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Sobre empreendedorismo e cultura do trabalho

About entrepreneurship and work culture

Resumos

Neste artigo, caracterizamos o processo de construção e desconstrução de uma cultura do trabalho no Brasil, indicando alguns de seus elementos representativos a partir da atuação de distintos atores: trabalhadores, empresários, Estado e instituições que conformaram, em momentos distintos, esta cultura. A proposta, longe de ser exaustiva e sem pretender fazer uma reconstrução das mudanças econômicas do capitalismo a partir do último quarto do século XX, é elencar situações que marcaram e marcam o processo de construção, desconstrução e reconstrução da cultura do trabalho, destacando a passagem do que seria uma cultura salarial para uma cultura empreendedora. Trata-se de um artigo de revisão, que se utiliza, empiricamente, além das referências institucionais, da experiência de décadas de pesquisa com trabalhadores formais e informais no Brasil, que possibilitaram a reflexão sobre a interiorização e a reprodução de valores sociais que extrapolam a mera ideologia.

Palavras chaves:
cultura do trabalho; sociedade salarial; empreendedorismo; mudanças sociais; trabalho flexível


In this article, we characterize the process of construction and deconstruction of a work culture in Brazil, indicating some of its representative elements, based on the actions of different actors: workers, businessmen, the State and institutions that has shaped this culture at different times. The proposal, far from being exhaustive, and without pretending to reconstruct the economic changes in capitalism from the last quarter of the 20th century onwards, is to list situations that marked and still mark the process of construction, deconstruction and reconstruction of the culture of work, highlighting the transition from what would have been a wage culture to an entrepreneurial culture. It is a review article that draws empirically on the experience of decades of research with formal and informal workers in Brazil, as well as institutional references, which have enabled reflection on the internalization and reproduction of social values that go beyond mere ideology.

Keywords:
labour culture; wage society; entrepreneurship; social change; flexible work


1. Introdução

O empreendedorismo é cada vez mais percebido como alternativa ao trabalho assalariado regular, formalizado, no qual se vincula relação de trabalho com direitos sociais. Esta “alternativa” se configurou e se fortaleceu a partir da reestruturação econômica da década de 1990, marcada, de um lado, por mudanças tecnológicas e organizacionais que levaram a uma maior flexibilização da produção e, de outro, pela abertura dos mercados à competitividade internacional, tendo como resultado o aumento do desemprego e da informalidade. Esta conjuntura veio acompanhada de políticas neoliberais de enxugamento do Estado e de redução de gastos sociais, e foi se constituindo, de forma progressiva, sob um discurso único no qual a saída para os problemas econômicos e sociais estaria no mercado.

Paulatinamente, se formou uma narrativa ideológica da modernidade capitalista em contraposição à regulação das relações capital-trabalho por parte do Estado, apresentada como obsoleta e ultrapassada. Instituiu-se essa concepção como discurso hegemônico nas mídias, além de surgir como disciplina escolar nos diversos níveis de ensino, orientando as reformas educacionais, trabalhistas e previdenciárias.

O avanço das tecnologias digitais e das redes sociais, flexíveis por excelência, com seu caráter fortemente individualista, promoveu a substituição do “nós” pelo “eu”, da classe pelo indivíduo, das lutas coletivas pelo empreendedorismo de si mesmo. O mercado se converteu em modelo na conformação das subjetividades, pelas disposições internalizadas em que a competição é o motor das atividades sociais. O indivíduo passa a ser percebido como uma empresa, portanto, espera-se que se comporte como tal.

Este processo, de longo prazo, foi se efetivando como uma nova cultura do trabalho, em contraposição a uma cultura do assalariamento que marcou a chamada sociedade salarial, em sua versão brasileira, parcial e incompleta (Machado da Silva, 1999MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (1999), “Trabalhadores do Brasil: virem-se!”. Revista Insight/Inteligência, Rio deJaneiro, 1,5:58-65.). Argumentamos, com Thompson (Thompson [1963] 1987)THOMPSON, Edward. ([1963] 1987), A formação da classe operária inglesa – volume 1. Rio de Janeiro, Paz e Terra. e Willis (1991)WILLIS, Paul. (1991), Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre, Artes Médicas., que a cultura do trabalho não resulta apenas de uma ação passiva, de cima para baixo, da ideologia dominante, mas também de uma práxis coletiva dos trabalhadores, construída historicamente. Em outros termos, trata-se de escolhas e decisões fundamentadas em valores, ideias e formas institucionais que se configuraram em determinados contextos e que se refletem na forma como os trabalhadores experienciam e dão sentido ao seu trabalho.

Da mesma forma que podemos nos referir à construção de uma cidadania salarial a partir dos anos 1930 no Brasil, tendo o trabalho como forma de acesso aos direitos sociais e a uma cultura que estruturava valores e normas sociais, a partir dos anos 1980 assistimos a uma progressiva desconstrução de seus fundamentos.1 1 O conceito de cultura do trabalho permite uma maior precisão da discussão sobre modos de vida e construção de subjetividades, entretanto é importante salientar sua proximidade e a imbricação dos conceitos de cultura de classe (Cuche, 2002; Savage, 2004; Bourdieu, 2007; Gramsci, 1999; Lima e Leite, 2020) e cultura do capitalismo (Sennett, 2006). Por uma questão de escopo deste artigo, não iremos discutir estes conceitos. Observa-se então um processo social no sentido de Elias (2006)ELIAS, Norbert. (2006), Escritos e ensaios: 1. Estado, processo e opinião pública. Rio de Janeiro, Zahar Editores., no qual transformações amplas e contínuas de configurações sociais se movem em direções opostas, uma no sentido de ascensão, outra de declínio. Um processo voltado, de um lado, a uma maior integração social, representada pela cidadania salarial (com todos os seus poréns) e, de outro, na direção de uma crescente desintegração, com o desmonte da regulação das relações capital e trabalho e dos valores a elas vinculados.

Nos últimos anos, temos assistido à plataformização crescente das atividades econômicas, nas quais os serviços se destacam. Com a pandemia do Covid-19, essas atividades assumiram grande visibilidade através do crescimento exponencial de categorias de trabalhadores como entregadores, bikers, motoristas de aplicativos e outros, nas quais a relação de trabalho passou a ser mediada por aplicativos e dispositivos digitais. Desaparece o patrão físico, as empresas são virtuais e, em grande medida, desterritorializadas; e o trabalho, ou a atividade, passou a ser vendido por essas empresas como possibilidades de prestação de serviços, de não ter patrão, não ter horários ou jornadas de trabalho, enfim, como a liberdade do trabalhador de fazer suas escolhas, valorizando sua autonomia.

Mais que trabalhadores, as empresas vendem uma imagem de empreendedores de si mesmos e, em um contexto de múltiplas crises ― econômica, política e sanitária ―, estes valores são, em certa medida, incorporados pelos trabalhadores que recusam a regulação do trabalho via Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), entendida como limitante da autonomia, obrigando, assim, o poder público a repensar formas de regulação. Este quadro contextualizado, com a crescente focalização na questão do empreendedorismo, é um indicador das mudanças de um processo que antecede a plataformização e que vem sendo construído há um bom tempo, tal como aconteceu com a relação salarial.

Neste artigo, buscamos caracterizar esse processo de construção e desconstrução de uma cultura do trabalho no Brasil, indicando alguns de seus elementos representativos a partir da atuação de distintos atores: trabalhadores, empresários, Estado e instituições que conformaram essa cultura. Longe de ser exaustiva, e sem pretender fazer uma reconstrução das mudanças econômicas do capitalismo a partir do último quarto do século XX, a proposta aqui é elencar situações que marcaram e marcam o processo de construção, desconstrução e reconstrução da cultura do trabalho; a passagem do que seria uma cultura salarial para uma cultura empreendedora. Trata-se de um artigo de revisão, que se utiliza, empiricamente, além das referências institucionais, da experiência de décadas de pesquisa com trabalhadores formais e informais no Brasil, que possibilitaram a reflexão sobre a interiorização e a reprodução de valores sociais que extrapolam a mera ideologia.

Após esta apresentação, na qual conceituamos os processos sociais, o texto prossegue com uma breve recuperação histórica da formação de uma cultura do trabalho assalariado no Brasil, a partir de Vargas, destacando medidas educacionais e culturais na modernização econômica do país. Em seguida, contextualizamos o processo de desconstrução desta mesma cultura, com as transformações capitalistas a partir dos anos 1980, trazendo uma discussão sobre empreendedorismo e informalidade, em que a segunda se transforma em sinônimo da primeira, um empreendedorismo de si, ou um auto empreendedorismo por necessidade. São arrolados então outros empreendedorismos que vão sendo recuperados na explicação da nossa histórica “viração”, seja em populações imigrantes, seja na chamada economia criativa, novo termo para explicar a velha precariedade do trabalho artístico, e justificando a nova precariedade do trabalho digital. Nestas ressignificações, e em uma vertente distinta, há o empreendedorismo social, conceito que passa a defender as parcerias estado-empresas-populações vulneráveis, na busca de soluções de problemas das desigualdades econômicas, raciais e de gênero, agora pensadas como auto soluções, sob o guarda-chuva do mercado, o que evidencia uma situação complexa na construção de uma cultura do trabalho “empreendedora”. São elencadas ainda algumas resistências a estes processos por parte dos trabalhadores, bem como outras variáveis culturais explicativas deste processo de desconstrução, finalizando com a constatação, seguindo Elias (2006)ELIAS, Norbert. (2006), Escritos e ensaios: 1. Estado, processo e opinião pública. Rio de Janeiro, Zahar Editores., de que os processos são complexos, reversíveis e concomitantes, mas que precisamos entender como se configuram para podermos entender as resistências e/ou as mudanças.

2. Primeiros movimentos: a constituição de uma cultura do trabalho assalariado no Brasil

Podemos nos referir à construção de uma cultura do trabalho assalariado no Brasil a partir da revolução de 1930, com movimentos empresariais pontuais e políticas de Estado voltadas à industrialização e modernização das relações capital-trabalho. Em relação a esse contexto, destacamos a mobilização dos empresários paulistas capitaneados pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) com a criação do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), em 1931, voltado à introdução do Taylorismo e ao apoio ao ensino industrial, visando à criação de uma força de trabalho nacional com a qualificação exigida pela indústria e ao combate às ameaças representadas por trabalhadores estrangeiros e à importação de ideias consideradas subversivas (Vargas, 1985VARGAS, Nilton. (1985), “Gênese e difusão do taylorismo no Brasil”, in Ciências Sociais Hoje (Anuário de Antropologia, Política e Sociologia). São Paulo, ANPOCS-Cortez Editora.). Nesta mesma direção se situa o apoio empresarial à criação da Escola de Sociologia e Política de São Paulo que, segundo Simões (2009)SIMÕES, Júlio. (2009), “Um ponto de vista sobre a trajetória da Escola de Sociologia e Política”, in I. Kantor; D. Maciel; J. Simões. (org.), A Escola Livre de Sociologia e Política: anos de formação, 1933-1953 – Depoimentos, 2ª edição, São Paulo, Editora Sociologia e Política., seria um desdobramento do projeto do IDORT, visando à criação de quadros para a modernização do Estado brasileiro e do estudo científico da sociedade para resolução de seus problemas.

Com o golpe de Estado de 1937 e a implantação do Estado Novo, foi criado, em 1939, o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), que deu continuidade à proposta de implantar a racionalização Taylorista no aparelho do Estado, por meio da formação técnica dos servidores, e que, junto com o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado no mesmo ano, tiveram papel fundamental na difusão do ideário “trabalhista” do governo Vargas.

Para a construção da figura do trabalhador, a cultura mereceu uma atenção especial. O controle e a censura das atividades artísticas e culturais (como teatro, cinema, radiodifusão, literatura, política e imprensa), juntamente com a propaganda sistemática das políticas governamentais (em eventos e programas de rádio), formataram a difusão da ideologia do regime. Merece destaque a pressão contínua junto aos compositores e as mensagens passadas pelas músicas. No samba, a pressão foi pela retirada de termos como “malandragem” e “orgia”, por um lado, e, por outro, a glorificação do trabalho e do trabalhador.

Tratava-se de uma ação de combate a formas de cultura e estilos de vida de grupos sociais e étnicos agora incompatíveis com a cultura do trabalho que se impunha (Araújo e Barbosa, 2016ARAÚJO, Gabriel Frias; BARBOSA, Agnaldo de Souza. (2016), “Cultura e identidade nacional nos anos Vargas: tensões e contradições de uma cultural oficial”. Revice - Revista de Ciências do Estado,1, 2:72-106. DOI:https://doi.org/10.35699/2525-8036.2016.5009.
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), e uma louvação à ideologia do trabalhismo varguista.2 2 A bibliografia acerca da utilização do samba pela ditadura varguista e a relativa subordinação dos compositores às imposições governamentais de glorificação do trabalho têm sido interpretadas como predominante, embora não de forma absoluta. Sobre isso ver Paranhos (2015) e Gomes (1994). A luta contra a malandragem e sua homônima, a vadiagem, teve um reforço na Lei de Contravenções Penais, Decreto-Lei n. 3.688 de 3 de outubro de 1941 (Brasil, 1941BRASIL. (1941), Câmara dos Deputados. Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro. Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3688-3-outubro-1941-413573-publicacaooriginal-1-pe.html, consultado em 20/11/2023.
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), que tornou mais severa a punição da vadiagem, prevista desde o Código Penal de 1890, com prisão simples de 15 dias a três meses (Araújo e Barbosa, 2016ARAÚJO, Gabriel Frias; BARBOSA, Agnaldo de Souza. (2016), “Cultura e identidade nacional nos anos Vargas: tensões e contradições de uma cultural oficial”. Revice - Revista de Ciências do Estado,1, 2:72-106. DOI:https://doi.org/10.35699/2525-8036.2016.5009.
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).

Ainda sobre as manifestações culturais, pesquisas sobre o futebol brasileiro recuperaram sua transformação de esporte de elite em esporte de massas com os clubes de fábricas (vinculados, no período, ao binômio fábrica-vila operária) e a criação do jargão “bom jogador é um bom trabalhador”, evidenciando o fortalecimento de uma cultura do trabalho na qual Estado e empresas investiam pesadamente (Lopes, 1988LOPES, José Sérgio Leite. (1988), A tecelagem das lutas de classes na cidade das chaminés. Brasília, Editora UnB; São Paulo, Editora Marco Zero., 1994LOPES, José Sérgio Leite. (1994), “A vitória do futebol que incorporou a pelada: a invenção do jornalismo esportivo e a entrada dos negros no futebol brasileiro”. Revista USP, 22:64-83. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i22p64-83.
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, 2010LOPES, José Sérgio Leite. (2010), “Da usina de açúcar ao topo do mundo do futebol nacional: trajetória de um jogador de origem operária”. Cadernos AEL,16, 28:17-35.; Keller, 2019KELLER, Paulo. (2019), Cultura do trabalho fabril. São Luís, EDUFMA.). Aliás, vale observar que o binômio das fábricas-vilas operárias marcou o processo de formação de uma cultura industrial e de assalariamento, ainda no século XIX, que permaneceu, até o início da década de 1960, não apenas nas fábricas, mas também nas fazendas, no que Lopes (1988)LOPES, José Sérgio Leite. (1988), A tecelagem das lutas de classes na cidade das chaminés. Brasília, Editora UnB; São Paulo, Editora Marco Zero. chamou de imobilização e reprodução da força de trabalho.

O Ministério da Educação e Saúde foi outro instrumento importante na difusão cultural do regime varguista, através da criação de uma cultura nacional popular, com a incorporação de intelectuais ao projeto Vargas e da padronização dos currículos escolares, eliminando expressões linguísticas e culturais de minorias étnicas, além da valorização das disciplinas do canto orfeônico e da educação física, dentre os valores do corporativismo varguista (Schwartzman et al., 1985SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria; COSTA, Vanda Maria. (1985), Tempos de Capanema. Rio de Janeiro, Paz e Terra; São Paulo, EDUSP.).

A criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), em 1942, coroa essa vinculação da educação com a proposta de industrialização, objetivando inicialmente treinar aprendizes e, posteriormente, com a entrada do Brasil na guerra, formar profissionais para trabalhar na indústria, além de promover a importação de técnicos estrangeiros, projeto este que não funcionou (Schwartzman et al., 1985SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria; COSTA, Vanda Maria. (1985), Tempos de Capanema. Rio de Janeiro, Paz e Terra; São Paulo, EDUSP.).

A promulgação da CLT, em 1943, veio coroar o processo de intermediação estatal das relações capital e trabalho na direção de uma sociedade salarial (Castel ([1995] 1998CASTEL, Robert. ([1995] 1998), As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, Vozes.), tal como se constituiu na Europa ocidental no período pós-Segunda Guerra Mundial, embora nunca tenha se efetivado plenamente. No Brasil, desde o período escravocrata, sempre foi forte a resistência empresarial aos direitos sociais, pois eram vistos como custos e inviabilizariam a atividade econômica (Viana, 1976VIANA, Luiz Werneck. (1976), Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra.).

A aceleração da modernização industrial, com a entrada de capital estrangeiro dentro das políticas de substituição das importações, na década de 1950, tornou o emprego industrial nas grandes fábricas desejado, pois pagavam melhores salários e ofereciam melhores condições de trabalho. É a partir desse momento, com a instalação das primeiras fábricas de automóveis em São Paulo e no ABC Paulista,3 3 Área formada pela sigla de três cidades industriais da Grande São Paulo: Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul. que temos a formação de uma moderna classe operária industrial a elas vinculada (Rodrigues, 1970RODRIGUES, Leôncio Martins. (1970), Industrialização e atitudes operárias. São Paulo, Brasiliense.).

Na organização dos trabalhadores, destacou-se o desenvolvimento de uma cultura classista, tendo o trabalho como fundamento, o que se aprofundou no período Vargas, com o reconhecimento dos trabalhadores como agentes políticos. A regulação das entidades sindicais e seu atrelamento ao Ministério do Trabalho, com o objetivo de controlar o movimento operário, tornando-o dependente do Estado e reprimindo atividades e organizações não “legalizadas”, não impediu o acirramento das lutas a partir dos anos 1950 e início dos anos 1960, com uma politização crescente e o alinhamento do movimento sindical às propostas de reformas de base do governo João Goulart (Viana, 1976VIANA, Luiz Werneck. (1976), Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra.).

Com o golpe militar de 1964, a ditadura implantada, a consequente repressão sistemática aos sindicalistas, a prisão, a caça aos comunistas, a tortura e o exílio de lideranças e militantes, entre outros oponentes ao regime, o movimento sindical se desorganizou. O forte arrocho salarial do período e a lei antigreve foram algumas das medidas tomadas então contra os trabalhadores. O fim da estabilidade no emprego e a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) em 1966, flexibilizou a CLT sem a retirada de outros direitos formais, embora, com os processos migratórios campo-cidade, aumentasse a população trabalhadora vivendo fora de qualquer proteção social, na informalidade. Vale destacar que a regulamentação do trabalho rural e a extensão dos direitos similares ao trabalhador urbano ocorreram apenas em 1974.

No final dos anos 1970, o movimento operário se rearticulou e se mobilizou de forma classista, tendo como epicentro a moderna indústria automobilística no ABC Paulista e o surgimento de um sindicalismo combativo (Rodrigues, 1970RODRIGUES, Leôncio Martins. (1970), Industrialização e atitudes operárias. São Paulo, Brasiliense.). A mobilização operário-sindical teve um papel fundamental na democratização do país e na reorganização dos movimentos sociais, em um período em que essa mobilização entrava em declínio nos países centrais, com a chamada crise do Fordismo (Harvey, 1994HARVEY, David. (1994), Condição pós-moderna. São Paulo, Loyola.) e o avanço do neoliberalismo (McIlroy, 1997McILROY, John. (1997), “O inverno do sindicalismo”, in R. Antunes. (org.), Neoliberalismo, trabalho e sindicatos: reestruturação produtiva na Inglaterra e no Brasil. São Paulo, Editorial Boitempo.).

Nesse momento de retomada dos movimentos sociais se destacou o papel da Igreja Católica e da teologia da libertação, com forte envolvimento de parte do clero com as populações excluídas, algo que vinha acontecendo desde os anos 1950 com as Ligas Camponesas em Pernambuco. A luta de classes entrava no debate teológico e se acirrou na ditadura, quando setores do clero sofreram forte repressão militar. Entretanto, com a mudança papal representada pela posse de João Paulo II em 1978, que permaneceu até sua morte em 2006, a Igreja teve uma reviravolta conservadora, com o combate à teologia da libertação e o incentivo ao catolicismo conservador carismático muito próximo das igrejas evangélicas.

A década de 1980 no Brasil manteve a cultura do trabalho assalariado dentro dos horizontes de possibilidades pela perspectiva de um trabalho formal, com certa segurança e acesso a direitos sociais. Uma segurança no mercado que possibilitava planejar o futuro (Sennett, 2006SENNETT, Richard. (2006), A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record.). Ao mesmo tempo, as transformações no capitalismo mundial fortaleciam tendências opostas à formalização e à segurança no emprego, enfim à cidadania regulada (Santos, 1979SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1979), Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Campus.), que, mesmo parcial, mantinha expectativas de como organizar a vida. As mudanças econômicas, políticas e culturais que se seguiram deram início à reconfiguração do que estamos chamando de cultura do trabalho.

3. Segundo movimento: desconstrução da cultura do assalariamento

Em um artigo publicado no início da década de 2000, Machado da Silva (2002)MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2002), “Da informalidade à empregabilidade: reorganizando a dominação no mundo do trabalho”. Caderno CRH, 15, 37:81-109. DOI:https://doi.org/10.9771/ccrh.v15i37.18603.
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destacava a importância de se refletir sobre a informalidade frente às transformações na regulação do trabalho em tempos de capitalismo flexível. A informalidade, vista em sua negatividade, assumia agora uma positividade do trabalho por conta própria, sem patrão, sem jornadas estritas, com menores custos e, potencialmente, com ganhos maiores. O lado B dessa história estava em que os supostos maiores ganhos implicavam a ausência de recolhimentos de taxas sociais, com os trabalhadores assumindo a responsabilidade por sua reprodução social. Empregabilidade e empreendedorismo apareciam como termos em destaque desses novos tempos, que colocavam em xeque uma cultura do trabalho na qual a liberdade do mercado de trabalho vinha acompanhada pelo trabalho protegido e esse aparente paradoxo organizava identidades e conflitos sociais (Machado da Silva, 2002MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2002), “Da informalidade à empregabilidade: reorganizando a dominação no mundo do trabalho”. Caderno CRH, 15, 37:81-109. DOI:https://doi.org/10.9771/ccrh.v15i37.18603.
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).

No Brasil, essa discussão remete à reestruturação produtiva dos anos 1990 com a adesão a um ideário neoliberal pelos governos Collor e FHC, os quais buscaram fazer reformas na legislação trabalhista a fim de “enxugar” custos para as empresas, em nome de um suposto obsoletismo da CLT. Esse período foi marcado pelo debate, na academia, sobre a crise da chamada sociedade salarial (empregos regulados com direitos sociais) ou do Estado de bem-estar social na Europa (Castel [1995] 1998CASTEL, Robert. ([1995] 1998), As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, Vozes.); Offe, 1982OFFE, Claus. (1982), “Trabalho como categoria sociológica fundamental?”, in C. Offe, (org.), Trabalho & Sociedade: problemas estruturais e perspectivas para o futuro da sociedade do trabalho. V. 1 – A crise. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.; (Beck [1986] 2010BECK, Ulrich. ([1986] 2010), Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo, Editora 34.); debate que teve aqui seus rebatimentos, embora o país nunca tenha se constituído enquanto tal. O trabalho protegido no Brasil, sujeito à regulação, raramente ultrapassou 50% da força de trabalho empregada, situação que se agudizou nessa década.

Outro debate do período a ser destacado foi o do modelo japonês (Coriat,1994CORIAT, Benjamin. (1994), Pensar pelo avesso: o modelo japonês de trabalho e organização. Rio de Janeiro, Revan/UFRJ.; Hirata, 1993HIRATA, Helena. (1993), Sobre o modelo japonês. São Paulo, EDUSP.) e, ainda, o das empresas redes, da terceirização (Castells, 1999CASTELLS, Manuel. (1999), A sociedade em rede - A era da informação: economia, sociedade e cultura - Volume 1. Tradução de Roneide Vencancio Majer com colaboração de Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo, Editora Paz e Terra.; Martins e Ramalho, 1994MARTINS, Heloisa; RAMALHO, José Ricardo. (1994), Terceirização: diversidade e negociação no mundo do trabalho. São Paulo, HUCITEC.) e dos clusters ou polos produtivos que tinham como referência a “terceira Itália”, seu modelo juntando inovação e empreendedorismo (Piore e Sabel, 1984PIORE, Michael; SABEL, Charles. (1984), The second industrial divide: possibilities for prosperity. Nova Iorque, Basic Book.). Este último deu origem aos Arranjos Produtivos Locais (APL) como política pública, a partir de 2004.

Os APLs tiveram início com o mapeamento de um conjunto de polos produtivos marcados pela especialização e informalidade, independente da dinâmica tecnológica como preconizava o modelo original dos clusters (Lastres e Cassiolato, 1998LASTRES, Helena Maria; CASSIOLATO, José Eduardo. (1998), Globalização e inovação localizada. Rio de Janeiro, UFRJ.; Lastres e Cassiolato, 2003LASTRES, Helena Maria; CASSIOLATO, José Eduardo. (2003), Glossário de arranjos e sistemas produtivos e inovativos locais. Rio de Janeiro, RedeSist, IE/UFRJ, Sebrae.). No caso brasileiro, eram pequenos negócios vistos com potencial de desenvolvimento local e cuja informalidade reduzia custos. No início, alguns desses polos tinham sido combatidos pela pirataria dos produtos e pela ilegalidade representada pela informalidade nas relações de trabalho. Mas, depois, seus méritos foram reconhecidos pela competitividade que mantinham frente às exportações, dado o trabalho não regulado, mais barato e pelo caráter empreendedor de seus trabalhadores por conta própria (Lima e Bezerra, 2002LIMA, Jacob Carlos; BEZERRA, Maria José. (2002), “Trabalho flexível e o novo informal”. Caderno CRH, 15, 37:163-180. DOI:https://doi.org/10.9771/ccrh.v15i37.18606.
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).

Com o fim do bloco socialista, o caminho único do neoliberalismo para o desenvolvimento econômico e social se tornou uma ideologia hegemônica. A América Latina rapidamente seguiu a fórmula da privatização, do enxugamento do aparelho estatal e da terceirização da produção, levando a crises continuadas, em que a quebra da economia argentina, no ano 2000, foi seu resultado mais espetacular. Isto provocou, na década seguinte, uma ascensão de governos populares, como Lula no Brasil, que buscou frear o caráter precarizante da flexibilização das relações de trabalho, mas sem grandes mudanças nos chamados “fundamentos da economia”: a valorização do salário mínimo foi acompanhada da focalização nas políticas compensatórias para populações mais pobres, como o Programa Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, auxílios para compra de bens de consumo etc. Essas políticas reduziram a pobreza e eliminaram a fome no país, mas sem mudanças estruturais; a desigualdade foi mantida, o que se evidenciou com a crise econômica a partir de 2013 e o golpe jurídico parlamentar de 2016, que resultou no aumento da pobreza e o retorno da fome.

O caráter coletivo das políticas compensatórias não foi trabalhado politicamente, fazendo com que a percepção popular dessas políticas fosse ambígua, incorporando as críticas dos setores conservadores a elas e individualizando seus resultados. Isso aparece na pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, em 2016 (Fundação Perseu Abramo, 2017FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. (2017), Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo. Disponível em https://www.fpabramo.org.br, consultado em 04/04/2017.
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), junto a moradores da periferia de São Paulo, onde predominava a valorização do esforço individual na superação das dificuldades, o consumo como percepção de mobilidade social e o mercado em detrimento do Estado, por sua vez, visto como corrupto e incompetente. Essa mesma periferia, beneficiada pelos programas sociais, incorporou a “cidadania pelo consumo”, buscando acessar a escola e o serviço de saúde privado e os ideais comunitários se restringindo à família, igreja e vizinhança.4 4 Esta questão tem sido fartamente discutida pela bibliografia acerca do primeiro e do segundo governo Lula: se teria sido uma “era do consumo” ou o consumo como forma de inclusão social. Para uma interpretação do consumo como uma forma de keynesianismo aplicada no período, veja-se Sicsu (2019).

3.1. Empreendedorismo e informalidade

O conceito de empreendedorismo pode ser buscado ainda no século XIX, na Sociologia, tendo Weber (2004)WEBER, Max. (2004), A ética protestante o espírito do capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras. como referência na discussão sobre o espírito do capitalismo, que vislumbrava uma predisposição individual na qual a ética do trabalho, moldada pela teologia protestante, explicaria o tipo ideal do empresário capitalista. Contudo, seria Schumpeter (1982)SCHUMPETER, Joseph Alois. (1982), Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. São Paulo, Abril Cultural., economista e sociólogo do círculo de Weber, que iria discutir o conceito de empreendedor como uma disposição subjetiva em agir e inovar, presente em algumas pessoas que as difeririam de outras: um tipo de personalidade que extrapola a conduta racional do homem econômico (Martinelli, 2009MARTINELLI, Alberto. (2009), “O contexto do empreendedorismo”, in A.C.B. Martes. (org.), Redes e sociologia econômica. São Carlos, EdUFSCar.).

Similar ao conceito de empresário de Weber (2000WEBER, Max. (2000), Economia e sociedade. Brasília, Editora UNB., 2004WEBER, Max. (2004), A ética protestante o espírito do capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras.), Schumpeter (1982)SCHUMPETER, Joseph Alois. (1982), Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. São Paulo, Abril Cultural. distingue o empresário capitalista do empreendedor, tendo este a predisposição e a liderança para inovar, o que não acontece necessariamente com o primeiro. Essa predisposição estaria presente entre os trabalhadores, diferenciando-os dos demais, exatamente pelo caráter de produzir inovações e liderança para implementá-las. Nesse sentido, Schumpeter discutia que o caráter empreendedor não se restringia ao capitalismo, podendo ser referência importante para o sucesso do socialismo que dependeria dessas lideranças para inovar e, por consequência, teria um papel fundamental no desenvolvimento econômico na nova sociedade.5 5 Uma discussão sobre o empreendedorismo no Brasil enquanto ideologia pode ser visto em Lima e Oliveira (2021).

A discussão de empreendedorismo até a década de 1970 esteve restrita ao debate econômico, mas ganhou impulso a partir das transformações tecnológicas e organizacionais que acompanham as mudanças políticas neoliberais. Empreendedor se tornou sinônimo de trabalhador flexível, inovador, responsável por sua empregabilidade, móvel, acompanhando a empresa aonde for necessário, abrindo sua própria empresa. A estabilidade se tornou sinônimo de acomodação.

Se o SENAI foi a instituição representativa do ideário industrialista, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), criado em 1980, marca o momento da desconstrução desse ideário e sua substituição pelo empreendedorismo individual mais adequado à nova fase do capitalismo, difundindo-o através de consultorias, palestras, cursos em escolas, órgãos governamentais, entidades da sociedade civil e empresas.

No Brasil dos anos 1990, a privatização de empresas públicas, a abertura de mercados e o enxugamento de pessoal decorrente da reestruturação produtiva criaram uma massa de desempregados que passou a ser responsabilizada, no discurso político e midiático, por seu desemprego, por terem se acomodado e não investido em qualificação, atualização, ou seja, em sua empregabilidade, termo muito em voga no período e destacado por Machado da Silva (2002)MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. (2002), “Da informalidade à empregabilidade: reorganizando a dominação no mundo do trabalho”. Caderno CRH, 15, 37:81-109. DOI:https://doi.org/10.9771/ccrh.v15i37.18603.
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.

Houve um aumento substancial da informalidade e uma explosão da abertura de pequenos e micro negócios por trabalhadores reestruturados ou oriundos de empresas privatizadas, sendo que poucos deles sobreviveram. Aumentou o desemprego e a terceirização se ampliou, afetando também quadros médios e executivos. Muitos empregados, por exemplo, foram demitidos para abrirem empresas que seriam contratadas pela empresa onde antes eram empregados. No sindicalismo, o período foi marcado por programas de requalificação profissional, vistos como saída para a perda das qualificações provocadas pelas mudanças tecnológicas e organizacionais. É desse período também o debate sobre as tecnologias informacionais e seu impacto no emprego, o que vai ter maior visibilidade nas décadas seguintes.

Outro elemento de destaque se encontra no debate da informalidade e sua positivação na América Latina, que teve no livro do economista peruano Hernando de Soto (1987)SOTO, Hernando de. (1987), Economia subterrânea: uma análise da realidade peruana. Rio de Janeiro, Globo. seu ponto de partida no final dos anos 1980: a informalidade como resultado não da ausência do Estado, mas do excesso de sua presença, que levaria ao constrangimento do impulso empreendedor presente no trabalhador latino-americano. É a “viração” ressignificada como empreendedorismo.

Cases de sucesso passaram a ser apresentados pela mídia como prova disso: baianas do Acarajé que enriqueceram, trabalhadores ambulantes inovadores em meio à pobreza (Santos, 2003SANTOS, Carla Liane Nascimento dos. (2003), Os vendedores ambulantes: uma autonomia perversa? Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Bahia, Salvador.; Barreto, 2005BARRETO, Theo da Rocha. (2005), Trabalhadores informais e desempregados: a precarização como homogeinização sui-generis na formação dos sem emprego. Um estudo sobre as trajetórias de trabalhadores informais e desempregados na Região Metropolitana de Salvador. Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia, Salvador.; Jesus, 2005JESUS, Luís Paulo de. (2005), A condição provisória-permanente dos trabalhadores informais: o caso dos trabalhadores de rua na cidade de Salvador. Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia, Salvador.). Novelas de televisão reforçavam essa visão de mobilidade social, mostrando como vendedores nas praias do Rio de Janeiro se tornavam empresários vendendo sanduíches ou alguma inovação a ser consumida debaixo do sol. Outro destaque se encontra no atualmente conhecido Polo Confeccionista de Pernambuco, formado pelos municípios de Santa Cruz do Capibaribe, Toritama e Caruaru, antes vistos como produtores de confecções baratas para as feiras da “sulanca” no interior nordestino, que se tornou referência de “arranjo produtivo” inovador na produção de jeans e confecções para todo o país e mesmo para exportação (Lima e Bezerra, 2002LIMA, Jacob Carlos; BEZERRA, Maria José. (2002), “Trabalho flexível e o novo informal”. Caderno CRH, 15, 37:163-180. DOI:https://doi.org/10.9771/ccrh.v15i37.18606.
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; Oliveira, 2013OLIVEIRA, Roberto Veras de. (2013), “O polo de confecções do agreste pernambucano: elementos para uma visão panorâmica”, in R.V. Oliveira; M.A. Santana. (org.), Trabalho em territórios produtivos reconfigurados no Brasil. João Pessoa, Editora Universitária UFPB.). No caso, o discurso da inovação se centrou no baixo custo da força de trabalho representado pela informalidade dominante, não mais que isto, com forte atuação do SEBRAE na região.

Também nesse período, a partir de 2002, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) passou a cunhar de “nova informalidade” o crescimento dos contingentes de trabalhadores vinculados a formas distintas de subempregos, resultantes dos processos de reestruturação produtiva e de uma migração crescente de trabalhadores do Sul Global para o Norte, em busca de sobrevivência. Essa nova informalidade, registrada desde o final dos anos 1980, chegou ao Norte Global, nas cidades norte-americanas e europeias formadas por contingentes de migrantes e desempregados tecnológicos (Bonaccih, 1990BONACCIH, Edna. (1990), Asian and latin immigrants in the Los Angeles garment industry: an exploration of the relationship between Capitalism and racial oppression. California Immigrants in World Perspective: The Conference Papers, ISSR Working Papers in the Social Sciences, Los Angeles, abril. Disponível em https://escholarship.org/uc/item/9rp5p8d3, consultado em 30/04/2024.
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; Portes et al., 1989PORTES, Alessandro; CASTELLS, Manuel; BENTON, Lauren. (1989), The informal economy. Studies in advanced and less developed countries. Baltimore, The Johns Hopkins University Press.). A informalidade deixou de ser uma questão de países subdesenvolvidos para se tornar uma questão global, seja conceituado como trabalho despadronizado (Carré et al., 2000CARRÉ, Françoise; FERBER, Marianne; GOLDEN, Lonnie; HERZENBERG, Stephen. (2000), Nonstandard work: the nature and challenges of changing employment arrangements. Champaing, Irra-University of Illinois. DOI: https://doi.org/10.5860/choice.38-5658.
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), seja como atípico (OIT, 2024OIT. Disponível em https://www.ilo.org/, consultado em 30/04/2024.
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).

O avanço das tecnologias digitais, a chamada economia compartilhada, por sua vez, evidenciou o caráter flexível presente nas novas tecnologias e a proposta neoliberal. A ideologia do Vale do Silício, de caráter pretensamente libertário em suas origens, em um primeiro momento difundiu a possibilidade de revolução no acesso e compartilhamento de produtos e serviços, o que resultou em interpretações otimistas acerca da possibilidade de a propriedade se tornar desnecessária e mesmo de uma crise do próprio capitalismo pelo custo zero de mercadorias e serviços (Rifkin, 2016RIFKIN, Jeremy. (2016), Sociedade com custo marginal zero. A internet das coisas, os bens comuns colaborativos e a eclipse do capitalismo. São Paulo, M. Books.).

Concretamente, observa-se sua conformação às propostas das redes empresariais de terceirização, voltadas ao rebaixamento de custos com a força de trabalho, processo agravado com as plataformas digitais e a extrema concentração da propriedade pelos grandes oligopólios globais representados pelas empresas de tecnologia. Sadin (2018)SADIN, Éric. (2018), La silicolonización del mundo: la irresistible expansión del liberalismo digital. Buenos Aires, Caja Negra. chamou esse processo de tecnoliberalismo, o que passou a ser conhecido a partir de 2009 também como gig economy. Essa gig economy, ou economia da “viração”, explicita as novas formas de utilização da força de trabalho por projetos, temporária, por tempo parcial ― desde a mais qualificada, com trabalhadores digitais ligados à produção de softwares, equipamentos e tecnologias afins, até a menos qualificada, trabalhando em serviços de plataformas totalmente sem vínculos, cuja única ligação com as empresas são dispositivos digitais que rodam apps de prestação de serviços, nos quais os entregadores e motoristas de plataformas de transporte são os mais visíveis. Isso sem contar os milhares de trabalhadores envolvidos nos micro trabalhos junto a plataformas globais e nacionais, cuja função é alimentar a Inteligência Artificial – IA (Braz, 2021BRAZ, Matheus Viana. (2021), “Heteromação e microtrabalho no Brasil”. Sociologias, 23, 57:134-172. DOI: https://doi.org/10.1590/15174522-111017.
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).

Desde a pandemia, entregadores e motoristas se tornaram personagens centrais nos debates sobre trabalho precário e regulação do trabalho, nem tanto pelo contingente de trabalhadores envolvidos (1.500.000, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – de 2023), mas por sua visibilidade e a propaganda empresarial acerca da liberdade de trabalhar quando bem entender e “sem patrão”.

Numerosas pesquisas têm sido realizadas sobre esses trabalhadores, majoritariamente entregadores de encomendas e transporte de passageiros, com uma economia cada vez mais plataformizada, com produção fragmentada e a organização de grandes estruturas empresariais de entrega. Em todas elas, a questão da regulação aparece como um problema, com grande parte dos trabalhadores recusando o que seriam os limites da CLT. Isto tem alimentado o debate de como estabelecer limites às jornadas de trabalho, direitos de descanso e outros, vinculados às relações de trabalho (Manzano e Krein, 2020MANZANO, Marcelo; KREIN, André. (2020), A pandemia e o trabalho de motoristas e de entregadores por aplicativos no Brasil. Disponível em https://www.eco.unicamp.br/remir/index.php/condicoes-de-trabalho/186-a-pandemia-e-o-trabalho-de-motoristas-e-de-entregadores-por-aplicativos-no-brasil, consultado em 22/03/2023.
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; Abílio, 2019ABÍLIO, Ludmila Costhek. (2019), “Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado”. Psicoperspetivas. Individuo y Sociedad, 18,3:1-11. DOI: http://dx.doi.org/10.5027/psicoperspectivas-vol18-issue3-fulltext-1674.
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; Abílio et al., 2020ABÍLIO, Ludmila Costhek; ALMEIDA, Paula Freitas de; AMORIM, Henrique; CARDOSO, Ana Claudia Moreira; FONSECA, Vanessa Patriota da; KALIL, Renan Bernardi; MACHADO, Sidnei. (2020), “Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19”. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, 3: 1-21. DOI:https://doi.org/10.33239/rjtdh.v.74.
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; Amorim et al., 2022AMORIM, Henrique; CARDOSO, Ana Claudia Moreira; BRIDI, Maria Aparecida. (2022), “Capitalismo industrial de plataforma: externalizações, sínteses e resistências”, Caderno CRH, 35, 1-15, e022021. DOI: https://doi.org/10.9771/ccrh.v35i0.49956.
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; Festi et al., 2023FESTI, Ricardo; GONTIJO, Laura; GONÇALVES, Nicolle; FRAGOSO, Letícia. (2023), “Que pensam os entregadores sobre a regulação laboral?” Outras palavras. Disponível em https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/o-que-pensam-os-entregadores-da-regulacao-laboral/, consultado em 12/08/2023.
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).

Embora não necessariamente se considerem empreendedores, o discurso dominante entre eles é o da “liberdade de trabalhar quando e como quiserem”, e não terem patrão. Sem considerar que as bikes, em sua maioria, são alugadas por grandes grupos empresariais, parte dos automóveis utilizados são de grandes locadoras, o que estabelece a priori distintas formas de subordinação. Além disso, toda uma economia de vendas e manutenção desses equipamentos é constituída informalmente nas periferias das grandes cidades, o que territorializa o trabalho (Fioravanti et al., 2024FIORAVANTI, Livia Maschio; MARTINS, Felipe Rangel; RIZEK, Cibele Saliba. (2024), “Plataformas digitais e fluxos urbanos: dispersão e controle do trabalho precário”. Cadernos Metrópole, 26, 59:69-96. DOI: https://doi.org/10.1590/2236-9996.2024-5904.
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).

3.2. Outros empreendedorismos

Outras formas de empreendedorismo foram criadas e/ou recuperadas e discutidas em um contexto no qual adquirem grande visibilidade os movimentos de deslocamento da força de trabalho através da migração em massa, principalmente dos países do Sul Global para os países de capitalismo avançado do Norte, e a desregulação das relações capital-trabalho em termos globais.

Uma delas explica, por um lado, o sucesso de comunidades étnicas imigrantes que, através de redes sociais, estruturaram economias especializadas em determinados ramos econômicos, atraindo seus conterrâneos no país de adoção. Um empreendedorismo por necessidade dado o caráter marginal desses empresários-trabalhadores, que em parte se tornaram empreendedores inicialmente de pequenos e médios negócios. Por outro lado, uma opção pelo autoemprego, dadas as dificuldades com a língua, situação historicamente recuperada a partir das ondas migratórias europeias para as Américas no final do século XIX e primeira metade do século XX, mas que diferem substancialmente das ondas migratórias posteriores, direcionadas à Europa, América do Norte e mesmo para a América Latina, de populações de origens asiáticas, africanas e latino-americanas.

O empreendedorismo étnico explicaria o sucesso de alguns indivíduos com a exploração dos seus conterrâneos ou de outros imigrantes majoritariamente indocumentados e, portanto, uma força de trabalho mais barata. Não é exatamente uma novidade, mas podemos nos referir, tendo o Brasil como referência, aos casos de sucesso geracional de imigrantes do início do século XX, de árabes, judeus, armênios, japoneses e, na década de 1970, coreanos, mas enquanto grupos relativamente minoritários (Truzzi, 2008TRUZZI, Oswaldo. (2008), Patrícios – Sírios e libaneses em São Paulo. São Paulo, Editora UNESP.; Grun, 1992GRUN, Roberto. (1992), Negócios & famílias: armênios em São Paulo. São Paulo, Sumaré/Fapesp.). Sem nos determos em suas especificidades, recentemente entre bolivianos e latino-americanos em São Paulo, temos uma rede de exploração do trabalho via sweatshops de confecções informais, algumas delas já capitaneadas pelos próprios nacionais. Ou a ampla informalidade dos haitianos e africanos que chegam por aqui e são encaminhados a empregos precários (mesmo que formais), como no caso dos frigoríficos, ou se mantêm como camelôs pelas ruas das grandes cidades.

Uma segunda forma é o empreendedorismo na indústria criativa – setor que abrange artistas, artesãos e profissionais liberais tradicionalmente não assalariados ou parcialmente assalariados e que tendem a deixar de sê-lo, não por opção, mas dadas as características das atividades. São trabalhadores com maior escolarização e qualificação, mas terceirizados através de mecanismos como o Pessoa Jurídica (PJ) ou o Microempreendedor (ME). É o caso de médicos, advogados, consultores e assessores em geral, de formação variada; assim como trabalhadores digitais que passam a trabalhar e ganhar por projetos (Lima e Oliveira, 2021LIMA, Jacob Carlos; OLIVEIRA, Roberto Veras. (2021), “O empreendedorismo como discurso justificador do trabalho informal e precário”. Contemporânea, Revista de Sociologia da UFSCar, 11, 3: 905-932. DOI: https://doi.org/10.4322/2316-1329.2021028.
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).

Não é por acaso que o termo economia criativa surge na década de 1990, na Austrália e Inglaterra, agrupando trabalhadores fora das relações salariais, mas distinguindo-os da massa de desqualificados que passam a ser ocupados em tarefas simples, desagradáveis e mal remuneradas. No Brasil, além dos casos referidos, temos as festas locais como carnaval, micaretas ou caravanas de artistas, que reúnem milhares de trabalhadores vinculados a esses eventos, cada vez mais organizados empresarialmente, e para os quais são contratados sem nenhum vínculo e com temporalidade determinada. Eles acabam por incorporar o adjetivo “criativo” e passam a se definir enquanto tal. Acabou o projeto, o trabalhador tem que se virar em busca de outros (Bendassolli et al., 2009BENDASSOLLI, Pedro; WOOD Jr., Thomaz; KIRSCHBAUM, Charles; CUNHA, Miguel Pina e. (2009), “Indústrias criativas: definição, limites e possibilidades”, ERA, 49, 1:010-018.).

Na atualidade, diversos cursos superiores de empreendedorismo funcionam no país como uma variante dos cursos de administração, todos com a exigência de pessoas inovativas com espírito empreendedor. Alguns cursos de Medicina, por exemplo, possuem em sua grade curricular a disciplina empreendedorismo como eletiva, e uma das primeiras atividades dos recém-formados é a de abrirem uma empresa como PJ, como forma de serem contratados para os plantões comuns à área, por empresas terceirizadas que gerenciam postos de saúde públicos, hospitais privados ou empresas de planos de saúde. Isso na contramão da tendência à proletarização desses profissionais como indicado em pesquisas nos anos 1970 (Donnangelo, 1975DONNANGELO, Maria Cecília Ferro. (1975), Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo, Pioneira.).

Com a reforma do ensino médio de 2016, o empreendedorismo passou a integrar os chamados itinerários formativos através da Portaria nº 1.432, de 28 de dezembro (Brasil, 2018BRASIL. (2018), Diário Oficial da União. Portaria nº 1.432, de 28 de dezembro, publicado em 05/04/2019, Edição: 66, Seção: 1, |página: 94. Disponível em https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/70268199, consultado em 30/04/2024.
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). Mesmo com sua suspensão temporária pelo novo governo que assumiu em 2023, não fica claro se estes itinerários serão ou não mantidos. Os exemplos são inúmeros e apenas ilustram o processo de construção de uma cultura empreendedora do trabalho.

3.2.1. Empreendedorismo social, empreendedorismo favelado e empreendedorismo periférico

Além da forma mais geral, na qual o discurso do empreendedorismo se estabelece como a saída possível ao “fim” do assalariamento, o conceito é utilizado instrumentalmente pela mídia, por Organizações Não Governamentais (ONGs), organizações privadas e políticas públicas. Enquanto “empreendedorismo social”, destacam-se: o “empreendedorismo feminino, o empreendedorismo feminino negro, o empreendedorismo negro, o empreendedorismo periférico e outros que buscam realçar o mérito de minorias sociológicas na perspectiva de sua inclusão e empoderamento, mesmo reconhecendo um elemento central, a necessidade. Prêmios, concursos e outras atividades midiáticas, tendo o SEBRAE como polo aglutinador, integram suas políticas de difusão.

A utilização do conceito de empreendedorismo social foi discutida no Brasil e na América Latina, desde a década de 1990, seja como economia popular, ou dos setores populares, seja na economia solidária e/ou economia popular solidária. Foi uma forma de recuperar a pequena produção familiar, com a utilização da força de trabalho e recursos próprios ao grupo, além de evidenciar seu caráter emancipador em uma perspectiva distinta da que foi discutida por Soto (1987)SOTO, Hernando de. (1987), Economia subterrânea: uma análise da realidade peruana. Rio de Janeiro, Globo.. Essa economia popular foi discutida no Brasil com as propostas associacionistas e cooperativistas, que, a partir dos governos populares, se tornaram política pública com a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária em 2003. No debate sobre economia solidária, entravam as experiências de fábricas recuperadas, do Movimento dos Catadores de Materiais Recicláveis, além de instituições como a Cáritas da Igreja Católica que, desde os anos 1970, vinha participando de experiências associativas junto a movimentos populares. A Secretaria buscava combater, igualmente, as coopergatos, ou cooperativas que foram abertas em todo o país para a terceirização industrial, contando para isso com o Ministério Público do Trabalho.

Os “empreendimentos de economia solidária” contariam com trabalhadores associados em cooperativas e em formas similares de associação, valendo-se da ajuda de órgãos de apoio e fomento, assim como de políticas públicas para viabilizá-los. Para Gaiger (2008), aGAIGER, Luiz Inácio. (2008), “A dimensão empreendedora da economia solidária: Notas para um debate necessário”. Otra Economía, 2, 3:58-72. Disponível em https://revistas.unisinos.br/index.php/otraeconomia/article/view/1145/310, consultado em 30/04/2024. dimensão empreendedora da economia solidária deve ser ressaltada, justificando que o conceito não se restringe ao capitalismo, dado o seu caráter disposicional, e para tanto deve ser considerado seja em sua reprodução, seja em sua superação, recuperando, de certa forma, o Schumpeter original.

Detendo-se na questão das cooperativas como alternativa, como uma outra economia possível dentro do capitalismo, Gaiger (2008)GAIGER, Luiz Inácio. (2008), “A dimensão empreendedora da economia solidária: Notas para um debate necessário”. Otra Economía, 2, 3:58-72. Disponível em https://revistas.unisinos.br/index.php/otraeconomia/article/view/1145/310, consultado em 30/04/2024. afirma, utilizando Razetto, que o cooperativismo é uma realidade subordinada sem dúvida, mas contraditória, com possibilidades emancipatórias do trabalho sobre o capital. Com isso, o empreendedorismo não seria apenas uma relação dos indivíduos com o mercado, mas teria também um valor social, por se propor a incluir, nesse mercado, aqueles que estão fora, na periferia do sistema (Ferraz, 2022FERRAZ, Jannayna de Moura. (2022), “Armadilha da identidade e crítica ao empreendedorismo social: a exploração da opressão”. Rev. Katályses, 25, 2: 252-261. DOI: https://doi.org/10.1590/1982-0259.2022.e84255.
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), por questões econômicas, de gênero, raça e orientação sexual.

Nesta mesma direção se encontra o “empreendedorismo popular”, sinônimo de ser autônomo, de ser seu próprio patrão, vinculado a trabalhadores informais que foram, em parte, formalizados a partir da criação do programa do Microempreendedor individual (MEI) pelos governos petistas, como forma de estender a proteção social e, ao mesmo tempo, formalizar suas atividades.

Em linhas gerais, esses “empreendedorismos” surgem por necessidade. Mais do que uma predisposição à inovação, está a necessidade de sobrevivência, o que leva esses trabalhadores/as, na ausência do acesso a empregos, à viração, representada por um conjunto de atividades com esse objetivo ― de camelôs, pequenos produtores urbanos, prestadores de serviços diversos entre os quais se inclui igualmente o trabalho doméstico, fortemente informalizado. Em comum, a ausência de qualquer direito social, limites a jornada, descansos etc. O MEI teve como objetivo uma formalização, mas dados da Receita Federal de agosto de 2023 apontam que 41,4% dos microempreendedores individuais estão inadimplentes, o que reflete a precariedade dos ganhos e do trabalho desses MEIs (Queiroz, 2023QUEIROZ, Vitória. (2023), “41,4% dos MEIs estão inadimplentes, diz Receita Federal”. Poder 360, 31 de out. Disponível em https://www.poder360.com.br/poder-empreendedor/414-dos-meis-estao-inadimplentes-diz-receita-federal/, consultado em 30/04/2024.
https://www.poder360.com.br/poder-empree...
).

Com forte apoio empresarial, um conjunto de Organizações Não Governamentais (ONGs), Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OCIPS), Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e Fundações atuam diretamente na educação pública ou a complementam, como é o caso da Fundação Bradesco, com 40 escolas próprias gratuitas voltadas à população de baixa renda (Fundação Bradesco, 2024FUNDAÇÃO BRADESCO. Disponível em https://fundacao.bradesco/pt-BR, consultado em 30/04/2024.
https://fundacao.bradesco/pt-BR...
); e, ainda, a) a Fundação Itaú Social (Fundação Itaú Social, 2024FUNDAÇÂO ITAÚ SOCIAL. Disponível em https://www.itausocial.org.br/ , consultado em 30/04/2024.
https://www.itausocial.org.br/...
); b) a BrazilFoundation, c) a Fundação Educar (Fundação Educar, 2024FUNDAÇÂO EDUCAR. Disponível em https://fundacaoeducar.org.br/, consultado em 30/04/2024.
https://fundacaoeducar.org.br/...
), d) Gerando Falcões (Gerando Falcões, 2024GERANDO FALCÕES. Disponível em https://gerandofalcoes.com/, consultado em 30/04/2024.
https://gerandofalcoes.com/...
) e a e) Central Única das Favelas ‒ CUFA, voltadas à população moradora em favelas, com atividades econômicas, culturais e de assistência, destacando-se as atividades empreendedoras. No programa de empreendedorismo da CUFA consta que “o favelado é um empreendedor nato. Por conta dessa premissa, a CUFA sempre fomentou e estimulou o empreendedorismo nas favelas de todo o Brasil, através de projetos e parcerias, com os mais diversos setores da sociedade” (CUFA, 2024CUFA, Central Única das Favelas. Disponível em https://cufa.org.br, consultado em 30/04/2024.
https://cufa.org.br...
); além do prêmio “Pretos Empreendedores”(BrazilFundation, 2024)..6 6 Disponível em https://cufa.org.br/pretos-empreendedores-lancamento/, consultado em 18/12/2023.

Além dos mencionados acima, temos também f) a Fa. vela, que, segundo João Souza, cofundador e diretor de novos negócios e parcerias do FA.VELA, a plataforma de inovação desenvolvida é “um negócio de impacto social liderado por empreendedores negras/os, LGBTQIA+ e periféricas/os. [...] Um hub de educação e aprendizagem empreendedora, inovadora e digital”,7 7 Trecho disponível em https://anprotec.org.br/conferencia2023/empreendedorismo-inovador-inclusivo-diverso-e-de-periferia-e-tema-de-trilha-4-da-33a-conferencia-anprotec/, consultado em 18/12/2023. tendo, entre outros, um Programa de recuperação econômica de pequenos negócios de empreendedores(as) negros(as) que integra a Fundação Lemann que, junto com o Instituto Natura através da Associação Bem Comum, a Parceria pela Alfabetização em Regime de Colaboração (PARC), promove ações, em conjunto com agentes públicos, voltadas à alfabetização infantil, desenvolvimento de material didático e formação da professores. O apoio da Fundação Lemann (e do Instituto Ayrton Senna) também está presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que fundamenta o novo ensino médio através de guia de implementação e materiais de apoio na estruturação curricular, com suas implicações na formação (Instituto Ayrton Senna, 2024INSTITUTO AYRTON SENNA. Disponível em https://institutoayrtonsenna.org.br/?gad_source=1&gclid=CjwKCAiAx_GqBhBQEiwAlDNAZnBl-vfDg6ZbHRN3ey9c2SFEnJwXE1FDBlxQweppiCCvWndVz7rI_hoCaMcQAvD_BwE, consultado em 30/04/2024.
https://institutoayrtonsenna.org.br/?gad...
).

Tal como o processo de construção de uma cultura do trabalho assalariado, notam-se diversos atores e instituições mobilizados na formação de uma cultura empreendedora, vista como a possiblidade de inclusão social. Inclusão esta buscada pelo viés do mercado. A favela, sob essa ótica, transforma-se de sinônimo de precariedade e exclusão, de problema social, a solução de oportunidade. E cabe ao capital educar seus moradores para a cultura do capitalismo.

Carvalho (2020)CARVALHO, Ana Beraldo. (2020), Negociando a vida e a morte: Estado, igreja e crime em uma favela de Belo Horizonte. Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. Disponível em https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/12933, consultado em 30/04/2024., ao pesquisar uma favela em Belo Horizonte, define essa nova cultura empreendedora favelada, que se manifesta na mobilização de símbolos positivos do “corre” e que caracteriza a vida nesses espaços segregados. Para ela, existe uma perspectiva de transformação de uma identidade marginalizada, representada pela negritude e pela pobreza urbana, pela mercantilização dessa própria identidade. E demonstra alguma de suas manifestações, como a venda de “camisetas, bolsas e bonés com cenários de favela, ilustrações de barracões, fotografias de sujeitos negros, em que a negritude é ela mesma o cerne das imagens, “o cabelo ‘black’, o símbolo do punho levantado em alusão aos ‘black panthers’ estadunidenses” etc.” (Carvalho, 2020, pCARVALHO, Ana Beraldo. (2020), Negociando a vida e a morte: Estado, igreja e crime em uma favela de Belo Horizonte. Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. Disponível em https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/12933, consultado em 30/04/2024.. 303-304). Além da mobilização do debate sobre a vida nas margens, a recuperação de experiências subjetivas do cotidiano, manifestações da cultura periférica como o funk, o rap e o hip hop, que passam a ser mercantilizadas e embaladas para consumo de massa, representando o empreendedorismo favelado, embora com um retorno financeiro ainda precário, afiguram-se como legitimação e visibilização dessa população (Carvalho, 2020CARVALHO, Ana Beraldo. (2020), Negociando a vida e a morte: Estado, igreja e crime em uma favela de Belo Horizonte. Tese de doutorado, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. Disponível em https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/12933, consultado em 30/04/2024.).

Temos assim, uma busca da construção da cidadania pela lógica neoliberal, configurada pelo mercado. Nessa construção, a cultura se transforma em mercadoria para o empreendedor de si mesmo na periferia, uma possível saída a uma situação estrutural excludente. Os espaços físicos, anteriormente ocupados pelos movimentos sociais, dão lugar agora a ONGs, igrejas pentecostais e programas de valorização do empreendedorismo cultural.

Cortês (2021)CORTÊS, Mariana. (2021), “A revolta dos bastardos: do pentecostalismo ao bolsonarismo. Caderno CRH, 34, 1-24, e021025. DOI: https://doi.org/10.9771/ccrh.v34i0.46419.
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analisa a relação do neopentecostalismo e a formação de um empreendedorismo periférico, destacando que os dispositivos de sofrimento e humilhação presentes na teologia da prosperidade da Igreja Universal moldam condutas e subjetividades. Nesta Igreja, o empreendedorismo passa a significar uma recusa à submissão representada pelo assalariamento, pela ousadia do risco de empreender e ser patrão de si mesmo, atingindo majoritariamente as populações pobres atraídas pelo discurso religioso. Seria uma fé racional e inteligente que permitiria aos pobres, humilhados e batalhadores, se constituírem como capital humano, investindo em si mesmos. Processo esse que, além de moldar formas de condutas econômicas, financeiras e de trabalho, reconfigura a disciplina do trabalho dentro da nova lógica do capitalismo flexível, transformando a “viração” em empreendedorismo e moldando politicamente preferências.

A questão empreendedora, pós anos 1990, assume uma diversidade de formas e hibridações que envolvem atores variados, tendo o mercado como horizonte, mas também junções marcadas por inclusões que ficaram sem opções com o enfraquecimento de movimentos de caráter coletivo. Mesmos os novos, chamados “coletivos”, incorporam o discurso empreendedor como caminho de mobilidade social numa sociedade na qual essa mobilidade é restrita e a informalidade sempre foi a norma. A favela se torna um espaço a ser mercantilizado e seus moradores se tornam potenciais consumidores de bens materiais e simbólicos. As possibilidades de emancipação se circunscrevem no espaço individual.

4. Conclusão

Utilizamos, neste artigo, o conceito de cultura do trabalho como forma de caracterizar as mudanças no trabalho e na interiorização de valores e normas que marcam as condutas e que poderiam ser chamadas também de processos de subjetivação (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel (2008), Nascimento da biopolítica. São Paulo, Martins Fontes.; Dardot e Laval, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. (2016), A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo.), o que pressupõe descentramentos identitários, que, para Sennett (2006)SENNETT, Richard. (2006), A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record., caracterizariam uma nova cultura do capitalismo marcada pela fragmentação, instabilidade e mobilidades permanentes.

Ao demarcar a cultura do trabalho, buscamos focar em como as relações do trabalho determinam escolhas, constroem valores e dão sentido à vida. Ao nos determos na construção dessa cultura como processo, buscamos evidenciar seu caráter híbrido no qual processos distintos se interseccionam reconfigurando e ressignificando o existente. O binômio trabalho e classe social, que marcou as lutas sociais do século XX e proveu uma perspectiva evolutiva do desenvolvimento social e humano, deu lugar ao que seria o fim do social, um “salve-se quem puder” determinado pelo mercado. Processo no qual se juntam transformações econômicas, culturais, políticas e tecnológicas.

No entanto, este processo está longe de terminar. Se de 1930 a 1980 tivemos a estruturação de uma sociedade salarial, mesmo que parcial, no período posterior tivemos e temos sua desconstrução. Voltando a Elias (2006)ELIAS, Norbert. (2006), Escritos e ensaios: 1. Estado, processo e opinião pública. Rio de Janeiro, Zahar Editores., os processos sociais remetem a configurações que não se excluem, caminham juntas, mas tendem sempre a polos opostos. Assim, temos ainda a valoração do trabalho regular com direitos, a valorização do trabalhador enquanto tal, mas agora se espera que ele vá atrás de sua empregabilidade, ou melhor, que se vire com os recursos que dispõe para melhorar sua renda e suas condições de vida e trabalho. Não espere políticas sociais ou uma perspectiva de um trabalho formal no futuro, o que exigiria mudanças substanciais em termos econômicos, políticos e culturais.

Assim como a cultura do trabalho regulado foi sendo interiorizada pela população brasileira, mesmo por aqueles que nunca tiveram acesso à carteira assinada, a cultura do trabalho desregulado há 40 anos vem sendo difundida pelo Estado, independente dos governos, por empresas, mídias, igrejas e outros órgãos da sociedade civil, como um caminho sem volta. As opções e alternativas que surgem não pressupõem o retorno a uma situação anterior e a nova ainda é desconhecida em suas consequências a longo prazo.

Cada vez mais o capital se apodera do discurso periférico, identitário e inclusivo, o reconfigurando por meio de soluções dadas pelo mercado e o sobrepondo aos movimentos sociais reivindicativos. Agora mobiliza-se o discurso da exclusão como mercadoria a ser colocada e disputada no mercado. Assim como a fé, cada vez mais mercantilizada, a criatividade se torna um ativo econômico. Inclusão e diferença é o discurso da vez, sem que se toque na desigualdade estrutural da sociedade.

Estamos há algumas décadas em um processo de desconstrução da cultura do trabalho assalariado, como uma possibilidade de acesso a direitos sociais. Novos discursos se impõem ideologicamente naturalizados. O espírito empreendedor, individual, substituto dos movimentos sociais, se torna a nova plausibilidade de mobilidade social em um contexto de opções restritas. Mas, como todo processo social é dinâmico, nada é definitivo ou que não possa ser revertido. Dentro da lógica do consentimento e do conflito, os trabalhadores continuam resistindo de forma mais ou menos organizada à contínua exploração e precarização da vida, e essa luta não é individual.

  • 1
    O conceito de cultura do trabalho permite uma maior precisão da discussão sobre modos de vida e construção de subjetividades, entretanto é importante salientar sua proximidade e a imbricação dos conceitos de cultura de classe (Cuche, 2002CUCHE, Denys. (2002), A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru, EDUSC.; Savage, 2004SAVAGE, Mike. (2004), “Classe e história do trabalho”, in C.H.M. Batalha; F.T. Silva; A. Fortes. (org.), Culturas de Classe. Campinas, Editora da Unicamp.; Bourdieu, 2007BOURDIEU, Pierre (2007), A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Edusp; Porto Alegre, Zouk.; Gramsci, 1999GRAMSCI, Antonio. (1999), Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.; Lima e Leite, 2020LIMA, Jacob Carlos; LEITE, Marcia de Paula. (2020), “Trabalho, classe e cultura no Brasil: uma revisão temática”, in R. de C. Fazzi; J.A. Lima. (org.), Campos das Ciências Sociais; figuras dos mosaicos de pesquisa no Brasil e em Portugal. Petrópolis, Vozes.) e cultura do capitalismo (Sennett, 2006SENNETT, Richard. (2006), A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record.). Por uma questão de escopo deste artigo, não iremos discutir estes conceitos.
  • 2
    A bibliografia acerca da utilização do samba pela ditadura varguista e a relativa subordinação dos compositores às imposições governamentais de glorificação do trabalho têm sido interpretadas como predominante, embora não de forma absoluta. Sobre isso ver Paranhos (2015)PARANHOS, Adalberto. (2015), Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. São Paulo, Intermeios/CNPq/FAPEMIG. e Gomes (1994)GOMES, Angela Maria de Castro. (1994), A invenção do trabalhismo. 2ª edição, Rio de Janeiro, Relume-Dumará..
  • 3
    Área formada pela sigla de três cidades industriais da Grande São Paulo: Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul.
  • 4
    Esta questão tem sido fartamente discutida pela bibliografia acerca do primeiro e do segundo governo Lula: se teria sido uma “era do consumo” ou o consumo como forma de inclusão social. Para uma interpretação do consumo como uma forma de keynesianismo aplicada no período, veja-se Sicsu (2019)SICSU, João. (2019), “Governos Lula: a era do consumo?” Revista de Economia Política, 39, 1:128-151. DOI: https://doi.org/10.1590/0101-35172019-2870.
    https://doi.org/10.1590/0101-35172019-28...
    .
  • 5
    Uma discussão sobre o empreendedorismo no Brasil enquanto ideologia pode ser visto em Lima e Oliveira (2021)LIMA, Jacob Carlos; OLIVEIRA, Roberto Veras. (2021), “O empreendedorismo como discurso justificador do trabalho informal e precário”. Contemporânea, Revista de Sociologia da UFSCar, 11, 3: 905-932. DOI: https://doi.org/10.4322/2316-1329.2021028.
    https://doi.org/10.4322/2316-1329.202102...
    .
  • 6
    Disponível em https://cufa.org.br/pretos-empreendedores-lancamento/, consultado em 18/12/2023.
  • 7

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2023
  • Aceito
    14 Abr 2024
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