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Policiamento Ostensivo e a Abordagem Policial: as representações sociais de oficiais da Brigada Militar sobre a construção do suspeito racializado

Ostensive Policing and the Police Approach: the social representations of Military Police officers on the construction of the racialized suspect

Resumo

Este artigo trata da abordagem policial, analisando a construção do “suspeito nato” a partir do marcador social raça. Seu objetivo é identificar como os policiais percebem e justificam a seletividade policial baseada em atributos raciais que constroem a figura do suspeito. Para isso, foi feita uma revisão bibliográfica e foram realizadas entrevistas com 12 oficiais da Brigada Militar do RS, buscando identificar as representações sociais acerca do policiamento e do próprio fazer-policial, e como percebem a influência do marcador social raça. Cruzando dados coletados nas entrevistas com aqueles sobre a abordagem policial e a questão racial no estado, é possível afirmar que a abordagem policial é atravessada por processos de racialização que carregam consigo a construção social do “suspeito nato”, isto é, demonstram a existência de mecanismos de racialização dos suspeitos.

Palavras-chave:
Policiamento ostensivo; abordagem policial; racialização; representação social; suspeição

Abstract

This article addresses police approach, analyzing the construction of the “natural suspect” based on the social marker of race. Its objective is to identify how police officers perceive and justify police selectivity based on racial attributes that construct the figure of the suspect. For this purpose, a literature review was conducted, and interviews were carried out with 12 officers from the Military Brigade of Rio Grande do Sul (RS), aiming to identify the social representations about policing and the police work itself, and how they perceive the influence of the social marker of race. By crossing the data collected in the interviews with those on police approach and the racial issue in the state, it is possible to affirm that the police approach is permeated by racialization processes that carry with them the social construction of the “natural suspect,” that is, they demonstrate the existence of mechanisms of racialization of suspects.

Keywords:
Ostensive policing; police approach; racialization; social representation; suspicion

Introdução

Os estudos sobre policiamento, abordagem policial e marcadores sociais no Brasil têm demonstrado que o marcador social raça é o mais importante, do ponto de vista da seletividade policial e das desigualdades de tratamento, desde a definição de quem será abordado até as opções sobre o uso da força policial em cada caso.

Extensa bibliografia no campo da sociologia da violência e das polícias busca analisar atuações dessas instituições estatais e seus cruzamentos com diferentes marcadores sociais e com a legitimidade das instituições de justiça e segurança (Lima; Bueno, 2015LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira. A gestão da vida e da segurança pública no Brasil. Soc. estado ,Brasília, v. 30, n. 1, p. 123-144, abr. 2015.; Muniz, 1999MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. Cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Ciência Política, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, IUPERJ, Rio de Janeiro, 1999.; Muniz; Paes-Machado, 2010; Muniz; Silva, 2010). Marcadas por uma tradição de uso abusivo da força e militarização do exercício das funções policiais, as dinâmicas institucionais da polícia militar no Brasil, e o foco no policiamento ostensivo, orientam o combate ao crime, legitimando e incrementando o uso excessivo da força por parte desses agentes como forma de responder ao fenômeno da criminalidade (Azevedo e Nascimento, 2016AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; NASCIMENTO, Andrea Ana do. Desafios da reforma das polícias no Brasil: Permanência autoritária e perspectivas de mudança. Civitas, Porto Alegre, v. 16, n. 4, p. 653-674, 2016.).

Em sociedades racializadas3 3 Sobre o conceito de sociedades racializadas, vide Schlittler, Silvestre e Sinhoretto, 2014, p. 54. como a brasileira, a agenda de pesquisa sobre os processos de criminalização desigual a partir do marcador raça já está consolidada nos estudos da área da Sociologia da Violência, seja identificando o peso desse marcar no sistema de justiça como um todo, seja na identificação dos processos de racialização na atuação das polícias civis e militares (Adorno, 1995ADORNO, Sérgio. Discriminação Racial e Justiça Criminal em São Paulo. Novos estudos CEBRAP. São Paulo: Novembro, n. 43, 1995.; Chalhoub, 2011CHALHOUB , Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Cia de Bolso, 2011.; Sinhoretto et al., 2013SINHORETTO, Jacqueline et al. A filtragem racial na seleção policial de suspeitos: segurança pública e relações raciais. Relatório final de pesquisa. Ministério da Justiça- SENASP/UFSCar, 2013.; Sinhoretto; Schlittler, 2014SCHLITTLER, Maria Carolina; SILVESTRE, Giane; SINHORETTO, Jacqueline. A produção da desigualdade racial na Segurança Pública de São Paulo. In: Anais da 29ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, 2014, disponível em http://www.29rba.abant.org.br/resources/anais/1/1402023218_ARQUIVO_Paper_ABA2014_Schlittler_Silvestre_Sinhoretto.pdf, acesso em 10.07.2022
http://www.29rba.abant.org.br/resources/...
).

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em que pese a ocorrência de uma redução de 4,9% dos números de letalidade policial em 2021 em comparação ao ano anterior (foram 6.145 mortos em intervenções policiais), o perfil das vítimas de intervenções policiais no país não tem demonstrado mudanças significativas: 84,1% das vítimas são negras (Bueno; Pacheco; Nascimento; Marques, 2022BUENO, Samira; PACHECO, Dennis; NASCIMENTO, Talita; MARQUES, David. Letalidade Policial cai, mas mortalidade de negros se acentua em 2021. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/05-anuario-2022-letalidade-policial-cai-mas-mortalidade-de-negros-se-acentua-em-2021.pdf. Acesso em: 04 abr. 2024.
https://forumseguranca.org.br/wp-content...
).

A partir desses apontamentos iniciais, buscamos desvendar de que forma o marcador social raça está presente no momento da abordagem policial e na construção da figura do suspeito, com base nas representações sociais expressas nos discursos de oficiais da Brigada Militar.

O caminho metodológico para análise e exploração do campo parte de uma revisão bibliográfica sobre policiamento, violência policial e relações raciais no Brasil, buscando confrontar as diferentes construções teórico-conceituais com o campo empírico. Em seguida, são analisadas entrevistas semi-estruturadas realizadas com oficiais da Brigada Militar (RS).

Partimos da hipótese de que a existência de representações sociais que moldam os atores sociais e são moldadas por eles desempenham papel de comando no policiamento ostensivo.

1. Policiamento e abordagem policial: aproximações com a questão racial no Brasil

Tratar de raças e racismos no Brasil é, em grande medida, tratar da estruturação das diversas instituições nacionais e das próprias relações sociais. Racialização, nesse contexto, é reconhecido como um fenômeno chave, para que se possa explicar como, socialmente, são construídas as hierarquias e as desigualdades entre os sujeitos.

Em relação à questão racial e sua própria formação como um marcador social, o debate e sua importância na análise sociológica se aproximam da discussão sobre a formação da sociedade brasileira, um país marcado pela sua história escravocrata. A gênese colonial do país e sua construção enquanto um país econômica e culturalmente ancorado na escravidão se desenrola em diferentes estudos histórico-sociais. Análises das influências coloniais, dos jogos de poder que criavam embates entre os agentes históricos, apresentam-se como pistas para um exame mais minucioso sobre a formação do racismo, tanto no imaginário como nas características institucionais do país.

A Escola Positivista chega ao Brasil em finais do século XIX, buscando legitimar, através do pensamento cientificista, uma nova maneira de abordar o problema do crime e do criminoso (Garofalo, 1983GAROFALO, R. Criminologia: estudo sobre o delito e a repressão penal. Tradução por Júlio Matos. São Paulo: Teixeira & Irmãos Editores, 1983.; Lombroso, 2013LOMBROSO, Cesare. O Homem Delinquente. 2ª reimpressão. São Paulo: Cone Editora, 2013.; Motta, 1925MOTTA, Candido. Classificação dos criminosos. Introdução ao estudo do direito penal. São Paulo: J. Rossetti, 1925.). O discurso científico da criminologia positivista busca, então, em grande medida, dar conta da condição do negro na sociedade brasileira e de uma nova formação social nacional pós-escravocrata, buscando, nos aparatos criminalizantes, uma nova forma de poder e dominação, subjugando setores da sociedade com base em critérios deterministas raciais (Alvarez, 2002ALVAREZ, Marcos César. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais. Dados, Rio de Janeiro, v. 45, n. 4, 2002.).

Desse modo, para além do apontamento da literatura para a existência de uma difusão do racismo dentro e a partir das Polícias Militares, é importante ressaltar outros fatores que deram base para essa dinâmica nas esferas institucional e social, como a incorporação das teorias raciais e eugenistas na literatura, a partir do século XIX, e a existência, a partir da proclamação da República, da intenção e do anseio pela higienização da população brasileira e da limpeza dos centros urbanos do país (Chalhoub, 1996CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Cia das Letras, 1996.).

O que se revela nas dinâmicas de formação das polícias militares no Brasil, bem como dos próprios agentes policiais, são valores e crenças que, influenciados pelo pensamento da Escola Positivista de Criminologia, são difundidos e legitimados nas relações polícia-comunidade. O marcador social raça acaba por se entrelaçar com a vigilância policial e as práticas de atuação dessa instituição, que se constitui a partir do imaginário social de controle e ordem. Para além disso, a violência parece ser entendida como uma prática individual, na qual a lógica é a defesa da sociedade (“do bem”) contra uma criminalidade ou criminosos (“do mal”).

O olhar para a “questão racial”, conforme os debates trazidos nos estudos de relações raciais, perpassa as questões da negritude e da branquitude, indo além de uma subjetividade e de ações individuais e adentrando em aspectos institucionais, enquanto ideia de racismo institucional. Esse percurso analítico parte do conceito de branquitude enquanto um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo; uma posição de poder não nomeada, vivenciada numa geografia social de raça como um lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo (Frankenberg, 1995FRANKENBERG, Ruth. White women, race matters: the social construction of whiteness. Minneapolis: Universith of Minnesota Press, 1995.). Ou, ainda, uma atribuição ao outro do que se nega a si, isto é, olhar o outro em um lugar de poder e nomeação. São vastos os estudos que demonstram que as imagens sociais e estruturais construídas a partir da branquitude projetam um lado negativo depositado na negritude (Bento, 2002BENTO, Maria Aparecida Silva; CARONE, Iray (orgs.). Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2002.; Sovik, 2004SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco: hegemonia branca no Brasil. In: WARE, Vron. Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond (org.), 2004, p. 363-386.).

Com relação às estruturas institucionais, a conceitualização de racismo institucional permite, como acima descrito, uma análise das relações raciais dentro de um contexto social em que experiências e subjetividades são construídas a partir de racializações dos sujeitos. Desse modo, é central o entendimento de que as desigualdades raciais fogem dos atributos de negritude dos policiais ou dos próprios “infratores” (Sinhoretto, 2021SINHORETTO, Jacqueline (Org.). Policiamento Ostensivo e Relações Raciais. Rio de Janeiro: Autografia, 2021.), permitindo entender a sua importância enquanto elemento para a compreensão da administração da violência e dos mecanismos de seletividade policial, como continuaremos a debater.

Jacqueline Sinhoretto e demais autores (Sinhoretto et al., 2013SINHORETTO, Jacqueline et al. A filtragem racial na seleção policial de suspeitos: segurança pública e relações raciais. Relatório final de pesquisa. Ministério da Justiça- SENASP/UFSCar, 2013.) apontam, a partir da composição da população carcerária brasileira, para a existência de uma seletividade policial com base em atributos raciais dos suspeitos de crime. Segundo eles, o incremento do policiamento ostensivo, operado pela polícia militar, a construção do seu protagonismo no controle do crime e a pressão por metas de produtividade policial produzem três resultados: a) crescimento acelerado do encarceramento; b) crescimento do número de mortos em ação policial; c) focalização do controle sobre jovens e negros. Os mesmos autores sugerem, ainda, a existência e a reprodução de um racismo institucional presente na seletividade policial e no sistema penal brasileiro.

Em estudo realizado na cidade de São Paulo, Sinhoretto e Schlittler, após entrevistarem policiais, concluem:

Contudo, ainda que a seletividade racial na ação policial seja negada entre os interlocutores, muitos dos elementos que compõem a chamada ‘fundada suspeita’ remetem a características específicas de grupos sociais, como faixa etária, pertença territorial, signos de um estilo de se vestir, andar e falar que reivindica aspectos da cultura negra, e que é, em muitos casos, também constituinte de uma cultura ‘da periferia’ (Sinhoretto; Schlittler, 2014SINHORETTO, Jacqueline; SCHLITTLER, Maria Carolina. A filtragem racial e a Polícia Militar do Estado de São Paulo. 8º Encontro da ANDHEP, São Paulo, 2014., p.12).

O racismo institucional pode ser entendido através da legitimação histórica do próprio Estado em relação a práticas racistas presentes em diferentes âmbitos sociais. Dessa forma, o racismo institucional induziria a organização e a ação das instituições estatais. De acordo com o manual produzido pelo Geledés - Instituto da Mulher Negra, “O racismo institucional ou sistêmico opera de forma a induzir, manter e condicionar a organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas públicas - atuando também nas instituições privadas, produzindo e reproduzindo a hierarquia racial”(Geledés, 2013, p. 17).

Lima (1995LIMA, Roberto Kant de. A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro: Forense, 1995.) argumenta que essas práticas seletivas de abordagem policial podem ser entendidas como práticas que não foram apreendidas nas escolas de formação policial, mas sim constituídas e criadas a partir das experiências do dia a dia policial. Surge, assim, a ideia de um “inimigo” comum que deve ser abordado pela polícia. Esta, por sua vez, é entendida como a instituição protetora da “ordem social” e dos cidadãos que não são vistos como os inimigos dentro da estrutura hierárquica da sociedade brasileira.

O mesmo autor (Lima, 1995LIMA, Roberto Kant de. A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro: Forense, 1995.) e Caruso (2004CARUSO, Haydée Glória Cruz. Das práticas e dos seus saberes: a construção do “fazer policial” entre as praças da PMERJ. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Programa de Pós-graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2004.) salientam a existência de dois tipos de formação do policial brasileiro: uma formação “institucional” e uma formação “da rua” (“saber que não se diz”). Ou seja, muitos dos atributos de como o policial deve se colocar frente a determinadas situações são aprendidas através das socializações do ofício no trabalho cotidiano. Seja policial civil, seja policial militar, os dois autores apontam para a existência de uma “tirada” policial, uma avaliação de um civil feita pelo próprio policial para saber se este seria ou não um potencial criminoso. A partir desse momento, o policial se portará de uma determinada maneira, dependendo da “tirada” que realizar. A conclusão é que a cor da pele e os atributos racializados dos suspeitos aparecem no centro da constituição desse tipo de policiamento e no cerne das escolhas de abordagem policial (Sinhoretto e Schlitter2014SINHORETTO, Jacqueline; SCHLITTLER, Maria Carolina. A filtragem racial e a Polícia Militar do Estado de São Paulo. 8º Encontro da ANDHEP, São Paulo, 2014.; Terra, 2010TERRA, Lívia M. Identidade bandida: a construção social do estereótipo marginal e criminoso. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP, Marília, v. 6, 2010, p. 196-208.).

Levando em conta o fato de que a criação de normas legais para o uso da força por parte do Estado não impede que a violência possa vir a exceder as situações designadas em que ela pode servir como ferramenta (Bueno, 2014BUENO, Samira. Bandido Bom é Bandido Morto: a opção ideológico-institucional da políticade segurança pública na manutenção de padrões de atuação violentos da polícia militar paulista. Dissertação de mestrado em Administração Pública e Governo, Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas, FGV, São Paulo, 2014.), é preciso reconhecer que a atividade policial discricionária caminha ao lado de uma institucionalização burocrática, encontrando dificuldades culturais e institucionais para superar suas estruturas autoritárias e repressivas, construídas historicamente.

O fenômeno do policiamento possui sua compreensão entrelaçada com a ideia de controle social e suas atividades nada contínuas na vida em sociedade (Muniz; Paes- Machado, 2010MUNIZ, Jacqueline; SILVA, Washington França da. Mandato policial na prática: tomando decisões nas ruas de João Pessoa. Cad. CRH, Salvador , v. 23, n. 60, p. 449-473, dez. 2010.). O policiamento seria um conjunto de mecanismos de coerção que ampara certos tipos de autoridade, de poder e de coesão social. Tais procedimentos de repressão são entendidos como práticas sociais de controle, com funcionalidades e utilidades que visam dar suporte à submissão à lei e à ordem.

Sociedades que foram marcadas por relações sociais coloniais e escravistas, e se mostram incapazes de superar essas características, mantendo relações hierárquicas de tratamento e subordinação a partir de marcadores sociais, apresentam instituições policiais excludentes e discriminatórias.

O policiamento se concretiza na própria abordagem policial realizada pelos agentes militares, com a presença de sensações de insegurança, incerteza e perigo, que caminham lado a lado com a formação da suspeita, alimentada pelas pressões morais e os estereótipos sociais sobre eles próprios. As dinâmicas de suspeição, prática muito introjetada na abordagem policial - e, em grande medida, condutora dessa ação -, acabam cristalizando dinâmicas ancoradas em tratamentos desiguais, não por evidências de vínculo do indivíduo com a criminalidade, mas por suas características pessoais.

Com relação à discricionariedade de atuação da polícia militar, a construção de alternativas legais e legítimas de obediência perante uma ordem legal envolve a possibilidade do uso potencial e concreto da força em situações específicas. Skolnick (1994SKOLNICK, Jerome H. Justice without a trial - law enforcement in democratic society. Nova York: MacMillian, 1994.) demonstra o seu entendimento sobre a discricionariedade como práxis policial, debatendo sobre o dilema existente entre a lei e a ordem como constitutivo do fazer-policial em qualquer sociedade democrática. Bayley (1998BAYLEY, David H. What Works in Policing. New York: Oxford University Press, 1998.) propõe uma “teoria do policiamento”, na qual busca captar, a partir dos múltiplos arranjos de controle social, os diferentes dispositivos que têm, em algum grau, um “poder de polícia”.

Em relação à gestão policial e às estratégias de policiamento, Batitucci (2011BATITUCCI, Eduardo Cerqueira. A polícia em transição: O modelo profissional-burocrático de policiamento e hipóteses sobre os limites da profissionalização das polícias brasileiras. Dilemas, Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. v. 4, n. 1, p. 65-96, 2011.) apresenta a vasta gama de autores que destacam, no que se refere às características do desenvolvimento institucional da polícia no Brasil durante os séculos XIX e XX, uma continuidade institucional e cultural, fazendo prevalecer, nas escolhas de policiamento, a vigilância sobre a prevenção, o personalismo na escolha e na gestão, uma grande discricionariedade policial, como apontado anteriormente, e uma informalização das práticas.

Ainda, estudos na área da violência estatal apresentam um quadro preocupante em relação às polícias e demais instituições de segurança pública no Brasil (Adorno; Dias, 2014ADORNO, Sérgio; DIAS, Camila. Monopólio Estatal da Violência. In: LIMA, R. S.; RATTON, J. L.; AZEVEDO, R. G. (Orgs.). Crime, Polícia e Justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 187-197.; Costa; Lima, 2014LIMA, Roberto Kant de. Éticas e Práticas na Segurança Pública e na Justiça Criminal. In: LIMA, Renato Sérgio; RATTON, José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de (Orgs.). Crime, Polícia e Justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 471-481.; Lima, 2014; Muniz; Proença Júnior, 2014MUNIZ, Jacqueline; PROENÇA JÚNIOR, Domício. Mandato Policial. In: LIMA, Renato Sérgio de; RATTON, José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de (Orgs.). Crime, Polícia e Justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. p. 491-501.). As relações criadas a partir da atuação policial ainda são fortemente marcadas por truculências, abusos de poder e uso ilegítimo da força.

Nesse sentido, as relações raciais e o policiamento ostensivo aparecem enquanto duas faces de uma mesma moeda. Ou seja, o quadro de truculência e violência policial é constituído a partir da racialização das relações, colocando na centralidade dessas dinâmicas as desigualdades raciais.

A hipótese que trabalhamos aqui é que haveria uma conexão entre as práticas policiais e as representações sociais, por parte do policial, com a presença evidente do marcador social raça, que pode influenciar na dinâmica de sua abordagem no momento da escolha de quem será abordado e também da forma como irá ocorrer a abordagem e a possível detenção do suspeito. O imaginário racista, excludente e preconceituoso, em relação à cor de pele de determinada pessoa, bem como os seus signos - modos de vestir, modos de caminhar, modos de agir - está presente no imaginário social, e, também, muito claramente, nas representações sociais dos policiais, reproduzidas institucionalmente. Desse modo, elas se reproduzem incessantemente através de ideais como a de que o homem negro é sempre um potencial criminoso.

Adorno, em pesquisa realizada buscando entender as diferenças de tratamento a negros e brancos pela justiça criminal na cidade de São Paulo, constata:

A maior incidência de prisões em flagrante para réus negros (58,1%) comparativamente com os réus brancos (46,0%). Indica igualmente que há maior proporção de réus brancos em liberdade do que de réus negros (27,0% e 15,5%, respectivamente). Se os réus negros parecem, ao menos na fase judicial, menos constrangidos a confessar autoria do delito, parecem mais vulneráveis à vigilância policial cerrada. […] Os rigores da detenção arbitrária, a maior perseguição e intimidação, a maior presença de agentes policiais nas habitações coletivas onde residem cidadãos procedentes de classes populares, tudo isso contribui para que os negros sejam alvo preferencial do policiamento repressivo (Adorno, 1995ADORNO, Sérgio. Discriminação Racial e Justiça Criminal em São Paulo. Novos estudos CEBRAP. São Paulo: Novembro, n. 43, 1995., p. 55).

Ana Luiza Pinheiro Flauzina, ao analisar de forma detalhada as altas taxas de homicídios em relação à população negra no Brasil e relacioná-las com o sistema penal brasileiro, elucida:

[…] assim, seja pela ação policial, dos grupos de extermínio, dos agentes penitenciários e dos próprios presidiários, seja pela estigmatização imposta aos indivíduos após a passagem pelo aparelho penal - as promessas de vingança levadas a efeitos entre grupos de jovens traficantes e tantas outras cenas para que já sinalizamos em outra oportunidade -, o fato é que, como “os maiores gestores históricos da morte, se não considerados os exércitos, os diretores do grande espetáculo das execuções públicas”, o sistema penal é, certamente, o aparelho que dá sustentação a essa amostra significativa do campo minado construído em torno da juventude negra brasileira (Flauzina, 2006FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. Dissertação de Mestrado em Direito, Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2006., p. 113).

A existência de um imaginário racista dentro das instituições de segurança pública brasileira é evidente. Portanto, o debate que se pretende aprofundar é o de retirar da invisibilidade a questão do racismo institucional e trazer à tona como é produzido e reproduzido institucionalmente e, ainda, como se manifesta nas práticas policiais cotidianas de policiamento. Visibilizar o invisível pode proporcionar elementos para que a questão seja enfrentada e para que se implementem políticas públicas de segurança tendentes a bloquearem e alterarem essa lógica cultural, institucional e historicamente estabelecida.

2. Entre o dito e o não-dito: representações sociais sobre a racialização policial

Realizamos uma pesquisa qualitativa sobre as representações sociais acerca da abordagem policial presente nos discursos dos policiais militares, todos atuantes na Brigada Militar do estado do Rio Grande do Sul e na cidade de Porto Alegre. Como coloca Porto (2006PORTO, Maria Stela Grossi. Crenças, valores e representações sociais da violência. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, jul./dez. 2006, p. 250-273.), mostra-se impossível, no caminho de compreensão do fenômeno da violência, a busca pelo seu entendimento sem o conhecimento dos setores e organismos responsáveis pela manutenção da ordem, e da mentalidade produzida nas e pelas instituições de segurança pública.

Nesse sentido, as entrevistas semiestruturadas realizadas com policiais militares foram a escolha metodológica adotada, pela possibilidade de questionamentos mais amplos, de acordo com a resposta do interlocutor, permitindo, com isso, um aprofundamento dos temas abordados. Em temas considerados sensíveis, as formas de adentrar neles, isto é, propor perguntas e entender as dinâmicas sociais entre os atores, requer uma possibilidade mais ampla nas trocas criadas entre interlocutor e pesquisador.

A escolha por trabalhar e analisar as representações sociais dos entrevistados se deu pela busca de acesso à sua mentalidade, e a aspectos que poderiam de alguma forma denotar uma construção institucional que é produzida e reproduzida ao longo do processo de formação e socialização no interior da polícia. Nesse sentido, a pesquisa buscou identificar as representações individuais desses atores sociais inseridas em um contexto institucional. Em certa medida, essas estruturas institucionais influenciam a formação das representações sociais dos seus integrantes e por ela são influenciadas, direcionando, com isso, a ação desses atores e se relacionando com suas condutas.

As representações sociais são o ponto central da pesquisa. O estudo nessa área aproxima a proposta durkheimiana de observar a moral e os valores como passíveis de tornarem-se instrumentos de investigação, com a perspectiva weberiana pela correlação entre fatores das esferas objetiva e subjetiva, incorporando as investigações acerca das ideias de valor em um sistema de conhecimento (Porto, 2006PORTO, Maria Stela Grossi. Crenças, valores e representações sociais da violência. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, jul./dez. 2006, p. 250-273.). Assim, a violência policial, ou melhor, as representações acerca desse fenômeno interferem, direta ou indiretamente, nos processos de organização das ações e das relações sociais, demonstrando que representação e ação são solidárias.

Desse modo, as representações sociais permitem que a análise seja feita a partir do entendimento da colaboração que valores e crenças, entendidos enquanto representações sociais, estabelecem para a criação de uma mentalidade social, repensando suas associações lógicas com a esfera do real/da realidade.

As entrevistas se deram a partir da técnica metodológica snowball sampling (Biernacki; Waldorf, 1981BIERNACKI, P.; WALDORF, D. Snowball sampling: problems and techniques of chain referral sampling. Sociological Methods & Research, Thousand Oaks, CA, v. 10, n. 2, 1981.), conhecida também como método bola de neve ou cadeia de informantes. Esse método permite a definição de amostra por referência e cadeias de referência, ou seja, escolhem-se entrevistados iniciais, conhecidos como informantes-chave, que, logo em seguida, indicam outros entrevistados com perfil e características desejadas para a pesquisa. Para além disso, buscamos usar dados quantitativos secundários de bases oriundas de diferentes fontes (observação indireta), como forma de reconhecer de que maneira é produzida a identificação de suspeitos que são abordados pela polícia brasileira, assim como reconhecer os resultados das abordagens e outras ações policiais.

Como os próprios policiais enxergam o “fazer policial”? Como esses agentes entendem a racialização da atuação policial quando se trata da construção da suspeição? Perguntas como essas foram os pontos de partida para pensarmos e conduzirmos as entrevistas feitas com nossos interlocutores. Foi possível a realização, então, de doze entrevistas com policiais militares atuantes na cidade de Porto Alegre.

Uma vez que as falas dos entrevistados apresentaram suas percepções da forma como entendem a realidade de seu trabalho, decidimos pela criação de categorias de análise: Violência Policial e Pobreza; Violência Policial e Racismo; Violência Policial e Legitimidade do Estado; Violência Policial e Direitos; Violência Policial e Identidade Profissional.

A partir das entrevistas realizadas, dois pontos centrais podem ser elencados: a) todos os interlocutores eram Oficiais da PM à época das entrevistas, em 2018; e b) dez, dos doze policiais entrevistados, são negros.

Com relação à formação policial e ao ofício, é recorrente a ideia de que há uma dicotomia relacionada com o binômio técnica versus prática. Algumas falas demonstram que a produção de alternativas de obediência, para a manutenção da ordem, é o que se espera do uso discricionário da força, enraizado em um passado institucional, construído na lógica da guerra e do combate, constitutivos de um ethos institucional. Mas há o reconhecimento de que esse modelo dificulta a ação policial no caso concreto, quando há necessidade de tomadas de decisões que exigem raciocínio:

Desse processo da formação Militar, da desconstrução de indivíduo e construção de um coletivo, então, é isso que se faz lá: se constrói um coletivo, um corpo, de tropa, corpos dóceis, né. Então, ele corta o cabelo igual ao meu, te põe uma roupa igual a minha, uma mochila nas costas igual a minha, o fuzil a gente usa igual, a gente tem que marchar igual. E isso faz com que o indivíduo acabe perdendo o seu senso crítico, ele perca a capacidade de questionar. No meio militar, há uma impossibilidade de tu questionar. Tem uma célebre frase que se diz para os recrutas: “aqui dentro tu tem três coisas que tu pode dizer, é: sim, senhor; não, senhor; e quero ir embora”. Então, tu perde a capacidade de criticar. Isso é ruim, porque quando o soldado sai e vai trabalhar na rua, ele obrigatoriamente precisa saber raciocinar, e raciocinar em cima de circunstâncias adversas, raciocinar em cima da pressão, do calor, da chuva, tomando pedrada, levando tiro. Então, além da técnica, ele precisa ter a capacidade de raciocinar (C, Policial Militar).

Também não foram poucos os casos relatados pelos entrevistados de uso abusivo da força, em um contexto em que a mera semelhança com a descrição de um suspeito era tomada como elemento-chave e legitimador de condutas extremamente abusivas e violentas, inclusive resultando em morte:

Exemplo de uma ocorrência de uma pessoa que matou um policial em Santa Maria: avisaram por WhatsApp as feições do suspeito, disseram que estava indo para Alvorada e acharam uma pessoa dirigindo tal veículo parecido com essa pessoa, perseguiram ele e os brigadianos pegaram ele. Na hora de levar ele para a delegacia, o suspeito não parava em pé e a delegada mandou levarem ele para um hospital. Daí, ligou para o capitão da área para dizer que deviam ter batido muito nele, pois não conseguia ficar de pé. Daí o capitão respondeu: ah, se abordaram ele, é por ser o suspeito que estavam procurando, eles não torturaram o sujeito. Deu que o capitão e os policiais foram indiciados e o suspeito morreu naquela noite e não era ele. Pra ver como a figura ou a foto de um suspeito... é no calor do momento, né. O suspeito tinha mais de 20 ossos do corpo quebrados. Foram 28 indiciados por tortura, nesse caso (F, Policial Militar).

Existe uma “tiragem” policial, como já amplamente discutido pela literatura da área, que marca o saber-policial para identificação de suspeitos na rua:

Na rua, inicialmente, a gente não consegue definir quem é do bem e quem é do mal, ou uma atitude que venha em desacordo com a lei, um delinquente. então, é a expertise do dia a dia, do convívio direto físico pessoal com as pessoas, que faz com que tu consiga, com o passar dos anos, já ir definindo se a pessoa abordada poderá te oferecer algum risco ou não. Mas não existe orientação para tratar a pessoa de forma agressiva (A, Policial Militar).

A decisão sobre a ação policial é interseccionada por questões e características sociais, tanto do abordado, quanto daquele que a sociedade entende como legítimo para a atuação policial. O chamado “faro policial” e a discricionariedade do agir policial são permeados por crenças que podem se desconectar, muitas vezes, do que está previsto na lei.

E os que trabalham mais em equipe composta, que são 2 ou 3 PMs, esses sim vão em alguns locais pré-definidos que se sabe que é local de ponto de tráfico, que é local de ocorrência de roubo, né, que eles trabalham com esses índices que eles sabem mais ou menos, tipo, ah, na volta da Redenção, daí eles vão passar lá e ver 2 adolescentes, ou dois adultos, assim, de 18, 19 anos, e tão ali e não pertencem aquele local, daí ele procede a abordagem. Com base nesses relatos de estatísticas (B, Policial Militar).

A verificação dos estereótipos racializados na identificação do suspeito não é vista, na visão de um dos entrevistados, como produto da formação que é dada na Academia de Polícia, uma vez que jamais irão ouvir dos professores que devem abordar mais negros do que brancos ou que o principal suspeito, aquele nato, seria um sujeito negro. Nesse sentido, o entrevistado relaciona a abordagem racializada a uma opção individual do policial, influenciada pela questão social:

Quando a gente fala na questão racial ela é muito vinculada à questão social. O policial vive na sociedade, então, a mentalidade dele racista só vai ser mudada quando mudar a mentalidade de fora da Brigada também. Não pode ser, nenhum policial é formado pra ser racista...ou a pessoa é racista, ou não é. Não vai ter uma cadeira na formação do policial de, ah, abordagem racial. Não tem, a abordagem é pelo suspeito, pela condição, pelo local que a pessoa tá. Só que, infelizmente, hoje, como eu te falei, na sociedade reflete o tipo de abordagem, mas ninguém aborda por ser negro. Ah, mas vai ter um policial que vai abordar só porque é negro? Claro que vai! Mas aí é dele, ele é racista. Isso aí é pessoal. Culturalmente, a pessoa que é de fora da instituição vai ser a visão que a polícia é racista, só que a polícia não é questão de formação racista, é formada por pessoas que saem da sociedade, então, a instituição reflete o que a sociedade pensa, em muitas vezes (E, Policial Militar).

Por outro lado, embora não haja um reconhecimento explícito de uma ação institucional direcionada ao marcador raça para o direcionamento da abordagem policial, essa seletividade acaba por aparecer em algumas falas, sendo justificado o tratamento desigual pela identificação de que alguém (negro) está fora do lugar:

Eu acho...infelizmente a gente tem essa cultura de ter poucos negros em alguns lugares, né, então acaba puxando para esse lado: “ah, ele não é daqui”. Não pertence a esse local. Anda ali no Moinhos de Vento, no próprio Shopping Moinhos de Vento, não se vê negros. Mas se andar no Praia de Belas já se vê um pouco, porque é outro nível assim. E acaba, não que seja direcionado, mas parece que o negro não pertence aquele local ali, e aí por isso ele já gera uma suspeita (F, Policial Militar).

As falas dos interlocutores entrevistados, de maneira geral, demonstram que a suspeição é constituída por atributos relacionados às características corporais, de vestimenta, de gestual, de modo de andar e olhar, e até de cortar o cabelo, além da própria cor da pele. Tipos físicos estigmatizados e forjados pelo racismo, nesse sentido, demonstram que a filtragem racial é central na lógica diária do trabalho da polícia militar.

Em Porto Alegre, parece-nos que a experiência policial é circunscrita pela combinação de autoridade e perigo, na qual a ideia de perigo iminente na presença do inimigo seria o mote para a adesão às normas legais. As relações sociais, nesse campo, produzem violências a partir do medo e da busca pela construção identitária, tangenciando o confronto entre os atores e a construção do conceito do inimigo e do criminoso. Nesse sentido, o marcador social raça, atrelado ao local onde determinada pessoa se encontra e a vestimenta que está usando, apresenta-se como elemento-chave na construção do indivíduo suspeito.

As representações sociais parecem tomar forma pelos atravessamentos dos chamados signos da suspeição, em que território, vestimenta, faixa etária, mostram-se em aspectos que identificam uma “cultura da periferia” e aspectos da cultura negra (Sinhoreto e Schlittler, 2014SCHLITTLER, Maria Carolina; SILVESTRE, Giane; SINHORETTO, Jacqueline. A produção da desigualdade racial na Segurança Pública de São Paulo. In: Anais da 29ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, 2014, disponível em http://www.29rba.abant.org.br/resources/anais/1/1402023218_ARQUIVO_Paper_ABA2014_Schlittler_Silvestre_Sinhoretto.pdf, acesso em 10.07.2022
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). Postura corporal, vestimentas, local, são vistos como importantes sinalizadores para justificar uma abordagem policial.

A equação aparece como sendo a seguinte: existe uma estreita ligação entre a prática policial informal que, atrelada à racialização e à busca incessante por eficiência e produtividade no seu agir, perpassado pela pressão social, e inserida em uma dinâmica institucional de baixos níveis de controle do trabalho policial, acaba demarcando a tênue linha entre o uso legítimo da força e a violência policial, direcionada contra determinados perfis de indivíduos, para os quais há autorização social e institucional para a ação discricionária e muitas vezes violenta e abusiva por parte dos policiais, garantindo a certeza de impunidade.

Considerações Finais

Buscamos compreender de que forma o racismo se insere e é formador da ação policial cotidiana. Ou melhor, como a racialização do fazer-policial é vista pelos próprios policiais militares, possibilitando um entendimento crítico sobre a formação desses agentes de segurança pública, além dos valores e crenças carregados e difundidos no interior da instituição.

Analisamos as representações sociais de oficiais da Brigada Militar, atuantes em Porto Alegre, acerca do fazer-policial, em que expressam seus entendimentos sobre aspectos que justificam e legitimam a ação policial, a abordagem e o uso da força pela polícia. As falas dos entrevistados propiciaram uma aproximação com o que conecta as decisões tomadas pelo policial em sua atuação cotidiana e as representações sociais que moldam este mesmo ator social.

A pergunta-chave partiu da indagação sobre quais representações sociais caracterizam as relações polícia-comunidade e o que estas representações dizem sobre a constituição e a implementação do trabalho da Polícia Militar.

Buscamos destacar as percepções dos policiais acerca da violência policial e do próprio fazer-policial, além da influência do marcador social raça nesse campo de interação. Os resultados elucidaram uma dinâmica de interação polícia-comunidade, inserida em um imaginário/percepção de combate constante, permeado por medos e angústias trazidos pelos policiais. Os processos identitários são (re)construídos nessas relações e nesses embates de afirmação do “eu” em relação ao “outro”, sendo atravessados por processos de racialização que carregam consigo a construção social do “suspeito nato”.

Contudo, importante destacar que as próprias falas dos policiais entrevistados estão permeadas de elementos que indicam um reconhecimento de que o problema existe, embora não haja uma percepção mais clara de possíveis caminhos institucionais para o seu enfrentamento. A recente criação de um Grupo de Trabalho (GT) de Combate à Violência contra a População Negra, instalado junto à Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH) do estado do Rio Grande do Sul, através da Ordem de Serviço nº 008/2020, indica uma abertura institucional para o enfrentamento do problema (Spaniol; Rodrigues; Moraes Júnior; Costa, 2023SPANIOL, Marlene Inês; RODRIGUES, Carlos Roberto Guimarães; MORAES JÚNIOR, Martim Cabeleira de; COSTA, Dagoberto Albuquerque da. A Questão Racial nas Abordagens Policiais: o que tem sido feito para diminuir discriminações e violências nas ações dos integrantes da segurança pública do RS? Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Fonte Segura, ed. 179, 5 abr. 2023. Disponível em: https://fontesegura.forumseguranca.org.br/a-questao-racial-nas-abordagens-policiais-o-que-tem-sido-feito-para-diminuir-discriminacoes-e-violencias-nas-acoes-dos-integrantes-da-seguranca-publica-do-rs/. Acesso em: 05 abr. 2023.
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). O GT conta com a participação de representantes da Brigada Militar e da Polícia Civil, e discute a necessidade de pautar a questão da discriminação racial no preparo e na formação policial. Contudo, o reconhecimento de que as práticas de racialização na atuação da polícia estão arraigadas em uma mentalidade cultural e historicamente constituída exige medidas de longo alcance, que incorporem ferramentas institucionais de maior controle sobre o uso abusivo da força e da autoridade, para a responsabilização e até mesmo a exclusão de policiais por práticas racializadas, assim como de mecanismos judiciais para a invalidação e deslegitimação de procedimentos que aprofundem a desigualdade de tratamento e reforcem relações hierárquicas autoritárias e seletivas na condução das relações cotidianas entre policiais e cidadãos.

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  • 3
    Sobre o conceito de sociedades racializadas, vide Schlittler, Silvestre e Sinhoretto, 2014, p. 54.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2023
  • Aceito
    08 Nov 2023
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