Open-access SUINOCULTOR: VIVÊNCIAS DE PRAZER E SOFRIMENTO NO TRABALHO PRECÁRIO

PIG FARMER: EXPERIENCES OF PLEASURE AND SUFFERING IN PRECARIOUS WORK

PORCINOCULTOR: VIVENCIAS DE PLACER Y SUFRIMIENTO EN EL TRABAJO PRECARIO

Resumo

Este estudo teve o objetivo de analisar as vivências de prazer e de sofrimento no trabalho de suinocultores, além de caracterizar a organização do trabalho e de compreender as estratégias defensivas utilizadas. O estudo teve um delineamento qualitativo e contou com a participação de 16 suinocultores. A coleta foi realizada através de grupos focais e de observação participante. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo. O prazer no trabalhado estava associado à manutenção da tradição familiar e ao cuidado dos animais. Nas vivências de sofrimento, destacaram-se a sobrecarga de trabalho e o desgaste consequente. As estratégias defensivas identificadas foram a negação da dor e a racionalização. Como consequências foram identificados diversos danos à saúde física e mental dos trabalhadores.

Palavras-chave: psicodinâmica do trabalho; saúde do trabalhador; trabalho precário; trabalhador rural; suinocultor

Resumen

Este estudio tuvo el objetivo de analizar las vivencias de placer y de sufrimiento en el trabajo de porcinocultores, además de caracterizar la organización del trabajo y de comprender las estrategias defensivas utilizadas. El estudio tuvo un abordaje cualitativo en el que participaron 16 porcinocultores. La recolección de datos fue realizada por medio de grupos focales y de observación participante. Esos datos fueron sometidos al análisis de contenido. El placer en el trabajo estaba relacionado al mantenimiento de la tradición familiar y al cuidado de los animales. En las vivencias de sufrimiento, se destacaron la sobrecarga de trabajo y su consecuente desgaste. Las estrategias defensivas identificadas fueron la negación del dolor y la racionalización. Como consecuencia fueron observados diversos daños a la salud física y mental de los trabajadores.

Palabras clave: psicodinámica del trabajo; salud del trabajador; trabajo precario; trabajador rural; porcinocultor

Abstract

This study aimed to analyze the experiences of pleasure and suffering of pig farmers and to characterize the organization of work and to understand the defensive strategies. The study had a qualitative research design that was done with 16 pig farmers. The data came from two focus groups as well as observations. The data obtained was subjected to content analysis. The pleasure is related to maintaining the family tradition and care of the animals. In contrast and most notably what stood out regarding the suffering experiences was the overload of work, which resulted in complete fatigue. The defensive strategies guided by the denial of pain and rationalization. Consequently was concluded that their lifestyle is damaging their physical and mental health.

Keywords: psychodynamics of work; worker’s health; precarious; rural workers; pig farmer

Introdução

O trabalho no meio rural tem sido apontado pela literatura como uma atividade ocupacional estressante e perigosa, associada a elevados níveis de ansiedade, depressão, suicídio e alcoolismo (Alpass et al., 2004; Berry, Hogan, Owen, Rickwood, & Fragar, 2011; Faria, Facchini, Fassa, & Tomasi, 1999; Grzywacz et al., 2010; Hosain, Chatterjee, Ara, & Islam, 2007; Kilkkinen et al., 2007; Logan & Ranzijn, 2008; Reed, Rayens, Conley, Westneat, & Adkins, 2012; Siqueira et al., 2012). Apesar disso, o trabalhador rural é uma categoria ainda pouco investigada, tanto no âmbito nacional quanto internacional, e possui aspectos bastante peculiares se comparado com trabalhadores de outras áreas (Fraser et al., 2002; Schlindwein, 2010). Como exemplos dessas peculiaridades, podem ser citados: a falta de acesso aos meios de proteção social, os contratos de trabalhos informais, a ocorrência de trabalho infantil, o isolamento, os inúmeros riscos físicos, químicos e biológicos atrelados às atividades rurais, entre diversas outras.

Neste contexto, uma atividade considerada de alto risco para a saúde do trabalhador é a pecuária (Mitloehner & Calvo, 2008). Estudos internacionais apontam para perigo de acidentes relacionados ao ataque de animais; à exposição dos trabalhadores a riscos químicos, ruídos, radiações, e excrementos de animais; a riscos biomecânicos por conta de movimentos repetitivos na alimentação manual dos animais; e ainda, a fatores de sobrecarga da organização do trabalho, em que os profissionais, além de cuidarem dos animais, se ocupam de atividades domésticas e do cultivo da agricultura própria (Cole, Hill, Humenik, & Sobsey, 1999; Geng, Torén, & Salomon, 2009; Ianbukhtina, Masiagutova, & Gainullina, 2011; Langley, 1999; Mitloehner & Calvo, 2008).

Atualmente, o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking de produção e exportação mundial de carne suína, sendo os estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul os maiores produtores nacionais (Ministério da Agricultura, 2012). A maior parte da produção nacional é coordenada pela agroindústria, que fornece insumos e assistência técnica através de cooperativas locais aos diferentes grupos de produtores que, por sua vez, são responsáveis pela produção dos suínos. Ao final do ciclo de produção, os suínos são transportados e abatidos pela agroindústria, que efetua o pagamento do trabalho realizado pelo suinocultor (Embrapa, 2012).

Apesar da importância econômica da suinocultura no Brasil e do crescimento constante desta atividade no meio rural, são raros os estudos acerca da saúde mental do suinocultor. Uma análise da literatura nacional e internacional a respeito da temática revelou que grande parte dos estudos existentes trata do levantamento de riscos sociais e físicos associados ao cuidado de animais confinados, da interferência dos métodos de criação de suínos na saúde física do trabalhador, do nível de reatividade imunológica e alterações longitudinais na função pulmonar de suinocultores, de comparações entre o estado de saúde de trabalhadores rurais dedicados à pecuária e o de trabalhadores não rurais, do uso de pesticidas e da percepção de saúde em aplicadores de pesticidas (Cole et al., 1999; Donham, 2010; Geng et al., 2009; Gudmundsson & Tómasson, 2009; Ianbukhtina et al., 2011; Kirychuk et al., 1998; Langley, 1999; Martinez, Gratton, Coggin, René, & Waller, 2004; Mitloehner & Calvo, 2008; Receveur, 2005; Safin, Masiagutova, Khusnarizanova, & Ianbukhtina, 2009; Von Essen & Donham, 1999). A referida análise demonstra uma forte tendência de investigações sobre os riscos ligados às doenças físicas do suinocultor, apontando para uma escassez de estudos que privilegiem a saúde mental deste grupo de trabalhadores ou mesmo as interfaces entre os riscos laborais e a saúde mental.

Uma abordagem possível para aprofundar o entendimento das relações existentes entre trabalho e saúde/doença mental é a Psicodinâmica do Trabalho. Partindo do pressuposto de que o trabalho é mediador tanto dos processos de saúde quanto dos processos de adoecimento, a Psicodinâmica do Trabalho entende que a saúde mental no trabalho não está relacionada à ausência de sofrimento, mas sim às possibilidades de busca pelo prazer e transformação dos fatores geradores de sofrimento e adoecimento, tornando o trabalho mais digno e gratificante (Mendes, 2007a). Nesta perspectiva, a saúde no trabalho está associada ao potencial que cada trabalhador possui de utilização dos recursos internos e externos para a transformação do sofrimento na busca pelo prazer e realização. Tal dinâmica é marcada pela utilização de estratégias defensivas capazes de mobilizar os trabalhadores de maneira individual ou coletiva, estabelecendo uma relação mais gratificante com o trabalho e também buscando o reconhecimento, fator essencial no processo de construção da identidade do trabalhador (Mendes, 2004). Outro aspecto muito importante na busca pela obtenção do prazer ou para a transformação do sofrimento no trabalho é a mobilização subjetiva, definida como o processo pelo qual o trabalhador se engaja no trabalho e consegue fazer uso da subjetividade, inteligência prática e do coletivo de trabalho para transformar os fatores da organização do trabalho causadores de sofrimento (Dejours, 2005).

Nesta abordagem, a organização do trabalho ocupa um papel fundamental no entendimento dos processos de saúde/doença do trabalhador, sendo sua rigidez inversamente proporcional à saúde mental. O conceito de organização do trabalho pode ser dividido em duas esferas, sendo uma delas caracterizada pela divisão do trabalho e a outra pela divisão dos homens (Dejours, 1992). Na divisão do trabalho, estão os aspectos atrelados à organização das tarefas, aos processos prescritos, ao modo de produção, entre outros. Na divisão dos homens, estão as responsabilidades relacionadas ao trabalho, as relações de poder, as hierarquias, o comando, o grau de autonomia nas atividades, e as possibilidades de cooperação e comunicação, entre outros. É através da análise psicodinâmica das vivências do trabalhador associadas à organização do trabalho que se fará o entendimento dos processos vinculados à saúde/doença no trabalho. Neste contexto, a organização do trabalho representa uma realidade social enquanto mobiliza e também é mobilizada pelo trabalhador, que. por sua vez, coloca sua subjetividade e constitui a intersubjetividade no trabalho (Mendes & Facas, 2011).

Esta análise propõe o entendimento da dinâmica existente no contexto de trabalho, que pode ser definida pela “atuação de forças, visíveis e invisíveis, objetivas e subjetivas, psíquicas, sociais, políticas e econômicas que podem ou não deteriorar esse contexto, transformando-o em lugar de saúde e/ou de patologias e de adoecimento” (Mendes, 2007b, p. 29). Tendo em vista essa perspectiva, uma das principais contribuições da psicodinâmica do trabalho é a de expor os efeitos que a organização do trabalho pode gerar na saúde mental do trabalhador, além de oferecer instrumentos para que tais efeitos sejam identificados ainda no campo pré-patológico, possibilitando atuações preventivas e capazes de compreender e intervir nos processos de saúde/doença mental no trabalho (Merlo & Mendes, 2009).

Apesar da Psicodinâmica do Trabalho já possuir tradição de pesquisas no Brasil, grande parte dos estudos são realizados com grupos de trabalhadores urbanos (Almeida & Merlo, 2008; Antloga & Mendes, 2009; Assis & Macedo, 2008; Bottega & Merlo, 2010; Mendes & Silva, 2006; Nunes & Lins, 2009; Scolari, Costa, & Mazzilli, 2009; Silva & Holanda, 2008; Silva & Merlo, 2007), mostrando uma carência de estudos com trabalhadores rurais. Diante disso, o presente estudo teve o objetivo geral de analisar as vivências de prazer e as vivências de sofrimento de suinocultores no trabalho, e, como objetivos específicos, caracterizar a organização do trabalho neste meio e compreender as estratégias defensivas utilizadas por estes trabalhadores frente ao sofrimento.

Método

Delineamento

Este estudo possui um delineamento qualitativo exploratório-descritivo. Exploratório na medida em que se propõe a buscar maior familiaridade com o tema pesquisado, e descritivo por descrever as características do grupo de trabalhadores investigado (Gil, 2010).

Contexto de pesquisa e participantes

Participaram deste estudo 16 suinocultores, com idade entre 19 e 67 anos (Média: 45,8; Desvio-padrão: 13), oito eram do sexo masculino. Com relação à escolaridade, nove participantes não haviam completado o ensino fundamental, seis haviam completado e um participante possuía ensino médio completo. Entre os participantes, havia sete casais, um pai e uma filha. Quanto ao tipo de contratação, um casal trabalhava como terceiro (não eram proprietários, mas prestavam serviço a esses) e todos os outros participantes eram proprietários das pocilgas de criação de suínos e atuavam enquanto cooperados de uma cooperativa regional. No momento da pesquisa, todos se declararam casados. Dois participantes não tinham filhos, os demais tinham de um a nove filhos. Quanto à renda familiar mensal, 11 participantes declararam receber entre um e dois salários mínimos e os outros cinco participantes, entre três salários mínimos.

Os trabalhadores atuavam na engorda dos suínos. No momento da pesquisa, os suinocultores cuidavam de 330 a 1025 suínos (Média: 540,6; Desvio padrão: 211) e estavam associados a uma cooperativa regional. O tempo de atuação na suinocultura variou de dois anos e cinco meses a 45 anos (Média: 17,8; Desvio padrão: 17).

O presente estudo teve como critério de inclusão suinocultores proprietários ou terceiros, os quais estivessem na atividade há pelo menos dois anos, que declarassem como atividade principal a suinocultura, maiores de 18 anos, independente do grau de escolaridade, sendo que poderiam realizar outras atividades rurais além da suinocultura e poderiam ser familiares. Para fins de análise e visando preservar a identidade dos participantes, foram utilizados nomes fictícios. Do mesmo modo, a cooperativa na qual os trabalhadores estavam associados será denominada Cooperativa 1.

Instrumentos

A coleta dos dados ocorreu mediante a técnica de grupos focais, um questionário biosociodemográfico e a metodologia de observação-como-participante. O grupo focal é uma técnica de interação focalizada que possibilita discussões aprofundadas e consistentes sobre o tema em foco (Morgan, 1997; Romero, 2000). Para a condução dos grupos, foi utilizado um roteiro composto pelos temas: organização do trabalho, vivências de prazer no trabalho, vivências de sofrimento no trabalho e estratégias defensivas frente ao sofrimento.

O questionário biosociodemográfico foi construído exclusivamente para este estudo, com o objetivo de levantar dados para a caracterização dos participantes e sua relação formal com o trabalho. Com o objetivo de aproximar o pesquisador da realidade investigada, foi utilizada a técnica de observador-como-participante, na qual o pesquisador se identifica como tal e faz observações livres durante breves períodos (Angrosino, 2009). Os registros das observações foram efetuados em diário de campo.

Procedimentos éticos e de pesquisa

Este estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da universidade sob o número 12/132. A seleção dos participantes se deu por meio da metodologia snowball ou “Bola de Neve” (Biernacki & Waldorf, 1981) e foi organizada através das seguintes etapas: (a) aproximação do pesquisador com a comunidade e identificação de alguns suinocultores; (b) coleta de indicações de possíveis participantes; (c) visitas a fim de realizar o convite para a participação do estudo.

Foram realizados dois grupos focais com dois encontros, sendo que cada grupo contou com a participação de oito trabalhadores. O material foi filmado em vídeo e áudio e conduzidos por uma moderadora e por uma co-moderadora. No primeiro encontro, foi feita a leitura e a coleta de assinaturas do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, bem como a entrega do questionário biosociodemográfico, preenchido pelos próprios participantes. No segundo encontro, foi realizada a validação das ideias principais discutidas no primeiro encontro e o levantamento de possibilidades de melhorias do trabalho.

Foram acompanhadas as atividades de 09 trabalhadores, totalizando 15 horas de observação livre. A devolução dos resultados do estudo para os participantes, e também para a Cooperativa 1, aconteceu seis meses após a coleta de dados, sendo que a coleta ocorreu nos meses de janeiro e fevereiro de 2013. Para os suinocultores, a devolutiva foi organizada por meio de visitas em cada uma das residências, momento em que foi entregue um relatório do estudo com os principais resultados, seguido de explicação e debate. Com a cooperativa, foi efetuada uma reunião na sede da instituição, na qual também foram apresentados os principais resultados da pesquisa e um plano com sugestões de ações, visando à melhoria das condições de trabalho.

Procedimentos de análise dos dados

O material proveniente dos grupos focais, obtido em áudio e vídeo, foi transcrito na íntegra e analisado, de acordo com Bardin (2010). A análise dos dados deu origem a quatro categorias definidas a priori: caracterização da organização do trabalho na suinocultura; vivências de prazer no trabalho; vivências de sofrimento no trabalho; e estratégias defensivas; e a uma categoria definida a posteriori: efeitos da pesquisa.

Resultados e discussão

Caracterização da organização do trabalho na suinocultura

As observações realizadas no campo permitiram conhecer e descrever alguns aspectos da organização do trabalho na suinocultura, que se mostrou marcada pela gestão e diretrizes de qualidade e produtividade da Cooperativa 1, e também pelas características da agricultura familiar, atuando no modo pelo qual as atividades são organizadas no cotidiano de trabalho. O papel da Cooperativa 1 é o de intermediar a venda dos suínos para a agroindústria, atuando como um facilitador da relação dos suinocultores com uma grande empresa processadora de alimentos, responsável pela compra e abatimento dos animais. Os trabalhadores caracterizaram a gestão da cooperativa pela rigidez nos controles de qualidade e constantes exigências pelo aumento de produtividade, pela exploração através do modelo de remuneração praticado, e ainda, pela ausência de espaços de fala e escuta.

Os suinocultores não possuem um vínculo trabalhista formal com a cooperativa, visto que atuam sob o regime de trabalho associado. Sendo assim, direitos e benefícios como férias, folgas, horas extras, proteção sindical, entre outros, não são praticados. O pagamento pelo trabalho realizado ocorre no final do ciclo produtivo (a cada quatro meses) e o resultado financeiro depende de indicadores de qualidade e de produtividade.

O processo produtivo na suinocultura é organizado em três etapas produtivas: Iniciação, Crechário e Terminação. O grupo de Iniciadores é responsável por gerar novos suínos e por entregá-los após o desmame ao grupo de Crechários. No Crechário, eles permanecem em desenvolvimento até atingir em média 23 kg, momento no qual são encaminhados ao grupo de Terminadores, suinocultores responsáveis pela engorda e entrega dos suínos para a agroindústria. Os participantes desta pesquisa eram todos Terminadores e realizavam atividades como: alimentação manual dos suínos, limpeza das pocilgas, aplicação de medicação nos animais, controle do estoque de insumos, separação dos suínos conforme as fases do desenvolvimento, controle de temperatura, pesagem dos suínos, entre outras. Atividades semelhantes àquelas descritas na CBO 6132-15 para a atividade “Criador de suínos” (CBO, 2016).

As observações dessas atividades mostraram que os trabalhadores possuem contato direto com os suínos e com os dejetos dos animais e que, apesar disso, não utilizam equipamentos de proteção individual. Este cenário oferece riscos biológicos por exposição aos dejetos dos animais, podendo gerar inúmeros agravos à saúde do trabalhador, além de risco de acidentes. Não obstante, o ambiente de trabalho possui um forte odor dos dejetos dos animais, é úmido, empoeirado, exige que o trabalhador transporte manualmente sacos de ração e que utilize a força corporal para fazer a limpeza manual do ambiente. Todos os participantes do estudo já haviam sofrido lesões em função desta exposição ou dos movimentos realizados para a alimentação dos suínos e limpeza das pocilgas. Apesar destes riscos e do grande esforço físico demandado, os filhos menores de idade auxiliam em todas as atividades.

Adenais, foi possível identificar que a rotina dos trabalhadores é marcada pela realização de diversas outras atividades rurais que complementam a renda familiar, tais como: cultivo de milho, fumo e feijão; cultivo de alimentos para a subsistência familiar; e produção de leite. As atividades existentes são divididas entre todos os membros da família, e coordenadas principalmente pelos homens. A jornada de trabalho dos suinocultores pode variar de 10 a 14 horas ao dia, sem interrupção em finais de semana ou feriados e demanda, ainda, atenção 24 horas ao dia. Todos estes aspectos contribuem para a ausência de períodos de descanso, levando à sobrecarga e à exaustão. Além disso, a vida social e familiar é prejudicada, aumentando o isolamento e reduzindo a rede de apoio social.

Diante disso, observam-se claramente características da precarização social e do trabalho, que se apresenta como um processo multidimensional de institucionalização da instabilidade, caracterizado pelo crescimento de diferentes formas de precariedade e de exclusão. O trabalho precarizado se apoia na diminuição dos custos de produção a partir da flexibilização do trabalho, que se instaura pela via da precarização do emprego (desemprego; trabalho temporário) e da precarização do trabalho. Tal cenário culmina na transformação do direito do trabalho, na diminuição da proteção social e na alteração das formas de representação e de cidadania para todos aqueles que o discurso político chama de “excluídos” (Thébaud-Mony, 2000).

Uma das características da precarização do trabalho é a ausência de vínculo trabalhista, o que está diretamente relacionado às perdas de direitos trabalhistas e de benefícios indiretos já conquistados, como, por exemplo, descanso remunerado, férias anuais remuneradas, referenciais de jornada de trabalho normal e de horas extras, planos de saúde, transporte, alimentação, auxílio educação e perdas salariais. Outro importante aspecto negligenciado no contexto do trabalho precário é a organização e as condições de trabalho, que se apresentam através de metas inalcançáveis, ritmo intenso de trabalho, pressão de tempo, intensificação do controle e gestão pelo medo. É neste cenário que se encontra outro elemento marcante, a precarização da saúde dos trabalhadores, caracterizada pela fragilização física, mental e subjetiva dos trabalhadores. Observa-se ainda, a fragilização do reconhecimento social, aspecto fundamental para a saúde mental, e que deixa de compor o universo do trabalho, atuando diretamente na alienação dos trabalhadores. Por fim, como efeito de tais fenômenos, percebe-se a ausência do coletivo de trabalho, responsável pela intensa fragilização dos profissionais que acabam respondendo sozinhos pelo seu próprio sofrimento e adoecimento (Franco, Druck, & Seligmann-Silva, 2010, p. 231).

Vivências de prazer no trabalho

Quando os participantes foram convidados a falar sobre o que havia de bom no trabalho ou sobre o que trazia prazer nas atividades realizadas, o silêncio e as brincadeiras apareceram como a primeira resposta, como na fala de Luiz, que, diante da pergunta: “E o que tem de bom nesse trabalho?” (moderadora do grupo), respondeu: “Tem esterco pra cherá [risos]” (Luiz). A dificuldade para identificar aspectos positivos no trabalho pode estar atrelada à dependência da atividade diante da falta de opção de emprego, da falta de escolaridade e do endividamento, conforme relato: “É quase uma dependência, tu depende daquilo lá pra sobreviver. Se tu gosta ou não gosta, tem que fazer igual” (Lurdes).

Apesar disso, quando mais instigados pela moderadora, alguns participantes associaram o prazer no trabalho ao fato de estarem mantendo uma tradição da família ou por realizarem esta atividade desde a infância. O processo de desenvolvimento e convivência com os suínos também foi sinalizado como uma fonte de prazer, principalmente por conseguirem visualizar algum resultado do trabalho, seja no tratamento e “cura” dos animais, seja na relação diária com eles: “Ah... isso é bom, a gente gosta. Medicá o animal e vê o resultado, a gente fica feliz ... Olhar os bichinho crescer” (Ricardo). Outra fonte de prazer mencionada é o retorno financeiro obtido com a entrega dos animais.

Ao longo dos relatos dos fatores geradores de prazer, também foi possível identificar alguns aspectos ligados à inteligência prática dos suinocultores, categoria diretamente associada ao prazer e à realização no trabalho. A inteligência prática é um modo de apropriação do trabalho, um saber fazer atrelado à atividade laboral (Mendes, 2007a). Os conhecimentos desenvolvidos pelos trabalhadores estavam vinculados ao manejo e ao cuidado dos suínos, como, por exemplo, na identificação de sintomas e doenças, aplicação de medicações e percepção quanto às necessidades dos animais, como evidenciado na fala: “Que nem hoje, era dez e meia, eu passei, abri os tampão, olhei um, não levantou pra vim comer, daí eu pensei, esse não tá bem” (Ricardo). Embora a inteligência prática contribua substancialmente para a saúde mental no trabalho, na medida em que permite a expressão da subjetividade (Mendes & Morrone, 2010), os suinocultores possuem poucos espaços para expressá-la, e relatam, inclusive, punições por parte da cooperativa diante da utilização do próprio conhecimento em detrimento das prescrições estabelecidas.

O uso, mesmo que restrito, da inteligência prática pode representar uma possibilidade de o suinocultor colocar a sua marca no trabalho, em busca da realização e do prazer. No entanto, de acordo com Mendes (2007a), para que os recursos da inteligência prática e da cooperação sejam bem sucedidos e possam atuar na transformação dos fatores geradores de sofrimento, o coletivo de trabalho e a mobilização subjetiva dos trabalhadores precisam estar implicados neste processo.

Vivências de sofrimento no trabalho

a) Sobrecarga de trabalho

A organização do trabalho na suinocultura, marcada pela intensificação das atividades na busca por melhores resultados, pela rigidez e exploração praticada pelo cooperativismo, pelo trabalho informal e consequente ausência de vínculos trabalhistas, benefícios e proteção social, contribui para o estabelecimento da sobrecarga de trabalho. A patologia da sobrecarga é caracterizada pelo processo no qual o trabalhador assume uma carga de trabalho que está além de suas capacidades, com o intuito de atingir melhores resultados e de atender às demandas da organização do trabalho de alavancar metas de produtividade cada vez maiores (Dejours, 2007b).

Nas vivências dos participantes deste estudo, um importante potencializador da sobrecarga de trabalho é a saída dos filhos de casa ou as pequenas configurações familiares, que geram falta de mão-de-obra e, também, ausência de sucessor para manter os negócios da família “Onde só têm duas ou três pessoas é ruim, né, daí acaba se estressando” (Lurdes). Tal aspecto acaba interferindo na disponibilidade de mão-de-obra, visto que, no cenário dos pequenos produtores rurais, a unidade familiar é a base de toda a estrutura produtiva (Logan & Ranzijn, 2008). Para os adolescentes, a realização de atividades na suinocultura é ainda menos almejada, em função do preconceito social e do cheiro do esterco.

No caso das mulheres, a sobrecarga se mostrou ainda maior, na medida em que, além de realizarem atividades na agricultura, são responsáveis pelas atividades domésticas e por inúmeros outros papéis familiares. Estes dados corroboram os achados de um estudo realizado na Austrália, que identificou que, nos últimos anos, as mulheres rurais começaram a responder tanto pelos afazeres domésticos e de educação dos filhos, quanto pelo trabalho na agricultura, assumindo uma carga de trabalho e de responsabilidades muito superior à do papel masculino. Nos achados do estudo, tais transformações se mostraram associadas a sérios danos à saúde mental, a saber: isolamento social, depressão, estresse e ansiedade (Logan & Ranzijn, 2008).

Também, a falta de lazer, de férias ou de dias de folga do trabalho é considerada um fator de sofrimento para os participantes do estudo, que contribui para a intensificação do trabalho, como observado nas falas: “Lá em casa o que é mais ruim, eu não acho tão ruim limpá, acho pior tratá. Tratá é quatro veiz por dia, tu não pode sair, se vai pra cidade já logo tem que volta” (André). Apesar de a maioria dos participantes relatarem este processo de aprisionamento em função das atividades de trabalho, alguns afirmaram conseguir se organizar anualmente para descansar ou, mesmo, viajar: “Eu, graças a Deus, consegui ir junto numa incursão, faz muitos anos, fomos pras praias” (Marcelo). Neste sentido, percebe-se que, além dos impedimentos provenientes da rotina de trabalho e características da atividade na suinocultura, existe uma dificuldade de organização e gestão dos próprios trabalhadores no que tange ao trabalho, dificultando a realização de períodos de descanso. Se, de um lado, estão as convenções e exigências aplicadas pela Cooperativa 1, do outro, está o ritmo imposto por eles próprios, estabelecido para dar conta não só do trabalho na suinocultura, mas também das outras atividades rurais.

b) Falta de reconhecimento

Os suinocultores identificaram como um fator de sofrimento a falta de reconhecimento pelo trabalho realizado, tanto no âmbito social, quanto pela Cooperativa 1. No que diz respeito ao aspecto social, se sentem, em muitos momentos, ridicularizados por trabalharem com suínos ou em função do cheiro de esterco que fica impregnado nas roupas. Falas como: “Eu já ouvi dizer que é trabalho de presidiário, pra preso” (Pedro), e “Pra mim já falaram, perguntaram como é que naquele dia eu não tava fedendo porco” (Paulo), demonstram esta problemática. Os participantes trouxeram relatos de que socialmente o trabalho na suinocultura é visto como algo simples de ser realizado ou com pouca complexidade, conforme relato de João “muitos acham que é fácil, que qualquer um faz”.

A falta de reconhecimento, por parte da Cooperativa 1, está relacionada: aos baixos valores recebidos; à ausência de retorno positivo sobre as atividades realizadas; e ao sentimento de que a cooperativa se preocupa demasiadamente com a própria lucratividade, deixando de lado o bem-estar do suinocultor. Alguns relatos evidenciam esta problemática: “Todo esse tempo que eu trabalho com porco, só me chamaram pras reunião pra dizer o tamanho das canaleta que eu tinha que colocá no chiqueiro, a medida dos cocho, o que podia fazê e o que não podia fazê..”. (João). A forma como os trabalhadores são remunerados intensifica a falta de reconhecimento na medida em que avalia apenas o resultado final do trabalho, desconsiderando o fazer cotidiano. Sabe-se que o sentido do trabalho não está no resultado final, mas sim no caminho percorrido para chegar ao resultado final, na experiência subjetiva do trabalho (Dejours, 2008a). Deste modo, quando os trabalhadores se deparam com um resultado ruim ao final do ciclo produtivo, é como se todo investimento posto no cuidado diário dos suínos não tivesse valor ou reconhecimento algum.

Conforme Dejours (1992, 2004, 2008b), o reconhecimento no trabalho se dá pela via da validação social realizada pelos pares, clientes, fornecedores e sociedade de modo geral, através do retorno financeiro, de elogios e do reconhecimento da importância da atividade. Sendo assim, assume um papel crucial no estabelecimento do prazer no trabalho e na construção da identidade do sujeito, pois os investimentos na identidade e na subjetividade do homem dependem do olhar do outro (Mendes, 2007a).

Ademais, foi possível identificar que, com o passar do tempo, os suinocultores passam a restringir o contato social com pessoas que não trabalham na suinocultura, em função da vergonha e dos constrangimentos ocorridos pelo cheiro de esterco. Alguns relatos elucidam este processo: “A gente, que é acostumado, não sente o cheiro, mas tu vai no meio dos outros, tá loco, todo mundo sente. É bem ruim” (André); “Tu chega num lugar, tipo hoje, além de tu não se sentir bem, ninguém se sente bem” (Clara). Estudos anteriores acerca dos efeitos do odor em trabalhadores que atuam com animais confinados mostraram que, além de gerar danos físicos, como dor de cabeça, náusea, problemas no apetite, problemas respiratórios, irritação nos olhos e nariz; o mau cheiro pode influenciar negativamente na saúde mental por meio de alterações de humor, agitação, transtornos do sono e depressão (Donham, 2010; Schiffman, Miller, Suggs, & Graham,1995).

As vivências atreladas à falta de reconhecimento e ao preconceito podem contribuir para o entendimento da fragilidade dos fatores de prazer no trabalho, pois, na medida em que não há retorno positivo sobre o trabalho, seja por parte da sociedade, da família, dos pares, seja da própria cooperativa, o prazer do fazer cotidiano deixa de existir e o sentido de estar realizando a atividade fica apenas alicerçado no passado ou na dependência da atividade para sobreviver (Mendes & Facas, 2011).

c) Desgaste gerado pelo trabalho

Como consequência da precarização, da sobrecarga, da dificuldade para encontrar fatores de prazer no trabalho e da falta de reconhecimento, surgem o esgotamento físico e o desgaste mental, este último está relacionado à perda ou a transformações negativas na capacidade mental, envolvendo a subjetividade e as faculdades humanas (Seligmann-Silva, 1994), aspectos bastante enfatizados pelos participantes. Quando questionados sobre o que era ruim ou sobre o que gerava sofrimento na suinocultura, as primeiras respostas e também as mais enfatizadas estavam associadas ao desgaste gerado pela organização do trabalho. Segundo os participantes, atividades como a limpeza das pocilgas, a pesagem dos suínos, o carregamento e descarregamento dos suínos, a alimentação e a separação dos animais estão entre as mais desgastantes. Estas questões podem ser evidenciadas nas falas: “Uma coisa ruim é quando vêm os porquinho que tu tem que separá as fêmea dos macho, daí tu fica abaixado, separando tudo e sempre leva um banho de merda”(Lucas); “Eu acho que sofre quem tira cascão, judia muito do corpo” (Pedro).

Os efeitos do esforço efetuado também aparecem na forma de sintomas e danos à saúde, tais como: tristeza; ausência de vontade de trabalhar; intensas dores nas costas; rinite; dores nos pés e nos joelhos; e grande frequência de lesões e acidentes (chutes, mordidas e esmagamentos provocados pelo contato com os suínos). Algumas falas elucidam tal sofrimento: “forcei demais o pé, daí machucou. Daí rompeu os ligamento e tive que fazer uma cirurgia” (João); “Dói muito a coluna e os joelho, chega dá uma tristeza na gente” (Marcelo). Apesar do adoecimento, os trabalhadores continuam trabalhando e, quando se encontram fisicamente impossibilitados, como no caso de cirurgias, não possuem acesso à rede de proteção social do Estado.

Quando questionados a respeito da possibilidade de afastamento das atividades por meio da Previdência Social, estes mencionaram não ter acesso ou não conhecer os procedimentos, corroborando discussões já realizadas por Silva (2007) e por Wünsch e Mendes (2011) acerca da fragilidade da proteção social no atual cenário do trabalho. Para os suinocultores, deixar de trabalhar significa sobrecarregar os demais membros da família ou, ainda, reduzir significativamente a renda familiar. Condições similares foram identificadas em estudos de Fialho (2003) e Schlindwein (2010) sobre o trabalho de fumicultores, que, diante do adoecimento, presenciavam a sobrecarga dos outros membros da família, aumentando as chances de estes também sofrerem acidentes e adoecerem em razão da intensificação do trabalho. Assim, Fialho (2003) entende que uma medida que poderia resolver o problema seria contratar profissionais para substituir temporariamente o trabalhador debilitado, mas esta é uma prática incomum, por ser extremamente onerosa às famílias.

Estratégias Defensivas

a) Negação da dor: “eu não dou bola pras dores”

Perante a necessidade de trabalhar, apesar das intensas dores geradas pela sobrecarga de trabalho ou pelas lesões, os suinocultores fazem uso de mecanismos de negação do sofrimento e dos sintomas gerados pelo processo de adoecimento: “Eu não dou bola pras dores, se não eu não faço nada” (Ana); “Se você tá com dor ali, tá sofrendo... desistir não dá. Tem que continuar...” (Ricardo). Este cenário, como já evidenciado por estudos anteriores (Carvalho & Moraes, 2011; Franco, Druck & Seligmann-Silva, 2010; Santos, Mendes & Araujo, 2009), atua na intensificação das atividades e na alienação das sensações do corpo, agravando ainda mais os sintomas e propiciando o estabelecimento das lesões por esforço repetitivo/distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (LER/DORTs), entre outras patologias ligadas à sobrecarga.

Tal estratégia defensiva pode se apresentar aos trabalhadores como um fator de risco para a saúde, já que diminui a preocupação com os sintomas físicos vivenciados e, consequentemente, as atitudes de autocuidado. Ao longo da pesquisa, foi possível notar que os suinocultores não utilizam roupas e calçados apropriados para as atividades que necessitam realizar, máscaras, protetor auricular ou luvas para o trabalho, e não costumam procurar atendimento médico diante das dores ou lesões, optando pela automedicação ou técnicas medicinais alternativas.

Além disso, a negação do próprio sofrimento, ou do sofrimento dos outros, se constitui como um fator que contribui para o adoecimento no trabalho, afinal, o processo de negar ou ignorar um fator de sofrimento exclui a possibilidade de transformação ou de ressignificação do sofrimento (Mendes, 2007a).

b) Racionalização: “Tem coisa pior que lidá nos chiqueiro”

Os trabalhadores também lançaram mão de explicações racionais para estarem trabalhando na suinocultura, fundamentadas no fato de que existem atividades piores do que a realizada e que, por mais que o retorno financeiro seja incerto, pelo menos ao final da etapa produtiva será recebido algum valor. Em outras atividades, como na lavoura, por exemplo, este retorno pode não vir: “Tu sabe que dali tanto tempo tu vai ter um dinheiro, não sabe quanto, mas alguma coisa tu vai ter” (Lucas). Outro aspecto abordado é de que outras atividades também teriam momentos difíceis: “Eu pensei que se tu procurasse o que tu gosta de fazê, também ia ter dias que tu não ia gostar, então é melhor ficar nisso mesmo” (Sônia).

Frente às explicações lógicas para continuarem trabalhando, supervalorizam a atividade e se tornam reféns do próprio sistema, deixando de refletir sobre os aspectos negativos do trabalho, e consequentemente, das possibilidades de transformação e melhoria das condições de vida e de trabalho. Já não questionam o quanto recebem ou se os valores pagos são justos, pois receber algum valor é o suficiente: “Qualquer coisa é melhor que nada” (Maria). A racionalização e a negação permanente da dor estão diretamente atreladas à patologia da servidão voluntária (Mendes, 2007b), na medida em que os trabalhadores, apesar da exploração e de todo sofrimento vivenciado, sentem-se agradecidos por pertencerem à Cooperativa 1 e por receberem algum retorno financeiro, mesmo que precário e insuficiente.

Com isso, entende-se que a precarização do trabalho na suinocultura não está relacionada apenas aos aspectos da organização do trabalho, mas também ao atual contexto do trabalho rural, que contribui para a submissão do agricultor mediante condições vida e de trabalho inadequadas, da falta de acesso aos meios de proteção social, educação, lazer, saúde e de alternativas diferenciadas de geração de renda. Dessa maneira, o sofrimento dos trabalhadores investigados e, especialmente, os dispositivos utilizados para amenizar seus impactos e garantir a continuidade do trabalho ultrapassam a análise clínica e recaem sobre as novas formas de acumulação flexível de capital, pautadas na gestão pelo medo, no individualismo e na banalização da injustiça social (Dejours, 2007a).

Considerações finais

Com o objetivo de analisar as vivências de prazer e de sofrimento de suinocultores no trabalho, além de caracterizar a organização do trabalho neste meio e de compreender as estratégias defensivas utilizadas por estes trabalhadores diante do sofrimento, o presente estudo ampliou os dados já existentes acerca dos riscos físicos atrelados à atividade e elucidou problemáticas ligadas à precarização do trabalho na suinocultura. Nesse sentindo, a análise das vivências dos referidos trabalhadores permitiu conhecer a dinâmica de como ocorre a intensificação do sofrimento e o papel das estratégias defensivas no impedimento da mobilização coletiva e da transformação da realidade de trabalho.

A organização do trabalho caracterizada pelo modelo de gestão da cooperativa e pelas pressões impostas pelos próprios trabalhadores na busca pelo sustento familiar e por melhores condições de vida gera sobrecarga, que agrava o sofrimento, provocando desgaste e sintomas associados ao adoecimento, como, por exemplo, estresse, ansiedade, insegurança, perda da vontade de trabalhar, dores crônicas, lesões e acidentes. A falta de reconhecimento no trabalho e o preconceito social em função da atividade também atuam como intensificadores do sofrimento.

Sugere-se que futuros estudos investiguem questões relacionadas à saúde mental dos adolescentes no meio rural. Muitos participantes falaram sobre a dificuldade para lidar com os filhos, sobretudo diante do uso e abuso de drogas, da ocorrência de gravidez na adolescência, das fugas de casa, dos episódios de depressão e de isolamento social. Ademais, caberia investigar questões atreladas à saúde mental da mulher no trabalho rural e, também, acerca das configurações do trabalho infantil, bastante comum entre as famílias.

Tendo em vista os resultados obtidos, pôde-se concluir que os suinocultores investigados vivenciam condições precárias de trabalho, o que têm causado prejuízos à sua saúde física e mental. A contribuição desta investigação teve um caráter científico, na medida em que construiu conhecimento a respeito das vivências de trabalho dos suinocultores, um grupo ainda pouco investigado pelos estudos da psicologia e da própria psicodinâmica do trabalho. E teve também uma contribuição de caráter político e social, direcionada aos próprios suinocultores, que possibilitou a construção de um espaço de reflexão e de aproximação com seus pares.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2015
  • Revisado
    13 Jan 2016
  • Revisado
    31 Jan 2016
  • Aceito
    01 Fev 2016
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