analysis of penalty”, in D. Garland & P. Young (eds.), The power to punish, Londres, Heinemann Educational Books, Humanities Press..
  • 5
    Para tratar dessa expansão de direitos, Marshall adota uma perspectiva histórico-evolutiva – começando com os direitos civis, seguidos dos direitos políticos e, finalmente, dos direitos sociais – que foi posteriormente bastante questionada. Como pontuam Wanderley Guilherme dos Santos (1994)SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1994), Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Editora Campus. e José Murilo de Carvalho (2004)CARVALHO, José Murilo de. (2004), Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., a experiência do Brasil aponta que não é possível defender a universalidade dessa ordem de evolução histórica dos direitos de cidadania. No caso brasileiro, os direitos sociais desenvolveram-se antes dos direitos civis e políticos, além de ter havido momentos em que uns eram suspensos, enquanto outros expandiam-se. Além disso, a perspectiva evolutiva e de expansão dos direitos de Marshall também encontra críticas em autores como Aníbal Quijano (2005)QUIJANO, Aníbal (2005), Colonialidade do poder: eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales (CLACSO). Disponível em biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf., Antonio Escrivão Filho e José Geraldo de Souza Júnior (2016)ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUZA JUNIOR, José Geraldo de. (2016), Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: D’Plácido..
  • 6
    Um exemplo da permanência da estratégia da justiça pode ser encontrado na obra de Victor Bailey (1987)BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press., que analisa os processos políticos de elaboração da legislação sobre a justiça juvenil britânica entre os anos de 1914 e 1948. Esse exemplo refere-se à permanência do uso de medidas privativas de liberdade (internação) na justiça juvenil, apesar do posicionamento contrário dos defensores do bem-estar infanto-juvenil.
  • 7
    Havia um princípio similar de discernimento no Código Penal Brasileiro de 1890, antes da instituição do Código de Menores em 1927. Ver Alvarez (1989)ALVAREZ, Marcos César. (1989), A emergência do Código de Menores de 1927. Dissertação de mestrado, Departamento de Sociologia – FFLCH/USP, São Paulo..
  • 8
    A reforma introduziu leis, tais como o Vagrancy Act de 1824 e o Malicious Trespass Act de 1827, que criminalizaram comportamentos relativamente comuns entre crianças e adolescentes das camadas populares (tais como pegar frutas dos quintais ou danificar jardins). Além da criação de novos tipos penais, a reforma acelerou o processamento penal dos infratores, com a implantação de ritos sumários para uma série de novos crimes (Margarey, 1978).
  • 9
    Nas palavras de Alexander Paterson, um dos mais conhecidos reformadores britânicos do período: “No country that has joined the struggle for supremacy (…) can allow the finest human material to grow stiff or die for lack of help and understanding” (Paterson apudBailey, 1987BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press., p. 9-10).
  • 10
    O relatório do Comitê Gladstone apresentou recomendações para reformar o sistema prisional britânico, focando a reabilitação. Dentre as recomendações, estava a de não dispensar tratamento penal mais duro a adolescentes e jovens entre 16 e 21 anos (Cross, 1971CROSS, Rupert. (1971), Punishment, prison and the public. Londres, Stevens and Sons. ).
  • 11
    Tradução minha. No original: “We should note that these institutions meant that the practice of reformation (albeit in an educational and often evangelical form) had a definite foothold in the system. Of course these were private institutions, dealing with children and not citizens, kept formally distinct from the state system of dealing with deviants. Nevertheless they formed a reformative example on the margins of the system and one which would later be referred to again and again as a precedent for a much wider (and somewhat different) practice of reform.”
  • 12
    A permanência da possibilidade de castigos corporais, fortemente combatida pelos reformistas, indica que, embora tenha havido uma ampliação de direitos sociais para crianças, adolescentes e jovens no Reino Unido nesse período, eles não eram vistos como detentores de direitos civis. Sobre a relação entre castigos corporais e direitos civis, ver Caldeira (2000)CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. (2000), Cidade de muros. São Paulo, Editora 34, Edusp. e Paula (2019)PAULA, Liana de. (2019), “Cidadania, corpo e punição: expansão e violação de direitos civis de adolescentes internados na antiga Febem-SP”. Sociedade e Estado, 34, 3: 719-744. DOI: https://doi.org/10.1590/s0102-6992-201934030004.
    https://doi.org/ https://doi.org/10.1590...
    .
  • 13
    A primeira instituição Borstal foi criada no vilarejo de mesmo nome (no condado de Kent, Inglaterra) em 1902, a partir do relatório do Comitê Gladstone, de 1895. As instituições do sistema Borstal, que atendiam adolescentes e jovens sentenciados, focavam o treinamento dos internos para o trabalho (Bailey, 1987BAILEY, Victor. (1987), Delinquency and Citizenship: Reclaiming the Young Offender 1914-1948. Oxford (UK), Clarendon Press, Oxford University Press.).
  • 14
    Vale destacar que, segundo Lesley McAra (2010)McARA, Lesley. (2010), “Models of Youth Justice”, in D. J. Smith (ed.), A New Response to Youth Crime, Londres, Routledge., haveria atualmente quatro paradigmas no discurso sobre a justiça juvenil: retribuição, bem-estar, restauração e atuarialismo, sendo este último relativo à incorporação da NPM. Ver também Case (2018)CASE, Stephen. (2018), Youth Justice: a critical introduction. London, Routledge., Smith (2014b)SMITH, Roger. (2014b), “Re-Inventing Diversion.” Youth Justice, 14, 2: 109–21. DOI: https://doi.org/10.1177/1473225414537567.
    https://doi.org/10.1177/1473225414537567...
    e McLaughlin et al. (2001)MCLAUGHLIN, Eugene; MUNCIE, John; HUGHES, Gordon. (2001), “The Permanent Revolution: New Labour, New Public Management and the Modernization of Criminal Justice.” Criminology and Criminal Justice, 3: 301–18. DOI: https://doi.org/10.1177/1466802501001003003
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    .
  • 15
    Sobre a percepção da rua como lugar de perigo moral para as crianças, ver Gregori, 2000GREGORI, Maria Filomena. (2000), Viração. São Paulo, Companhia das Letras.; Alvim e Valladares, 1988ALVIM, Maria Rosilene Barbosa; VALLADARES, Lícia do Prado. (1988), “Infância e sociedade no Brasil: uma análise da literatura”. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais (BIB), 26: 03-37..
  • 16
    De forma semelhante ao princípio do doli incapax apontado por May (1973)MAY, Margaret. (1973), “Innocence and Experience: The Evolution of the Concept of Juvenile Delinquency in the Mid-Nineteenth Century.” Victorian Studies The Victorian Child, 17, 1:7–29. Disponível em http://www.jstor.org/stable/3826512.
    http://www.jstor.org/stable/3826512...
    no caso inglês, o Código Penal Republicano brasileiro previa o princípio do discernimento para responsabilizar penalmente crianças e adolescentes entre nove e 14 anos. A análise desse princípio e de sua eliminação da legislação brasileira como um dos pontos centrais da discussão e publicação do primeiro Código de Menores foi feita por Marcos César Alvarez (1989)ALVAREZ, Marcos César. (1989), A emergência do Código de Menores de 1927. Dissertação de mestrado, Departamento de Sociologia – FFLCH/USP, São Paulo..
  • 17
    Segundo Aldaíza Sposati (1988)SPOSATI, Aldaíza. (1988), Vida urbana e gestão da pobreza. São Paulo: Cortez., a criação da Escola de Serviço Social em São Paulo aprofundou o movimento, iniciado com a intervenção da medicina social na filantropia, de conversão da assistência em serviço social por meio de sua profissionalização e maior sistematização de seus saberes e práticas.
  • 18
    Para as práticas institucionais adotadas pelo Serviço Social de Menores de São Paulo, ver Alvarez et al. (2021)ALVAREZ, Marcos César; LOURENÇO, Luiz Cláudio; CHIES-SANTOS, Mariana. (2021), “Jovens internados em São Paulo (1934-1950): notas para uma análise genealógica das instituições disciplinares e de controle social.” Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, 13, 25: 175-199. DOI: https://doi.org/10.14295/rbhcs.v13i25.11964.
    https://doi.org/10.14295/rbhcs.v13i25.11...
    .
  • 19
    Embora se possa dizer que crianças e adolescentes também seriam objeto de intervenção no caso inglês, as formas assumidas pelos direitos sociais enquanto bem-estar procuravam promover o acesso antecipado a esses direitos como preparação para a cidadania plena (ou seja, o acesso a direitos sociais como preparação para o acesso aos direitos civis e políticos).
  • 20
    Como aponta Robert Castel (2010)CASTEL, Robert. (2010), As metamorfoses da questão social. Petrópolis (RJ), Vozes., ao analisar as transformações históricas da questão social na França, e em especial comparação com a Inglaterra, a tutela implica uma forma de proteção assistencial que não assegura direitos, mas reitera a condição de incapacidade daqueles que recebem esse tipo de proteção. A incapacidade se traduz, segundo Castel, na impossibilidade de suprir, por si só, as necessidades básicas de sobrevivência, englobando assim segmentos da população considerados isentos – momentânea ou definitivamente – da obrigação de trabalhar.
  • 21
    Já a criação da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – Febem de São Paulo foi em 1976. Sobre o contexto de elaboração da PNBEM e criação da Funabem, bem como sua relação com o Regime Militar e a teoria da marginalização social, ver Alvim e Valladares (1988)ALVIM, Maria Rosilene Barbosa; VALLADARES, Lícia do Prado. (1988), “Infância e sociedade no Brasil: uma análise da literatura”. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais (BIB), 26: 03-37.; Rodrigues (2001)RODRIGUES, Gutemberg Alexandrino. (2001), Os filhos do mundo. São Paulo, IBCCrim. e Paula (2017)PAULA, Liana de. (2017), Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo, São Paulo, Alameda Editorial..
  • 22
    Para uma análise das continuidades entre o ECA e as legislações anteriores, ver Cifali et al. (2020)CIFALI, Ana Claudia; CHIES-SANTOS, Mariana; ALVAREZ, Marcos César. (2020), “Justiça juvenil no Brasil: continuidades e rupturas.” Tempo social, 23, 3: 197-228. DOI: https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2020.176331.
    https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.20...
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  • 23
    Essa tendência também começa a se desenhar no Brasil a partir dos anos 2010, especialmente com a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional – PEC 171/1993 em 2015, que visa reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos.
  • 24
    O que não significa, porém, que a noção de bem-estar no caso inglês tenha estado isenta de elementos assistencialistas ou tutelares.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2021
  • Aceito
    10 Mar 2022
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