Resumos
Resumo
Como a tortura é nomeada e compreendida por distintos atores? Haja vista tal questão, o artigo busca analisar as disputas e os consensos existentes sobre o modo como a tortura é concebida entre membros da sociedade civil e do poder público. Foram realizadas, então, entrevistas semiestruturadas com diferentes atores que atuam na assistência e atenção às vítimas de violações cometidas pelos agentes do Estado. Através das narrativas colhidas e das análises realizadas, foi possível observar uma série de sentidos empregados à palavra tortura, o que revela um uso estratégico do termo em múltiplos contextos políticos e sociais.
Palavras-chave:
tortura; direitos humanos; vítimas; violência estatal; conceituação
Abstract
How is torture named and understood by different actors? Given this issue, the article seeks to analyze the disputes and existing consensus on the way in which torture is conceived among members of civil society and public power. Then, semi-structured interviews were carried out with different actors who work in the assistance and attention to victims of violations committed by State agents. Through the narratives collected and the analyzes carried out, it was possible to observe a series of meanings used for the word torture, which reveals a strategic use of the term in multiple political and social contexts.
Keywords:
torture; human rights; victims; state violence; conceptualization
Introdução
Nas últimas décadas, o Brasil tem enfrentado transformações sociais, políticas e econômicas significativas, construindo um cenário pautado por ambiguidades de diversas ordens, em especial, a partir da abertura política pós Ditadura Civil-Militar,3
3
Acompanhamos o argumento que defende que essa ditadura não foi apenas militar, mas civil. Ela teve o apoio e adesão de amplos segmentos da população na construção do regime ditatorial (Pinha, 2020; Costa e Silva, 2018; Kushnir, 2004). As marchas da Família com Deus e pela Liberdade mostram um desses aspectos ao ter mobilizado vários grupos sociais, sobretudo da classe média, contra o governo João Goulart e do “perigo comunista” (Pinha, 2020). Além disso, no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, mais especificamente no texto n. 8 “Civis que colaboraram com a ditadura” há uma detalhada descrição de como civis colaboraram com a ditadura (Costa e Silva, 2018).
que vigorou entre 1964 e 1985. Vivemos um processo de ampliação de direitos, ao menos formalmente, sobretudo com a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 13 abr. 2023.
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). Simultaneamente, o cenário brasileiro tem sido afetado pelo crescimento da criminalidade e da violência, as quais buscam ser combatidas pelo Estado com base em medidas muitas vezes marcadas por violações. Como fruto dessa conjuntura democrática disjuntiva, a garantia de direitos de sujeitos que vivenciam processos de marginalização e criminalização (Coelho, 1978COELHO, Edmundo Campos. (1978), “A criminalização da marginalidade e a marginalização da criminalidade”. Revista de Administração Pública, 2, 12: 139-161.) é compreendida como “privilégios de bandidos” (Caldeira, 1991CALDEIRA, Teresa P. R. (1991), “Direitos Humanos ou “privilégios dos bandidos”? Desventuras da democratização no Brasil”. Novos Estudos CEBRAP, 30:162-174.; 2000CALDEIRA, Teresa P. R. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Ed. 34, Edusp.).
Tais efeitos são sentidos nas agendas políticas cujas iniciativas pretendem avançar no campo da expansão, proteção e promoção de direitos humanos. O tema da tortura pode ser inserido nesse quadro. Isso porque, desde a década de 1980, o Brasil tem tomado decisões importantes em sua agenda política no sentido de reafirmar o compromisso de investir no enfrentamento a esse tipo de violência. Entre outras ações, o Estado brasileiro (Jesus e Duarte, 2020JESUS, Maria Gorete Marques de; DUARTE, Thais Lemos. (2020) “Tortura? Como o mecanismo nacional preventivo brasileiro conceitua e analisa práticas de tortura em espaços de privação de liberdade”. Sociologias [online]. 22, 55: 228-260. DOI: <https://doi.org/10.1590/15174522-95742>.
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):
a) inseriu na Constituição, em seu Artigo 5°, inciso III que “ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” (Brasil, 1988BRASIL. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 13 abr. 2023.
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);
b) ratificou a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU (ONU, 1984ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes da ONU. Nova York: ONU, 1984. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/tortura/lex221.htm. Acesso em 6 maio 2023.
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) em 1991, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (OEA, 1985ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS - OEA. Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura. Washington: OEA, 1985. Disponível em: https://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-51.htm. Acesso em 6 maio 2023.
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) em 1989, o Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura da ONU (ONU, 2003ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Protocolo facultativo à convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Genebra: ONU, 2003.) em 2007;
c) tipificou o crime de tortura com base na Lei Federal nº 9.455/1997;
d) promulgou a Lei Federal nº12.847/2013, que criou o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e dois outros órgãos, a saber: o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT);
e) recebeu a visita de relatores especiais da ONU sobre tortura,4 4 Em 2001, o Brasil recebeu a visita do Relator Especial da ONU sobre Tortura, Nigel Rodley, ao passo que, em 2015, recebeu a visita do Relator Juan Méndez, ligado ao mesmo órgão. e do Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU (SPT).5 5 O SPT esteve no Brasil em 2011, em 2016 e, mais recentemente, nos primeiros meses de 2022.
No entanto, após a eleição do presidente Jair Messias Bolsonaro, essa agenda tem sido desconstruída de diversas formas. Um exemplo disso se remete a junho de 2019, momento em que o governo federal promulgou o Decreto Federal n°9.831, cujo efeito foi mudar a estrutura de cargos em comissão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, alterando o Decreto Federal n°8.154/2013 e, com feito, modificando a institucionalidade da política de prevenção à tortura nacional. Tal norma desconsiderou as atividades desenvolvidas pelos membros do MNPCT como assalariada, identificando-as como prestação de serviço público não remunerado, que não pode ser exercida por pessoas vinculadas a redes, a entidades da sociedade civil e a instituições de ensino e pesquisa. Todos os integrantes em atuação no período de lançamento do decreto foram imediatamente exonerados. Em reação, o Supremo Tribunal Federal reviu meses depois essa decisão,6
6
“STF restabelece composição do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=484245&ori=1
mas, ainda assim, é possível afirmar que a política de prevenção à tortura brasileira é frágil e vulnerável a tensionamentos políticos, a depender do perfil de gestão do governo (Jesus e Duarte, 2020JESUS, Maria Gorete Marques de; DUARTE, Thais Lemos. (2020) “Tortura? Como o mecanismo nacional preventivo brasileiro conceitua e analisa práticas de tortura em espaços de privação de liberdade”. Sociologias [online]. 22, 55: 228-260. DOI: <https://doi.org/10.1590/15174522-95742>.
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).
Colocados esses desafios no campo político, outro importante ponto a ser debatido diz respeito ao que se entende por tortura. Alguns autores têm se debruçado a pensar essa questão, sobretudo, porque quando cometida por agentes estatais, a tortura tem ganhado cada vez mais dimensões capilares que engendram complexas dinâmicas institucionais e sociais (Gomes, 2017GOMES, Mayara Souza. (2017), Isso é tortura? Disputas, consensos e narrativas na construção social do crime de tortura na cidade de São Paulo. Dissertação de mestrado em Ciências Humanas e Sociais. Universidade Federal do ABC. São Bernardo do Campo.; Godoi, 2017GODOI, Rafael. (2017), “Tortura difusa e continuada”, in MALLART, Fábio; GODOI, Rafael (orgs.), BR 111: a rota das prisões brasileiras. São Pabloulo, Veneta, 117-126.; Jesus e Gomes, 2021JESUS, Maria Gorete M. de. & GOMES, Mayara Souza. (2021). “Nem tudo é o que parece: A disputa semântica sobre a tortura no sistema de justiça criminal”. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 14(2), 361-378. DOI: <https://doi.org/10.17648/dilemas.v14n2.34139>.
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; Jesus e Duarte, 2020JESUS, Maria Gorete Marques de; DUARTE, Thais Lemos. (2020) “Tortura? Como o mecanismo nacional preventivo brasileiro conceitua e analisa práticas de tortura em espaços de privação de liberdade”. Sociologias [online]. 22, 55: 228-260. DOI: <https://doi.org/10.1590/15174522-95742>.
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; Duarte et al., 2021DUARTE, Thais L.; JESUS, Maria Gorete M. de.; GOMES, Mayara Souza. (2021), “Introdução - Caminhos e descaminhos da prevenção à tortura: quais obstáculos devemos ultrapassar?”. Revista de Estudos Empíricos em Direito, 8: 1-7. DOI: https://doi.org/10.19092/reed.v8.671.
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; Mendiola, 2020MENDIOLA, Ignacio. (2020), “En torno a la definición de tortura: la necesidad y dificultad de conceptualizar la producción ilimitada de Sufrimiento”. DADOS, Rio de Janeiro, 63, 2: 1-32. DOI: https://doi.org/10.1590/001152582020206.
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). Portanto, para avançarmos nessas reflexões, consideramos de extrema importância analisar como distintos atores conceituam a tortura, o que será foco deste artigo. Sinteticamente, o objetivo do texto é discutir como a tortura é compreendida por diferentes integrantes de entidades da sociedade civil e do poder público do Rio de Janeiro e de São Paulo, os quais lidam em suas trajetórias pessoais e profissionais com violências que consideram torturantes.
Em resumo, dentre os principais achados deste artigo, discutimos que, embora conhecessem as prescrições normativas sobre tortura, definidas por convenções internacionais e leis nacionais, distintos atores analisaram tal violência perpetrada por atores estatais de modo diverso, dispondo, sobretudo, de noções plásticas sobre o ato.7 7 Utilizamos essa expressão para descrever as variações que o termo “tortura” apresentou nas narrativas de nossos entrevistados, tomando como base a análise de que o conceito foi mobilizado a partir de conformações e de disposições plásticas. Em geral, eles distinguiram práticas tidas como “torturantes”, em contraste com os comportamentos tipicamente caracterizados como tortura, como os previstos em norma. Na visão de nossos interlocutores, o primeiro tipo de conduta versaria sobre ações cotidianas, perpetradas reiteradamente pelo Estado contra populações marginalizadas. Essas ações costumaram ser definidas como “genocídio”,8 8 Esse termo foi mobilizado pelos entrevistados. Mesmo que seu sentido conceitual seja diverso do da tortura, é interessante perceber a mobilização desse termo para o campo de disputas narrativas, genocídio parece ser uma forma de expressar de forma mais explicita a intenção do Estado em eliminar determinado segmento social. “terrorismo estatal” etc., ainda que, em concomitância, fossem também classificadas como tortura em um sentido mais amplo. Já o segundo tipo de ato disse respeito a medidas violentas impostas por agentes estatais para obter a confissão de um crime, por exemplo, tal como previsto nos marcos legais sobre o tema.
Em outros termos, a noção sobre “ações torturantes”, também caracterizada por nossos interlocutores tão só como “tortura” e/ou como outras ações violentas estatais, incita uma perspectiva inovadora sobre o tema em foco. De fato, à princípio, parece haver certa “confusão” entre o que seria “tortura” e “violência estatal”, sabendo-se que, de antemão, a primeira violação seria um elemento constituidor, entre outros tantos, da segunda. Entretanto, justamente tal ambiguidade conceitual nos pareceu ser o principal achado de nossa pesquisa, pois a violência estatal foi percebida pelos diferentes atores como algo “torturante”. Assim sendo, o termo “tortura” seria ventilado - junto com outros termos -, a fim de garantir maior peso político a uma denúncia de violação de direitos, para além de garantir outros efeitos. Isto é, a noção sobre tortura se distanciou da conotação meramente legal, ganhando contornos mais intrincados e complexos. No limite, essa perspectiva permitiu construir uma “fala da violação”, tomando os termos de Caldeira (2000)CALDEIRA, Teresa P. R. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Ed. 34, Edusp. que debateu sobre a “fala do crime” em seu livro “Cidade de Muros”.
A fim de articular essas discussões, o artigo está organizado em quatro partes. Na primeira, descrevemos a realização da pesquisa e as técnicas empregadas. Em seguida, trazemos como a tortura é nomeada pelo arcabouço legal internacional e nacional. Na sequência, analisamos as narrativas dos/as entrevistados sobre o que entendem por tortura e, por fim, discutimos em que medida as narrativas plásticas sobre a questão proferidas por nossos interlocutores permitem a criação de um tipo de “fala” específica, cujo objetivo é expor o Estado e desnaturalizar atos violentos sistematicamente produzidos por tal ente.
Passos em campo
O artigo é fruto de um projeto de pesquisa desenvolvido em parceria com a organização Danish Institute Against Torture (DIGNITY),9 9 Dignity é uma organização independente de direitos humanos e desenvolvimento, cujo foco de atuação é o enfrentamento à tortura e ao tratamento cruel, desumano e degradante. Foi fundado em 1982, sendo considerado uma das primeiras ONGs de combate à tortura do mundo. A organização está sediada em Copenhagen e tem parcerias com organizações não governamentais e instituições de pesquisa em todo o mundo, atuando em 20 países na África, Oriente Médio, Ásia, Europa Oriental e América Central. O trabalho internacional do DIGNITY é apoiado, entre outros, pelo Ministério de Relações Exteriores da Dinamarca, pela Comissão Europeia e por uma lista mais longa de fundações, incluindo a Open Society Foundation. Disponível em: https://www.dignity.dk/en/about-dignity/. que, no ano de 2020, desenvolveu o estudo "Protecting survivors of torture and ill treatment: dignity, violence and human rights in poor communities”, em parceria com a University of Edinburgh, Mathare Social Justice Centre e a Law and Trust Society do Sri Lanka. O principal objetivo do projeto foi analisar os desafios envolvidos na proteção de vítimas de tortura e maus-tratos, levando em consideração que a assistência a esse público ainda é muito deficitária em várias localidades, sobretudo as marcadas por fortes desigualdades, como Quênia e Sri Lanka. Além de ambos os países, com vistas a expandir as análises a outras regiões do Sul Global, o Brasil também foi envolvido no projeto, sendo produzidos os dados aqui discutidos, todos levantados através de entrevistas semiestruturadas.
Nesse sentido, o estudo realizado no país, cujo olhar se centrou nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, buscou compreender os limites e as potencialidades dos mecanismos de proteção destinados às vítimas de tortura, bem como propôs fazer recomendações para a melhoria de tais serviços. Como objetivo adicional, procurou fortalecer parcerias entre países do Sul Global e organizações preocupadas com a proteção das vítimas da violência estatal, como o Dignity. De fato, muitos elementos analíticos importantes foram encontrados ao longo da pesquisa, todos essenciais às reflexões sobre tortura e prevenção.10 10 Relatório Tortura como Marca Cotidiana: Narrativas Sobre os Serviços de atenção às vítimas de tortura desenvolvidos no Rio de Janeiro e em São Paulo (Jesus et al., 2021). Disponível em https://www.dignity.dk/wp-content/uploads/35-TORTURA-COMO-MARCA-COTIDIANA_digital.pdf, consultado em 03/08/2022. Um deles, entre outros tantos, se referiu ao conceito ventilado por atores públicos e da sociedade civil do Rio de Janeiro e de São Paulo sobre tortura, noção que, muitas vezes, se distanciou da concepção mais normativa sobre a questão, como já introduzido.
O primeiro passo da pesquisa, então, foi mapear entidades, governamentais ou não, destinadas ao acolhimento de vítimas e de familiares de vítimas de tortura. Uma primeira constatação em campo, reforçada por nossas experiências profissionais prévias, foi de que são poucas as organizações e os órgãos que declaradamente dizem ter como escopo específico de atuação os casos ditos de tortura. No Rio de Janeiro e em São Paulo, há muitos atores que afirmam se voltar a denunciar e a tratar casos de violência estatal - como, por exemplo, letalidade policial e violações perpetradas em espaços carcerários -, mas raros são aqueles que indicam acolher vítimas de tortura em um sentido estrito. Inclusive, chegamos a pensar que essa característica do campo, a princípio, poderia ensejar um viés no levantamento dos dados. No entanto, notamos que, na realidade, estávamos nos deparando com um cenário oposto, o qual poderia enriquecer os debates sobre tortura e prevenção. Isso porque, embora não necessariamente manifestassem ter como enfoque central casos de tortura, não indicando de antemão que essa questão constituiria sua abordagem central, alguns entes contatados indicavam lidar com situações com esse perfil. Em verdade, nomeavam determinadas situações ocasionadas pelo Estado como “torturantes”, as quais produziam trajetórias “torturáveis”, o que quase sempre motivava uma noção sobre tortura que em boa medida extrapolava o disposto em norma.
Nesse sentido, começamos a pesquisa acionando órgãos que sabíamos enfrentar casos de tortura em específico. Ou seja, atores cujas prerrogativas eram lidar com comportamentos previstos pelas normas nacionais e internacionais sobre o ato. A partir disso, lançamos mão do método bola de neve, encontrando em campo o cenário descrito acima. Portanto, um interlocutor inicial, que nos forneceu uma entrevista semiestruturada, indicou outro para ser entrevistado e, assim, sucessivamente.
Dentre os integrantes da sociedade civil, contatamos aqueles relacionados a organizações de natureza formalizada, com Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), além de estruturas financeira e de pessoal bem definidas. Ao mesmo tempo, foram acionados também movimentos populares, pautados por atividades em rede, sem necessariamente ter uma estrutura institucional. Por sua vez, dentre os atores do poder público, dialogamos com os que integram políticas consideradas de referência no campo da segurança e da justiça criminal em São Paulo. Ademais, acionamos agentes estatais indicados pelos movimentos sociais do Rio de Janeiro como importantes interlocutores, bem como com atribuições legais destinadas à responsabilização dos perpetradores de tortura e outras violações de direitos.
Inicialmente, foram mapeados 26 atores, 14 do Rio de Janeiro e 12 de São Paulo. Contudo, não acionamos todas essas organizações, pois muitas desenvolvem atividades semelhantes entre si. Inclusive, pessoas que compõem determinado espaço exercem ações, mesmo que informais, em outros. Portanto, entre 04 de dezembro de 2020 e 29 de janeiro de 2021, foram realizadas 19 entrevistas semiestruturadas com atores das duas localidades. Ademais, haja vista certas indicações efetuadas pelas pessoas inicialmente entrevistadas, efetuamos também diálogos com dois órgãos com atuação relevante em âmbito nacional na prevenção e combate à tortura, totalizando, então, 21 conversas.
Em razão da pandemia de Covid-19, todas os diálogos foram realizados virtualmente, através da plataforma google meet. De fato, inicialmente, pensávamos que as entrevistas seriam sobre aspectos mais procedimentais das organizações, ao invés de trazerem à tona elementos pessoais, relacionados às trajetórias dos entrevistados. No entanto, como acabamos por acionar redes de familiares e de vítimas de violência estatal, em algumas entrevistas nos foram relatadas vivências muito íntimas dos entrevistados, como, entre outras, situações de violações, casos de revitimização e de luto, o que ajudou a fundamentar boa parte das análises efetuadas neste trabalho.
Todos os áudios das conversas foram transcritos e, em seguida, os categorizamos através do programa de análise qualitativa MAXQDA2020.11 11 Software desenvolvido por pesquisadores para análise de dados qualitativos como textos, entrevistas, transcrições, gravações em áudio/vídeo, revisões de literatura etc. Em específico, sistematizamos as entrevistas conforme os seguintes códigos: a) conceituação da tortura; b) trajetórias de vida e vitimização; c) descrição das organizações e das atividades desenvolvidas, atentando-se aos fluxos de atendimento estabelecidos, a estrutura física e de pessoal, os objetivos, o contato com outros atores, bem como as ações de reparação efetuadas; d) obstáculos à consecução dos serviços de atenção às vítimas de tortura; e) recomendações propostas pelos atores contatados. Para este artigo, focaremos na análise da categoria A e B. As demais fogem do escopo de discussão do texto, dizendo mais respeito às reflexões destinadas à parceria com o Dignity.
Quais conceitos legais sobre a tortura?
Como mencionado no início deste artigo, a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 13 abr. 2023.
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), em seu artigo 5º III, fez expressa proibição à prática de tortura. Além dessa Carta, o país ratificou a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (OEA, 1985ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS - OEA. Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura. Washington: OEA, 1985. Disponível em: https://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-51.htm. Acesso em 6 maio 2023.
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), em 1989 (Brasil, 1989BRASIL. (1989), Presidência da República. Decreto Federal nº 98.386, de 9 de novembro de 1989. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Diário Oficial da União, 13 nov. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/d98386.htm. Acesso em 6 maio 2023.
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), que indicou:
Art. 2°: Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente consequência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou a aplicação dos métodos a que se refere este artigo. (Brasil, 1989BRASIL. (1989), Presidência da República. Decreto Federal nº 98.386, de 9 de novembro de 1989. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Diário Oficial da União, 13 nov. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/d98386.htm. Acesso em 6 maio 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de... ).
Por sua vez, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU (ONU, 1984ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes da ONU. Nova York: ONU, 1984. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/tortura/lex221.htm. Acesso em 6 maio 2023.
http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu...
), ratificada pelo Brasil em 1991 (Brasil, 1991BRASIL. (1991), Presidência da República. Decreto Federal nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. Promulga a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Diário Oficial da União, 15 de fev. de 1991. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm. Acesso em 6 maio 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de...
), citou:
Art. 1°: Para os fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram. (Brasil, 1991BRASIL. (1991), Presidência da República. Decreto Federal nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. Promulga a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Diário Oficial da União, 15 de fev. de 1991. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm. Acesso em 6 maio 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de... ).
Apesar da adesão do país a esses documentos internacionais, a criminalização da tortura no Brasil se efetivou apenas em 1997, com a edição da Lei Federal 9.455. Até então, os casos denunciados eram julgados com base na Lei de Abuso de Autoridade (Lei 4.898/65) ou como lesão corporal e maus tratos (Jesus, 2010JESUS, Maria Gorete M. de. (2010), “Os julgamentos do crime de tortura: Um estudo processual na cidade de São Paulo”. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 3(9), 143-172. Disponível em <https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7180>, consultado em
https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
). A tortura era apenas citada como agravante do crime de homicídio no Código Penal, por exemplo.
A Lei Federal 9.455/1997 (Brasil, 1997BRASIL. (1997), Presidência da República. Lei Federal nº 9.455, de 7 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Diário Oficial da União, 8 abr. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm. Acesso em 6 maio 2023.
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) tipifica como tortura:
Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, com a finalidade de a) obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceiros; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa. (Brasil, 1997BRASIL. (1997), Presidência da República. Lei Federal nº 9.455, de 7 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Diário Oficial da União, 8 abr. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm. Acesso em 6 maio 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le... ).
A prática é punida com pena de reclusão de dois a oito anos, aumentando-se de um terço até um sexto se cometida a) por agente público; b) contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 anos; e c) mediante sequestro.
Uma especificidade da norma em relação às classificações internacionais sobre tortura diz respeito ao fato de o crime ser comum, não próprio. Qualquer pessoa, então, pode ser acusada por esse delito e, tal como indicado pelas pesquisas, é mais habitual ocorrer a punição de pais, mães, cuidadores, padrastos e madrastas por tortura, em detrimento da responsabilização de atores públicos, como policiais ou agentes penitenciários (Jesus, 2010JESUS, Maria Gorete M. de. (2010), “Os julgamentos do crime de tortura: Um estudo processual na cidade de São Paulo”. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 3(9), 143-172. Disponível em <https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7180>, consultado em
https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
; Calderoni e Jesus, 2015CALDERONI, Vivian; JESUS, Maria Gorete M. de. (2015), Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil (2005-2010). São Paulo: ACAT-Brasil/Conectas/NEV-USP/IBCCRIM/ Pastoral Carcerária.; Salla et al, 2016SALLA, Fernando.; JESUS, José de; JESUS, Maria Gorete M. de. (2016), “Investigação e processamento de crimes de tortura em Goiânia, Curitiba e Belo Horizonte”. In: PARESCHI, A. C. C.; ENGEL, C. L.; BAPTISTA, G. C. (orgs.). Direitos humanos, grupos vulneráveis e segurança pública. 1. ed. Brasília: SENASP, Ministério da Justiça, 6, 111-148.). Em boa medida, esse aspecto ilustra a cultura do sistema de justiça criminal (Jesus, 2010JESUS, Maria Gorete M. de. (2010), “Os julgamentos do crime de tortura: Um estudo processual na cidade de São Paulo”. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 3(9), 143-172. Disponível em <https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7180>, consultado em
https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
; Gomes, 2017GOMES, Mayara Souza. (2017), Isso é tortura? Disputas, consensos e narrativas na construção social do crime de tortura na cidade de São Paulo. Dissertação de mestrado em Ciências Humanas e Sociais. Universidade Federal do ABC. São Bernardo do Campo.) e outras dinâmicas sociais (Pastoral Carcerária, 2016PASTORAL CARCERÁRIA. (2016), Tortura em tempos de encarceramento em massa. São Paulo: Pastoral Carcerária - CNBB.), as quais tendem a banalizar e, por vezes, justificar as violações cometida por atores estatais contra determinados grupos (Caldeira, 2000CALDEIRA, Teresa P. R. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Ed. 34, Edusp.), geralmente, os que conformam os espaços marginais (Das e Poole, 2008DAS, Venna.; POOLE, Deborah. (2008), “El Estado y sus márgenes: etnografías comparadas”. Cuadernos de Antropología Social, 27: 19-52.). Entretanto, cabe destacar que a tortura constitui a realidade cotidiana de populações que habitam territórios de pobreza, normalmente as formadas por pobres, negros e periféricos.
Distanciando-se em alguma medida, então, de preceitos normativos sobre tortura vigentes, alguns dos interlocutores de pesquisa pareceram apresentar perspectivas difusas sobre a prática. Atentas a isso, nas próximas subseções discutiremos achados de pesquisa nesse sentido.
O que é compreendido como tortura?
Embora os entrevistados pareceram estar a par das conceituações legais sobre tortura, não houve uma unicidade de entendimento sobre a prática. O termo pareceu apresentar muitos prismas, mobilizados pelos diferentes atores contextualmente.
Em uma leitura superficial sobre violações cometidas pelo Estado, os integrantes da sociedade civil e do poder público tenderam a conceituar a tortura segundo as concepções da ONU e da Organização dos Estados Americanos. Distanciando-se de certo modo do preceito normativo brasileiro, basicamente inexistiram relatos sobre casos cometidos em âmbito privado, sem envolvimento de agentes estatais. Somado a isso, muitas narrativas caracterizaram a tortura como forma de punição e de disciplinamento, pautada pela violência física e psicológica, cometida contra grupos em ambientes específicos, como prisões e centros de internação para adolescentes autores de atos infracionais. Ainda, sobressaiu uma visão sobre casos de tortura em que policiais buscam obter confissão de um sujeito detido sobre certo crime. Alguns entrevistados circunscreveram a tortura a práticas utilizadas no período ditatorial.
Essa percepção mais normativa da tortura imperou entre atores estatais, em particular, os ligados às atividades de investigação e de responsabilização dos perpetradores da tortura. Por um lado, esse dado pode ser interpretado como fruto de um proceder tradicional dos operadores do direito, voltados a subsumir casos concretos à norma. Por outro, sem excluir a análise anterior, tal achado pode ser compreendido como um posicionamento relativamente conservador, cujo efeito prático é gerar um baixo processamento de casos de tortura no sistema de justiça criminal (Jesus e Gomes, 2021JESUS, Maria Gorete M. de. & GOMES, Mayara Souza. (2021). “Nem tudo é o que parece: A disputa semântica sobre a tortura no sistema de justiça criminal”. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 14(2), 361-378. DOI: <https://doi.org/10.17648/dilemas.v14n2.34139>.
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). Ou seja, ao restringir o entendimento sobre o ato, em menor medida um fato será classificado como tal. “Na verdade, a gente tem muito pouca demanda sobre tortura, temos alguns casos que eu me lembro claramente, mas que são práticas durante uma operação [policial], onde se quer obter uma informação” (Entrevistado 16 - Membro do Ministério Público).
Em contrapartida, ao mesmo tempo em que utilizavam a noção legal, alguns entrevistados dispuseram também de uma concepção mais plástica sobre a questão. A tortura foi, então, percebida como ferramenta estatal de “distribuição da dor” às classes baixas, empregada de modo difuso e disseminado, produzindo “trajetórias torturáveis”.
No começo, a gente acha que tortura é só aquela agressão física que é praticada como forma de castigo, ou como discriminação, ou para obtenção de algum meio de prova, que é o conceito que tá previsto na lei de tortura, do crime de tortura. Mas o que a gente percebe e trabalhando nos casos das denúncias que a gente recebe ou, enfim, fazendo as visitas semanais nas unidades prisionais, a gente percebe que os conceitos da lei ele é insuficiente para compreender a realidade da pena privativa de liberdade. A gente acha que tortura, enfim, é aquele crime cometido em uma situação específica, por causa de uma mentalidade maligna de alguém que quer punir outra pessoa, mas não, a tortura é ela algo bem difuso, ela é algo sistemático, ela tá dentro das estruturas do espaço carcerário, ela tá dentro das próprias estruturas sociais de uma certa forma. (Entrevistado 9 - Integrante da Sociedade Civil)
Conforme o relato acima, a lógica da privação de liberdade é per si algo que enseja tortura. Independente da adoção de políticas penais mais ligadas à garantia dos direitos individuais, as prisões são marcadas pela superlotação, pela infraestrutura precária, pela alimentação deficiente, pelo mau tratamento fornecido às famílias dos presos, para além de serem espaços afligidos pela violência física cometida por agentes de segurança contra os custodiados. Em vista disso, todos os que vivenciam o espaço carcerário, como agentes prisionais, familiares de presos e, sobretudo, as pessoas privadas de liberdade, estão sujeitos a situações torturantes. Estas não se concentram necessariamente a um momento específico, como uma revista pessoal, por exemplo, mas se configuram como elemento constituidor das relações prisionais. “Não há prisão sem tortura”, como disposto a seguir.
Ou seja, não há prisão sem tortura, da mesma forma que a tortura é a engrenagem que permite o funcionamento da prisão. E aí essa tortura ganha esse conceito mais amplo de toda e qualquer forma de violência que causa dor a pessoa. E aí gente enfim alcança, talvez esse conceito mais amplo mais estrutural do que seja tortura, que no fundo atenda o que é a realidade que é a prisão, que é cadeia. E aí tudo que acontece com base nessa distribuição de dor e essa distribuição de dor ela é seletiva. (Entrevistado 9 - Integrante da Sociedade Civil)
Similarmente, muitos espaços de pobreza urbanos foram também compreendidos como palcos cotidianos da violência e da letalidade policial, bem como se transformam em cenários de agressões físicas contra moradores, a processos sociais estigmatizantes, entre outros aspectos compreendidos como torturantes.
No dia XXX, infelizmente meu filho XXX na época com 20 anos, infelizmente ele foi fazer uma saidinha de banco aonde ele se rendeu. Eu tenho vídeo disso. Ele se rendeu e mesmo ele rendido no chão como... Ele tentou correr e acho que ele caiu e caiu todo encolhido assim, protegendo a cabeça. O policial, um policial do XXX fazendo a segurança como uma pessoa civil, normal, famoso bico, ele deu a volta no carro assim e apontou a arma para meu filho. Meu filho ergueu a mão e mesmo assim ele deu três disparos que foi face, ombro e lombar. (Entrevistado 5 - Integrante da Sociedade Civil).12 12 Retiramos trechos da entrevista que poderiam identificar nosso interlocutor.
No Rio de Janeiro, destacaram-se nas narrativas de nossos interlocutores as operações das polícias militar e civil realizadas nas favelas, muito fundamentadas pela metáfora da guerra às drogas (Leite, 2012LEITE, Marcia. (2012), “Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Segurança Pública, 6, 2:374-389.). Já em São Paulo, ganharam relevo as perseguições protagonizadas pela polícia militar a suspeitos de roubo e tráfico nas periferias da capital. Em ambas as localidades, são recorrentes casos de invasão de domicílios sem autorização judicial, pautados pela violência física e psicológica, com abordagens abusivas. Sobressaíram-se também entre os interlocutores da pesquisa as operações realizadas pela guarda municipal em um território específico do centro da cidade de São Paulo, chamado de “cracolândia”, onde há um número substancial de usuários de crack e outras drogas, quase todos em situação de rua. “A abordagem policial aqui (periferia), ela sempre tem violência, é raro uma abordagem aqui de um jovem, dele não ter levado tapas é raro, é raríssimo mesmo infelizmente” (Entrevistado 11 - Integrante da Sociedade Civil).
Eu lembro uma vez que eu estava dormindo e cinco horas da manhã eu escutei um barulho, eu falei assim: barulho estranho, esse barulho é do Caveirão.13 13 Carro blindado usado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro para incursões em favelas. Quando eu abro a minha porta, o Caveirão está na minha porta. Aquele barulho é terrorismo, o Caveirão estar aqui e entrar na minha casa é tortura, entendeu? Terrorismo é quando ele já vem. O barulho do tiro é torturante para mim, mas saber que esse tiro foi disparado pelo Estado é terrorismo. É contenção de povo dizer “eu estou aqui, “eu domino, eu faço, eu aconteço e eu vou determinar se você vai viver ou se você vai morrer”. (Entrevistado 4 - Integrante da Sociedade Civil)
Não seria exagero apontarmos, então, que o assujeitamento sistemático a atos de violência estatal, tidos pelos entrevistados como algo “torturante", se torna em uma espécie de “estilo de vida” aos pobres e às pessoas negras, sendo construídas trajetórias pautadas por um permanente “medo de ter medo” (Araujo, 2019ARAUJO, Marcella. (2019), “As obras urbanas, o tráfico de drogas e as milícias: Quais são as consequências das interações entre o trabalho social e os mercados ilícitos?”. Journal of Illicit Economies and Development, 1, 2: 53 - 66.). Isto é, grupos social e economicamente vulneráveis costumam conviver com a instabilidade e a expectativa de que, a qualquer momento, um tiroteio ou uma abordagem policial violenta pode romper sua suposta tranquilidade, ceifando suas vidas, o que costumou ser analisado como tortura. Conforme discutido por Mendiola (2014)MENDIOLA, Ignacio. (2014), Habitar o inabitável: a prática político-punitiva da tortura. Edcions Bellaterra, Barcelona., são produzidas, desse modo, vidas torturáveis, construindo-se percursos individuais subsumidos à lógica do desprezo, da indiferença, num processo de animalização de subjetividades.
Nessa linha, segundo indicado no trecho de entrevista acima, termos como “terrorismo de Estado”, “violência de Estado”, “brutalidade de Estado”, “genocídio” e “violência política” foram articulados por nossos entrevistados para caracterizar as violações cometidas reiteradamente por atores públicos contra aqueles considerados “torturáveis”, se constituindo, assim, como tortura. Ao serem questionados sobre o que significava cada expressão, os integrantes da sociedade civil pouco identificaram nuances entre uma e outra. De fato, mal souberam diferenciar tais concepções do termo “tortura”, geralmente empregado como uma espécie de prática estatal violenta e difusa. Entretanto, pontuaram que as distintas expressões costumam ser usadas à medida que se mostram pertinentes do ponto de vista político.
Em outros termos, para alguns tipos de atores, como os do sistema de justiça criminal, faria mais sentido caracterizar um ato violento estatal como “tortura”, ao passo que, para outros, como atores dos movimentos sociais e alguns perfis de gestores públicos, seria mais oportuno classificar esse ato como “genocídio”, por exemplo. Essa última palavra carregaria um “peso” maior em comparação ao que o senso comum compreende como “tortura” - geralmente associada às práticas utilizadas para obter confissão do criminoso, como compreendido por muitos atores públicos. Parece haver, portanto, um uso estratégico do termo “tortura”, ora sendo importante mobilizá-lo a partir do arcabouço legal, ora acioná-lo como um ato de violência extrema, nomeando-o como “genocídio” ou “terrorismo de Estado”. Isto é, desenvolve-se uma espécie de instrumentalização dos vocábulos, compondo um tipo de performance narrativa.
A plasticidade de conceituação também foi manifestada nos relatos de agentes públicos voltados a detectar e a reportar casos de tortura em espaços de privação de liberdade. Um deles disse classificar de modo diferenciado certos atos violentos cometidos pelo Estado conforme o perfil de seus interlocutores. Ao terem de produzir um relatório técnico a organismos internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, utilizavam os preceitos normativos vigentes e categorizavam determinados atos como “tortura”. Caso contrário, as violências reportadas poderiam não receber a atenção devida. Contudo, ao dialogarem com parceiros da sociedade civil, dispunham de termos como “genocídio” e “terrorismo de Estado”, pois acreditavam, assim, que conseguiam transmitir de modo mais representativo as violações ocorridas no cenário fluminense.
Se a classificação de atos como “tortura” está longe de ser tarefa simples, esse desafio seria ainda mais proeminente nos casos de violência produzidos pela omissão estatal. Conforme Maia (2006, pMAIA, Luciano Mariz. (2006), Do controle judicial da tortura institucional: à luz do direito internacional dos direitos humanos. Tese de doutorado em direito. Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.. 152), é possível prever a omissão em duas situações: por um lado, “quem, tendo o dever de evitar a prática da tortura, omite-se” e, por outro, “quem, tendo o dever de apurar a prática da tortura, omite-se”. Entretanto, as narrativas obtidas nas conversas realizadas pareceram avançar em relação a esse conceito ao indicar que a “omissão” pode atingir outros níveis de relações, não se restringindo a “não ação” sobre situações de violência localizadas. A “omissão” pode dizer respeito, por exemplo, a não execução de políticas públicas básicas em determinados territórios marginais (Das e Poole, 2008DAS, Venna.; POOLE, Deborah. (2008), “El Estado y sus márgenes: etnografías comparadas”. Cuadernos de Antropología Social, 27: 19-52.), o que acaba por não só perpetuar, como também aguçar desigualdades, mantendo-se um cenário de violações generalizadas. A ação de organizações criminais, como as relacionadas ao tráfico de drogas e às milícias, seria um dos efeitos dessa prática omissiva (Ramalho, 1983RAMALHO, José Ricardo. (1983), Mundo do crime a ordem pelo avesso. 2° edição. Rio de Janeiro, Graal.; Dias, 2011DIAS, Camila. (2011), Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese de doutorado em Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.; Cano e Duarte, 2012CANO, Inácio; DUARTE, Thais Lemos. (2012), No sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll.; Manso, 2020MANSO, Bruno Paes. (2020), A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro. São Paulo, Todavia.; Feltran, 2018FELTRAN, Gabriel. (2018), Irmãos: Uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras.; Misse, 2007MISSE, Michel. (2007), “Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro”. Estudos Avançados, 21,61:139-157.; Barbosa, 2005BARBOSA, Antônio Rafael. (2005),Prender e Dar Fuga: Biopolítica, Sistema Penitenciário e Tráfico de Drogas no Rio de Janeiro.Tese de doutorado em antropologia social. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Biondi, 2010BIONDI, K. (2010), Junto e misturado: uma etnografia do PCC. 1. ed. São Paulo: Editora Terceiro Nome., 2014BIONDI, K. (2014), Etnografia no movimento: território, hierarquia e lei no PCC. Tese de doutorado em antropologia. UFSCar, São Paulo.).
Nesse sentido, ganhou destaque nas narrativas dos entrevistados paulistas a ação do Primeiro Comando da Capital (PCC), o qual detém grande parte do mercado de drogas de São Paulo (Dias, 2011DIAS, Camila. (2011), Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese de doutorado em Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.; Feltran, 2018FELTRAN, Gabriel. (2018), Irmãos: Uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras.; Biondi, 2010BIONDI, K. (2010), Junto e misturado: uma etnografia do PCC. 1. ed. São Paulo: Editora Terceiro Nome., 2014BIONDI, K. (2014), Etnografia no movimento: território, hierarquia e lei no PCC. Tese de doutorado em antropologia. UFSCar, São Paulo.). Os chamados “tribunais do PCC” são demonstrações simbólicas do uso da força por parte dessa organização que, ao mesmo tempo em que desenvolveu meios não letais de punição, reduzindo substancialmente os índices de homicídio estaduais nas últimas décadas, pune com uso da violência aqueles considerados transgressores (Marques, 2009MARQUES, Adalton. (2009), Crime, proceder, convívio-seguro: um experimento Antropológico partir de relações entre ladrões. Dissertação de mestrado em antropologia. Universidade de São Paulo, São Paulo.). Já no Rio de Janeiro, a ação do tráfico ficou também marcada, mas sem que fosse especificado um único grupo, em boa medida em razão de as atividades do tráfico de drogas se pautarem pela fragmentação entre facções criminosas (Misse, 2007MISSE, Michel. (2007), “Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro”. Estudos Avançados, 21,61:139-157.; Barbosa, 2005BARBOSA, Antônio Rafael. (2005),Prender e Dar Fuga: Biopolítica, Sistema Penitenciário e Tráfico de Drogas no Rio de Janeiro.Tese de doutorado em antropologia social. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Lessing, 2008LESSING, Benjamin. (2008), “As facções cariocas em perspectiva comparativa”. Novos Estudos, 80: 43-62. DOI: <https://doi.org/10.1590/S0101-33002008000100004>.
https://doi.org/10.1590/S0101-3300200800...
; Cano e Duarte, 2012CANO, Inácio; DUARTE, Thais Lemos. (2012), No sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll.).
E assim o contexto de tortura praticado contra essas crianças e adolescentes eu vejo muito no sentido mais amplo. Não só aquelas praticadas pelos agentes do estado. Você vê aí uma ação muito forte do tráfico de drogas que seduz esses meninos no trabalho para a venda de drogas e também acaba envolvendo esses meninos no uso e aí quando esses meninos falham com esse trabalho que é proposto para eles, esses meninos são fortemente coagidos. E as famílias também são envolvidas nesse tipo de coação. (Entrevistado 20 - Integrante do Poder Executivo)
Mas eu acho que obviamente o que mais choca a população de uma maneira geral e que vem dizimando gerações e gerações na Maré são os homicídios, a gente tem um número de mortos, no ano passado a gente teve trinta e nove mortos por conta da violência armada, seja pela polícia ou pelos grupos armados, mas trinta dessas pessoas foram mortas em operações policiais. (Entrevistado 11 - Integrante da Sociedade Civil)
Conforme os relatos acima, o Estado se imiscuiria de exercer seu monopólio da violência legítima, em termos weberianos (Weber, 1982WEBER, Max. (1982), Ensaios de sociologia. 5° ed. Rio de Janeiro, LTC.), criando condições para que grupos criminais se formem e consolidem sua atuação em espaços de pobreza. Ou seja, quando o aparelho estatal se omite em garantir segurança e outros direitos a determinadas populações, grupos criminais com ações violentas exercem domínio em certos territórios, gerando situações consideradas torturantes, como um tribunal coordenado pelo PCC. Para além disso, é semeado terreno fértil para que seja fomentada uma sensação de medo constante, já que a qualquer momento uma pessoa pobre e negra pode estar sujeita a sofrer tortura, produzida como efeito de uma ação omissiva estatal.
A população socialmente marginalizada se vê, então, “sob cerco” (Machado da Silva, 2008MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2008), Vida sob cerco. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.). Ao mesmo tempo em que está sujeita às arbitrariedades cometidas por agentes do Estado, encontra-se sob o jugo de grupos criminais que estipulam regras muitas vezes imprevisíveis, cujas aplicações variam conforme as pessoas envolvidas em certa situação. Em consequência, são formadas trajetórias vitimizadas, as quais apresentam a tortura como marca cotidiana.
Ponto de debate: narrativas da tortura como “falas da violação”
Em síntese às seções anteriores, muitos atores que atuam diretamente e indiretamente com o acolhimento de vítimas e familiares de vítimas de violações de agentes do Estado indicaram a existência de limitações para o conceito de tortura, tal como tipificado nas normativas nacionais e internacionais. Não à toa, a conceituação legal sobre tortura costuma ser manejada restritamente, em especial, nos espaços formais das agências internacionais de direitos humanos, a fim de produzir uma espécie de performance política. A princípal crítica de nossos interlocutores era a de que os marcos legais existentes não conseguem abranger a complexidade das relações estruturais travadas no país, marcadas pelo assujeitamento constante de pessoas pobres, negras e periféricas.
Em vista disso, em suas práticas profissionais e pessoais, muitos atores com quem conversamos pontuaram, mesmo que indiretamente, a importância de se conceituar e de se analisar a tortura sob lentes muito mais intricadas em comparação com as dispensadas pelas legislações existentes. Como a prática é mobilizada cotidianamente pelo Estado contra populações marginais, não deve ser percebida como adstrita a um momento, local ou indivíduo específico (Jesus et al, 2021JESUS, Maria Gorete M. de; SILVESTRE, Giane & DUARTE, Thais Lemos. (2021), Tortura como Marca Cotidiana: Narrativas Sobre os Serviços de atenção às vítimas de tortura desenvolvidos no Rio de Janeiro e em São Paulo. DIGNITY/NEV-USP/CRISP-UFMG.). O ato é perpetrado de maneira difusa e sistemática, o que requer um olhar mais plástico sobre a questão, e, justamente por isso, a tortura foi classificada pelos interlocutores como “genocídio”, “terrorismo de Estado” etc., não necessariamente existindo uma unicidade de termo ou de conduta para caracterizá-la ou situá-la.
Esses tipos de narrativas ficaram mais evidentes quando proferidos por vítimas ou familiares de vítimas, os quais sofreram diretamente a experiência de violação, embora tenham se projetado também em menor medida nos relatos de profissionais que atuam em ONG ou em determinados órgãos públicos. Portanto, entendemos que esses atores exprimiram algo que, como mencionamos anteriormente, podemos chamar de “fala da violação”, fazendo um paralelo com o que Caldeira (2000)CALDEIRA, Teresa P. R. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Ed. 34, Edusp. chamou de “fala do crime”. Neste trabalho, a autora discutiu o quanto o aumento da criminalidade e o medo do crime são fenômenos sociais que se imbricam entre si, mudando o cenário urbano e a vida cotidiana. A “fala do crime” se transforma em algo contagiante e que serve para reforçar as sensações de perigo, a insegurança e a perturbação das pessoas. Ainda, produz explicações superficiais e estereotipadas, moldando o contexto das interações sociais que adquirem um novo significado nas cidades que, paulatinamente, vão se cercando de muros.
Em que medida, a “fala do crime” nos ajuda a compreender as narrativas plásticas sobre situações torturantes discutidas na seção anterior, melhor dizendo, as “falas da violação”? Conforme Caldeira (2000), aCALDEIRA, Teresa P. R. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Ed. 34, Edusp. “fala do crime” busca ordenar uma experiência afetada pela vitimização. O crime desorganiza, enquanto a “fala do crime” rearruma a existência. Ao proceder assim, a narrativa cria uma fronteira entre a vítima e o “outro” - o criminoso -, identidade em geral associada a qualquer grupo historicamente afligido pelas desigualdades estruturais do país, como os compostos por pobres e negros. Mesmo uma pessoa com esse perfil mais vulnerável pode proferir a “fala do crime”, ainda que esse ato produza efeitos socialmente negativos em relação a si própria. Isso porque essa narrativa fornece uma perspectiva simplista ao que deveria ser reconhecido como um problema social complexo - o crime. Com efeito, estigmatiza, sujeita, segmenta e criminaliza alguns indivíduos, bem como deslegitima instituições, pondo em xeque processos democráticos da história recente brasileira.
A “fala da violação”, por sua vez, também auxilia na organização da experiência de quem sofreu uma experiência considerada torturante, o que é em boa medida impulsionado por movimentos sociais de periferias urbanas e outros tipos de organizações da sociedade civil, destinados ao acolhimento de vítimas. Narrar algo possibilita linearizar e garantir alguma coesão às vivências muitas vezes difusas, tornando-as minimamente compreensíveis a si mesmo e aos interlocutores. Nesse mesmo sentido, a “fala da violação” também possibilita conformar uma nova identidade. Isto é, se a “fala do crime” proporciona uma subjetividade permeada pela experiência de ser “vítima” (Caldeira, 2000CALDEIRA, Teresa P. R. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Ed. 34, Edusp.), processo semelhante se passa com base na “fala da violação”. Reforça-se a partir dela a experiência de se ter sofrido violências cometidas pelo Estado, como circunstâncias torturantes.
Cremos ser importante utilizar o termo “violência” no plural, pois, diferente da “fala do crime”, que tende a se referir a um ou a outro evento na vida de uma pessoa, a “fala da violação”, tal como discutido por nossos entrevistados, se refere a violências múltiplas, difusas e plásticas. Logo, não existe necessariamente um “antes” e “depois” da violação, um momento “bom” e “mau”, pois as dinâmicas torturantes são percebidas como algo perene na vida de determinadas pessoas. Há até um ou outro fato que caracteriza uma prática violenta vivenciada, mas tende-se, sobretudo, a serem proferidas narrativas sobre trajetórias torturáveis, nos termos de Mendiola (2014)MENDIOLA, Ignacio. (2014), Habitar o inabitável: a prática político-punitiva da tortura. Edcions Bellaterra, Barcelona., atravessadas por uma sorte de precarizações, contato com mecanismos de controles estatais brutais, agressões físicas e psíquicas. “Acordar às cinco da manhã com o Caveirão na porta de casa” é rotina, de modo que a tortura - e todas as caracterizações relacionadas a esse termo - é reconhecida como prática cotidiana.
O “outro”, nesse escopo de relato, não é mais o indivíduo socialmente considerado “perigoso”. O “outro” é o Estado, o ente que, ao menos no plano formal, deveria ser garantidor de direitos, mas, dado o contexto democrático disjuntivo nacional (Caldeira, 2000CALDEIRA, Teresa P. R. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Ed. 34, Edusp.), se transforma num ente torturador, produtor e reprodutor de desigualdades. Portanto, a “fala da violação”, diferente da “fala do crime”, não estigmatiza, criminaliza, sujeita e segmenta grupos marginalizados. Ao contrário, busca explicitar em que medida o Estado, através de suas ações historicamente torturantes, produz clivagens sociais complexas. Tal relato desbanaliza atos cometidos de modo sistemático contra populações marginais (Das e Poole, 2008DAS, Venna.; POOLE, Deborah. (2008), “El Estado y sus márgenes: etnografías comparadas”. Cuadernos de Antropología Social, 27: 19-52.), explicitando-as.
Assim como a “fala do crime”, a “fala da violação” deslegitima as instituições estatais, na medida em que expõe as dinâmicas torturantes que produzem. Entretanto, ainda que o efeito provocado por ambos os tipos de narrativas seja semelhante, seus cernes são distintos. Na de primeiro tipo, são fomentadas clivagens sociais tão fortes ao se dizer que a polícia ou qualquer outra instituição da justiça criminal não consegue cumprir com suas funções que se incita, assim, a formação de iniciativas privadas para garantir a “segurança”, em especial de classes mais abastadas. Isso, na maioria das vezes, é realizado ilegalmente e em bases altamente antidemocráticas (Caldeira, 2000CALDEIRA, Teresa P. R. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Ed. 34, Edusp.).
Já a “fala da violação” também chama a atenção para o não cumprimento por parte do Estado do seu monopólio da violência legítima (Weber, 1982WEBER, Max. (1982), Ensaios de sociologia. 5° ed. Rio de Janeiro, LTC.). Afinal, ainda que use a força, ao adotar práticas torturantes, os agentes estatais a acionam de modo ilegítimo. Contudo, a deslegitimação das instituições articulada por esse tipo de narrativa não fortalece uma lógica privada da segurança, como a “fala do crime” o faz (Caldeira, 2000CALDEIRA, Teresa P. R. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Ed. 34, Edusp.). A “fala da violação” busca provocar os órgãos públicos, como a polícia e o sistema prisional, para que cumpram suas funções com base na ordem democrática.
Não é exagero, então, indicar que, ao invés de simplificar o debate, como feito pela “fala do crime”, a “fala da violação” o intrinca. Não à toa, remete a uma nova conceituação sobre a tortura, distante das apregoadas pelas legislações nacionais e internacionais. Os atores que manejam essas tipificações formais tendem a reforçar o proceder estatal em suas rotinas de trabalho. Esse seria o posicionamento dos que constituem o sistema de justiça criminal, ou mesmo, daqueles que, embora detenham perspectivas que refutem as conceituações formalmente vigentes, sabem que utilizá-las é importante para atingir determinados espaços, como os organismos internacionais de direitos humanos.
Em síntese, como espécie de contraponto e complemento às discussões de Caldeira (2000), aCALDEIRA, Teresa P. R. (2000), Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Ed. 34, Edusp. “fala da violação” dinamiza, expõe, denuncia e desbanaliza iniciativas estatais segmentadoras, estigmatizadores e violadoras, as quais geram vidas atravessadas pelo sofrimento. Os processos históricos nacionais, impulsionados pela abertura política que ajudou a fundamentar uma democracia disjuntiva, complexificaram a conjuntura brasileira, sendo necessário, nesse contexto, repensar certas conceituações sobre a ação estatal, como a tortura.
Propomos como conclusão, então, que o enfrentamento à tortura no país nos provoca uma reflexão mais profunda a respeito dos dilemas sociais vivenciados em cenário nacional. O reforço público da tortura como política de Estado, bem como a banalização e a omissão do sistema de justiça criminal sobre o tema precisam ser revertidos. Para além de pensar as formas estratégicas pelas quais o termo “tortura” vem sendo mobilizado pelos grupos sociais, precisamos refletir sobre os impactos que essas conceituações desdobram, não apenas no campo das ações políticas, mas também no campo cultural, na produção de discursos que constroem sentidos e formas de ver o mundo, que desnudam desigualdades, processos de exclusão social, bem como a hierarquia racial e de classe presente em nossa sociedade. As resistências estão produzindo sentidos, o que é ampliado e capilarizado por aqueles atingidos diretamente por circunstâncias torturantes. Isso, sem dúvida, representa um grande movimento no que diz respeito a possibilidades de uma mudança efetiva.
Agradecimentos
Manifestamos nossos agradecimentos à organização internacional DIGNITY - Danish Institute Against Torture pelo convite e financiamento para o desenvolvimento dessa pesquisa no Brasil, com foco nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.
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Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada e discutida no GT45 - Violência, punição e controle social: perspectivas de pesquisa e de análise, do 45º Encontro Anual da ANPOCS. O trabalho recebeu menção honrosa no “Premio em Direitos Humanos” na categoria papers inscritos no 45º Encontro Anual da ANPOCS, edição de 2021. Por opção das autoras, o texto não foi publicado nos Anais do evento, para garantir seu ineditismo.
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Nota de pesar pelo falecimento da pesquisadora Thais Lemos Duarte: https://nev.prp.usp.br/noticias/1o-6-23-nota-de-pesar-pelo-falecimento-da-pesquisadora-thais-lemos-duarte/
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Acompanhamos o argumento que defende que essa ditadura não foi apenas militar, mas civil. Ela teve o apoio e adesão de amplos segmentos da população na construção do regime ditatorial (Pinha, 2020PINHA, Daniel (2020), “Ditadura Civil-Militar e formação democrática como problemas historiográficos: interrogações desde a crise”. Revista TransVersos, [S.l.], 18: 37-63, abr.; Costa e Silva, 2018COSTA, A. de Sá M. da; SILVA, Marcelo A. de C. (2018), “Empresas, violação dos direitos humanos e ditadura civil-militar brasileira: a perspectiva da Comissão Nacional da Verdade”. Organizações & Sociedade [online], 25, 84: 15-29. DOI: https://doi.org/10.1590/1984-9240841.
https://doi.org/10.1590/1984-9240841... ; Kushnir, 2004KUSHNIR, Beatriz. (2004), Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo, Boitempo.). As marchas da Família com Deus e pela Liberdade mostram um desses aspectos ao ter mobilizado vários grupos sociais, sobretudo da classe média, contra o governo João Goulart e do “perigo comunista” (Pinha, 2020PINHA, Daniel (2020), “Ditadura Civil-Militar e formação democrática como problemas historiográficos: interrogações desde a crise”. Revista TransVersos, [S.l.], 18: 37-63, abr.). Além disso, no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, mais especificamente no texto n. 8 “Civis que colaboraram com a ditadura” há uma detalhada descrição de como civis colaboraram com a ditadura (Costa e Silva, 2018COSTA, A. de Sá M. da; SILVA, Marcelo A. de C. (2018), “Empresas, violação dos direitos humanos e ditadura civil-militar brasileira: a perspectiva da Comissão Nacional da Verdade”. Organizações & Sociedade [online], 25, 84: 15-29. DOI: https://doi.org/10.1590/1984-9240841.
https://doi.org/10.1590/1984-9240841... ). -
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Em 2001, o Brasil recebeu a visita do Relator Especial da ONU sobre Tortura, Nigel Rodley, ao passo que, em 2015, recebeu a visita do Relator Juan Méndez, ligado ao mesmo órgão.
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O SPT esteve no Brasil em 2011, em 2016 e, mais recentemente, nos primeiros meses de 2022.
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“STF restabelece composição do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=484245&ori=1
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Utilizamos essa expressão para descrever as variações que o termo “tortura” apresentou nas narrativas de nossos entrevistados, tomando como base a análise de que o conceito foi mobilizado a partir de conformações e de disposições plásticas.
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Esse termo foi mobilizado pelos entrevistados. Mesmo que seu sentido conceitual seja diverso do da tortura, é interessante perceber a mobilização desse termo para o campo de disputas narrativas, genocídio parece ser uma forma de expressar de forma mais explicita a intenção do Estado em eliminar determinado segmento social.
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Dignity é uma organização independente de direitos humanos e desenvolvimento, cujo foco de atuação é o enfrentamento à tortura e ao tratamento cruel, desumano e degradante. Foi fundado em 1982, sendo considerado uma das primeiras ONGs de combate à tortura do mundo. A organização está sediada em Copenhagen e tem parcerias com organizações não governamentais e instituições de pesquisa em todo o mundo, atuando em 20 países na África, Oriente Médio, Ásia, Europa Oriental e América Central. O trabalho internacional do DIGNITY é apoiado, entre outros, pelo Ministério de Relações Exteriores da Dinamarca, pela Comissão Europeia e por uma lista mais longa de fundações, incluindo a Open Society Foundation. Disponível em: https://www.dignity.dk/en/about-dignity/.
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Relatório Tortura como Marca Cotidiana: Narrativas Sobre os Serviços de atenção às vítimas de tortura desenvolvidos no Rio de Janeiro e em São Paulo (Jesus et al., 2021JESUS, Maria Gorete M. de; SILVESTRE, Giane & DUARTE, Thais Lemos. (2021), Tortura como Marca Cotidiana: Narrativas Sobre os Serviços de atenção às vítimas de tortura desenvolvidos no Rio de Janeiro e em São Paulo. DIGNITY/NEV-USP/CRISP-UFMG.). Disponível em https://www.dignity.dk/wp-content/uploads/35-TORTURA-COMO-MARCA-COTIDIANA_digital.pdf, consultado em 03/08/2022.
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Software desenvolvido por pesquisadores para análise de dados qualitativos como textos, entrevistas, transcrições, gravações em áudio/vídeo, revisões de literatura etc.
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Retiramos trechos da entrevista que poderiam identificar nosso interlocutor.
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Carro blindado usado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro para incursões em favelas.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
06 Dez 2021 -
Aceito
03 Ago 2022