RESUMO
Partindo do mapeamento das produções acadêmicas publicadas na revista Psicologia & Sociedade no curso dos últimos 30 anos relativas às interlocuções da psicologia social com o campo das artes, o objetivo deste artigo é o de visibilizar as principais características dessa produção. A pesquisa realizada considerou o acervo da revista como um arquivo a ser explorado, que, em seu olhar para o passado, empreende uma busca em direção às promessas de futuros de nossa ciência Psi que agora aqui se vê enlaçada com sua exterioridade, das Artes.
Palavras-chave: psicologia social; arte; memória; estética; criação
RESUMEN
Partiendo del mapeamiento de las producciones académicas publicadas en el periódico Psicologia & Sociedade en el curso de los últimos 30 años relacionadas a las interlocuciones de la psicología social con el campo de las artes, el reto en este artículo es visibilizar las principales características en esta producción. La investigación realizada ha considerado el acervo del periódico como un archivo a ser explotado, el cual, en su mirada hasta el pasado, emprende una busca en dirección de las promesas de futuro para nuestra ciencia Psi, que ahora se encuentra entrelazada con su exterioridad, de las Artes.
Palabras claves: psicología social; arte; memoria; estética; creación
ABSTRACT
From the mapping of academic productions published in the journal Psychology & Society in the last 30 years concerning the dialogues of social psychology with the field of arts, the purpose of this article is to make visible the main characteristics of this production. The survey considered the magazine's collection as a file to be explored that, in its analysis of the past, embarks on a quest toward the future promises of our psychological science that now finds itself ensnared with its externality of Arts.
Keywords: social psychology; art; memory; aesthetics; creation
Introdução
Nossas aproximações e afinidades com o campo das artes se entrecruzam com nossa história junto à psicologia social e à ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social). A revista Psicologia & Sociedade é o principal veículo de divulgação da produção acadêmica dos filiados à ABRAPSO e seus simpatizantes. Foi espaço de acolhida de vozes minoritárias em seus primórdios - dissonâncias ao que se apresentava como hegemônico na psicologia - e contribuiu para que tais vozes se intensificassem ao longo dos anos. Compartilhamos com pesquisadores vinculados à ABRAPSO o interesse no diálogo da psicologia social com as artes, sendo foco de nossas investigações as relações éticas, estéticas e os processos de criação que configuram o social e ao mesmo tempo se apresentam como abertura a novos possíveis.
Neste artigo, retomamos a produção publicada pela revista Psicologia & Sociedade que buscou articular arte e psicologia social nos últimos 30 anos para evidenciar algo do que pretendem estes profissionais e pensadores que resolvem habitar tal fronteira. Importante destacar desde já que nossa crença na fertilidade da articulação entre psicologia social e arte não se faz por apenas gostarmos das artes e de suas obras. Faz-se pelo fato de que é nesse plano que as coordenadas da ciência se dissolvem a favor das composições estéticas e éticas. Acreditamos que esse agenciamento produz novas paisagens em nossa ciência.
Na obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992), temos uma didática e útil tripartição dos modos de ação no mundo (em especial, de produção de saberes) que pode nos auxiliar a compreender alguns dos sentidos afirmados por esta nova paisagem: plano de imanência da filosofia, plano de coordenadas das ciências e plano de composições das artes. Aqui, focamo-nos nos trabalhos de Psicologia Social publicados na revista da ABRAPSO que declaram agenciar de algum modo os planos das artes e das ciências: interferências entre o plano de coordenadas (organização de um quadrante que possibilita juízos, proposições e funções acerca de objetos e variáveis) e o plano de composições (composição de uma trama de singularidades sensíveis a provocar percepções e afetações possíveis). Veremos, com os artigos pesquisados, que existem muitas maneiras completamente diversas de agenciar estes planos e de que querer reduzir tal interferência entre arte e ciência a uma só modulação seria um grave erro de generalização. De qualquer modo, o que nos motiva a investigar esse campo é uma aposta em uma potência deste, sempre contingente e nunca necessária, que pode possibilitar aberturas em nossos modos de fazer Psicologia Social. Assim, ainda que nos defrontemos aqui com muitas maneiras de agenciar os planos de coordenadas e composição, temos de explicitar qual modulação ético-estética de tal hibridismo nós afirmamos neste campo: qual a paisagem de ciência que queremos?
Quando pesquisamos e intervimos buscando alocar nossas operações em um espaço hermeticamente fechado dentro dos protocolos modernos das ciências (Latour, 2012), produzimos exclusivamente com o plano de coordenadas das ciências (Deleuze & Guattari, 1992). Essa modulação da produção de saber na psicologia oferta certamente um território seguro, onde o profissional e o pesquisador sempre possuem uma evidente noção do que, quando e onde devem fazer algo, diminuindo ao máximo dúvidas, incertezas e obscuridades. Tal fechamento disciplinar da psicologia social no plano de coordenadas oferta uma série de benefícios: protocolos formais compartilhados, objetos nitidamente definidos, separação sujeito-objeto, replicabilidade, generalização, entre outros. No entanto, esta circunscrição estrita da Psicologia Social em um enclausuramento no plano de coordenadas também propicia uma série de limitações: relações hierarquizadas entre leigos e especialistas (onde os primeiros se tornam objetos modeláveis para os segundos, tomados enquanto sujeitos neutros), uma ética finalista voltada para a previsão-controle, um imperativo conservador pela adaptação dos sujeitos (patologizando resistências), etc., tudo isso se utilizando de classificações identitárias as quais produzem uma paisagem estética da simplicidade e homogeneidade, refratária a diferenças, singularidades, heterogeneidade e paradoxos, diante do imperativo de coerência próprio deste plano de produção.
Os trabalhos abertos às interferências intrínsecas e ilocalizáveis entre o plano de coordenadas e o plano de composições das Artes (Deleuze & Guattari, 1992), por sua vez, permitem-nos a possibilidade de embaralhar estes códigos ao se centrarem não em uma ético-estética voltada à formação de coerências simples, nitidamente delimitadas, cindidas em binarismos e hierarquizadas, mas sim na artesanagem de composições heterogêneas, complexas e paradoxais. Tal lógica da produção de composições nos propicia uma mirada ética atenta às singularidades nômades (Deleuze & Guattari, 1996) nos campos de atuação-pesquisa, sem a necessidade de que essa composição de espaços comuns produzam homogeneidades ou verticalidades, permitindo a existência de um dissenso não hierárquico que abarque tal tramar de diferenças. Uma Psicologia Social que pode se abrir aos paradoxos e sua operação de tornar nebulosas as fronteiras. Uma Psicologia Social que pode se abrir a experimentações e desfazimentos de si, buscando articulações com singularidades sensíveis e não apenas abstrações gerais. Deste modo, podemos pensar que a arte não adentra no território das ciências apenas para promover saberes e fazeres que componham integralidades (por exemplo, nas perspectivas holistas e humanistas), mas para compor fragmentos, inacabamentos, transgressões e transbordamentos nos limites definidos pelas lógicas instituídas do pesquisar, intervir e existir. Evidentemente essa estilística ético-estética não é necessária aos trabalhos que agenciam artes e ciências, sendo tal modulação, antes de tudo, nossa aposta nestes hibridismos. Mas, de fato, veremos, na análise dos artigos, que essa postura crítica da arte como resistência aos modos instituídos de viver prevalece nos trabalhos publicados na revista Psicologia & Sociedade nos últimos trinta anos. Certamente isso se dá também em decorrência do leitmotiv próprio que sempre impulsionou tal publicação e sua associação.
A revista Psicologia & Sociedade
A revista Psicologia & Sociedade é arquivo de uma obra feita por muitos, um espaço de inscrição do pensamento, um lugar da memória psi. Com o olhar pousado em um horizonte longínquo e movidas pela crença da escrita como via de contágio, algumas pessoas concretizaram, 30 anos atrás, a ideia de uma revista que viesse a se tornar suporte e morada às vozes minoritárias que se desprendiam de nossa comunidade científica; abriram um novo canal de difusão de ideias no próprio campo de nossa disciplina, marcado pela crítica aos modos hegemônicos de práticas, métodos e perspectivas psi. Feita a partir de variações e de uma verdadeira polifonia, a revista Psicologia & Sociedade foi ensaiada por cada um e por todos os seus escritores até os dias atuais. Como arquivo de refugiados de sua pátria, fez-se durar pelos tempos, vindo a tornar-se solo fecundo para a polinização necessária que se fazia/faz sentir no quadrante de nossa disciplina.
Um novo alfabeto, uma nova gramática e um novo léxico fortaleceram-se em nosso campo psi. Contudo, as tradições de sua leitura e mesmo a dos transgressores ainda carregavam a marca de tempos antigos, por sua natureza binária e redentorista contra a qual se haviam levantado. O novo não emerge do nada. Temos, pois, inevitavelmente, em nossa revista-arquivo, o anacronismo de imagens do pensamento que atuam sobre o que podemos dizer e lembrar a respeito de um passado de 30 anos.
Parcial, insuficiente, talvez até fracassada, nossa escrita, tão frágil quanto poderosa, se erguerá neste ponto, uma vez que desde a perspectiva da memória tudo deve ser considerado hipomnésico, ou seja, fadado a lacunas que não podem nos garantir a ilusão de veridicidade única e definitiva fornecida pela memória e por suas evidências. Estamos diante do esquecimento, e com ele enlaçamos nossa busca pelas imagens do pensamento que povoam os artigos sobre psicologia social e arte nestes 30 anos da revista Psicologia & Sociedade.
Método
Partindo do levantamento das produções acadêmicas publicadas na revista Psicologia & Sociedade na interface psicologia social e artes, o presente trabalho objetiva visibilizar as principais características dessa produção. Trata-se de pesquisa de caráter bibliográfico tipo "estado da arte" ou "estado do conhecimento" (Ferreira, 2002), ou ainda como revisão sistemática (Zoltowski, Costa, Teixeira, & Koller, 2014). Após o levantamento e a descrição da produção em foco, elaboramos algumas problematizações acerca das possibilidades produzidas nestes agenciamentos entre artes e psicologia social.
Foram pesquisados os 57 números da revista disponibilizados online em março de 2016, na página da ABRAPSO (www.abrapso.org.br) e no SciELO (Scientific Electronic Library Online - www.scielo.br). Na primeira, encontramos os números da revista desde sua criação, em 1986, até o ano de 2001. Em 2002, ela passou a integrar a plataforma SciELO e o levantamento, a partir do referido ano, foi então realizado nessa plataforma. Entre 1986 e 2001, foram publicados 19 números da revista, sendo 17 disponibilizados online. Tal período pode ser considerado de criação e consolidação do periódico, marcado por interrupções decorrentes da situação política e financeira do país, do próprio amadurecimento da ABRAPSO como associação e da revista como veículo de divulgação científica. Isso fica evidente na análise dos primeiros números da revista, em que foram publicados os trabalhos apresentados nos Encontros Nacionais e ou Nacionais/Regionais da Associação, caracterizando-se até então o periódico como anais de eventos. O início dos anos 90 configurou uma mudança na característica dos eventos nacionais em virtude do número cada vez maior de participantes. Os anais dos eventos, por conseguinte, precisavam de um espaço específico para a publicação do expressivo volume de trabalhos inscritos, assim como a revista precisava ser redimensionada para se firmar e ser reconhecida no cenário acadêmico como periódico científico. Critérios de regularidade da publicação, participação de pesquisadores de diferentes instituições brasileiras e estrangeiras, distribuição geográfica equitativa de vinculação dos autores, além da qualidade dos artigos e sua vinculação com a perspectiva crítica da própria ABRAPSO, se evidenciam. O número de edições da revista publicadas desde então, por conseguinte, é maior que no período anterior. Entre 2002 e março de 2016, foram publicados 40 números regulares e 10 números especiais.
Para a seleção do material analisado, foi realizada, inicialmente, uma busca, em cada número da revista. Considerou-se como pertinentes para os objetivos deste trabalho a referência, no título, à arte e à estética, a algum artista ou linguagem artística, ou ainda a oficinas estéticas ou processos de criação. Considerou-se na busca indistintamente a referência a processos de criação/criatividade/invenção. Em caso de dúvida sobre a pertinência do artigo para a pesquisa, foi feita a leitura dos resumos e, constatada a vinculação com o campo, utilizados como fonte de informação. Esse primeiro levantamento resultou em 79 trabalhos, sendo 18 artigos publicados entre 1986 e 2001 e 61 artigos publicados entre 2002 e 2016.
Após a busca pelos títulos, foi feito um segundo levantamento no SciELO a partir dos descritores arte, estética, oficinas estéticas, processos de criação/ criatividade/ invenção, selecionando "assunto" como campo de busca. O levantamento com o descritor "arte" resultou em 08 trabalhos, dos quais 07 já haviam sido selecionados na busca anterior; o outro artigo foi descartado por tratar-se de estudo sobre o estado da arte das ações afirmativas no ensino superior. Com "estética", foram localizados 6 artigos, sendo 04 já considerados e os outros 02 incluídos na seleção de trabalhos; com o descritor "processos de criação" ou correlato, foram localizados 02 trabalhos, um já considerado e o segundo descartado por tratar-se de trabalho sobre a atenção em processos de aprendizagem no ensino fundamental, sendo a temática da cognição inventiva presente apenas na revisão bibliográfica. A busca com o descritor "oficinas estéticas" não trouxe resultados. A leitura dos textos na íntegra resultou na exclusão de trabalhos previamente selecionados por se tratarem de resenhas ou por não apresentarem discussões sobre o campo-tema deste artigo. No total, foram tomados como material para a pesquisa 74 trabalhos. Na descrição do material encontrado, destacamos: o ano de publicação, a localização geográfica e a filiação institucional dos autores, as perspectivas teóricas em que os estudos se assentam e com as quais dialogam, a linguagem artística em foco, as características do trabalho.
Quanto às perspectivas teóricas, realizou-se um processo de articulação que reuniu diferentes perspectivas em um mesmo arranjo em virtude de compartilhamentos, filiações ou alianças no que se refere às suas epistemologias, ontologias e éticas. Por exemplo, articulamos as aparições de teorizações junguianas, freudianas e lacanianas sobre o mesmo arranjo heterogêneo denominado psicanálise. Do mesmo modo, articulamos diferentes autores como Deleuze, Foucault e os esquizoanalistas em um mesmo arranjo denominado filosofia da diferença, já que todos partem de uma ontologia relacional, inacabada, em devir, segundo uma ontologia, lógica e ética do rizoma, do paradoxo e da imanência. Sob a denominação crítica operamos a articulação mais ousada, por produzir relações entre perspectivas as quais possuem desde um estreito parentesco até rarefeitos pontos de contato ou mesmo uma tradição de disputa ontoepistêmica no campo da psicologia social. Cerzimos aqui algumas passagens que unem, por exemplo, os referenciais teóricos que se baseiam nos russos Vygotsky e Bahktin com os fundamentados em autores da Escola de Frankfurt (Adorno, Horckheimer, Benjamin, Marcuse). Entre estas estão as produções das perspectivas sócio-históricas e histórico-culturais, frequentes no agenciamento entre a psicologia social e as artes. As operações constitutivas deste arranjo são a importância dada ao materialismo histórico e à dialética como modulações da ontologia, episteme e ética destas críticas.
Em relação às características dos trabalhos, a produção encontrada foi analisada a partir de eixos que definem 03 modos distintos de articular arte e psicologia social: (a) arte em foco (47 trabalhos), discute a própria arte como potência e suas relações com o campo da psicologia social. Subdividimos este item em dois: o primeiro, arte como objeto (38 trabalhos), que tem a arte em si (como campo, lógica ou práxis) e/ ou produções artísticas (visuais, literárias, musicais, etc.) como cerne do seu campo problemático; o segundo grupo, arte como metodologia (09 trabalhos), apresenta a arte como recurso e/ou questão metodológica. A diferença entre esses 02 subgrupos diz respeito unicamente à ênfase, pois em ambos questões teóricas e metodológicas estão presentes. (b) arte como ferramenta (15 trabalhos), que assume a arte como meio para provocar algo através de intervenções em contextos e com sujeitos específicos. (c) arte como questão psi (12 trabalhos) foca na discussão dos processos de criação/criatividade/invenção localizados em um sujeito, aparelho psíquico e/ou unidade autopoiética.
A escolha de tais eixos nos posiciona ética e politicamente em relação ao que apresentamos ao leitor. Como arcanos, aqueles que decidem acerca do que será consignado e lembrado, quando estamos diante da revista-arquivo, aplicamos-lhe certo olhar, nutrido de nosso horizonte atual. Este concerne ao nosso gesto de cortar e recortar destituído da pretensão de ganhar o todo, o acabado. Sua presença se expressa, sobretudo, na figura do leitor, que, como um novo tradutor, poderá ou não dar-lhe continuidade. De outro modo, resta dizer que a própria análise dos trabalhos a partir de eixos temáticos tornou-se um efeito de nossa busca. Os eixos temáticos, resultado de um esforço de problematização a posteriori, operam em nossas análises como questões problematizadoras para desvendar modos de pensar as relações entre psicologia e arte no âmbito da pesquisa psi no período de tempo perscrutado e em publicações veiculadas na revista Psicologia & Sociedade.
Resultados e discussão
Os artigos que apresentam o diálogo entre psicologia social e arte na revista Psicologia & Sociedade estão presentes na maioria dos números publicados ao longo dos 30 anos de existência do periódico. O ano de 1987, com o segundo número da revista, inaugurou a presença dessa produção com 06 artigos articulando artes e psicologia social. Essa quantidade variou ao longo do tempo: foram publicados entre 01 e 04 artigos em diferentes números em 07 anos intercalados (1988, 1998, 2004, 2005, 2006, 2011, 2016); entre 04 e 06 artigos em 09 anos intercalados (1987, 1988/1989, 1999/1991, 2007, 2008, 2009, 2012, 2013 e 2015). Diferenciam-se de tais indicadores os anos de 2010, com 09 artigos publicados, e 2014, com a publicação de 14 artigos. Somente em 08 anos de publicação da revista não constatamos a presença dessa produção.
Importante se faz salientar dois aspectos: o primeiro tange à presença, já no segundo ano do periódico, dessa produção, momento em que a psicologia social preconizada pela ABRAPSO lutava para se firmar e afirmar como possibilidade no cenário acadêmico brasileiro diante da hegemonia de um pensamento psi filiado a matrizes nomotéticas e quantificadoras. Publicar discussões sobre arte em uma perspectiva crítica naquele momento histórico, com os acirrados debates a respeito de ciência e a forte presença de um pensamento moderno e cientificista, pode ser considerado como uma abertura a possibilidades outras de pensamento. O segundo aspecto fala do intenso incremento da produção articulada com as artes a partir de 2010. Nos 06 últimos anos, foram publicados 41 artigos, mais da metade do que foi produzido em todo o período investigado. Importante levar em conta, na análise dessa situação, aspectos relativos ao próprio periódico, enfatizados anteriormente, bem como a edição online da revista, a partir de 2002, que viabilizou a publicação de um número maior de artigos por número da revista. Outro aspecto se refere à publicação de números especiais desde 2007, o que contribuiu para tal incremento.
Quanto à localização geográfica e à filiação institucional dos autores, observa-se que há produções de todas as regiões geográficas do país e 03 artigos de pesquisadores estrangeiros, sendo 02 desses em coautoria com pesquisadores brasileiros. Da região Norte há somente um artigo, da região Centro-Oeste 07, da região Nordeste 10 artigos, os demais distribuem-se entre as regiões Sudeste e Sul. Predominam artigos produzidos por um ou mais autores de uma mesma instituição, vinculados a universidades e a programas de pós-graduação, com algumas exceções. Artigos produzidos por autores de diferentes instituições, em coautoria, começam a aparecer em 2007 (01 artigo) e intensificam-se de 2010 em diante, ainda que sejam poucos em relação ao total de publicações sobre o tema.
A perspectiva crítica é a que se faz mais presente, com 20 artigos. Mais da metade (12) tomam a arte em foco e, neste eixo, problematizam-na preponderantemente como objeto (11 artigos). Os processos de criação como ações de um sujeito psi também são fundamentais para tal perspectiva, visto que metade dos artigos presentes neste eixo (06) se identificam com referenciais da crítica. A perspectiva crítica está presente também em 05 trabalhos que se hibridizam com outras teorias, demonstrando sua forte presença no campo que articula artes e psicologia social. Articulando os eixos teóricos com as regiões do Brasil, vemos a preponderância das regiões Sul (07) e Sudeste (11) na produção de artigos relacionando arte e psicologia social a partir de referenciais da crítica. A filosofia da diferença é a segunda perspectiva com mais presença (19). É também neste referencial que encontramos a maioria dos trabalhos (07 dos 15) que colocam a arte como ferramenta em experimentações que a afirmam como processo de resistência e transformação. Há uma preponderância significativa da produção a partir desse referencial na região Sul, com 11 trabalhos. Logo após vem a região Sudeste, com 06 artigos, e o Nordeste, com 02.
Seis trabalhos apresentam a psicanálise (02 junguianos) como referencial. Destes, 04 tomam a arte como objeto, com especial atenção às leituras psicanalíticas de produções artísticas. Encontramos também referenciais psicanalíticos articulados com outras perspectivas em hibridismos (06 de 12), metade (03) articulando psicanálise e crítica. A distribuição geográfica desses trabalhos é equilibrada: Sudeste (3), Centro-Oeste (01), Sul (01) e uma parceria entre uma instituição estrangeira e outra localizada no Nordeste do Brasil.
Temos 04 artigos da região Sudeste que trabalham com o referencial das Representações Sociais, todos colocando a arte em foco: 03 tomam a arte como objeto (a partir de produções artísticas) e 01 como questão metodológica (a partir do uso das imagens nesse referencial de pesquisa). Treze artigos mostram perspectivas teóricas que apareceram apenas uma vez: 03 centram suas análises no conceito de identidade; 03 apresentam a própria linguagem artística como único fundamento, sem referências a teorias (02 poemas e 01 relato de uma encenação teatral com bonecos). Próximos destes, temos 01 artigo que se articula com o Teatro do Oprimido e 02 com práticas e conceitos da Gestalt. Doze trabalhos exibem referências híbridas, articulando diferentes perspectivas. Na maioria deles, há uma articulação entre psicanálise ou crítica com outra perspectiva, mas também vemos referenciais humanistas, da filosofia da diferença e da biologia do conhecer. Ao dividirmos os trabalhos híbridos por região, temos a maior diversidade regional e muitas parcerias inter-regionais, atestando sua importância na invenção de perspectivas.
No tocante às linguagem artísticas trabalhadas nos artigos, percebemos também uma pluralidade: alguns artigos têm como foco uma linguagem específica, como a literatura, a música, a dança, a fotografia e outras artes visuais, porém há vários artigos que discutem as relações da psicologia social com a arte sem fazer referência a alguma linguagem específica, e outros ainda que as consideram hibridamente, em atenção ao próprio objeto que têm como foco. Essa característica das produções nos direciona à discussão dos trabalhos a partir dos eixos de análise "arte em foco", "arte como ferramenta" e "arte como questão psi".
Arte em foco
"O namoro da psicologia pela arte tem sido dependente sem, contudo, ser muitas vezes declarado" (Bonfim, 1987, p. 40). Eis o modo como aparece, em um dos primeiros números da revista Psicologia & Sociedade, o tema deste artigo. Um namoro, certamente não inaugurado pela Psicologia Social e tampouco pela ABRAPSO, mas que se mostrou já em seus primórdios e se consolidou, afirmou e adensou ao longo dos últimos 30 anos. Evidência disso é a maior frequência de trabalhos que discutem a arte em si, não como meio para fins outros, mas a partir do reconhecimento de sua potência para a problematização do contemporâneo e de temáticas caras à Psicologia Social.
Arte como foco
Este subitem compreende trabalhos publicados desde 1987 até 2016, alguns deles com discussões iniciais, outros com problematizações densas cunhadas na interlocução com autores de variados campos, em especial a filosofia e a arte. A arte se apresenta como foco das discussões de variadas maneiras e a partir de diferentes referenciais teóricos. Se alguns trabalhos, principalmente nos primeiros números da revista, caracterizam-se por perspectivas holísticas, ao longo dos anos há delimitação de temas em referenciais específicos, muitos deles dialogando com diferentes autores. Predominam discussões sobre a questão da produção de subjetividade e processos de singularização, marcados por tensões e resistências. Os referencias adotados resultam em léxicos e nuances distintos, porém evidencia-se a crítica à realidade social e práticas de sujeição. Os trabalhos que discutem as relações entre psicologia e arte sem se deter a uma linguagem artística específica (pode alguma linguagem servir de mote para a discussão, todavia não se apresenta como foco) destacam a sua potência no que diz respeito à própria vida (Amador & Fonseca, 2014; Bonfim, 1987; Borges, 2014; Chaves & Ribeiro, 2014; Machado, 2012; Mizoguchi, Costa, & Madeira, 2007; Oliveira & Fonseca, 2006). Alguns desses trabalhos assinalam as contribuições de um autor ou grupo de autores específicos para pensar as relações entre psicologia social e arte.
A obra de arte é alçada à condição de foco de análise em outro conjunto de trabalhos (Binkowski, 2010; Carneiro, Martins, & Rocha, 2011; Castro, 2012; Coelho, 1998; Felippe, 2010; Frochtengarten, 2004; Galindo, Milioli, & Méllo, 2013; Guzzo & Spink, 2015; Hinkel & Maheirie, 2007; Machado, 2006; Nascimento, 2015; Perrone & Engelman, 2008; Reigota, 2014; Reis & Zanella, 2010; Rodrigues & Baptista, 2010; Rodriguez & Carreteiro, 2014; Rivera, 2009; Saemi, 2008; Silva & Magiolino, 2016; Spindler & Fonseca, 2008; Viana & Simões, 2015). A presença de linguagens artísticas consagradas, como a literatura, a dança, a música e as artes visuais, sobressai, no entanto há trabalhos que ampliam a concepção de obra de arte, podendo esta se referir a correspondências privadas ou à própria cidade, obra coletiva historicamente produzida.
O artista é, em outro conjunto de trabalhos, o foco da discussão (Bendassoli & Borges-Andrade, 2012; Coelho & Gonçalvez, 2011; Gusolinet, Delfino, Bonfin, Guimarães, & Queiroz, 1987; Souza & Borges, 2010). Trata-se de trabalhos com características também diferenciadas: um deles discute o artista como personagem, outros sua condição de trabalhador ou sua identidade profissional.
A relação entre arte e educação é discutida por Bonfim (1988), o que também aparece no texto de Reigota (2014) que analisa a obra literária de Milton Hatoun. A leitura literária, foco de Pinto (2013), destaca o expectador nessa relação da psicologia social com a arte, e o texto de Correa e Fonseca (2015) traz à cena a estética do material, no caso o silício.
Dentre os trabalhos que põem a arte em foco, 09 deles dedicam-se à discussão de questões metodológicas, sejam estas relativas à potência de uma linguagem estética específica como método, seja em relação à própria composição do trabalho escrito apresentado ao leitor ou às vicissitudes do processo de pesquisar. Dentre os trabalhos que discutem uma linguagem específica, 04 deles focam a fotografia (Barbosa & Zanella, 2014; Maurente & Tittoni, 2007; Medina, 2013; Tacca, 2005) e um a narrativa autobiográfica (Brandão & Germando, 2009). Um trabalho assume o hip-hop como campo tema e discute o processo de pesquisar (Menezes & Costa, 2010). Nos demais trabalhos, há, por um lado, a discussão da forma compositiva do próprio texto com o destaque da importância da hibridização, da bricolagem de linguagens e da montagem (Canevacci, 2010) e textos que, de certo modo, experimentam essa possibilidade (Fernandes, 1987a; Queiroz, 1980).
Arte como ferramenta
Dentre os trabalhos analisados, 14 utilizam a arte como estratégia para provocar acontecimentos através de uma prática clara, definida e empírica. Tais textos abordam, em geral, a própria psicologia ou a atuação profissional do psicólogo em campos variados, como na saúde, na educação, no trabalho, na cidade (Alves, 1988; Braga, 1988; Campos, Panúncio-Pinto, & Saeki, 2014; Conte, Silveira, Torossian, & Minayo, 2014; Fernandes, 1987b; Guazina & Tittoni, 2009; Lacaz, Lima, & Heck, 2015; Liberato & Dimenstein, 2013; Maheirie, Strappazzon, Müller, Mayorca, & Barreto, 2014; Meira, 2013; Preuss, 1991; Ramão, Meneghel, & Oliveira, 2005; Rizzo & Fonseca, 2010; Sampaio & Souza, 2008). As estratégias metodológicas das intervenções realizadas são variadas - pesquisa-intervenção, oficinas estéticas, análise de projetos em que linguagens artísticas são trabalhadas, entre outras. Alguns trabalhos evidenciam uma linguagem artística específica, como a música, o teatro, a produção (áudio) visual, outros mencionam intervenções com várias linguagens artísticas sem descrevê-las propriamente. Há, em alguns artigos, discussões gerais sobre a arte, mas o foco das problematizações é a própria psicologia e suas práticas. Predomina, nessas discussões, a perspectiva de arte como resistência, marcada pela afirmação do compromisso da psicologia com possibilidades outras de vida, promovendo fugas e desvios às lógicas hegemônicas e práticas de assujeitamento: é a arte de resistir a principal operação da arte tomada como ferramenta na vida.
Arte como questão psi
Este item congrega 11 artigos que têm como foco uma temática considerada própria ao campo da psicologia, a saber: a criatividade, os processos de criação ou invenção. Trata-se também de um conjunto heterogêneo de trabalhos, alguns se fundamentando em perspectivas centradas na pessoa que cria e suas possibilidades afetivas, cognitivas, sensíveis (Barbosa, 1987; Deslandes, 1991; Machado; 1991), outros se contrapondo a essa centralidade do sujeito a partir da afirmação de sua condição inexoravelmente alteritária (Barroco & Superti, 2014; Furtado, 2012; Kastrup, 2004; Magiolino, 2014; Sawaia, 2007; Souza & Birman, 2014; Zanella, 2004; Zonta & Maheirie, 2012).
O hiato de tempo entre o primeiro grupo de trabalhos e o segundo demarca uma mudança radical nas discussões e problematizações apresentadas. A lógica de agregação (o que a psicologia pode agregar ao campo da arte, ou o que a arte pode trazer ao campo da psicologia), característica dos artigos publicados no primeiro decênio da revista, é deixada de lado, sendo os demais artigos caracterizados por discussões que hibridizam e contribuem para a transformação dos próprios campos. De função psicológica, volta-se para os processos e as condições sociais que os engendram, com as tensões que lhes são características. A arte é apresentada, na maioria desses estudos do segundo grupo, em sua dimensão de resistência, e os processos de criação considerados não somente ou propriamente em relação a possíveis objetos que podem daí advir, mas em suas possibilidades de reinvenção de si, das relações com outros e do próprio mundo.
Como podemos averiguar, dos 74 artigos analisados, a maioria (47) articula arte e psicologia social colocando a arte como centro do seu campo problemático (arte em foco). A arte, nessas produções, não funciona como mero acessório ou adjacência, porém como limiar que interfere na própria concepção de psicologia social. Percebemos também a preponderância de perspectivas teóricas atreladas a uma tradição crítica da psicologia social: os diferentes referenciais sob a denominação Crítica; os autores articulados sob o nome Filosofia da Diferença; os trabalhos de referenciais híbridos que se articulam com perspectivas críticas. Predominam, portanto, artigos que agenciam artes com psicologia social em função de operações de promoção de resistência às lógicas hegemônicas, ou seja, trabalhos que tomam o agenciamento entre artes e ciências como uma possibilidade não apenas de compor singularidades, mas de transbordar e transgredir instituições.
Encontramos algumas perspectivas que partem de princípios românticos (Badiou, 2002) ao conceber a relação entre saber e arte: esta última se apresenta como conhecimento verdadeiro e autêntico, enquanto as ciências seriam sua simplificação representacional. Entre estes, vemos alguns artigos associados à psicanálise junguiana, à gestalt e ao humanismo, todos publicados entre os anos 1980 e 1990. Evidentemente alguns laivos desta postura romântica persistem e contagiam outras perspectivas, adentrando, por exemplo, na filosofia da diferença e mesmo na psicanálise. Mas como aponta Badiou (2002), é notória a articulação e distinção da filosofia da diferença com o romantismo. Compartilham o princípio da diferença e do devir como fundação de suas ontologias, contudo, a filosofia da diferença não toma o fluxo como realidade transcendente. Neste caso, a arte deixa de ser "o saber verdadeiro", para se tornar mais um campo de produção dos saberes com suas singularidades de modulação: existem, por exemplo, artes maiores e menores, sendo estas últimas as que promovem resistências. De modo similar, temos na psicanálise, segundo Badiou (2002), a concepção de sujeito articulada com a tradição romântica: um sujeito do desejo constituído e movido por forças inconscientes, uma imagem de tempestade e ímpeto. Entretanto, tampouco as perspectivas psicanalíticas subsumiram a esta influência, erguendo uma grande variedade de distanciamentos, como, por exemplo, o estruturalismo e a noção de inacabamento (Badiou, 2002). Podemos acompanhar tal matiz romântico surgir até mesmo em alguns trabalhos da perspectiva aqui denominada Crítica, em especial nos que concentram seus esforços em pensar as capacidades criativas do sujeito e findam por elevar a arte a uma estratégia de emancipação do humano. São todos trabalhos que colocam "A Arte" (maiúscula e única) como responsável pela libertação do humano e da individuação mais integral do sujeito.
No que se refere às perspectivas que tomam a arte como uma operação crítico-experimental, ou seja, de transgressão e resistência diante das lógicas instituídas, situamos principalmente as produções fundadas na filosofia da diferença e no conjunto de perspectivas aqui denominadas críticas. Desde uma crítica estritamente dialética na delação-transformação de uma superestrutura para emancipar sujeitos antes alienados, às críticas paradoxais articuladas com perspectivas pós-estruturalistas, acompanhamos uma miríade de modos distintos de articular arte como resistência: da libertação de sistemas de opressão às práticas libertárias e às multiplicações de seus possíveis, a arte é agenciada no plano da psicologia social como estratégia de resistência: permite desvios e fugas dos modos instituídos ao operar diferenças.
Em suma, constatamos, nos primeiros números da revista, trabalhos que articulam arte e psicologia social por vieses humanistas-holistas, os quais pressupõem uma união complementar entre ciência e arte no sentido de produzir uma perspectiva integral: a união dos opostos permitiria acessar uma nova dimensão dos fenômenos. No decorrer dos anos é que se prolifera a perspectiva crítica da arte como resistência de invenção das vidas e os processos de criação compreendidos como possibilidade de todos (não somente na esfera do que se convencionou reconhecer como arte): criação de si, das relações com outros e do próprio mundo. Mesmo nos trabalhos que discutem a arte como questão psi (inseridos na tradição da psicologia da arte), a maioria apresenta de algum modo a questão da resistência e da estética da existência em suas discussões, contrapondo-se a perspectivas centradas em uma psique criadora ou no sujeito descolado de sua condição inexoravelmente social e cultural.
Predominam, pois, produções de um povo errante que, por seu querer, decidiu sair de casa, tornando-se estranho até aos seus familiares. Um outro povo, estranho que, diante de um mundo adverso de verdades congeladas, viu-se fustigado por suas inquietudes, ao mesmo tempo que procurava pensar, para si, um lugar de habitação: a ABRAPSO e sua revista. Povo potente e intenso em seus atos de criar uma des-criação, uma desconstrução dos mundos retos e cordatos que foram/são exibidos por uma vertente normalizadora e prescritora da própria Psicologia.
Situamo-nos em um tempo estratigráfico, feito de camadas, de superfície e de profundidade, memória-mundo, sempre reinventada e modulada em variações. Um eterno retorno da revolução, um revir da diferença, desde a origem despedaçada e perdida que nos obseda e impele à resistência e à criação. Explosão de uma evolução criadora que, nos termos de Bergson (2005), ribomba como granada, antes do que tiro de canhão: efetua uma dispersão de estilhaços, produzindo, em cada um deles, possibilidades de fazer vingar espécies de vida diferenciadas segundo seu acoplamento com as condições ambientais encontradas.
Trata-se, sim, de um alento de vida quando, após nosso escrutínio sobre o acervo da revista Psicologia & Sociedade, lemos os documentos impressos como procedentes de autores insurgentes e desconfortados com o mal-estar em sua própria casa natal e que se tornam ativos em direção a uma desterritorialização, deixando-se levar pelas sensíveis rajadas que os impeliram/impelem para uma crença em outro possível horizonte. "Cavalgam numa linha de fuga celeste", como nos dizem Deleuze e Guattari (1992, p. 113), em busca de uma corrente de ar fresco; desejam extrair na vida aquilo que pode ser salvo, ou mesmo aquilo que pode se salvar sozinho de tanta obstinada potência. Inconformados com as efetuações científicas de seu campo psi em seu tempo presente, colocam em xeque, como fizeram outros precursores que jazem enterrados nas camadas estratigráficas de um tempo passado, sua própria ciência, sua morada e seu ethos.
Considerações finais
O primeiro artigo relacionando psicologia social e arte que encontramos no acervo da revista Psicologia & Sociedade foi publicado em 1987, no segundo número da revista. Trata-se de um importante precursor de uma série que se firmou, de modo crescente, nos anos seguintes, expressando um marco inicial contemporâneo de uma onda conceitual e metodológica que vem alagar as terras do pensamento de nossa ciência. Ser o primeiro de uma série que ainda prolifera até os dias de hoje poderia operar com função modelizante, o que, todavia, não acontece. O que se verifica no seguimento dos artigos analisados é a proliferação de perspectivas teóricas, a variação de usos e modos de conceber as relações entre ciência e não ciência, conceitos e ideias outros impressos em uma revista que se mostra acolhedora e receptiva a novas tendências e a uma nova Psicologia.
Disjunções, sínteses disjuntivas, n-1, rizomas por toda parte. Abriram-se as portas contra a fixidez do pensamento do um, abriram-se as comportas da grande usina explosiva de energias que vêm alagar a cidade psi, situada tradicionalmente de modo sedentário à beira de um rio que ela apenas observa e no qual não se banhava. Mas o rio conta outras histórias e a terra se mostra revolvida por terremotos que expõem à superfície os tempos imemoriais da saga da humanidade em direção ao conhecimento de si e do mundo. Sim, estamos falando de um modo de produção do conhecimento. Falamos da transformação da impotência em potência de dizer: restituir possibilidades ao real, fazer justiça ao sensível enquanto incondicionado, conceder direitos de expressão ao intempestivo no próprio ato de pensar, produzir a aliança radical daquilo que não pensa no seio do próprio pensamento, com o sem-fundo de uma vida in-diferenciada e não individual, reconhecendo o pático sob o lógico, como nos ensina Rancière (2000, p. 297). Habitar uma terra feita de superposições, e não de sequências, e visualizar os nomes próprios como parte de uma constelação feita de estrelas mortas cuja luz é mais viva que nunca. Psicologia deve ser devir e não história cronológica: coexistência de planos e não sucessão de sistemas.
Mas por qual motivo teria este povo menor buscado nas artes uma aliança? Por qual motivo teriam visto nas artes uma espécie de remédio às enfermidades de sua ciência psi?
Trata-se de considerar, neste ponto, que ressonâncias e agenciamentos entre ciência e arte se exprimem como um intenso momento de crítica e clínica a respeito da enfermidade detectada na própria carne. Tornar possível um novo modo de pensamento como plano de imanência aos problemas da vida, do mundo e dos homens, eis um dos motivos a que responde esta conexão do plano psi com o da arte. Uma aliança estranha, pois produzida pela quebra do anel vicioso, pela fissura que o abre à exterioridade. Aliança, como depreendemos, suportada por uma guerra, por eclosões e não por apaziguamentos entre razão e sensibilidade, inteligência e imaginação, realidade e ficção, atual e virtual, entre um agora e um outrora. Dessa aliança com o intempestivo dos encontros, nutre-se o ato de pensar no pensamento, sendo as condições de emergência de uma crítica as mesmas que presidem uma criação. Pensamento desvencilhado do acordo das faculdades cognitivas, liberto da moral e de seus pressupostos, inclinado a engendrar algo ainda não presente no mundo. "Pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo, engendrar 'pensar' no pensamento" (Deleuze, 2009, p. 213).
O pensamento não se refere a uma exclusividade dos filósofos, como nos mostram Deleuze e Guattari (1992). É propriedade de todo o tipo de saber, sendo, por isso mesmo, que tanto a filosofia, as ciências como as artes vêm-se enredadas na luta ética e política da produção de conhecimento. Cartas embaralhadas podem se apresentar a qualquer pensador de qualquer domínio do saber e este, guiado pelos sintomas de seu tempo, empreende uma busca de inventar novas maneiras de sondar o presente, podendo, então, detectar nele o intolerável não a partir de uma universalidade desacreditada, mas a partir das forças que neste presente pedem novos modos de existência. Eis o que os artigos publicados na revista Psicologia & Sociedade que dialogam com o campo das artes nos possibilitaram visualizar: gestos de uma comunidade psi a afirmar a imprescindível recorrência à interdisciplinaridade da ciência com as artes e a filosofia.
Agradecimentos
Ao Conselho Nacional de Pesquisa - CNPQ pela concessão de Bolsa de Iniciação Científica/Cota UFRGS PIBIC (coordenação de Luis Artur Costa) e bolsa de Produtividade (Tania Mara Galli Fonseca).
À Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, pela concessão de bolsa - estágio sênior no exterior, fev/2016 a fev/2017 (Andréa Vieira Zanella).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2016
Histórico
-
Recebido
15 Maio 2016 -
Revisado
18 Jul 2016 -
Aceito
28 Jul 2016